História moderna | Paulo Miceli

Na introdução do livro, Paulo Miceli começa com uma divagação sobre a distância, mencionando a vagareza com a qual as notícias corriam ao longo do século XVI, mesmo que para reportar eventos grandiosos. Na sequência, o autor discorre sobre as grandes navegações, referindo-se à empreitada inicial dos portugueses na conquista de Ceuta, ocorrida em agosto de 1415. Em termos estratégicos, esta conquista implicava a posse de um “miradouro natural”, pois através dele seria possível vigiar a navegação que cruzava o estreito, na direção do Mediterrâneo e do Atlântico. A manutenção do território recém ocupado foi dispendiosa, devido ao estado de guerra constante, tornando-o pouco atrativo aos olhos dos portugueses. Em 1434, Gil Eanes foi responsável por ultrapassar o cabo Bojador, avançado rumo à tão mal afamada Zona Tórrida, que despertou temores na Antiguidade e Idade Média, por tratar-se de um limite a partir do qual as águas do mar ferviam, impossibilitando a manutenção da vida. Como bem lembra Paulo Miceli, a superação destas fronteiras possibilitava o aprimoramento do “desenho da Terra”: as novas rotas oceânicas ofereciam a possibilidade de se desbravar o desconhecido e de vencer antigos temores. Ao ultrapassar o cabo das Tormentas no ano de 1488, Bartolomeu Dias, pressionado pela tripulação que vivia maus bocados, retornou a Portugal, naufragando em sua segunda tentativa de ultrapassá-lo, no ano de 1500, comandando um dos navios da esquadra de Cabral.

Sabe-se, contudo, que no ano de 1497, Vasco da Gama partiu de Lisboa, aproximando-se, no ano seguinte, de Calicute, inaugurando a “Rota do Cabo”. De volta a Lisboa em 1499, com apenas duas das quatro embarcações que comandava, Gama comunicou as descobertas, e a Coroa logo organizou nova viagem em 1500, entregando o comando de 13 navios a Pedro Álvares Cabral. Intencional ou não, foi nesta ocasião que avistaram montes, serras e arvoredos da terra que, logo, recebeu o nome de Terra de Vera Cruz. Depois de desbravar o território por alguns dias, a esquadra retoma sua missão inicial, encaminhando-se para Calicute. Como assevera Miceli, é a primeira ocasião registrada de uma viagem que uniu quatro continentes (Europa, América, África e Ásia). Quando de seu retorno em 1501, Cabral deparou-se com três navios que sairam de Portugal e seguiam rumo ao Novo Mundo, a mando do então rei português D. Manuel I. Junto à tripulação, encontrava-se Américo Vespúcio, navegador italiano que trabalhava para o primo-irmão de Lorenzo Médici, o Magnífico. Enquanto os portugueses singravam pelas rotas que se abriam, a Espanha buscava colocar em prática seu projeto de expansão marítima. Cristóvão Colombo, que não conseguiu apoio da Coroa portuguesa, o obteve dos reis Fernando e Isabel, no ano de 1492. A rota traçada pelo navegante genovês possibilitou à Espanha grandes feitos, como a conquista do Império Asteca por Hernán Cortez em 1519 e a vitória de Pizarro contra os incas em 1532.

O contato com o outro, lembra Paulo Miceli, e a troca de informações e de pessoas, levaram à alteração e criação de costumes e valores, produzindo-se novas formas de vida e cultura (p. 26). Além disso, estas várias viagens e, através delas, o mapeamento do mundo, possibilitaram a unificação da Terra.

Depois de mencionar estes elementos e outros mais, o autor problematiza o conceito de Renascimento, evidenciando seus limites e a complexidade dos homens que viveram sob seu amparo (como Leonardo da Vinci). Citando Delumeau, Miceli refere-se ao período como um “oceano de contradições”: foram justamente estas águas revoltas que se tornaram cenário para a querela entre antigos e modernos.

O primeiro a utilizar o termo Renascimento para mencionar o movimento que resultou na “descoberta do mundo e do homem” (p. 33) foi Jules Michelet (1798-1874), no ano de 1855. Cinco anos mais tarde, o suíço Jacob Burckhardt (1818-1897) também se valeu do termo, mas para referirse ao renascimento da humanidade, que venceria os “grilhões” da Idade Média e possibilitaria o surgimento de uma consciência moderna. Miceli considera A cultura do Renascimento na Itália uma das “principais obras historiográficas representativas da História Cultural” (p. 33). Burckhardt, como se sabe, ressaltou a importância da arte para o estudo de história e manifestou descontentamento em relação ao seu tempo e, sobretudo, em relação ao Estado, o que fez com que ganhasse o desapreço de historiadores metódicos, positivistas e hegelianos e buscasse refúgio na história. No Renascimento, a cultura teria sobreposto o Estado e a religião, possibilitando o nascimento do indivíduo moderno. Esta cultura teria ganhado força graças ao papel dos mecenas, através dos quais os artistas foram financiados.

