Slave Traders by Invitation: West Africa’s Slave Coast in the Precolonial Era | Finn Fuglestad
“Traficantes de escravos por convite”: esse é o título do livro de Finn Fuglestad, professor da Universidade de Oslo. Antes desse trabalho, Fuglestad era mais conhecido por seu livro A History of Niger, publicado em 1983.1 Entre as duas obras, o autor publicou diversos capítulos de livros e textos de referência sobre história africana. Ou seja, estamos falando de alguém bastante experimentado nos meandros desse campo de estudos.
Dividido em três partes com seis capítulos cada, o livro busca cobrir diversos aspectos das sociedades da Costa dos Escravos (grosso modo, a nossa Costa da Mina), no Golfo do Benim, entre os séculos XV e XIX. Algo bastante parecido com o clássico The Slave Coast of West Africa, de Robin Law.2 Mas Fuglestad lança novas possibilidades interpretativas, revisitando velhas fontes e apresentando algumas evidências documentais inéditas. Diante do número de capítulos, e para não maçar o leitor, decidi abordá-lo a partir de uma perspectiva temática, uma vez que os assuntos invariavelmente retornam ao longo da obra.
Entre os pontos altos do livro está o impressionante levantamento bibliográfico sobre a Costa dos Escravos no período pré-colonial. Somente de Law, talvez o mais profícuo especialista da região, Fuglestad cita quase quatro páginas de bibliografia. Infelizmente, ele não teve acesso a algumas obras que poderiam ajudá-lo a elucidar vários temas sobre as organização social e religiosa do que ele chamou de “Costa dos Escravos Central” – que corresponde aos limites do antigo reino do Daomé – e de seus vizinhos (o livro foi concluído provavelmente antes de 2015, embora somente publicado em 2018).3 Isso o levou a incorrer em diversos erros e imprecisões. Como consequência, Fuglestad não consegue cobrir com a mesma competência as regiões a oeste e leste de Uidá, o principal porto negreiro da África Ocidental na era do tráfico.
Ao longo do livro o autor polemiza com estudos clássicos. Diante das muitas teses controversas que ele apresenta, esta resenha irá focar apenas nos temas mais polêmicos e problemáticos do ponto de vista historiográfico. O leitor mais atento e curioso certamente encontrará muitos outros.
De um ponto de vista puramente formal, a obra difere da maioria dos trabalhos na questão estilística. A objetividade da escrita, tão característica dos textos em inglês, é aqui substituída por vários momentos de dúvidas, às vezes de forma exagerada. Frequentemente Fuglestad questiona autores, duvida de certas respostas, se engaja em vários debates, mas não oferece respostas satisfatórias para a maior parte deles. A busca por estilo resulta em sentenças incompletas ou sem sentido, o que indica certa falta de cuidado – dele e da editora – na revisão final, o que pode ser também observado em diversos equívocos nos nomes de autores e personagens – o mais crasso sendo “Willem Barbot”, uma mistura de Willem Bosman (comerciante holandês) e Jean Barbot (traficante francês) (p. 141).
Na primeira parte, o autor apresenta uma visão geral das estruturas sociais, linguísticas, políticas, econômicas e religiosas da Costa dos Escravos na era do tráfico. Sobre a demografia da região, é lacônico: apenas nove linhas. Informa que os europeus que entraram em contato com os reinos de Aladá e Hueda os consideravam densamente povoados. “Mas isso é praticamente tudo”, conclui o autor (p. 34).
Ao discutir a historiografia sobre a região, Fuglestad é especialmente crítico dos trabalhos de Patrick Manning pelo uso de uma “teoria extravagante” para explicar o crescimento econômico do Daomé. Infelizmente, Fuglestad, ao abordar a economia da região, dedica exatamente nove páginas ao tema. E, novamente, levanta mais dúvidas do que dá respostas, talvez pelo limitado conhecimento do autor em assuntos econômicos, como ele próprio reconhece (p. 83). Ao discutir o argumento de David Eltis e Lawrence Jennings sobre o reduzido impacto do tráfico de escravos sobre as economias locais, bem como o argumento contrário de Joseph Inikori, Fuglestad brinda o leitor com a seguinte sentença. “Estes acadêmicos estão corretos? Sinceramente, nós não temos a menor ideia. Mas nos perguntamos como eles podem saber o que eles alegam saber” (p. 82). O que Fuglestad quis dizer com essa frase? O resenhista não faz a menor ideia. Mas, curiosamente, mais à frente no texto, o autor finalmente se decide sobre o papel do tráfico na economia local: “uma fonte vital de renda para o Daomé e especialmente para a monarquia” (p. 240).
