Velas ao Mar – U.S. Exploring Expedition (1838-1842). A viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos | Mary Anne Junqueira

O livro de Mary Anne Junqueira, produto de sua tese de livre-docência no Departamento de História da Universidade de São Paulo, é um relato expressivo da U.S. Exploring Expedition (1838-1842) chefiada pelo capitão Charles Wilkes da Marinha norte-americana. Segundo a autora, esta viagem teve pouca repercussão nos anos subsequentes, fato que talvez explique a razão da restrita historiografia sobre esta empreitada. O motivo desse “esquecimento” poderia estar no caráter explosivo e violento de Wilkes para com sua tripulação, que teve que encarar uma corte marcial quando voltou aos Estados Unidos. Só a narrativa dos acontecimentos ligados aquela expedição vale a leitura do livro de Mary Anne Junqueira. Cabe registrar o ótimo capítulo que explora a vida dos marinheiros a bordo, ricamente ilustrado, dando voz a um setor comumente negligenciado pelas narrativas históricas.

Mas voltando à Velas ao Mar, logo no início, a autora nos falou de que uma das motivações internas acerca da expedição foi a demanda do importante setor baleeiro norte-americano que precisava de melhores mapas para sua navegação. Além disso, a Marinha norte-americana desde o começo do século XIX visava proteger os interesses de guerra e comércio em águas internacionais.

O objetivo principal daquela expedição era a produção de cartas náuticas para fins comerciais e geopolíticos dos Estados Unidos, e foi bem sucedida na execução de sua missão de mapear pontos estratégicos no Oceano Pacífico. Naqueles trabalhos cartográficos foram utilizados métodos de triangulação marítima, cobrindo aproximadamente 280 ilhas. A expedição saiu da costa leste e retornou pela oeste, onde fizeram significativos mapeamentos de uma região ainda pouco conhecida, como o território do Oregon, que passava por disputas com o México.

Entretanto, para além das cartas náuticas e terrestres, a expedição deveria conhecer a natureza e as gentes dos lugares por onde passava. Em geral, era frequente que naturalistas embarcassem neste tipo de viagem exploratória sob diferentes bandeiras. O mesmo ocorreu alguns anos mais cedo com o HMS Beagle do Capitão inglês Robert FitzRoy que fazia um levantamento de coordenadas de longitudes das costas da América do Sul e tinha o jovem Charles Darwin no cargo de naturalista da expedição. Se essa viagem resultou em uma obra, A Origem das Espécies, que mudou radicalmente a compreensão de vida do ponto de vista científico e filosófico com a teoria da evolução, a primeira foi fundamental para a institucionalização das ciências da natureza nos Estados Unidos, uma vez que muitas espécies recolhidas formaram as coleções iniciais do Smitisonian Institute.

O médico e botânico Asa Gray, importante nome da história da ciência norte-americana, iria ser um dos expedicionários, mas por conta dos atrasos da partida, não pode embarcar, mas redigiu os quatro volumes relativos à botânica no relatório final. O também médico Charles Pickering participou daquela viagem de circum-navegação e escreveu o volume sobre as raças humanas e suas distribuições geográficas, lembrando que naquela época estes estudos estavam inseridos no âmbito da zoologia. O geólogo James Dana também foi membro da expedição, recrutado do Laboratório de Química na Universidade Yale. Cabe aqui a ressalva que aquele era o período inicial da profissionalização e institucionalização da ciência nos Estados Unidos e muitos naturalistas, como também acontecia no Brasil, dividiam seu tempo as práticas da botânica, zoologia e demais ciências da natureza, com outras profissões liberais, pois ainda não era possível viver só de ciências. Outros cientistas também participaram desta expedição, Gray, Pickering e Dava, contudo foram figuras que atuaram fortemente na luta pela institucionalização da ciência em seu país.

E falando em ciência, a autora fez uma afirmação nas páginas iniciais, que nos chamou muito a atenção: de que o livro não era de história da ciência (p. 17), apesar do termo científico da capa. O que nos fez pensar na conexão entre os objetos de estudo e suas respectivas áreas disciplinares. Um historiador poderia responder que uma área de estudo será definida por suas abordagens e respectivas historiografias, não necessariamente por seus objetos. Acreditamos que a definição de uma subárea na História é um conjunto de coisas, objetos, abordagens e reflexões sobre o tema. No livro em questão, imaginamos que Junqueira não precisaria se preocupar com esta ressalva que talvez seja fruto do receio de futuras críticas e cobranças, ou ainda por uma concepção um tanto idealizada de ciência.

