Cultura escrita: séculos XV a XVIII – CURTO (RBH)

CURTO, Diogo Ramada. Cultura escrita: séculos XV a XVIII. Lisboa: ICS, 2007. 438p. Resenha de: DURAN, Maria Renata da Cruz. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.60, 2010.

O livro Cultura escrita: séculos XV a XVIII, de Diogo Ramada Curto, é categórico em sua proposta: “orientado analiticamente … desafia toda e qualquer forma de modelação dos sistemas de comunicação, visando trazer para o centro da análise a instabilidade criativa que se encontra presente na intervenção de cada agente (autores, impressores, mecenas, censores, leitores, etc.)” (p.12).

Seu autor, professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, na Escola dos Altos Estudos, nas universidades de Brown e Yale, no King’s College e no Instituto Universitário Europeu, funda a proposta ora apresentada na prerrogativa de que “tais estruturas podem ser vistas como definindo lugares onde se enraízam regimes de práticas” (p.14). Tal constructo nos é apresentado por meio de 12 capítulos, dispostos segundo uma lógica em que as fontes de pesquisa, a noção de história, os agentes do processo, seu modo de produzir e seu tipo de produção são concatenados em textos já conhecidos do público europeu, seja por meio de palestras ou de artigos. Separados, em sua escrita, por cerca de dez anos, os ensaios serão abordados pontualmente.

No primeiro capítulo, intitulado “Gravura e conhecimento do mundo em finais do século XV”, Curto procura abstrair do estudo do modo de produção dos livros que circularam na Alemanha, na Itália e na Península Ibérica a longevidade da combinação entre textos e imagens impressas, e as interferências entre a forma de transmissão de uma mensagem e o sentido dos conteúdos transmitidos.

No segundo capítulo, “A língua e a literatura no longo século XVI”, o foco são as “questões que supõem a possibilidade de determinar a vitalidade do uso social de uma língua” (p.58), por meio de um estudo sobre o estabelecimento de hierarquias em luta pela imposição de discursos legítimos.

No terceiro capítulo, “Historiografia e memória no século XVI”, o autor se volta para a corte de d. João II, propondo uma sondagem acerca da genealogia das obras no âmbito cotidiano e ordinário de sua existência.

No quarto capítulo, “Orientalistas e cronistas de Quinhentos”, Curto pretende demonstrar o vínculo entre feitos e obras a partir de um sentido comum, por ele afixado nas lógicas de família e de parentesco.

No quinto capítulo, “Uma tradução de Erasmo: Os louvores da parvoíce“, Curto reproduz palestra proferida no colóquio “Erasmo na Cultura Portuguesa”, realizado pela Academia de Ciências de Lisboa em maio de 1987.

No sexto capítulo, “Uma autobiografia de Seiscentos: a Fortuna de Faria e Sousa”, o autor repassa a figura do bricoleur, apontando registros autobiográficos, discursos confessionais, relatos picarescos e memoriais de serviços como interessantes fontes de pesquisa para o estudo dos homens de letras. Para mais, recorre à noção de tomada de consciência para traçar o percurso e distinguir a consciência de si de homens como Faria e Sousa.

No sétimo capítulo, “Grupos de rapazes, violência e modelos educativos”, o descentramento em relação aos processos de organização social, a valorização da esfera privada e o fim de “uma determinada concepção de espaço público” compõem o texto.

No oitavo capítulo, “Mercado e gentes do livro no século XVIII”, Ramada Curto é diligente, procurando nos arquivos notariais, comerciais e religiosos as referências pessoais das “gentes do livro” residentes em Portugal. O que o autor, outrora editor da coleção Memória e Sociedade da Difel portuguesa, acompanha são as mudanças na forma de trabalhar do escritor ocidental, o que encontra é o estabelecimento de uma relação com um público alargado e com novos tipos de mecenas.

No capítulo nono, a presença da corte portuguesa nos domínios da cultura escrita lhe permite traçar sua noção de iluminismo. Com “D. Rodrigo e a Casa Literária do Arco do Cego”, apresentam-se “numa lógica de relações claramente cortesãs” as tensões de uma época em que coabitavam figuras como d. Rodrigo e Pina Manique, protagonistas do excerto.

