Human Trafficking and Slavery Reconsidered: Conceptual Limits and States’ Positive Obligations in European Law | Vladislava Stoyanova

É tanto um assunto da atualidade quanto um corpus jurídico em vias de desenvolvimento que Vladislava Stoyanova, professora adjunta de Direito Internacional Público na Universidade de Lund (Suécia), pretende abordar nesta obra dedicada à questão — ou melhor, às questões, para ser fiel ao posicionamento da autora — do tráfico e das formas severas de exploração de seres humanos. Versão condensada, e algo remanejada, da tese de doutorado defendida na mesma universidade em abril de 2015, este livro apresenta, portanto, o conjunto das reflexões desenvolvidas sobre o assunto pela professora Stoyanova. Autora prolífica, ela desenvolveu alguns elementos de sua problemática em diversas publicações anteriores.

A tarefa empreendida por Stoyanova anuncia-se logo admirável, tanto no sentido próprio do termo como no figurado: apoiando-se na doutrina anglófona existente, a autora não ambiciona apenas realizar um esclarecimento conceitual do conjunto das noções em discussão, a saber, o tráfico de seres humanos, a escravidão, a servidão e o trabalho forçado. Também se empenha em tornar mais precisos os contornos das obrigações impostas aos governos pelos textos jurídicos internacionais aplicáveis, obrigatoriamente, ao que ela designa, de forma genérica, como “abusos sofridos pelos migrantes”, na perspectiva assumida por ela de medir sua eficiência em termo de proteção aos migrantes. Sendo o assunto potencialmente titânico, o quadro do estudo fica circunscrito aos instrumentos jurídicos dedicados ao fenômeno em questão na esfera europeia, em particular aqueles vigentes no âmbito do Conselho da Europa, delimitação puramente formal, somos tentados a dizer, haja vista a presença marcante, ao longo da análise proposta, do exame de material proveniente de outros sistemas jurídicos.

Construído, em ampla medida, como resposta às carências conceituais diagnosticadas na literatura dedicada até então ao tráfico de seres humanos, a obra é organizada em duas partes: a primeira trata do quadro jurídico relativo ao tráfico; a segunda aborda aquele procedente da legislação dos direitos humanos, que foca mais especificamente a escravidão, a servidão e o trabalho forçado.

A primeira parte inicia com uma perspectiva histórica que aborda o recente reaparecimento do conceito de tráfico de seres humanos no cenário internacional através de sua filiação com os esforços anteriormente desenvolvidos pelos governos para apreender este fenômeno através do direito. O estudo das circunstâncias em torno da elaboração das primeiras convenções internacionais na primeira metade do século XX evidencia, por um lado, a relação estreita que a noção de tráfico mantém com a prostituição e, por outro lado, a predominância da abordagem abolicionista na luta contra a prostituição no âmbito internacional.

Deste ponto de vista, se o processo de adoção do Protocolo adicional à Convenção das Nações Unidas contra o crime transnacional, visando a prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, em particular das mulheres e das crianças, de 15 de Novembro de 2000, também conhecido como Protocolo de Palermo, conduziu a uma ampliação da noção de tráfico para formas de exploração diferentes da prostituição, o elemento constante que reúne o conjunto destes instrumentos é a preponderância da dimensão migratória ligada ao conceito. Dos primeiros tratados internacionais até o Protocolo de Palermo, o que os governos buscam apreender através da noção de tráfico de pessoas é menos a exploração do indivíduo do que o deslocamento migratório ilegal que antecede o empreendimento de exploração, destaca a autora. Detendo- se mais especificamente na adoção do Protocolo das Nações Unidas, a análise concentra-se no contexto jurídico da elaboração do texto, contexto que faz deste um instrumento de direito penal transnacional e lhe designa como finalidade a luta contra o crime organizado, diante do que a proteção das vítimas só pode ter um lugar marginal.