Continuando sobre a historiografia e fontes, o pesquisador realiza uma curiosa tentativa de reabilitação de Archibald Dalzel, autor de History of Dahomy (1793), argumentando que ele, na verdade, condenava o tráfico de escravos, indo de encontro a praticamente toda a historiografia. Ele defende que não há nas páginas escritas por Dalzel nenhuma defesa explícita do tráfico, e que o livro é “puramente descritivo” (p. 40). Essa hipótese é de enrubescer, uma vez que qualquer historiador treinado (assim como Fuglestad) sabe que a decisão sobre o que incluir e o que deixar de fora impacta diretamente na forma como o livro será lido pelo público, e a ênfase de Dalzel nas guerras e nos Costumes Anuais (Hwetanu), momento em que sacrifícios rituais eram realizados, fornece a evidência que ele desejava para salientar os modos “bárbaros” dos habitantes do Daomé e o papel do tráfico negreiro em salvar vidas que seriam sacrificadas nos Costumes – melhor sacrificá-las nos plantations escravistas no outro lado do Atlântico. Essa hipótese contradiz, ainda, a própria biografia de Archibald Dalzel, que após seu retorno à Inglaterra engajou-se no movimento pró-tráfico durante o início da campanha abolicionista inglesa na década de 1780.4
O autor também critica o Transatlantic Slave Trade Database, particularmente a forma de organização das macrorregiões africanas.5 Ele argumenta que enquanto a Costa do Ouro (basicamente o litoral de Gana atual) aparece como uma região, a Costa dos Escravos faz parte do Golfo do Benim, de modo que para os propósitos do livro o banco de dados é “inútil” (p. 91). Há aqui um certo exagero do autor, uma vez que Golfo do Benim e Costa dos Escravos referem-se praticamente à mesma região, algo que ele reconhece na página seguinte, ao criticar “a distinção entre a Costa do Ouro e o Golfo do Benim, isto é, entre a Costa do Ouro e a Costa dos Escravos” (p. 92). Esta segunda observação me parece mais correta, sobretudo do ponto de vista do tráfico luso-brasileiro. De fato, a partir de uma perspectiva geográfica, a Costa da Mina portuguesa englobava essas duas regiões, que aparecem de maneira separada no banco de dados. Alguns (poucos) escravos da Costa do Ouro foram introduzidos no Brasil, a grande maioria originando-se do Golfo do Benim-Costa dos Escravos.6
Ele também critica a metodologia do banco de dados, que não inclui o contrabando que ocorria ao longo da costa africana. Embora a crítica seja compreensível – e já tenha sido feita antes, sobretudo para os primeiros séculos do tráfico português – as estatísticas do banco de dados contabilizam apenas as viagens sobre as quais existem registros.7 Nesse sentido, por mais que saibamos que o contrabando desempenhou um papel importante no comércio transatlântico de cativos, esses dados permanecerão ocultos. Resta ao pesquisador trabalhar com as estimativas do Transatlantic Slave Trade Database ou investir em estimativas próprias, mas com pouca base documental.
Ainda sobre o tráfico, o autor se mostra surpreso com o fato de que Portugal e Brasil lideraram a carreira transatlântica de escravos, que ele pensava ter sido liderado pela Inglaterra. A essa altura, o fato não deveria ser mais surpresa para os especialistas em história da África pré-colonial.8 Segundo Fuglestad, Robin Law e Patrick Manning superestimaram a importância do Daomé no suprimento de escravos para os navios europeus. Para o autor, Oyó teve um papel mais crítico nisso do que previamente sugerido, “o que coincide com vários testemunhos contemporâneos” (p. 101). A questão é que a maior parte dos testemunhos arrolados por Fuglestad são do final do século XVIII, quando Oyó de fato passou a participar mais ativamente no comércio de escravos. Antes disso, documentos portugueses, franceses e ingleses relatam que a maior parte dos escravos pertencia a grupos gbe–falantes, e vinha da costa ou de zonas próximas (até 200 km do litoral). Dados colhidos no Brasil em fontes como inventários e registros eclesiásticos também corroboram a massiva presença de africanos pertencentes a grupos falantes de gbe (nossos jejes) até o início do século XIX (Fuglestad é bastante cético quanto aos dados da diáspora, por ele considerados “inconclusivos”, mas não explica as razões para seu descrédito).