No décimo capítulo, “Literaturas populares e de grande circulação”, o historiador português prossegue na companhia dos documentos notariais, mas, agora, sai das casas e vai para as ruas, procurando valorizar o espaço urbano “a partir dos significados atribuídos a cada espaço particular, bem como às suas respectivas relações” (p.299).

Em “Notas para uma história do livro em Portugal” e em “Da tradição bibliográfica à história do livro” o autor problematiza as pesquisas lusófonas sobre o livro. Primeiro apontando a subalternização da produção e da divulgação de novos conhecimentos em função da cristalização de algumas explicações; depois, afirmando que suas observações têm “a ambição exclusiva de poder funcionar como guia crítico de futuras investigações” (p.414).

Nessa construção de uma “história dos sistemas de conhecimento imperiais” tendo em vista o modo como nela se desencadearam “novas perspectivas em relação ao estudo da cultura escrita” (p.17), Curto procura orientar seu pensamento a partir de dois modelos historiográficos: o de Lucien Febvre, com seu Rabelais “vivendo numa época cujas estruturas mentais não lhe permitiam pensar sequer no problema da descrença”, e o de Carlo Ginzburg, com seu Menocchio “que, uma vez interrogado pelos inquisidores, demonstrava a sua originalidade em fabricar uma visão própria do mundo” (p.14). Não se trata, todavia, de optar por um desses rumos, mas, sim, de “reforçar um ponto de vista capaz de explorar as diferentes dinâmicas sociais presentes mesmo quando se trata de sociedades altamente hierarquizadas e caracterizadas – como sugeriu Vitorino Magalhães Godinho – por diversos bloqueios” (p.15).

Do mais, que Ramada Curto traga novas questões e novas fontes para enriquecer o estudo dos domínios da cultura escrita é tão certo quanto sua proposta de movimentar a historiografia lusófona. Acerca dessas provocações e do lançamento de Cultura imperial e projetos coloniais (séculos XV a XVIII), editado pela Unicamp em 2009, deu-se um encontro ocorrido no dia 23 de outubro de 2009, no IFCH da Unicamp, aqui descrito para melhor esclarecer o lugar do autor na historiografia contemporânea.

No encontro, Silvia Hunold Lara apresentou e Alcir Pécora debateu um texto de Ramada Curto pautado pela discussão do barroco, da cultura letrada e do período compreendido entre o final do século XVI e o início do XVII. Em sua fala, o historiador português ponderou que a assistência teria contato com uma visão estrangeira de sua terra e, então, anunciou a pretensão de analisar um “conjunto de atitudes” capaz de desenhar uma autorrepresentação da época à luz dos seus “diversos contextos pertinentes”.

A arguição de Alcir Pécora distinguiu o ardil de Curto: cria-se no seu tipo de historiografia um inventário calculado que dissolve lugares comuns, mas que, ao mesmo tempo, esquiva-se de polêmicas. Ramada Curto respondeu mencionando a necessidade do historiador de buscar novas fontes e de tirar das mais comuns o estatuto absoluto por elas alcançado, não para desautorizá-las, mas para avançar com a pesquisa – no que evoca Irving Leonard, afirmando a prerrogativa de se fugir às totalizações para não perder as distinções.

A réplica de Pécora foi enfática – “Mas seu texto não responde o que pergunta!” –, no que Curto se explicou descrevendo a própria formação: lecionou uma Sociologia da Literatura Brasileira em universidades norte-americanas; aprendeu, na juventude, a ideia de mosaico; participou da efervescência francesa sobre o estudo do fragmento (o que considera um privilégio). Em Portugal, tomou lições sobre o neolusotropicalismo e aprendeu a manter o discurso sobre as colônias “a panos quentes”. Em seguida, Ramada Curto afirmou que sua intenção não é tanto fazer uma proto-história, quanto ressaltar os contrastes de cada época para dar a ideia de sua dinâmica, tendo em vista que “uma cultura deve ser vista a partir de seus fragmentos e em relação a um conjunto de práticas que envolva pessoas concretas”. Alcir Pécora não expressou convencimento ou concordância. Os espectadores, inquietos, passaram a perguntar.

Laura de Mello e Sousa foi a primeira, indagando sobre sua proximidade com Nathalie Zamon Davies na obra “A ficção no arquivo” e sobre sua opinião acerca de uma construção literária que permite o tipo de história que ela detectava nos livros do historiador português.