Vem em seguida a apresentação dos instrumentos adotados posteriormente no âmbito europeu, em particular a Convenção do Conselho da Europa sobre a luta contra o tráfico de seres humanos, de 16 de maio de 2005, e a Diretriz da União Europeia (Diretriz 2011/36/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho), de 5 de abril de 2011, tratando da prevenção do tráfico de seres humanos e da luta contra este fenômeno, assim como da proteção das vítimas. Se os contextos jurídicos respectivos diferem em alguma medida daquele no qual se insere o Protocolo de Palermo, a autora não vê neste ponto divergência radical que, modificando substancialmente o objeto do tratado, afetaria sua interpretação. Assim, embora a Convenção do Conselho da Europa — cuja adoção foi motivada pela “deficiência dos tratados transnacionais relativos a leis criminais […], especificamente seu escasso interesse pela proteção e assistência das vítimas” (p. 27) — contenha um conjunto de disposições expressamente dedicadas à proteção e à assistência das vítimas de tráfico, e se situe claramente numa perspectiva de proteção dos direitos humanos (notadamente os alíneas 3 e 5 de seu Preâmbulo), no entanto, sua classificação oficial como tratado de direitos humanos, proteção das vítimas e cooperação judicial em matéria penal (os grifos são nossos), bem como as medidas que ela destina ao direito penal material e processual, não a distinguem fundamentalmente da abordagem de direito penal transnacional que caracteriza o Protocolo de Palermo. Consequentemente, o regime jurídico aplicável ao tráfico de seres humanos pode ser apreendido como um conjunto unitário, o que justifica uma análise sistemática de seu conteúdo.

Vladislava Stoyanova começa logicamente debruçando-se sobre a definição da noção de tráfico de seres humanos. E esta é uma parte chave de sua demonstração, pois ela ajusta aqui o significado tanto concreto quanto teórico do termo. Enquadrando seu raciocínio às regras de interpretação dos acordos internacionais provenientes da Convenção de Viena de 1969, ela estabelece que a leitura da definição contida no artigo 3 do Protocolo de Palermo deve refletir o espírito do direito penal transnacional de luta contra o crime organizado, que ela evidenciou anteriormente, ou seja, de instrumento visando apreender um procedimento criminoso envolvido no deslocamento transfronteiriço de indivíduos. Isto a leva a concluir que se “as cinco ações na definição de tráfico podem todas, e cada uma isoladamente, ser qualificadas como tráfico” (p.34) (o que é indicado pelo uso da conjunção “ou” no texto, que confere um caráter alternativo às cinco ações elencadas: recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento), o fenômeno do tráfico de seres humanos, entretanto, não pode ser constituído senão quando estes elementos se inscrevem em um contexto transfronteiriço (p. 39). A definição desse tráfico, pois, deve ser entendida como contendo um elemento constitutivo adicional implícito, relativo à exigência de uma transposição de fronteira internacional. Esta precisão permite que a autora desconstrua a argumentação de uma parte da doutrina que, fundando-se, por um lado, no caráter alternativo das ações observadas e, por outro lado, na superposição temporal de algumas delas (o alojamento e o acolhimento) com a exploração correlativa dos indivíduos, avaliava que “a definição engloba tanto levar uma pessoa à exploração como a manutenção desta pessoa numa situação de exploração”, e que, por conseguinte, era na prática “difícil identificar um explorador que não fosse pego” (p. 37, grifo meu) pelo direito penal via a qualificação do crime de tráfico de seres humanos. Permite-lhe também, no plano teórico, colocar uma linha de distinção clara entre os conceitos de tráfico de seres humanos e os de escravidão, servidão e trabalho forçado, o primeiro descrevendo “processo enganoso e coercitivo que possa levar à exploração” (p. 35), ao passo que os demais se reportam às diversas formas de exploração nas quais pode desembocar o tráfico. No esquema assim estruturado por Stoyanova, a disposição da Convenção do Conselho da Europa relativa à Luta contra o Tráfico de Seres Humanos, que alarga seu campo de aplicação “a todas as formas de traficar seres humanos, quer nacional ou internacional, quer ou não ligadas ao crime organizado” (p.41), toma então a aparência de incongruidade, que vem aumentar a imprecisão, o que afeta, por outro lado, vários elementos da definição, a ponto de alterar sua qualidade intrínseca e comprometer sua transposição nos ordenamentos jurídicos nacionais.

