Textos sobre poder, conhecimento e contingência – SCOTUS (V)

SCOTUS, João Duns. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Tradução, introdução e notas de Roberto H. Pich. Porto Alegre: Edipucrs/Edusf, 2008, 508 p. (col. Pensamento Franciscano, XI). Resenha de: LEITE, Thiago Soares. Veritas, Porto Alegre v. 54 n. 3, p. 202-203, set./dez. 2009.

Inserindo-se nas celebrações do VII centenário de falecimento de João Duns Scotus, vem a lume a obra João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência, compondo o décimo primeiro volume da já tradicional coleção Pensamento Franciscano.

Após haver traduzido o Prólogo da Ordinatio (JOÃO Duns Scotus. Prólogo da Ordinatio. Porto Alegre: Edipucrs, 2003, 456 p. – col. Pensamento Franciscano, V) e a questão 15 do livro IX das Quaestiones super libros metaphysicorum Aristotelis (Veritas 53/3 (2008), p. 118-57), o Prof. Dr. Roberto Hofmeister Pich (PUCRS) apresenta sua tradução das três versões dos textos de Duns Scotus sobre os temas “poder”, “contingência”, “conhecimento divino” e “liberdade”, a saber: Lectura I, d. 39-45; Ordinatio I, d. 38-48 (no lugar destinado à d. 39, encontra-se a tradução do apêndice A – Segunda parte da trigésima oitava distin203 ção e trigésima nona distinção) e Reportatio parisiensis examinata I, d. 38-44.

Como é sabido, Lectura I, d. 39-45 constitui-se na parte final do comentário ao livro primeiro das Sentenças de Pedro Lombardo, elaborado por Scotus com a finalidade de docência em Oxford. Já Ordinatio I, d. 38-48 representa a “ordenação” dos textos de Lectura com o objetivo, diríamos hoje, de publicação. Nesse sentido, os textos de Ordinatio seriam a revisão que Scotus iniciara em Oxford e continuara em Paris. Por fim, o terceiro bloco de textos traduzidos (Reportatio parisiensis examinata I, d. 38-44) reporta as anotações de aula de alunos e discípulos que ouviram as preleções de Scotus em Paris e, por ele, examinadas e aprovadas.

Tal coletânea consiste em um projeto único no mundo e tornar-se-ia um cânone no meio scotista mundial caso os textos latinos acompanhassem a tradução, o que caracteriza um primeiro demérito da edição. Pode ser considerado um segundo demérito a ausência de uma revisão mais detida.

Não obstante os problemas acima citados, o volume está repleto de méritos. O primeiro é o já citado fato de, nele, se encontrarem traduzidas as três versões dos textos de Scotus. O leitor que não esteja familiarizado com as obras da Scotus poderá se situar na coletânea de textos apresentada através do Prefácio, escrito por Pich.

Ao Prefácio, segue-se o segundo mérito do volume, a saber: um extenso estudo sobre os temas “contingência” e “liberdade”, no qual Pich, para explicar a tese do Doctor Subtilis sobre o indeterminismo da vontade, realiza uma descrição do que denomina “modo de causalidade do ato da vontade” e “modo de realidade do ato volitivo”. É também digno de nota a bibliografia apresentada ao fim do estudo por ser, ao que tudo indica, a mais atualizada sobre o tema.

Um terceiro mérito consiste na apresentação da estrutura de cada distinção traduzida. Tal modus operandi, que já se tornou característico das traduções de Pich, permite uma rápida visualização do modo como o assunto será desenvolvido por Duns Scotus.

Quanto à tradução, a competência de Pich é inegável. Seu conhecimento sobre os temas abordados por Scotus se faz ver ao longo da tradução, de modo que, por muitas vezes, o tradutor transfere uma clareza tal ao texto que seu original latino carecia. A fluidez da tradução é tamanha que um leitor sem acesso aos originais latinos dificilmente entenderá o porquê Scotus ser conhecido como o Doctor Subtilis.

Enfim, trata-se de uma excelente homenagem a esse filósofo tão pouco conhecido e estudado em nosso país.

Thiago Soares Leite

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Autores lusófonos – João Duns Scotus 1308-2008 – DE BONI (V)

DE BONI, L. A. (org.). Autores lusófonos – João Duns Scotus – 1308-2008. Porto Alegre/Bragança Paulista: EST/Edipucrs/Edusf, 2008, 382 p. Resenha de: DIAS, Cléber Eduardo dos Santos. Veritas, Porto Alegre v. 54 n. 3, p. 193-196, set./dez. 2009.