Ainda na primeira parte do livro, Fuglestad discute como as sociedades da região organizavam sua vida religiosa, e como ela se relacionava com a vida social, mas dedica apenas seis páginas a essa questão. Alguns de seus argumentos podem ser, novamente, questionados, como a ideia de que não havia “teólogos ou sacerdotes genuínos” na região (p. 60). Aqui o autor tenta diferenciar as religiões associadas aos cultos dos voduns das religiões “reveladas”, como o cristianismo ou o islamismo. Mas a ideia de que não havia “sacerdotes genuínos” ou de que o panteão de divindades era “extremamente instável” é problemática, principalmente sabendo-se (como hoje se sabe) que a área vodum tinha como uma de suas características a organização de um corpo sacerdotal, além de grupos iniciáticos, que teriam sido a base do Candomblé baiano.9
O tema religioso volta à tona no capítulo seguinte, quando discute o significado de vodum, mas novamente o autor se debruça pouco sobre o assunto (apenas três páginas e meia). Apesar disso, ele, como outros autores anteriormente, dá bastante importância ao vodum Sakpatá, da varíola (que estranhamente associa ao relâmpago e ao trovão, p. 146), também considerado o “dono da terra”.10 A ênfase nesse vodum faz parte de outro argumento desenvolvido pelo autor na segunda parte da obra, qual seja, de que os sacerdotes de Sakpatá faziam renhida oposição aos reis do Daomé. De fato, sabe-se que as relações entre os “dois reis do Daomé” (o dono da terra e os conquistadores) variavam entre certo nível de tolerância e o medo e perseguição aos seus adeptos.11 Há pelo menos dois casos de possíveis sacerdotes de Sakpatá deportados para o Brasil: Sebastião Guerra, um jeje encontrado num calundu na Bahia, e o mina Domingos Álvares, que mantinha uma comunidade religiosa no Rio de Janeiro, ambos no século XVIII.12
Estabelecer o contraste entre os “donos da terra” e os conquistadores ajuda Fuglestad a argumentar que o Daomé não obedeceu ao que ele chama de “proeminência de contraponto” (contrapunctal paramountcy): os conquistadores não tinham nenhum direito à terra, e portanto tinham de buscar uma acomodação com as forças políticas e espirituais locais para estabelecer algum grau de legitimidade. O Daomé, no entanto, ignorou esse modelo, “partindo para um caminho revolucionário”, baseado no militarismo e no “totalitarismo”, para enfrentar o problema da legitimidade política. (p. 165, 291) Ao argumentar nesse sentido, Fuglestad resgata, em alguma medida, a tese de Isaac Akinjogbin sobre a teoria social ebi, que foi desconsiderada pelo Daomé em seu processo de expansão.13
É preciso explicar brevemente essa teoria. Segundo Akinjogbin, as formações políticas na Costa dos Escravos eram “uma versão ampliada da família”; o relacionamento entre os reinos tinha uma natureza “familiar”, pois todos descendiam de um ancestral comum. Dentro dessa linha, o reino mais antigo figurava como “pai”, enquanto os outros reinos eram “filhos”. O “pai” assumia esse papel não por conquista, mas por direito e descendência. O Daomé, entretanto, rompeu com essa lógica ao conquistar o reino de Aladá, considerado o mais antigo – e, portanto, o “pai” dos demais reinos da região – estabelecendo assim uma nova ordem política. Isto, ainda segundo Akinjogbin, causou problemas ao Daomé, uma vez que os outros reinos se submetiam à teoria social ebi e não viram com bons olhos o “caminho revolucionário” daomeano.14
O argumento de Fuglestad é bastante interessante, pois coloca o ethos militar daomeano, enfatizado por outros autores, em nova perspectiva. Não obstante, é um argumento de difícil defesa, sobretudo ao considerar os diversos exemplos de acomodação do Daomé com as autoridades locais em busca de legitimação tanto no campo político, quanto no religioso. Embora exemplos no sentido contrário possam ser apontados – o massacre de pítons (serpentes sagradas e símbolo nacional hueda) durante a conquista de Uidá – o próprio rei Agajá (c. 1716-1740) teria introduzido no Daomé o culto a Sakpatá, oriundo de Dassá, no território Mahi, talvez como forma de aplacar a ira dos deuses dos vencidos.