Para responder, Curto citou Naipaul, se disse longe de Davies e afirmou sua posição como a de alguém que busca na realidade, e não na ficção, os seus recursos. Concluiu essa resposta recomendando a leitura de Pierre Chaunu para os espectadores mais jovens.

Silvia Hunold Lara, brincando com a expressão de Pécora sobre o texto de Curto – “uma muralha” –, refere-se a ele como um mar, cujos vagalhões vêm na forma de notas de rodapé e onde as correntes têm maior importância que a desembocadura. Para ela, Sérgio Buarque de Holanda é correnteza subterrânea nesse mar, no que um aceno de Ramada Curto nos faz crer que estava certa.

Iris Kantor assinalou que não apenas os historiadores portugueses não conhecem a bibliografia brasileira, como os brasileiros não conhecem a historiografia portuguesa; que talvez esse seja um problema geracional, mas que ele só tem aumentado. Menciona a ideia de uma geografia política de intelectuais e pede que Ramada Curto se localize ali.

Ramada Curto enunciou Pierre Vilar a propósito do que colocou como uma de suas principais perguntas: “Como pensar a nação?”. Depois, descreveu suas preocupações acerca do desconhecimento da historiografia e, sobretudo, das fontes históricas assinalando, relutante, que as bibliotecas e arquivos possuem muito mais manuscritos guardados que catalogados, e que, destes, “basta que a ficha seja roubada, para se perder a memória do mesmo”.

Faço uma pergunta: de onde vem e para onde vai a ideia de uma tomada de consciência em sua obra? Ele responde: vem de uma tradição marxista e da necessidade, no momento em que vivemos, de suscitar ideias como essa. Daí por diante, entre fragmentos dispersos, tais como algo sobre a impossibilidade de classificar o passado, mas buscando conferir se seus agentes o fazem, recordo que Ramada Curto, respondendo a uma reivindicação de Pécora sobre sua metodologia, assinalou: “Não digo isso no próprio texto porque não posso estar sempre a dizer das regras do jogo que estou a jogar”.

Maria Renata da Cruz Duran – Doutora pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Quadra 02, Bloco L, 7º andar Brasília – DF. E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[IF]

Autores lusófonos – João Duns Scotus 1308-2008 – DE BONI (V)

DE BONI, L. A. (org.). Autores lusófonos – João Duns Scotus – 1308-2008. Porto Alegre/Bragança Paulista: EST/Edipucrs/Edusf, 2008, 382 p. Resenha de: DIAS, Cléber Eduardo dos Santos. Veritas, Porto Alegre v. 54 n. 3, p. 193-196, set./dez. 2009.

No ano de 2008 celebrou-se o sétimo centenário da morte de João Duns Scotus, o mais brilhante dos pensadores franciscanos medievais.

Entre as muitas atividades acadêmicas, que aconteceram pelos mais diversos países, cabe mencionar o volume em tela, no qual 21 autores lusófonos se fazem presentes. Organizado pelo Prof. Luis Alberto De Boni, trata-se, sem dúvida, da obra mais importante sobre Duns Scotus redigida em língua portuguesa e, assim penso eu, haverá de decorrer muito tempo antes que algo semelhante venha a ser produzido. Trabalharam como co-organizadores: Cléber E. S. Dias, Joice B. da Costa, Roberto H. Pich e Thiago Soares Leite. Antes de prosseguir este comentário, cito o nome do autor e o título de todos os textos, seguindo sua sequência interna: – João Lupi (Florianópolis): Contexto cultural da primeira formação acadêmica de João Duns Scotus. – Guilherme Wyllie (Cuiabá): A falácia de petição de princípio em Duns Scotus. – Carlos Eduardo Loddo (Montreal): Duns Scotus e os universais lógicos nas Quaestiones in Porphyrii Isagogem. – Frei Sinivaldo Tavares (Petrópolis): A teologia e seu método no prólogo da Ordinatio de Duns Scotus. Carlos Arthur Nascimento (São Paulo): João Duns Scot e a subalternação das ciências. Roberto H. Pich (Porto Alegre): Duns Scotus sobre a credibilidade das doutrinas contidas nas Escrituras. – Maria Leonor Xavier (Lisboa): João Duns Escoto e o argumento anselmiano. – Joaquim Cerqueira Gonçalves (Lisboa): A questão da Onto-Teologia e a Metafísica de João Duns Escoto. – César Ribas Cezar (São Paulo): Teologia positiva e Teologia negativa em Duns Scotus. Pedro Leite (Porto Alegre): A crítica de Ockham à noção de natureza comum de Scotus. Thiago Soares Leite (Porto Alegre): Os transcendentais em Duns Scotus. Antonio Pérez-Estévez (Maracaibo): Duns Scotus e sua metafísica da natureza. Maria Manoela Brito Martins (Porto): A noção de individuação em São Tomás e Duns Escoto. – Pedro Parcerias (Porto): Duns Escoto e o conceito heterogeológico de Tempo. José Rosa (Beira-Baixa): Da relacional antropologia franciscana. Alfredo Culleton (Unisinos): A lei natural em Duns Scotus. Luis A. De Boni (Porto Alegre): Duns Scotus: a Política. – André Alonso (Niterói): Reditio iterata: Scotus e as bases antropológicas da ressurreição. José Meirinhos (Porto): Escotistas portugueses do século XIV. Mário Santiago de Carvalho (Coimbra): Duns Escoto na tradição portuguesa do século XVII.