Talvez tenhamos que nos lembrar da Escola dos Annales e sua ideia de uma história total, ou seja, para um entendimento mais abrangente dos processos históricos. O que torna vital a inclusão da maior gama possível de atividades humanas. É compreensível que muitos historiadores excluam a ciência de suas análises, devido a própria trajetória da história da ciência. Essa em suas origens ela era escrita por cientistas e não por historiadores e vista como um caminho para a introdução dos estudos científicos per si. Isto pode ter contribuído para o afastamento das áreas e a imagem de que a ciência não é assunto para os demais historiadores. Mas este quadro já foi alterado há várias décadas, com a superação do debate internalista versus externalista, por exemplo. A história da ciência atualmente é em larga escala tarefa de historiadores profissionais. Se a ciência é uma atividade social como qualquer outra e não possui um status privilegiado, ela pode e deve ser estudada pelos mesmos métodos de análise das ciências humanas.

Um ponto forte do trabalho de Junqueira foi estudar a expedição remetendo ao contexto de uma busca de identidade nacional norte-americana. A leitura de Velas ao Mar nos permite ver o percurso ainda em construção de um ideal nacional norte-americano pautando as atividades científicas daquela viagem. Assim, a autora explicou que a equipe de cientista deveria ser natural dos Estados Unidos para a produção de um saber local (p.61). Mesmo que o termo saber local não seja adequado neste contexto, pois grosso modo este designa o conhecimento produzido fora dos parâmetros da ciência ocidental. Provavelmente o que a autora quis reforçar era a ideia de uma produção nacional como via de construção de uma identidade nacional. Por este ângulo, é possível ver como a jovem nação norte-americana resolvia questões sobre sua identidade nacional em relação a sua antiga metrópole e o papel da ciência neste processo. Algo que também ocorreu no Brasil, muitos homens de ciência se dividiam com a formulação de um projeto político como por exemplo José Bonifácio.

De forma geral, nos processos de construção de identidade de nações que foram colônias, um fator a ser resolvido é a sua relação com as antigas metrópoles. A autora nos ensina como o anglo-saxonismo foi um conceito chave para a resolução deste problema, no sentido de que apesar da desconfiança e rivalidade em relação à Inglaterra, havia um sentimento de continuidade e pertencimento, no momento em que os norte-americanos se viam como herdeiros de um legado positivo oferecido pela raça anglo-saxã. Esta seria mais engenhosa e superior, portadora das virtudes da civilização se comparada às demais raças humanas. Vale citar que as discussões relativas à raça eram realizadas na esfera da ciência. E foi assim, que Wilkes interpretou o encontro de outras culturas pelo globo e também no território americano, no contexto das disputas com o México: os americanos anglo-saxões se consideravam superiores aos descendentes espanhóis, o que justificaria a sua dominação e controle dos territórios em litígio.

Um argumento está na narrativa de Junqueira a todo momento que é o sentimento de rivalidade e admiração em relação a Inglaterra, que a autora qualifica como uma contradição. Contudo, se pensarmos a questão da raça anglo-saxã no contexto científico do século XIX, não necessariamente haveria uma contradição uma vez que a ideia de evolução permeava as interpretações científica de então. Deste ponto de vista, os Estados Unidos seriam os verdadeiros herdeiros do espírito da raça, destinado a aperfeiçoar aquelas virtudes, recebidas da Inglaterra, que representava o passado a ser superado.

Em outras palavras, ciência e nação estavam completamente amalgamadas naquele processo. Para o público brasileiro seria ótimo se esta pesquisa fosse lida também como uma via de se pensar o mesmo processo que aqui ocorreu. No entanto, nós temos a tendência de não enxergar a ciência na política, economia e na sociedade em geral. E, finalmente, gostaríamos de dizer a Mary Junqueira que este sim pode ser um livro de história da ciência.


Resenhista

Moema de Rezende Vergara – Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST).


Referências desta Resenha

JUNQUEIRA, Mary Anne. Velas ao Mar – U.S. Exploring Expedition (1838-1842). A viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos. São Paulo: Intermeios; FAPESP, 2015. Resenha de: VERGARA, Moema de Rezende. Revista Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 129-131, jan./jun. 2017. Acessar publicação original [DR/JF]

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