O estudo prossegue com o exame das obrigações governamentais que o tráfico de seres humanos acarreta — ainda segundo o método que a autora se impõe, de uma aplicação rigorosa da regra de interpretação definida no artigo 13 da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados. Ao longo de uma análise extremamente minuciosa do texto da Convenção do Conselho da Europa relativa à Luta contra o Tráfico de Seres Humanos, Vladislava Stoyanova adentra os meandros e a opacidade de disposições cuja formulação reflete, de forma evidente, o difícil consenso que presidiu sua adoção (os trechos dedicados à concessão de residência às vítimas e sua proteção contra o afastamento do território são, neste quesito, particularmente eloquentes). Com uma preocupação constante em determinar não apenas o sentido, mas, sobretudo, o alcance prático das medidas de proteção e de assistência previstas em prol dos migrantes vítimas de tráfico, a autora passa em revista essas medidas uma por uma, a fim de esclarecer seu teor e confrontá-las, na tentativa de desvelar a coerência ou a contradição do conjunto do sistema implementado, recorrendo, para apoiar sua argumentação, se for o caso, às disposições conexas do direito da União Europeia ou do direito internacional dos refugiados. Resulta um quadro em meia-tinta, no qual, se a latitude deixada aos governos na implementação concreta das medidas impacta significativamente a eficiência delas, a Convenção é, no entanto, suscetível de reforçar in fine alguns aspectos dos dispositivos nacionais pertinentes (como, por exemplo, as conclusões da autora no tema das indenizações das vítimas).

Saindo do regime legal aplicável ao tráfico para o quadro jurídico que organiza a proibição da escravidão, da servidão e do trabalho forçado, o leitor é convidado a seguir um caminho similar àquele adotado na primeira parte, iniciando por um capítulo dedicado ao estudo dos tratados na origem das definições internacionais daquelas três noções. Da análise dos trabalhos preparatórios e contextos envolvendo os primeiros instrumentos internacionais adotados neste domínio, Stoyanova destaca dois elementos fundamentais: a base teórica capciosa da qual se construiu inicialmente a diferenciação entre escravidão e trabalho forçado, e o lugar diferenciado atribuído à noção de servidão pelos instrumentos pertencentes ao direito internacional geral, a saber, a Convenção relativa à Escravidão (25 de setembro de 1926) e a Convenção Suplementar Sobre a Abolição da Escravidão, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravidão (30 de abril de 1956); e aqueles instrumentos pertencentes aos direitos humanos, ou seja, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (16 de dezembro de 1966) e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (4 de novembro de 1950). Da primeira constatação, compartilhada por historiadores do direito1, segundo a qual a distinção criada entre escravidão e trabalho forçado visava menos designar práticas dessemelhantes do que servir interesses políticos, Stoyanova aponta uma gradativa mudança conceitual nas definições jurídicas contemporâneas de noções com mesmo nome. A segunda dedução, por sua vez, leva a autora a divergir dos trabalhos de Jean Allain, ao concluir que, no quadro da legislação dos direitos humanos, a servidão reporta a uma noção autônoma, formal e materialmente separada daquela de escravidão, para a qual convém atribuir um conteúdo próprio.

E é precisamente na discussão disto que ela vai empenhar-se no capítulo seguinte, no qual se esforça em identificar os elementos de definição de cada um dos três conceitos relacionados à exploração stricto sensu. A abordagem é audaciosa, pois o direito positivo no qual pode construir-se a reflexão é limitadíssimo. É o caso, em especial, da escravidão, para a qual a jurisprudência da Corte Europeia dos Direitos Humanos é não apenas esporádica mas praticamente inaproveitável (pp. 245-8). A autora é obrigada a abandonar temporariamente seu campo de estudo, inicialmente fixado no direito europeu, para mobilizar as disposições pertinentes do direito internacional em relação aos direitos humanos, os desdobramentos do direito penal internacional sobre os crimes contra a humanidade envolvidos na redução de pessoas à escravidão e à escravidão sexual, e a jurisprudência penal interna australiana. Da exploração minuciosa desse conjunto de fontes, Stoyanova traça uma definição resolutamente estreita do conceito e liberta-se — de maneira um tanto surpreendente — da observação reiterada da multiplicidade de formas a que reporta a referência clássica aos “atributos do direito de propriedade”2 (p. ex. pp. 221, 225 e 243), para declinar três ações alternativas: “(i) tornar uma pessoa objeto de transação combinada com a negação da liberdade”; (ii) submeter uma pessoa ao exercício do poder de posse”; (iii) uso irrestrito da capacidade de trabalho combinado com a negação da liberdade” (p. 248) — e estas ações devem ser perpetradas em um contexto de controle específico exercido sobre a vítima. Este último aspecto, por constituir um dos aportes teóricos mais relevantes do livro, merece que nele nos detenhamos.