Examinando a ordem dos textos, percebe-se que os organizadores seguiram, na medida do possível, os caminhos da obra de Scotus, colocando inicialmente os textos referentes à lógica e, a seguir, tomam a Ordinatio como guia. Todos os textos são importantes, e não cabe aqui tentar fazer uma classificação entre eles. Limito-me, apenas, a mencionar alguns, em parte pela forma de abordagem, em parte por chamarem ao debate o pensamento moderno e alguns pela relativa raridade do tema.

O artigo de Guilherme Wyllie, tratando da questão lógica conhecida como “falácia da petição de princípio”, parte da caracterização desta como sendo uma “falácia caracterizada como um argumento em que as premissas pressupõem a verdade ou admissibilidade da conclusão” (p. 15). O autor, valendo-se de inúmeros estudos contemporâneos, provenientes na maioria do mundo anglo-saxônico, mostra que, por vários motivos, tal definição não se sustenta, e passa, então, a analisar este tipo de falácia a partir de Aristóteles, o primeiro filósofo que a estudou detalhadamente. Este a examinou tanto sob o aspecto epistêmico, que postula o conhecimento das premissas independentemente do conhecimento da conclusão, quanto sob o aspecto dialético, o qual afirma que existe tal falácia quando são transgredidas certas regras do debate.

Passando do pensador grego para Duns Scotus, Wyllie afirma que Scotus não redigiu um tratado específico sobre a falácia, mas a conhece muito bem e, a partir dos textos dele, fica claro que a analisa sob o aspecto epistêmico, “segundo o qual, um argumento acometido pela presente falácia, é válido e pretende provar a respectiva conclusão, embora não o faça, por força da ausência de premissas necessárias e auto-evidentes”

Também na área de lógica é importante e, em parte, inovador, o artigo de Carlos Eduardo Loddo, que se ocupa com os universais lógicos nos comentários de Scotus a Porfírio. Loddo observa que há um consenso no modo de considerar os universais lógicos, ou segundas intenções, em Scotus, como entidades puramente semânticas. Para uns, diz ele, as intenções primeiras de Scotus são classificadas como as coisas reais, enquanto as intenções segundas são conceitos aplicáveis diretamente a estas coisas. Com isso, só as intenções primeiras se referem à metafísica, ficando as intenções segundas classificadas como tema de uma semântica pura. Para outros, já as intenções de primeira ordem são consideradas como conceitos aplicáveis às coisas naturais, ficando as de segunda ordem como conceitos aplicáveis aos conceitos de primeira ordem. Neste caso, os conceitos de ambas as ordens acabam transformados em representações subjetivas, que dispensam qualquer isomorfia entre os termos linguísticos e as coisas e acaba-se tendo uma semântica muito próxima ao nominalismo (p. 25-27). Em sua crítica, longamente desenvolvida, o autor propõe uma interpretação alternativa do texto escotista, mostrando que nele transparece o realismo do frade franciscano, inclusive e muito especificamente, com respeito aos universais lógicos. Para tanto, o jovem autor discorda, sem temor, de alguns dos mais célebres escotistas da atualidade, aos quais critica pelo fato de, em muitos casos, fazerem aproximações muito fáceis entre o pensamento medieval e o contemporâneo, principalmente aquele de proveniência analítica. Com isso ele não está negando a possibilidade e a importância de interfaces entre eles, mas é necessário ver quais delas são pertinentes e quais não passam de anacronismo, pois, “as comparações paralelas, tanto quanto as transversais, se operadas demasiado rapidamente na historiografia filosófica, conduzem ao erro” (p. 29).