A restauração da monarquia de Aladá pelo rei Tegbesú (1740-1774) visava a legitimação política da conquista. Por sua vez, a instalação do Ajahutonon, sacerdote do culto do Ajahuto, o fundador lendário da dinastia real de Aladá, e que tinha a responsabilidade de consagrar os novos reis do Daomé em Aladá, indicava “a vontade de Tegbesú de preservar o sistema de legitimação tradicional para garantir sua autoridade.”15 Ainda que se possa contestar, como faz Fuglestad (p. 164), que a figura do Ajahutonon era meramente decorativa, a própria busca pela legitimação tradicional indica ser este um aspecto importante para o governo daomeano. Além disso, durante a entronização, usava-se a expressão “ele comprou o Daomé” para referir-se ao novo rei daomeano, que em seguida distribuía presentes (búzios) aos representantes das comunidades locais conquistadas.
Outras formas de legitimação passavam pela tentativa de criar uma origem do povo fon conquistador em Tado, cidade adja que a maioria dos povos da área gbe reivindica como origem mítica, bem como vincular a linhagem real daomeana à de Aladá, e dessa forma legitimar seu direito ao trono deste reino, conquistado Agajá em 1724. De forma similar, a instituição do kpojito (“mãe do leopardo”), como enfatizado por Edna Bay, servia para acomodar a relação do Daomé com as populações nativas, sendo que a primeira kpojito teria sido guedeví, povo que habitava originalmente o planalto de Abomé.16 Em suma, existe ampla evidência de que o Daomé buscava a legitimação através das vias convencionais, associando sua dinastia à de Aladá através de um conjunto de práticas cerimoniais e políticas.17
Finn Fuglestad não desconhece todos esses fatos, o problema é que ele muda de ideia de um momento a outro de seu texto. Por exemplo, afirma que “Tegbesú executou o que pode ser chamado de medidas mais construtivas, em particular esforços para legitimar a posição da monarquia através da manipulação da esfera religiosa-ideológica” (p. 237), justamente o que dizem todos os autores cujos argumentos ele antes combate. Similarmente, ao definir o ethos militar do Daomé (p. 226), ele contradiz sua própria ideia de que o militarismo daomeano era fruto da necessidade de exercer controle sobre as populações nativas rebeldes, e não de um ethos (no sentido de conjunto de valores) guerreiro preexistente no Daomé. Seria até possível sugerir que o Daomé desenvolveu tal ethos a partir de uma necessidade prática, mas o autor não explora essa possibilidade.
Ainda sobre Tegbesú, o autor defende que seu reinado pode ser representado como um regime de terror (pp. 225, 236, 239), o que me parece exagerado. Sobretudo se considerarmos a situação política durante os longos anos em que esteve no poder (1740-1774), o tratado de paz com Oyó, os conflitos internos, a fraqueza do exército nos seus dias e o conjunto de batalhas em que foi derrotado.
Fuglestad baseia sua ideia de “terror” no fato de que Tegbesú eliminou as dissidências políticas tão logo assumiu o trono, assassinando alguns concorrentes ao trono e seus acólitos por afogamento – o sangue real não podia ser derramado – e condenando outros à escravidão nas Américas (pp. 226-227).18 Mas isso não era peculiar a Tegbesú, nem mesmo ao Daomé. Na Uidá pré-daomeana, por exemplo, a disputa sucessória após a morte do rei Amar deu início a uma guerra civil, assim como ocorrera com o rei anterior, Agbangla.19 De forma similar, a disputa pelo trono daomeano após a morte de Agonglô também foi sangrenta, como informou o padre português Vicente Ferreira Pires em 1797.20 Ou seja, o que Fuglestad enxerga como um indício do “reinado de terror” de Tegbesú pode ser observado em outros momentos de disputa sucessória nos reinos do Golfo do Benim.