Aprofundando as indicações provindas dos Trabalhos Preparatórios do artigo 8 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, que associam expressamente a escravidão a uma destruição da personalidade jurídica, Stoyanova dedica de fato páginas muito esclarecedoras (pp. 234-40) a uma demonstração de que esta última noção não supõe necessariamente um reconhecimento legal da escravidão, mas pode caracterizar da mesma forma situações, menos severas, de negação de facto de direitos dos quais uma pessoa é legalmente dotada em um regime jurídico no qual a escravidão é proibida. A autora deduz que o elemento de definição relativo ao “exercício de um ou vários dos atributos do direito de propriedade” deve ser entendido de maneira restritiva, como a causar

“o estabelecimento e a manutenção de obstáculos para a pessoa recorrer ao apoio de autoridades responsáveis. Desta maneira a pessoa é colocada num vácuo legal, alheia à proteção da lei.” (p. 240).

A relação estabelecida aqui entre a destruição da personalidade jurídica e a colocação de uma pessoa ao largo da proteção da lei permite abrir a perspectiva para a segunda característica essencial atribuída pela autora à escravidão: a integração, na própria definição da noção (e não mais na apreciação do respeito das obrigações convencionais), do papel dos governos na destruição de facto da personalidade jurídica dos indivíduos. A escravidão sendo assim circunscrita a uma “noção relativamente limitada e técnica” (pp. 208 e 210), os conceitos de servidão e de trabalho forçado podem, por sua vez, ser pesquisados: através de uma análise rigorosa da jurisprudência nascida do Tribunal de Estrasburgo, a autora logra traçar contornos nítidos para os dois conceitos, sugerindo várias correções para os elementos de definição obtidos até este ponto. A servidão, abarcando “instâncias mais amplas de dominação” (p. 216), define-se então pelo uso da força de trabalho em um grau tal que constitui um trabalho forçado, em um contexto de controle que vai, entretanto, além do ambiente de trabalho, para abranger aspectos da vida do trabalhador. O continuum entre as três noções encontra-se, então, evidenciado, o trabalho forçado implicando por sua vez apenas um controle limitado à produção de um trabalho, e definindo-se, nos diz a autora, pela desproporção entre as condições de trabalho impostas e as normas legais nacionais — ou, se estas forem “problemáticas”, em referência a uma “uma análise comparativa de leis trabalhistas ou padrões internacionais de legislação trabalhista.” (p. 274)

Ao término de seu trabalho de definições, a autora rompe a simetria da estrutura de sua obra para prolongar sua reflexão confrontando a noção de tráfico com aquelas que remetem a exploração agravada. Esta é, seguramente, a parte mais edificante do livro, pois à oposição rigorosa desenvolvida até então em função do esforço de esclarecimento conceitual, segue uma exposição mais matizada, que traz à luz a imbricação essencial das noções em questão, e se anuncia a interdependência dos regimes jurídicos envolvidos, abordada mais adiante no capítulo seguinte. Não se trata mais aqui de diferenciar os conceitos, mas, muito pelo contrário, de investigar suas áreas de superposição para evidenciar in fine a tese defendida pela autora. Das conclusões estabelecidas anteriormente quanto ao significado do tráfico decorre a identificação da esfera de superposição conceitual, que se encontra restrita às duas noções de tráfico de seres humanos e de escravidão.

Elegendo o caso Rantsev X Chipre e Rússia3 (caso que levou o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos a introduzir o conceito de tráfico de seres humanos no campo de aplicação do artigo 4 da Convenção) como palco principal de sua argumentação, Stoyanova desenvolve uma análise extremamente detalhada da decisão, enfatizando logo de início as fragilidades do raciocínio seguido e os impasses jurídicos a que conduz, em um nível mais teórico, o recurso ao conceito de tráfico. Em um segundo momento, ela demonstra, baseando-se na elaboração desenvolvida no capítulo anterior, que o conceito de escravidão não apenas tinha como caracterizar as circunstâncias de fato da espécie, inclusive indo mais além ao refletir de maneira mais precisa o tamanho do dano causado à vítima — e do papel do Estado na redução de pessoas à escravidão. Aparece assim a dinâmica que, no final das contas, a autora se propõe corrigir: ao criar um regime jurídico próprio à noção de tráfico de seres humanos, a comunidade internacional fez deste a ferramenta jurídica dominante na apreensão dos fenômenos de exploração contemporâneos, marginalizando por isso mesmo (o julgamento estudado ilustra isto) os conceitos pré-existentes de escravidão, servidão e trabalho forçado, cujo processo definicional permaneceu inacabado. Ora,