Chama a atenção também o artigo de Sinivaldo Tavares a respeito da importância do Prólogo da Ordinatio. Esse texto, que não é apenas o prólogo de uma obra, mas uma espécie de Discurso sobre o Método de um teólogo medieval, podendo-se, se examinado a fundo, perceber que nesse texto recuperam-se elementos dos debates acadêmicos das décadas anteriores, principalmente os referentes à pergunta sobre o lugar da Teologia e das demais ciências no conjunto dos saberes. Scotus, como bem observa o autor, desce a minúcias, vai ao fundo nas distinções, mas não se perde nelas; pelo contrário, a cada passo vai brilhando sempre mais a originalidade e a profundidade do pensamento escotista. A conclusão que aqui mais interessa é de uma posição nova, entre teólogos, a respeito da posição da Teologia no conjunto dos saberes. “Duns Scotus se revela um autêntico defensor do pluralismo epistemológico. (…] Scotus propõe com traços firmes e claros a autonomia dos saberes em um ambiente cultural marcado por uma sadia pluralidade” (p.105). Isto era o oposto do que defendiam quase todos os teólogos de seu tempo, para os quais as demais ciências estavam subalternadas ou reduzidas à Teologia. Com razão o autor fala de algo como uma “epistemologia débil” escotista, que, por razões históricas diferentes, foi suprimida dos círculos académicos católicos, mas que hoje se abre para o diálogo com a sociedade contemporânea.

Entre os demais artigos, que percorrem praticamente todo o leque de interesses de Scotus, cabe recordar dois deles também por uma nota trágica: seus autores (António Pérez-Estévez e Pedro Parcerias) não estavam mais presentes entre nós quando o volume foi publicado.

Para brasileiros, mas também para portugueses, são importantes os textos de Mário Santiago de Carvalho e José Meirinhos, estudando o importante significado do escotismo em Portugal. O vigésimo primeiro artigo, de Cléber Eduardo dos Santos Dias, é um levantamento de tudo o que foi publicado por escotistas lusófonos durante cinco séculos.

Num trabalho de paciência, que poderia ser classificada de beneditina, Cléber Eduardo pesquisou as mais diferentes fontes, correspondeu-se com inúmeros especialistas e fez descobertas inesperadas, em cujo final surgiram 323 títulos.

Enfim, cabe uma palavra especial ao Prof. De Boni. Esse exímio medievalista definiu a ‘universidade como a casa da razão’. Sua organização teórico-metodológica dos artigos de Duns Scotus confirma, mais uma vez, sua crença no debate de idéias e aproximação de saberes.

Sílvia Contaldo

 

Acessar publicação original

Demystifying the Female Body in Hispanic Male Authors, 1880-1920 – COHEN (REF)

COHEN, Daria. Demystifying the Female Body in Hispanic Male Authors, 1880-1920 – Overcoming the Virgin/Prostitute Dichotomy. Queenston, Ontario: The Edwin Mellen Press, 2008. 111 p. Resenha de: FÉLIX, Regina R. As mulheres que os homens deixam escapar – literatura de língua castelhana escrita por homens (1880-1920). Revista Estudos Feministas v.17 n.3 Florianópolis Sept./Dec. 2009.

O estudo de Daria Cohen oferece uma análise rara do tratamento do corpo da mulher na literatura como um campo de “batalha ideológica” em selecionados contos de língua castelhana escritos por Rubén Darío, Manuel Gutiérrez Nájera, Manuel Díaz Rodríguez, Azorín (José Martínez Ruiz), Miguel de Unamuno e Ramón del Valle-Inclán no período conhecido como fin-de-siècle. O trabalho apresenta uma introdução, quatro capítulos e conclusão.