Além disso, um “regime de terror” dependeria de um exército eficiente, inclusive para se fortalecer em face da oposição interna e das desconfianças externas, o que não parece ter sido o caso. Como escreveu Akinjogbin, “[o] exército tinha deteriorado grandemente, tanto em número quanto em treinamento, desde os gloriosos dias de Agajá.”21 E alguns viajantes contemporâneos notaram que o exército era composto por apenas três mil homens no início da década de 1770 – número pequeno se comparado aos dez mil que teriam participado na invasão a Aladá em 1724.22 Esse aspecto militar é novamente importante, pois Fuglestad corretamente chama atenção para o fato de que, apesar da reputação guerreira, o Daomé perdeu boa parte de suas batalhas, inclusive para exércitos de igual – ou menor – força (pp. 44, 45). Esse argumento, entretanto, aparece primeiro na obra de Werner Peukert, Der Atlantische Sklavenhandel von Dahomey, que, surpreendentemente – sobretudo considerando o incrível levantamento bibliográfico do livro – não aparece entre as referências do autor aqui resenhado.23
Os últimos capítulos do livro (que correspondem aos reinados de Kpengla, Agonglô, Adandozan e Guezo) são bastante reduzidos em comparação aos anteriores, o que é frustrante tendo em vista a quantidade de bibliografia e fontes disponíveis sobre o período. O último capítulo, apropriadamente chamado de “O longo adeus”, concentra-se nas dificuldades enfrentadas pelos reis daomeanos com as medidas britânicas para abolir o tráfico transatlântico de escravos. O livro deixa de fora alguns trabalhos sobre as atitudes de Adandozan diante das negociações anglo-portuguesas para limitar o tráfico ao norte do Equador.24 Fuglestad acha que Adandozan foi um rei inovador, que tentou impor mudanças revolucionárias no Daomé, rompendo com o “tráfico de escravos tradicional” e investindo na agricultura (p. 274).25 O autor se diz amparado nesta ideia pelo historiador beninense Elisée Soumonni (nota 53, p. 274), mas leiam o que Soummoni escreve: “Pode não ser inviável, embora haja pouca evidência direta para isto, ver nele [Adandozan] um rei inovador, desejoso de romper com o tráfico de escravos tradicional” (grifos nossos).26 Ou seja, o que Soummoni apresenta como uma possibilidade, ainda que distante pela falta de fontes, Fuglestad apresenta como fato consumado. A questão, mais uma vez, é que a documentação não corrobora o argumento do autor. Pelo contrário, as correspondências entre Adandozan e o príncipe D. João e o envio pelo rei daomeano de uma embaixada ao Brasil, em 1811, revelam seu desejo de manutenção do tráfico num período de acirrada competição com Porto Novo, reino situado na porção leste da Costa dos Escravos.27
A parte do livro que trata do período do tráfico ilegal é particularmente curta, e o autor não faz uso da produção brasileira sobre o tema, em especial sobre a participação da comunidade de retornados para o Golfo do Benim a partir da década de 1830, que coincide com a primeira proibição do tráfico (1831) e a repressão que se seguiu à Revolta dos Malês (1835). Os retornados ganham apenas um parágrafo (p. 272), ignorando a importância crítica desse grupo na fase final do tráfico. Seu foco é sobretudo em Francisco Félix de Souza, embora não apresente nenhuma documentação nova sobre o personagem.28
O livro é concluído de maneira melancólica: uma viagem ao Benim, feita pelo autor no final da década de 1980. Na cidade de Uidá, o principal entreposto do tráfico na região, ele revela que “não havia nada de interesse para ser visto. A cidade era repulsiva, para ser bem sincero.” (p. 292) Cenário diferente do encontrado por ele vinte anos depois, com monumentos que recordam o papel de Uidá no tráfico, embora os objetivos dessas ações tenham sido “espúrios”, isto é, para atrair a atenção turística.29 Mas para Fuglestad as iniciativas de memorialização do tráfico no Benim não alcançaram a projeção moral e o impacto visual provocados fortemente em Gana e no Senegal, uma vez que não apresentam evidência concreta do tráfico negreiro, pelo menos não para o público leigo.