No ano de 2008 celebrou-se o sétimo centenário da morte de João Duns Scotus, o mais brilhante dos pensadores franciscanos medievais.

Entre as muitas atividades acadêmicas, que aconteceram pelos mais diversos países, cabe mencionar o volume em tela, no qual 21 autores lusófonos se fazem presentes. Organizado pelo Prof. Luis Alberto De Boni, trata-se, sem dúvida, da obra mais importante sobre Duns Scotus redigida em língua portuguesa e, assim penso eu, haverá de decorrer muito tempo antes que algo semelhante venha a ser produzido. Trabalharam como co-organizadores: Cléber E. S. Dias, Joice B. da Costa, Roberto H. Pich e Thiago Soares Leite. Antes de prosseguir este comentário, cito o nome do autor e o título de todos os textos, seguindo sua sequência interna: – João Lupi (Florianópolis): Contexto cultural da primeira formação acadêmica de João Duns Scotus. – Guilherme Wyllie (Cuiabá): A falácia de petição de princípio em Duns Scotus. – Carlos Eduardo Loddo (Montreal): Duns Scotus e os universais lógicos nas Quaestiones in Porphyrii Isagogem. – Frei Sinivaldo Tavares (Petrópolis): A teologia e seu método no prólogo da Ordinatio de Duns Scotus. Carlos Arthur Nascimento (São Paulo): João Duns Scot e a subalternação das ciências. Roberto H. Pich (Porto Alegre): Duns Scotus sobre a credibilidade das doutrinas contidas nas Escrituras. – Maria Leonor Xavier (Lisboa): João Duns Escoto e o argumento anselmiano. – Joaquim Cerqueira Gonçalves (Lisboa): A questão da Onto-Teologia e a Metafísica de João Duns Escoto. – César Ribas Cezar (São Paulo): Teologia positiva e Teologia negativa em Duns Scotus. Pedro Leite (Porto Alegre): A crítica de Ockham à noção de natureza comum de Scotus. Thiago Soares Leite (Porto Alegre): Os transcendentais em Duns Scotus. Antonio Pérez-Estévez (Maracaibo): Duns Scotus e sua metafísica da natureza. Maria Manoela Brito Martins (Porto): A noção de individuação em São Tomás e Duns Escoto. – Pedro Parcerias (Porto): Duns Escoto e o conceito heterogeológico de Tempo. José Rosa (Beira-Baixa): Da relacional antropologia franciscana. Alfredo Culleton (Unisinos): A lei natural em Duns Scotus. Luis A. De Boni (Porto Alegre): Duns Scotus: a Política. – André Alonso (Niterói): Reditio iterata: Scotus e as bases antropológicas da ressurreição. José Meirinhos (Porto): Escotistas portugueses do século XIV. Mário Santiago de Carvalho (Coimbra): Duns Escoto na tradição portuguesa do século XVII.

Examinando a ordem dos textos, percebe-se que os organizadores seguiram, na medida do possível, os caminhos da obra de Scotus, colocando inicialmente os textos referentes à lógica e, a seguir, tomam a Ordinatio como guia. Todos os textos são importantes, e não cabe aqui tentar fazer uma classificação entre eles. Limito-me, apenas, a mencionar alguns, em parte pela forma de abordagem, em parte por chamarem ao debate o pensamento moderno e alguns pela relativa raridade do tema.

O artigo de Guilherme Wyllie, tratando da questão lógica conhecida como “falácia da petição de princípio”, parte da caracterização desta como sendo uma “falácia caracterizada como um argumento em que as premissas pressupõem a verdade ou admissibilidade da conclusão” (p. 15). O autor, valendo-se de inúmeros estudos contemporâneos, provenientes na maioria do mundo anglo-saxônico, mostra que, por vários motivos, tal definição não se sustenta, e passa, então, a analisar este tipo de falácia a partir de Aristóteles, o primeiro filósofo que a estudou detalhadamente. Este a examinou tanto sob o aspecto epistêmico, que postula o conhecimento das premissas independentemente do conhecimento da conclusão, quanto sob o aspecto dialético, o qual afirma que existe tal falácia quando são transgredidas certas regras do debate.