Na introdução, Cohen explicita sua base teórica. Expõe o recorte do período modernista na América Latina e na Espanha, ao considerar escritores latino-americanos e espanhóis conjuntamente, optando com acerto por uma periodização que conflui o modernismo latino-americano à Geração de 1898 espanhola, assim propondo a modernidade como um tempo de inovações que perpassam o Ocidente e não se atêm a localidades, como sugerem os teóricos Richard Cardwell, Federico de Onís, Ivan Schulman, Evelyn Picon Garfield, entre outros. Também aponta as teóricas feministas que a informam em sua análise, como Susan Suleiman, Elaine Showalter, Gilbert and Gubar, Rita Felski, entre outras. Em seu estudo, Cohen perscruta “tipos diferentes de corpos de mulher” dentro das relações de poder em que são encaixados pelos escritores. Distingue seu estudo em relação ao de Consuelo Arias (Representations of the Feminine in Modernismo: The Figure of the Exotic Woman. Em português, Representações do feminino no modernismo: a figura da mulher exótica). Citando Elisabeth Grosz (Volatile Bodies. Em português, Corpos voláteis), Cohen oferece uma boa discussão sobre o que denomina “feminismo corporal”, segundo o qual o corpo é tomado como um “terreno de contestação” interpenetrado, nem como vítima nem como agressor, por instâncias várias da vida social. O corpo, assim compreendido, seria a base da subjetividade moderna, como um “local de contradições”, segundo conceitos de Anthony Casdardi (The Subject of Modernity. Em português, O sujeito da modernidade), Meile Steele (Theorizing Textual Subjects, em português Teorizando sujeitos textuais) e Catherine Belsey (Critical Theory. Em português, Teoria crítica). Cohen se utiliza também da contribuição de “The Body of the Condemned” (em português, O corpo do condenado”) em Vigiar e punir, de Michel Foucault, completando a noção do corpo como ponto a partir do qual “resistência e agência estratégicas” são possíveis, sendo este o local no qual “choques de gênero, poder e subjetividade” ocorrem. Os capítulos apresentam diferentes caracterizações das mulheres – as manobras retóricas dos escritores para dar vazão às suas ansiedades, segundo Cohen, diante dos anseios da nova mulher que surgia.

O corpo como “O artefato sensual” é tratado no Capítulo 1. Cohen mostra a erotização do corpo da mulher por Rubén Darío (Nicarágua, 1867-1916), segundo uma estética, de fato, parnasiana, em “El rubí” – como objeto para o desfrute do olhar masculino. Para a autora, Darío cria uma aura de mistério que cultiva a alteridade, ao mesmo tempo enaltecendo e desfigurando o corpo da mulher. Assinalando a linguagem marcada por indícios de gênero, através da qual o artífice é o masculino e o material a ser modelado, o feminino, Cohen demonstra o significado subjacente ao texto como a vitória da criatividade ativa do homem sobre a matéria feminina inerte, como material bruto – reconfirmando a antiga dicotomia segundo a qual o masculino, com sua capacidade de idealização, não apenas cria sobre o corpo da mulher, mas desse modo pode controlá-lo. Mas “El rubí”, ao mostrar o corpo da mulher com suas fruições próprias, tentando ademais libertar-se, demonstra uma agência não usual à época, confirmando a visão da autora de que um novo sujeito feminino moderno emerge.