No primeiro capítulo, intitulado “O Estado como obra de poder e arte”, Paulo Miceli começa pela obra O Príncipe, de Maquiavel, editado em 1532. O autor não deixa de esclarecer alguns mal-entendidos referentes a essa personagem, como a interpretação equivocada da expressão “os fins justificam os meios” (p. 39). Logo a seguir, são tratadas a ascensão e queda dos membros da família Médici ao longo dos séculos e uma das características fundamentais de sua gestão: a paixão pela cultura. No capítulo seguinte, vislumbrando o humanismo fora da Itália, o autor destaca o papel de pensadores que combateram autoridades eclesiásticas e seculares, tais como François Rabelais (1493-1553), grande defensor da liberdade, na qual deveria ser assentada toda a produção de conhecimento, Montaigne (1533-1592), autor que esboçou em seus Ensaios opiniões no mínimo polêmicas em seu tempo, como aquela que coloca em perspectiva a denominação de bárbaro (que poderia muito bem ser aplicável à sociedade europeia), Etienne La Boétie (1530-1563), amigo de Montaigne e autor do renomado Discurso da servidão voluntária, cujo argumento voltava-se contra a tirania e a favor da liberdade, e Thomas More (1478-1535), autor da Utopia, publicado pela primeira vez em 1516 pelo seu amigo, Erasmo de Roterdã. O livro de More retrata as misérias que abateram o povo inglês à época do capitalismo, beneficiando a Coroa, a nobreza e o clero, e descreve uma ilha livre da corrupção da corte. O Elogio da loucura (1511), de Erasmo, é o último exemplo mencionado no capítulo, por tratar-se de outra defesa à liberdade, sobretudo no que diz respeito à subordinação e à educação.

No terceiro capítulo, “Entre a religião e a ciência”, Paulo Miceli aborda o tema da Reforma começando pelo papel nuclear de Martinho Lutero (1483-1546), autor das 95 teses que tiveram uma imensa e quase imediata repercussão. Suas críticas à Igreja Católica imediatamente atingiram o papa Leão X que, por sinal, era um dos componentes da família Médici. Lutero desferiu uma série de ataques, e um dos que ganhou maior visibilidade foi aquele contra a venda de indulgências, que ele próprio testemunhou quando entrou para a ordem dos agostinianos e visitou Roma no ano de 1511. Vale recordar que, à época, a Alemanha era um “país sem unidade”, para utilizar termo empregado por Lucien Febvre. Por outras palavras, poder-se-ia dizer que lhe faltava uma cabeça, pois o poder encontrava-se concentrado nas mãos dos chefes regionais, sendo o imperador uma mera figura “representativa”. A partir do rompimento com a Igreja de Roma e da apropriação dos bens pertencentes ao clero alemão, o país “unificou-se” em torno da Reforma.

Seguramente, a Reforma não se restringiu à Alemanha, fazendo-se presente, por exemplo, na Suíça, através de Ulrico Zuínglio (1484-1531), sacerdote bastante ligado a Erasmo, e na França, com o importante papel desempenhado por João Calvino (1509-1564), autor do livro Instituição da religião cristã, escrito no ano de 1536. Após dar a ler a repercussão da Reforma, Paulo Miceli ocupa-se da chamada Contrarreforma, espécie de resposta ao empreendimento protestante efetuada, também, de forma plural, em figuras como Johann Maier von Eck (1486-1543), Johann Cochlaeus (1479-1552) e, de forma bastante contraditória, o rei Henrique VIII (1491-1547), da Inglaterra. A Igreja de Roma buscou planejar-se contra os avanços da Reforma, organizando, em 1545, o Concílio de Trento, para reforçar questões de caráter doutrinário e moral e refrear os abusos cometidos. Por último, não poderia deixar de mencionar a Companhia de Jesus, através da qual missões estrangeiras foram instituídas para consolidação de uma educação católica.