Antes de concluir esta resenha, voltemos ao início: seu título. Na introdução, o autor descreve cuidadosamente a geografia local e as dificuldades para transpor as barreiras naturais (sistema de lagoas, barras, fortes ondas) para defender a tese de que o tráfico na região só foi possível porque os europeus foram “convidados” para o negócio pelas populações litorâneas locais. E continuaram a depender totalmente da boa vontade africana por todo o período do tráfico. Em outras palavras, os africanos do Golfo do Benim foram responsáveis pelo tráfico de escravos na região; eis a conclusão de Fuglestad. E embora os europeus tenham se tornado “excessivamente ávidos para responder o convite” (p. 10), como reconhece o autor, no fim e ao cabo a responsabilidade repousa sobre a população local.
Utilizando as análises de uma socióloga camaronesa, Axelle Kabou, como argumento de autoridade, Fuglestad defende que os africanos detêm o “lamentável registro” como o único povo no mundo a vender seus próprios parentes (kin) como escravos, embora reconheça que talvez mercador e cativo não se enxergassem como parte do mesmo grupo de parentesco (p. 16).30 Ora, se o próprio autor reconhece que este pan-africanismo avant la lettre não existia no período, por que argumentar nesse sentido? Poderia se esperar esse tipo de deslize de alguém menos experimentado na história africana, não de Fuglestad. Mas essa premissa, tão importante e que levanta “problemas ético-filosóficos” (p. 13), como diz o autor, é praticamente ignorada ao longo do livro.
Nesse sentido, é importante destacar, a participação africana no comércio transatlântico de escravos, embora assunto delicado e controverso, não é tabu entre os estudiosos do tema, entre os quais muitos nascidos na África.31 Entre os “brancos”, John Thornton e David Eltis já haviam destacado a importância dos agentes africanos na operação do tráfico, e Robin Law fez o mesmo ao apontar o papel de Uidá na deportação de centenas de milhares de africanos escravizados para as Américas.32 O reconhecimento do poderio africano na costa ocidental africana e a dependência europeia do apoio local também foi observado em outras áreas, como a vizinha Costa do Ouro (atual Gana).33 Assim, não existe novidade sobre o assunto, e a ênfase sobre o tema em nome da “honestidade intelectual” (p. 17) serve apenas para realçar o discurso autocomplacente de Fuglestad.
Ao mesmo tempo, é impossível negar que a demanda nas Américas por escravos estimulou o crescimento do comércio transatlântico ao longo dos séculos. Esta demanda afetou organicamente as sociedades do Golfo do Benim-Costa dos Escravos, criando reinos voltados para a escravização e deportação de pessoas (o caso do Daomé) e áreas destinadas à captura de escravos (o país Mahi, ao norte de Abomé). Assim, concordo com Robin Law que qualquer tentativa de culpar a população africana pelo drama do tráfico de escravos, enfatizando o papel da oferta africana sobre a demanda europeia, é “perversa.”34 Em tempos em que o presidente do país que mais recebeu africanos escravizados durante a era do tráfico – inclusive a maioria dos africanos deportados do Golfo do Benim – fala em rede nacional que os portugueses nunca pisaram na África, os africanos é que vinham lhes entregar cativos na praia, e que a luta pela reparação nos EUA ganha novo fôlego, é lamentável que Fuglestad tenha tomado esse caminho.
Notas
1 Finn Fuglestad, A History of Niger, 1850- 1960, Cambridge: Cambridge University Press, 1983.
2 Robin Law, The Slave Coast of West Africa, 1550-1750: The Impact of the Atlantic Slave Trade on an African Society, Oxford: Clarendon Press, 1991.