No Capítulo 2, o corpo feminino é “A moldura artística” com que a literatura modernista objetificou esteticamente a presença da mulher como réplica retórica e metafórica da feitura do texto ele mesmo. Cohen sugere que, nesse sentido, o corpo da mulher como moldura reflete “os vários níveis das noções de limite e produção artística”. Seguindo as sugestões de Helena Michie (The Flesh Made Word. Em português, A carne feita palavra), Cohen mostra como o corpo das mulheres procura se desvencilhar dos enquadramentos nos quais os escritores querem prendê-las. Em “Rosa, lirio y clavel”, de Azorín (Espanha, 1873-1967), um jogo da relação entre os gêneros emoldura a mulher para o olhar masculino, num texto modernista por excelência, dada a preocupação expressa (de l’art pour l’art) do escritor com o fazer literário. Na cena descrita por um velho viajante, de ambientação à la prérafaelitas, três mulheres se movimentam e seus corpos são detalhadamente descritos por sua sensualidade. Segundo a autora, ao descrevê-las e emoldurá-las, o escritor as “enquadra” também no sentido jurídico de que as detém para averiguação, ou seja, critica-as e julga-as. Ao transformá-las em flores que acompanham outros personagens mórbidos da história, o enquadramento seguinte mostra que a sensualidade e a vitalidade das mulheres são tornadas inanimadas, segundo a autora, como uma forma de sublimar o estranhamento do próprio escritor diante de um mundo que se transformava (e o assombrava) radicalmente. No conto, “La venganza de Milord”, de Manuel Gutiérrez Nájera (México, 1859-1895), mistério e intriga são mapeados nos corpos femininos. O narrador descreve a história de várias mulheres: Clara, a mulher que não amava; a segunda, a mulher boneca, sem vitalidade; a terceira, uma surreal mulher sem corpo cuja função obscura é aprisionar esposas; e, finalmente, Alícia, a mulher compelida a trair o marido para enfim terminar petrificada como a protagonista de A bela adormecida. No entanto, sem o beijo final que lhe restaurasse a vida, como sugere Cohen, Alícia termina como um simples cadáver. Segundo a autora, esses enquadramentos das persona-gens demonstram o temor da sociedade expressa pelo escritor quanto à possibilidade da autonomia da mulher que se insinuava. No último conto analisado no capítulo, “La muerte de la emperatriz de la China”, de Darío, Cohen mostra que a propensão do escritor para descrever como joia a mulher Suzette e como um estojo a sala em que se encontra evidencia o que Elaine Showalter denomina “The Case of Women”. Em português, “O caso da mulher” (em inglês, o vocábulo “case” significa tanto “caso” como “estojo”, “caixa”). Com isso, Showalter atenta para o fato de que a mulher se tornou, na época, um caso a ser analisado, como se fosse a caixa de Pandora, cheia de mistérios e perigos. Cohen nota, contudo, que Darío neste texto rompe com o padrão do texto anterior quando permite que sua protagonista destrua a imagem da imperatriz chinesa que o marido idolatrava em seu estúdio, dizendo, ao fazêlo, estar vingada. Para a autora, desse modo, Suzette “destrói o ícone exótico” que a espelha e, assim, demonstra “o sujeito feminino que astutamente resiste à opressão da sociedade”.

Os enquadramentos estéticos assinalados anteriormente, segundo Cohen, levam ao que analisa no Capítulo 3, ou seja, ao desvanecimento da mulher, como sugere o título “A presença apagada”, “em resposta à nascente subjetividade da mulher moderna”, já que os escritores com frequência se referem à morte da sensualidade feminina, exibindo um temor em relação à sua expressão. Consequentemente, Cohen detecta uma associação insistente entre o “corpo da mulher e a morte” como forma de aniquilação de seu poder. Cohen observa, no entanto, que há uma duplicidade nos textos, ou seja, uma tentativa de apagamento da mulher tão renitente como a emergência da agência feminina, mesmo que momentânea, em “cambiantes posições subjetivas” – ainda que a subjugação da mulher prevaleça, enfim. Em “Rosarito” e “Mi hermana Antonia”, Ramón del Valle-Inclán (Galícia, 1866-1936) exemplifica o apagamento da mulher “nas mãos do homem moderno”. A história da tímida e sexualmente inocente Antonia, que, seduzida por um estudante “de olhos de tigre”, fenece, traz novamente uma atmosfera tétrica que trata da morte do corpo da mulher de modo a restituir a moralidade social. Também Rosarito, descrita com uma sensualidade ambivalente de anjo e prostituta (“trágica e madalênica”) será seduzida e, enfim, morta pelo sedutor. Cohen compreende que ao matá-la, como já foi dito, o escritor procura extinguir o erotismo que aos poucos faz emergir a subjetividade da mulher moderna. Em “Cuento Rojo”, de Manuel Díaz Rodríguez (Venezuela, 1871-1927), a autora apresenta uma luta entre o masculino e o feminino no contexto cultural moderno. Aqui o misógino protagonista Renzi, como ocorre com o mito de Don Juan, torna suas conquistas em “bonecas inanimadas” até encontrar Irma, uma mulher que não sucumbe aos seus ardis. Com um tapa no rosto de Irma, Renzi responde à indiferença da mulher, que, logo em seguida, como uma “selvagem voluptuosa”, beija-o com os lábios ensanguentados. O narrador, nota Cohen, assinala a reação da mulher como algo novo a complicar o relacionamento entre amantes naquele tempo. Até aqui, Cohen conclui que a batalha entre os sexos ainda relega a mulher ao enquadramento do homem – seu temor da incipiente agência da mulher provoca a violência e o consequente apagamento dela.