Paulo Miceli ressalta a mudança de foco dos tribunais inquisitoriais, que agora se ocupavam prioritariamente daqueles que ofendiam o poder multissecular da Igreja. No final das contas, foi este poder que garantiu seu controle sobre a educação. Convém lembrar que humanistas como Rabelais, More e Erasmo de Roterdã tiveram formação teológica. Também não é de se estranhar a repercussão negativa de pensadores como Nicolau Copérnico (1473-543), que afirmou o movimento da Terra, Giordano Bruno (1548- 1600), que contrariou a concepção aristotélica então vigente da finitude do universo ao propor a infinitude e imobilidade do mesmo, e Galileu Galilei (1564-1642), criador do telescópio que, ao testemunhar a superfície áspera e não lisa da Lua, colocou por terra o princípio, também de Aristóteles, da incorruptibilidade celeste. Note-se, portanto, que a defesa da teoria heliocêntrica incomodava, e muito, os “antigos guardiões das verdades” que, como notou Miceli, “assistiam, sem compreender, novos homens, novas ideias, novos livros e novos mundos gravitarem à volta de seus pequenos, atordoados e adormecidos intelectos” (p. 92).

Ao tratar da fabricação (divina) do rei no capítulo seguinte, Miceli aborda as implicações resultantes da tentativa de justificativa do direito divino do rei, atendo-se, sobretudo, à figura do Rei Sol, Luís XIV. Antes, contudo, ele discorre sobre pensadores que procuraram justificar este poder absoluto, como Thomas Hobbes (1578-1679), que entendia na constituição desse poder central a possibilidade de uma vida segura em sociedade. Estabelece-se, assim, a figura de um “Deus mortal” que, em nome do Deus imortal, garantiria paz e segurança. A opção pela história de Luís XIV justifica-se, portanto, na medida em que, ao longo das várias décadas em que se manteve no poder, o rei francês investiu alto para ter sua imagem pública fabricada com esmero e eficácia. Paulo Miceli tem razão ao dizer que não há como saber a eficácia desta imagem artificialmente produzida nos meios camponeses, que associavam muitas vezes a figura do rei às cobranças de impostos, tornando-o, talvez, uma figura pouco querida. Mesmo na corte, as opiniões divergiam, e o Estado não contava com recursos para controlar cada manifestação contra a imagem de seu soberano.

O livro apresenta seu desfecho com três capítulos curtos, que tratam de temas diversos: um trata dos mercadores e de seu papel, mencionando escritos que buscavam orientar sua prática e outros que problematizaram seu lugar social, como aquele sobre o mercador de Veneza escrito por William Shakespeare. O penúltimo capítulo, que se volta para a cultura popular, acompanha a reflexão de Peter Burke esboçada em Cultura popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800. Nele, o autor depara-se com manifestações culturais que, se não hostilizavam, ao menos questionavam a figura de governantes, de membros do clero e de outras personagens que ocupavam papel de destaque na gestão do poder. Miceli destaca, ainda, o papel do carnaval e, por fim, o espetáculo da morte, que “sempre atraiu o gosto popular” (p. 133). No último capítulo, intitulado “A preparação para o futuro”, o autor começa pela Revolução Inglesa de 1640, acompanhando-a pelos traçados que Christopher Hill esboçou em O mundo de ponta-cabeça, sobretudo no que diz respeito aos movimentos revolucionários. Já perto de finalizar seu itinerário, Paulo Miceli destaca o papel dos iluministas e das filosofias que cogitavam a ideia de progresso por intermédio da razão. Com a Revolução Francesa, a possibilidade de reconciliação com o Antigo Regime pareceu muito improvável. Mesmo quando Luís XVI perdeu, literalmente, a cabeça, um clima hostil pairou em território francês, e a guilhotina continuou a fazer vítimas.

O estilo de Paulo Miceli é claro, e a narrativa, com formato de síntese, deixa ver sua vasta erudição. Sem a pretensão de percorrer todos os confins da intitulada “História Moderna”, o livro constitui a “ossatura da cultura historiográfica dedicada ao período” (p. 9). Trata-se, portanto, de um mapa, objeto que tanto instigou as pesquisas e escritos deste autor que, ao costear um extenso período da história, deixa registrado as rotas percorridas, oferecendo ao leitor a oportunidade de percorrê-las. Seu livro termina com algumas sugestões de bibliografia, e esta resenha finda reforçando a sugestão que justifica sua existência: a pronta leitura de História moderna.


Resenhista

Cleber Vinicius do Amaral Felipe – Mestre em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pós- doutorando no Departamento de Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp), contando com bolsa PNPD-Capes. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MICELI, Paulo. História moderna. São Paulo: Contexto, 2013. Resenha de: FELIPE, Cleber Vinicius do Amaral. Cadernos de Pesquisa do CDHIS. Uberlândia, v. 30, n. 1, p. 234-240, jan./jun. 2017. Acessar publicação original [DR/JF]

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