classificar como tráfico humano abusos contra migrantes em situações de migração enganosa ou coercitiva abre lacunas sobre onde os abusos devem de fato ser enfrentados nos países hospedeiros. Em outras palavras, a preocupação com o processo tem desviado a atenção das condições de fato abusivas que podem ser consideradas escravidão, servidão ou trabalho forçado. (p. 310)

Obviamente consciente, no entanto, de que uma conclusão tão geral dificilmente pode encontrar uma base sólida, por mais desenvolvido que seja o exame de um único caso judicial, e que, por outro lado, a aproximação das noções em pauta conduz a relativizar a imprecisão acima imputada à noção de tráfico de seres humanos, Stoyanova conclui sua argumentação refinando-a em dois níveis: delimita mais precisamente as circunstâncias factuais suscetíveis de serem abrangidas, respectivamente, pela qualificação de tráfico e de escravidão (pp. 304-7), e esforça-se para resolver (sem conseguir convencer plenamente) a incerteza quanto à qualificação que resulta, na prática, dos elementos que caracterizam a escravidão, a servidão e o trabalho forçado. (pp. 315-8)

Chegou a hora de debruçar sobre as obrigações que cabem aos governos quanto a seus compromissos de proteger os direitos humanos. O capítulo logo encaminha os próximos argumentos com um estudo esmiuçado dos métodos de apreciação implementados pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos na avaliação do respeito ou não pelos governos de suas obrigações com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos. O conceito de obrigação positiva é objeto de uma atenção especial, por tratar-se de atos cometidos, na sua maioria, por pessoas privadas. Emergem então os critérios fundamentais de controle exercido pelo Tribunal, que se apoia no grau de conhecimento pelo Estado da violação do direito (o elemento de conhecimento), a existência de uma falha do Estado a que se pode relacionar a tal violação (o elemento de proximidade) e, finalmente, se são razoáveis as medidas tomadas pelo Estado (o teste da razoabilidade). A ampla variedade de combinações possíveis entre os três critérios, ainda por cima modulados segundo as obrigações em causa, gera, assim, um sistema complexo e flexível, cuja previsibilidade nem sempre está garantida. Estabelecidos estes esclarecimentos, passa ao exame das obrigações que cabem ao Estado a título de proteção dos migrantes contra formas severas de exploração. A autora começa, logicamente, pelas obrigações já determinadas pelo Tribunal Europeu por ocasião de alguns casos a ele submetidos que remetem ao tratamento penal desses crimes. Evitando astutamente a armadilha de uma abordagem estritamente descritiva, e meio superficial, Stoyanova ultrapassa a mera análise das prescrições jurisprudenciais para ater-se à identificação das questões teóricas e práticas envolvidas na implementação do indiciamento, inquérito e da sanção, segundo os ordenamentos jurídicos nacionais. Estes desdobramentos constituem, então, uma oportunidade para identificar as zonas de imprecisão e de deficiência do direito positivo europeu, tentando ao mesmo tempo antecipar sua evolução futura.

O ângulo de abordagem escolhido conduz naturalmente a autora a ressaltar, em seguida, as obrigações (ainda) não consagradas, porém contidas em germe na Convenção. A reflexão então se torna prospectiva: ignorando toda estratégia jurisprudencial da Corte (tal como manifesta, por exemplo, no uso do princípio de subsidiaridade do mecanismo de proteção europeu4 ), ou ainda, mais prosaicamente, “o desafio” que representa “o acesso [de fato] ao tribunal europeu”5 , que freia consideravelmente o desenvolvimento da jurisprudência europeia (como atesta a escassez de decisões dadas sob o artigo 4 da Convenção), a autora escolhe focar a via aberta pela interpretação dinâmica da Convenção e sua finalidade de proteção efetiva dos titulares dos direitos, e procura sondar todas as suas potencialidades. O objetivo, aqui, é explicitamente enfatizar as diferenças de objeto e de finalidade entre as convenções relativas, respectivamente, ao tráfico e às formas severas de exploração: trata-se, mais precisamente, de sublinhar os recursos que constitui, para a proteção dos migrantes, a estrutura mais aberta da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (que, ao contrário da Convenção sobre a Luta contra o Tráfico, não elenca de forma exaustiva as obrigações que cabem aos governos), associada à técnica de interpretação teleológica que, aplicada aos instrumentos de proteção dos direitos humanos, gera uma