Com o conto “Soledad”, de Miguel de Unamuno (Espanha, 1864-1936), Cohen inicia o Capítulo 4 no qual seu estudo culmina, enfim, com “A desmistificação do corpo da mulher”. Aqui se sobressai a mulher cujo modo de vida é satisfatório para si mesma. Amparo, uma mulher cujo marido é omisso e ausente, antes de morrer logo após ter uma filha, exige do marido que a nomeie Soledad, nome que definirá seu caráter, já que não pode contar com nenhum dos homens com quem se relaciona – pai, irmão ou amante. Ao aceitar essa decepção fundamental, para Cohen, dedicando-se à leitura de livros, Soledad viabiliza uma vida independente para si mesma. A sugestão de que lia também livros eróticos suscita a ideia de que sua autonomia se estende à sua própria sexualidade. Cohen aponta que, desse modo, Soledad transcende o estereótipo da solteirona solitária, sem par (the odd woman), um dos tipos sociais que suscitaram a questão da mulher à época. Os contos “La caperucita color de rosa” e “La ultima hada”, de Manuel Gutiérrez Nájera, que Cohen nos mostra, desconstroem tanto os mitos da ingenuidade da Chapeuzinho vermelho como o da magia das fadas. No primeiro caso, encontramos uma Chapeuzinho que ludibria a todos e planeja passo a passo um casamento vantajoso. A fada, por seu turno, é posta de lado pela personagem Pensamento, que, dispensando os encantamentos da outra, faz suas próprias escolhas. Em “La venganza de Milady”, do mesmo autor, não só Milady retribui Milord com infidelidades, mas, em última instância, o trai com a própria amante do marido. Para Cohen, como é evidente, não apenas a mulher toma a frente em defesa própria, mas o faz demonstrando tamanha audácia através da transgressão sexual de um relacionamento lésbico.

Em sua conclusão, Daria Cohen nota que os escritores que estuda apresentam o corpo da mulher, por um lado, subjugado pelo olhar e pela atuação masculinos, mas, por outro, também imbuído de resistência aos constrangimentos das normas patriarcais da época. Cohen faz uma recapitulação retomando o “processo de formação da identidade” que os Capítulos de 1 a 3 mostram, ou seja, a tentativa de emergência da moderna subjetividade da mulher que resulta numa atuação mais resoluta no Capítulo 4. Cohen ressalta que procurou mostrar a “transformação e o progresso” da força da nova subjetividade da mulher na modernidade entre escritores nos quais raramente se espera encontrar tal preocupação.

Como se vê, este estudo traz uma contribuição valiosa, pois ressalta um novo prisma em textos de grandes escritores do modernismo, qual seja, sua sensibilidade com as mudanças socioculturais que tiveram as relações de gênero como um de seus aspectos cruciais. Cohen salienta com cuidado o caráter ambivalente e contraditório da retórica que deixa entrever a formação da subjetividade feminina e como textualidade imbricada ao contexto social. Ainda que em alguns pontos repetitivo, dada a reiteração exaustiva da frase “emergência da subjetividade moderna da mulher”, bem como um pouco carente do desenvolvimento das teorias que cita entre as páginas 2 e 4, o livro tem seus méritos. Por salientar com destreza, além dos estratagemas com que os escritores expressaram seus temores quanto ao feminino, também seu próprio reconhecimento do potencial impetuoso das mulheres, a partir do conceito de desejo como cerne da subjetividade moderna, o trabalho de Daria Cohen merece a atenção dos estudiosos do assunto.

Regina R. Félix – University of North Carolina Wilmington.

Acessar publicação original

A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XVI e XVIII | Roger Chartier

Resenhista

Rosilene Alves de Melo


Referências desta Resenha

CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XVI e XVIII. Brasília: Editora da UnB, 1994. Resenha de: MELO, Rosilene Alves de. História da leitura, leituras da História: o livro e os leitores na Idade Moderna. SÆCULUM – Revista de História. João Pessoa, n. 2, p. 233-238, jul./dez. 1996.

Acesso apenas pelo link original [DR]