3 Silke Strickrodt, Afro-European Trade in the Atlantic World: The Western Slave Coast, c. 1550-c. 1885, Londres: James Currey, 2015; Luis Nicolau Parés, O rei, o pai e a morte: a religião vodum na antiga Costa dos Escravos da África Ocidental, São Paulo: Companhia das Letras, 2016 (ambos resenhados nesta revista); J. Cameron Monroe, The Precolonial State in West Africa: Building Power in Dahomey, Nova York: Cambridge University Press, 2014.
4 Cf. Isaac A. Akinjogbin, “Archibald Dalzel: Slave Trader and Historian of Dahomy”, Journal of African History, n. 7 (1966), pp. 67-78; James A. Rawley, “Further Light on Archibald Dalzel”, The International Journal of African Historical Studies, v. 17, n. 2 (1984), pp. 317-323.
5 Para crítica similar (e anterior), cf. Paul E. Lovejoy, “The Upper Guinea Coast and the Trans-Atlantic Slave Trade Database”, African Economic History, v. 38 (2010), pp. 1-27.
6 Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos, dos séculos XVII a XIX, 2a ed., São Paulo: Corrupio, 2002.
7 Toby Green, The Rise of the Trans-Atlantic Slave Trade in Western Africa, 1300- 1589, Cambridge: Cambridge University Press, 2011.
8 A liderança luso-brasileira no tráfico atlântico é conhecida pelo menos desde Philip Curtin, The Atlantic Slave Trade: A Census, Madison: University of Wisconsin Press, 1969.
9 Luís Nicolau Parés, A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia, Campinas: Ed. Unicamp, 2006.
10 Sobre o panteão dos voduns, cf. Pierre Verger, Notas sobre o culto aos orixás e voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na antiga Costa dos Escravos, na África, São Paulo: Edusp, 1999; Melville Herskovits, Dahomey, an Ancient West African Kingdom, Nova York: J. J. Augustin, 1938; Luis Nicolau Parés, “Transformations of the Sea and Thunder Voduns in the Gbe-Speaking Area and the Bahian Candomblé”, in José Curto e Renée Soulodre-La France (orgs.), Africa in the Americas: Interconnections during the Slave Trade (Treton: Africa World Press, 2005), pp. 69-93.
11 Claude Lépine, Os dois reis do Danxomé: varíola e monarquia na África Ocidental, 1650-1800, Marília: Unesp- -Marília Publicações, São Paulo: Fapesp, 2000.
12 João José Reis, “Revisitando ‘Magia jeje na Bahia’”, in Valéria Costa e Flávio Gomes (orgs.), Religiões negras no Brasil: da escravidão à pós-emancipação (São Paulo: Selo Negro, 2016), pp. 13-40; James H. Sweet, Domingos Álvares: African Healing, and the Intectual History of the Atlantic World, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011.
13 Isaac A. Akinjogbin, Dahomey and Its Neighbours, 1708-1818, Cambridge: Cambridge University Press, 1967.
14 Akinjogbin, Dahomey and Its Neighbours, pp. 14-17, 68-69. Cf. Law, The Slave Coast, pp. 71-72.
15 Parés, O rei, o pai e a morte, p. 55; Law, The Slave Coast, p. 234.
16 Edna Bay, Wives of the Leopard: Gender, Politics and Culture in the Kingdom of Dahomey, Charlottesville: University of Virginia Press, 1998, pp. 73-76.
17 Law, The Slave Coast, pp. 329-334.
18 Akinjogbin, Dahomey and Its Neighbours, pp. 116-117. Sobre as regras de sucessão no Daomé, cf. W. J. Argyle, The Fon of Dahomey: A History and Ethnography of the Old Kingdom, Oxford: Clarendon Press, 1966, pp. 56-59.
19 O que parece ter sido o caso. oromey: a history and ethnography of the old o Benim. Co Fe escravizados. Acontecia o tempo inteiro na C. 19 Parés, O rei, o pai e a morte, pp. 154-156.
20 Clado Ribeiro de Lessa, Viagem de África em o Reino de Dahomé escrita pelo padre Vicente Ferreira Pires no ano de 1800 e até o presente inédita, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957, pp. 68-81.