interpretação dinâmica e evolutiva […] [na qual] não é concedida uma importância decisiva às vontades manifestadas pelos governos contratantes no momento de elaboração da Convenção.6

Nas páginas que seguem aparece, então, em filigrana, o jogo do critério de controle extraído do “elemento de proximidade” sobre o elemento definidor de escravidão extraído de “colocar uma pessoa fora da proteção da lei.” Pois este, ao deslocar a ação do Estado na própria definição de escravidão, reforça sensivelmente a relação de proximidade entre o Estado e o delito cometido, e acaba obscurecendo a distinção entre obrigações positivas e obrigações negativas. O papel do explorador privado, a diminuir tanto quanto aquele do Estado, é levado em consideração, este se tornando cúmplice — e até coautor — da exploração cometida contra o migrante, e por conseguinte não pode mais, nos diz a autora, escudar-se atrás de seus imperativos de controle migratório para escapar de uma condenação.

Stoyanova conclui sua rica e densa reflexão propondo, em termos seguidamente firmes e matizados, um apanhado que recapitula os temas mais relevantes trazidos à luz ao longo de sua obra. Embora reconhecendo o papel que terá de desempenhar a Convenção de Luta contra o Tráfico do Conselho da Europa na orientação futura da jurisprudência do Tribunal Europeu dos direitos humanos, ela modera sensivelmente o alcance prático do regime de proteção aplicável aos migrantes enquadrados como vítimas do tráfico, recenseando as muitas fontes de bloqueio descobertas nas disposições do texto convencional europeu. Se este instrumento ainda conserva algum interesse, concede a autora, ao proporcionar uma proteção contra abusos sofridos no decorrer do processo migratório que não atingem o alto patamar de controle inerente aos conceitos de escravidão, servidão e trabalho forçado, o recurso a um dispositivo jurídico internacional focando especificamente o tráfico de seres humanos acabou entravando a resposta que a comunidade internacional tinha obrigação de dar às vítimas da exploração humana. Mais especificamente, relegando para o segundo plano as disposições da legislação dos direitos humanos proibindo as formas graves de exploração do indivíduo, e semeando a confusão na qualificação dos fenômenos criminosos em questão, a ferramenta conceitual privilegiada pela comunidade internacional revelou-se, no final das contas, inadequada. Consequentemente, a abordagem iniciada nos anos 1990 “requer urgentemente uma correção histórica”, sob a forma de um “deslocamento conceitual” (p.428) em prol das noções de escravidão, servidão e trabalho forçado.

Podemos lamentar, do ponto de vista do rigor do raciocínio jurídico, que a autora não tivesse levado mais adiante seu esforço de esclarecimento do conceito de tráfico de seres humanos, considerando questionar — ainda que temporariamente — as conclusões para as quais conduziu sua abordagem restrita à interpretação teleológica dos tratados, desde que estas iam de encontro ao próprio texto (e, portanto, à interpretação literal) da Convenção do Conselho da Europa. Alargando o campo de pesquisa para fontes conexas – notadamente o Guia Legislativo para a aplicação do Protocolo de Palermo, que detalha em seu parágrafo 25 que,

no caso do tráfico de pessoas, as infrações em vista do direito interno devem ser constituídas mesmo nos casos em que não há elemento de transnacionalidade nem de participação de um grupo criminoso organizado (os grifos são nossos)7

–, outras leituras da definição poderiam ser exploradas, inclusive para serem, segundo o caso, rejeitadas.