Passando do pensador grego para Duns Scotus, Wyllie afirma que Scotus não redigiu um tratado específico sobre a falácia, mas a conhece muito bem e, a partir dos textos dele, fica claro que a analisa sob o aspecto epistêmico, “segundo o qual, um argumento acometido pela presente falácia, é válido e pretende provar a respectiva conclusão, embora não o faça, por força da ausência de premissas necessárias e auto-evidentes”

Também na área de lógica é importante e, em parte, inovador, o artigo de Carlos Eduardo Loddo, que se ocupa com os universais lógicos nos comentários de Scotus a Porfírio. Loddo observa que há um consenso no modo de considerar os universais lógicos, ou segundas intenções, em Scotus, como entidades puramente semânticas. Para uns, diz ele, as intenções primeiras de Scotus são classificadas como as coisas reais, enquanto as intenções segundas são conceitos aplicáveis diretamente a estas coisas. Com isso, só as intenções primeiras se referem à metafísica, ficando as intenções segundas classificadas como tema de uma semântica pura. Para outros, já as intenções de primeira ordem são consideradas como conceitos aplicáveis às coisas naturais, ficando as de segunda ordem como conceitos aplicáveis aos conceitos de primeira ordem. Neste caso, os conceitos de ambas as ordens acabam transformados em representações subjetivas, que dispensam qualquer isomorfia entre os termos linguísticos e as coisas e acaba-se tendo uma semântica muito próxima ao nominalismo (p. 25-27). Em sua crítica, longamente desenvolvida, o autor propõe uma interpretação alternativa do texto escotista, mostrando que nele transparece o realismo do frade franciscano, inclusive e muito especificamente, com respeito aos universais lógicos. Para tanto, o jovem autor discorda, sem temor, de alguns dos mais célebres escotistas da atualidade, aos quais critica pelo fato de, em muitos casos, fazerem aproximações muito fáceis entre o pensamento medieval e o contemporâneo, principalmente aquele de proveniência analítica. Com isso ele não está negando a possibilidade e a importância de interfaces entre eles, mas é necessário ver quais delas são pertinentes e quais não passam de anacronismo, pois, “as comparações paralelas, tanto quanto as transversais, se operadas demasiado rapidamente na historiografia filosófica, conduzem ao erro” (p. 29).

Chama a atenção também o artigo de Sinivaldo Tavares a respeito da importância do Prólogo da Ordinatio. Esse texto, que não é apenas o prólogo de uma obra, mas uma espécie de Discurso sobre o Método de um teólogo medieval, podendo-se, se examinado a fundo, perceber que nesse texto recuperam-se elementos dos debates acadêmicos das décadas anteriores, principalmente os referentes à pergunta sobre o lugar da Teologia e das demais ciências no conjunto dos saberes. Scotus, como bem observa o autor, desce a minúcias, vai ao fundo nas distinções, mas não se perde nelas; pelo contrário, a cada passo vai brilhando sempre mais a originalidade e a profundidade do pensamento escotista. A conclusão que aqui mais interessa é de uma posição nova, entre teólogos, a respeito da posição da Teologia no conjunto dos saberes. “Duns Scotus se revela um autêntico defensor do pluralismo epistemológico. (…] Scotus propõe com traços firmes e claros a autonomia dos saberes em um ambiente cultural marcado por uma sadia pluralidade” (p.105). Isto era o oposto do que defendiam quase todos os teólogos de seu tempo, para os quais as demais ciências estavam subalternadas ou reduzidas à Teologia. Com razão o autor fala de algo como uma “epistemologia débil” escotista, que, por razões históricas diferentes, foi suprimida dos círculos académicos católicos, mas que hoje se abre para o diálogo com a sociedade contemporânea.

Entre os demais artigos, que percorrem praticamente todo o leque de interesses de Scotus, cabe recordar dois deles também por uma nota trágica: seus autores (António Pérez-Estévez e Pedro Parcerias) não estavam mais presentes entre nós quando o volume foi publicado.

Para brasileiros, mas também para portugueses, são importantes os textos de Mário Santiago de Carvalho e José Meirinhos, estudando o importante significado do escotismo em Portugal. O vigésimo primeiro artigo, de Cléber Eduardo dos Santos Dias, é um levantamento de tudo o que foi publicado por escotistas lusófonos durante cinco séculos.

Num trabalho de paciência, que poderia ser classificada de beneditina, Cléber Eduardo pesquisou as mais diferentes fontes, correspondeu-se com inúmeros especialistas e fez descobertas inesperadas, em cujo final surgiram 323 títulos.

Enfim, cabe uma palavra especial ao Prof. De Boni. Esse exímio medievalista definiu a ‘universidade como a casa da razão’. Sua organização teórico-metodológica dos artigos de Duns Scotus confirma, mais uma vez, sua crença no debate de idéias e aproximação de saberes.

Sílvia Contaldo

 

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