21 Akinjogbin, Dahomey and Its Neighbours, p. 147.
22 Bay, Wives of the Leopard, p. 120; Jean-Baptiste Labat, Voyage du Chevalier des Marchais en Guinée, Isles Voisines, et à Cayenne, Fait en 1725, 1726 & 1727, Amsterdã: Compagnie, 1731, v. 1, p. xi.
23 Werner Peukert, Der Atlantische Sklavenhanfel von Dahomey, 1740-1797: Wirtschaftsanhropologie und Sozialgeschichte, Wiesbaden: Verlag, 1978.
24 Por exemplo, Ana Lúcia Araújo, “Dahomey, Portugal and Bahia: King Adandozan and the Slave Trade”, Slavery and Abolition, v. 33, n. 1 (2011), pp. 1-19. Para mais trabalhos a esse respeito, cf. nota 27.
25 Essa hipótese aparece primeiramente em Akinjogbin, Dahomey and Its Neighbours, pp. 191-192.
26 Elisée Soumonni, “The Compatibility of the Slave and Palm Oil Trades in Dahomey, 1818-1858”, in Robin Law (org.), From Slave Trade to ‘Legitimate’ Commerce: The Commercial Transation in Nineteenth-Century West Africa (Cambridge: Cambridge University Press, 1995), p. 81. Grifo nosso.
27 Cf. Luis Nicolau Parés, “Cartas do Daomé: uma introdução”, Afro-Ásia, n. 47 (2013), pp. 295-395; Mariza de Carvalho Soares, “Trocando Galanterias: a diplomacia do comércio de escravos, Brasil- -Daomé, 1810-1812”, Afro-Ásia, n. 49 (2014), pp. 229-271. Sobre a competição com Porto Novo, cf. Carlos da Silva Jr., “Interações atlânticas entre Salvador e Porto Novo (Costa da Mina) no século XVIII”, Revista de História, n. 176 (2017), pp. 1-41.
28 Não inclui, por exemplo, a biografia de Alberto da Costa e Silva, Francisco Félix de Souza, mercador de escravos, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
29 Sobre o tema da memória da escravidão e do tráfico no Benim (em conexão com o Brasil), ver os diversos trabalhos de Ana Lucia Araujo, particularmente Public Memory of Slavery: Victims and Perpetrators in the South Atlantic, Nova York: Cambria Press, 2010 (outro trabalho que não aparece no livro).
30 Sobre Axelle Kabou, cf. seu polêmico livro Et si l’Afrique refusait le développement?, Paris: l’Harmattan, 1991.
31 Cf. Akinjogbin, Dahomey and Its Neighbours; Elisée Soumonni, Daomé e o mundo atlântico, Rio de Janeiro: Sephis/ Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001; Boubacar Barry, Senegambia and the Atlantic Slave Trade, Nova York: Cambridge University Press, 1997; Olatunji Ojo, “The Organization of the Atlantic Slave Trade in Yorubaland, ca. 1777 to 1856”, The International Journal of African Historical Studies, v. 41, n. 1 (2008), pp. 77-100.
32 John K. Thornton, Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400- 1800, Nova York: Cambridge University Press, 1998; David Eltis, The Rise of African Slavery in the Americas, Nova York: Cambridge University Press, 2000; Robin Law, Ouidah: The Social History of a West African Slaving ‘Port’, 1727-1892, Athens: Ohio University Press, 2004, p. 13.
33 Rebecca Shumway, The Fante and the Transatlantic Slave Trade, Rochester: University of Rochester Press, 2011; Randy Sparks, Where the Negroes are Masters: An African Port in the era of the Slave Trade, Cambridge: Harvard University Press, 2014.
34 Law, Ouidah, p. 13.
Resenhista
Carlos da Silva Junior – Universidade Estadual de Feira de Santana. E-mail: carlos.ufba@gmail.com
Referências desta Resenha
FUGLESTAD, Finn. Slave Traders by Invitation: West Africa’s Slave Coast in the Precolonial Era. Nova York: Oxford University Press, 2018. Resenha de: SILVA JUNIOR, Carlos da. Uma visão enviesada da organização do tráfico na costa dos escravos da África Ocidental. Afro-Ásia, n. 59, p. 297-308, 2019. Acessar publicação original [DR/JF]