Assim, em especial para a hipótese de uma tradução da finalidade e do objeto do tratado que a estrutura do Protocolo de Palermo autorizava, não na definição da noção mas na delimitação do campo de aplicação do acordo internacional, os governos não se comprometem, portanto, por esta técnica, senão em aspectos limitados de um fenômeno criminoso potencialmente mais amplo (quando ocorre uma transposição de fronteira e quando está envolvido um grupo criminoso organizado). Pois este ponto alto de articulação da tese proposta foi, tratando-se do campo geográfico privilegiado pela autora, parcialmente desmentido pela evolução posterior do direito positivo que materializou (em conformidade com as disposições da Convenção do Conselho da Europa) uma noção de tráfico de seres humanos estritamente interna, e portanto alheia a toda preocupação de criminalidade transfronteiriça ou de política de controle de migrações (por exemplo, a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos no caso Chowdury contra a Grécia e o julgamento no Tribunal de Grande Instância de Evry, França, em 9 de abril de 2014).8 Se de forma mais geral a escolha de um método de análise jurídica formal em apoio a uma abordagem deliberadamente orientada para uma finalidade prática despertará, certamente, a curiosidade do leitor, e poderá por vezes penar para convencer o profissional, estas observações não poderiam de modo algum ofuscar a qualidade do trabalho realizado por Vladislava Stoyanova. Ao recentrar a problemática da “escravidão contemporânea” nos conceitos relativos à exploração humana enquanto tal, a autora adota um ponto de vista inovador, que possui o imenso mérito de trazer uma legibilidade para os fenômenos criminosos em questão e a qualificação que eles pedem. Este esclarecimento, particularmente bem vindo, conduz então, necessariamente, a questionar a coerência dos instrumentos de luta atualmente vigentes. Pois, com efeito, se a noção de tráfico abrange o processo que visa praticar a exploração do indivíduo, e se, em outros termos, ela abrange comportamentos criminosos conexos de facilitação ou de organização da exploração, qual pode ser a justificativa — e até mesmo a legitimidade — de um sistema que reserva seu dispositivo de proteção apenas para as vítimas de comportamentos criminosos conexos, excluindo aquelas que foram expostas ao comportamento criminoso principal? A autora lança, assim, incontestavelmente, uma luz nova e original sobre uma temática de atualidade gritante, e traz uma importante contribuição teórica, admiravelmente útil ao processo de definição dos conceitos jurídicos de escravidão, servidão e trabalho forçado atualmente em curso em vários ordenamentos jurídicos regionais e nacionais.


Notas

1 Por exemplo, Michel Erpelding, “L’esclavage en droit international: aux origines de la relecture actuelle de la définition conventionnelle de 1926”, Journal of the History of International Law, n. 17 (2015), pp. 170-220.

2 Artigo 1 da Convenção sobre a Escravatura (25 de Setembro de 1926) https://treaties.un.org/ , acesso em 30 de maio de 2018.

3 Rantsev v. Cyprus & Russia, App. No. 25965/04, 51 Eur. H. R. Rep.1. O caso pode ser encontrado em https://hudoc.echr.coe.int/eng#, acesso em 30 de maio de 2018.

4 Por exemplo, Béatrice Delzangles, Activisme et autolimitation de la Cour européenne des droits de l’homme, Paris: Institut Universitaire Varenne, 2010, p. 311.

5 Patrice Spinosi, “La transparence de la pratique interne de la Cour européenne des droits de l’homme”, in Sébastien Touzé (org.), La Cour européenne des droits de l’homme: une confiance nécessaire pour une autorité renforcée (Paris: Pédone, 2016), p. 170.

6 François Ost, “Originalité des méthodes d’interprétation de la Cour européenne des droits de l’homme”, in Mireille Delmas-Marty (org.), Raisonner la raison d’Etat (Paris: PUF 1989), p. 418.

7 Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime, Divisão dos Tratados, New York, 2005.

8 Chowdury and Others v. Greece, App. No. 21884/15, 30 March 2017, §§ 5, 94-101; “Prison ferme pour un employeur coupable d’esclavage moderne”, Le Monde, 10 de abril de 2014.


Resenhista

Bénédicte Bourgeois – Pesquisadora independente. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

STOYANOVA, Vladislava. Human Trafficking and Slavery Reconsidered: Conceptual Limits and States’ Positive Obligations in European Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. Resenha de: BOURGEOIS, Bénédicte. Estados nacionais diante da escravidão contemporânea. Trad. da resenha Christine Leboucher. Afro-Ásia, n. 58, p. 257-268, 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

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