O Ensino Médio na BNCC

Campus VIII da Uneb Eunapolis Foto Divulgacao
Campus VIII da Uneb – Eunápolis/BA | Foto: Divulgação

Colegas de Eunápolis, e de outros lugares que nos acompanham, boa tarde.* Agradeço inicialmente aos promotores do evento pelo convite. Agradeço à professora Joceneide Cunha por ter indicado o meu nome. Por fim, gostaria de me solidarizar com a grande profissional Célia que perdeu os pais para esse flagelo que é a Covid 19.

O tema da fala foi uma demanda da organização. O Ensino Médio na BNCC. Digo isso para evitar a clássica informação de que não sou especialista. E não sou. Mas gosto quando os organizadores pautam o tema. Isso me obriga a estudar, sempre. E foi o que fiz, principalmente, de ontem para hoje.

Mas por que estudar de ontem para hoje? Para alinhar a minha fala às falas de Natália Allem e de Geovani Silva. Peso sempre que quem nos ouve e/ou nos vê deve tirar o máximo de proveito do evento.

Natália fez o histórico do Ensino Médio no Brasil e apresentou questões sobre a repercussão do Ensino Integrado nas licenciaturas e no Ensino Técnico. Questiono: deve  ser integral apenas para as famílias de elite? Pode engessar as licenciaturas?

Geovane historicizou as propostas de ensino Integral e de ensino médio integral no Brasil recente. Distinguiu integral de integrado e apresentou os princípios e questões que ele acredita deverem pautar as discussões sobre a BNCC: que conteúdos prescrever, considerando os novos itinerários formativos? Que outras possibilidades formativas podem ser implantadas para prover o ensino integral?

Nesta breve fala, dou prosseguimento aos temas desenvolvidos por Geovane e Natália, tocando em dois assuntos: a cronologia da BNCC e descrição do Ensino Médio na BNCC. Encerro questionando os colegas sobre o que fazer diante do quadro descrito: Se é essa BNCC do Ensino Médio que temos, o que com elas poderemos fazer?

Uma cronologia da BNCC do Ensino médio

A trajetória do assunto Ensino Médio na BNCC pode ser distribuída em cinco períodos. O primeiro se inicia em abril de 2015, quando a construção da BNCC é atribuída à Secretaria de Assuntos Estratégicos. Naquela época, A BNCC era ainda a “Pátria Educadora” e o EM seria focado em capacidades aprendíveis em rede federal de ensino.

Em setembro de 2015 se inicia um novo tempo. O EM já matéria da BNCC do MEC, produzida por 116 especialistas em sua primeira versão nasce a BNCC do governo Dilma.

Em maio de 2016, o governo Temer lança a segunda versão da BNCC. O EM também estava presente, dentro da nova estrutura que tomou o documento, como veremos no quadro a seguir.

Em agosto do mesmo ano, é lançada a terceira versão da BNCC. Aí, o EM não está presente. A decisão de por o EM em base separada partiu da SEB, que atendia à demandas do Concede e da Undime. A BNCC concorria com os projetos de reforma que tramitavam no parlamento e com o programa Ensino Médio Inovador, do MEC

Em abril do ano seguinte (2008), o governo lança a BNCC/EM. Ela já está formatada de acordo com a lei da Reforma do Ensino Médio (abril).

Três meses depois, (julho de 2018), o governo resolve modificar a BNCC/EM, depois de críticas de conselheiros do CNE. As principais críticas vieram do sociólogo César Callegari e da Folha de São Paulo.

Em dezembro de 2018, por fim, o MEC homologa a BNCC/EM.

Arquitetura da informação

Por essa cronologia, pode parecer que tivemos duas BNCC integrais e uma somente para o Ensino Fundamental e outra para o Ensino Médio. Mas essa conta é enganosa. Não sei ao certo quantas versões foram publicadas até hoje. O próprio governo Temer publicou duas versões da BNCC do Ensino Médio no espaço de 24 horas. Mas fiquemos com essas três que apresento no quadro.

O quadro caracteriza o EM na BNCC, como solicitado pelos organizadores. Mas eu priorizei a arquitetura da informação e algumas categorias: integração e progressão metas.

Ensino Medio na BNCC

Percepções de estudiosos sobre a BNCC

Todos conhecemos o teor predominante das críticas à BNCC e ao lugar do EM na BNCC. Destaco as avaliações de entidades corporativas como a ANFOPE (Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação), a ANPEd  (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) e a ABdC (Associação Brasileira de Currículo). Eles apontaram três malefícios da Reforma do Ensino Médio (Temer): “elaboração de políticas públicas por MP; formação de professores e profissionais com notório saber, flexibilização curricular; e reforma e privatização da educação.” (Costa; Silva, 2019, P.12).

Sobre a BNCC/EM, as mesmas entidades a consideraram “autoritária” na elaboração, eurocêntrica, etnocêntrica, “reducionista” e patronizada, um atentado à diversidade cultural, e indutora da privatização da educação pública. (Costa; Silva, 2019, P.16-18). Ela retira a autonomia dos professores, no que diz respeito ao alinhamento de currículos sobre a rubrica “nacional” (propensa ao autoritarismo e ao populismo) e a “expropriação da autonomia intelectual” docente (Silva, 2020, p.155-157). Ela apresenta problemas e desafios para as redes, desafios de gestão de pessoal (nova distribuição da carga horária docente), de planejamento administrativo (matrícula e enturmação em virtude dos novos itinerários formativos), de infra estrutura (novos espaços) e de produção do material didático. (Ferreira et. al, 2020, p.218).

A BNCC é também considerada uma vítima de algo muito pior: a Reforma do Ensino Médio. Essa Reforma, segundo César Callegari, ameaça a Base: transforma as disciplinas em áreas, (sobram Matemática e Língua Portuguesa), determina 60% da carga horária das escolas aos conteúdos da BNCC e cria cinco itinerários formativos, restringindo as “opções de aprofundamento”.

Os especialistas em ensino disciplinar também apontam outro rol de defeitos. Para exemplificar, cito o caso da História. Em [setembro de 2016] a Associação Nacional de História lançou um Abaixo-Assinado solicitando a “permanência da História no currículo escolar em todos os níveis” ou protestando contra a exclusão da “obrigatoriedade da disciplina História” no Ensino Médio.

A intensão era boa (como a de todos que estão no inferno), mas nascia equivocada porque a “disciplina História” não era “componente curricular obrigatório” no Ensino Médio. Ao menos não na LDBN. Na Lei, apenas “Artes visuais, a dança, a música e o teatro” ou simplesmente “Artes” e, também, Educação Física e a “exibição de filmes de produção nacional” (2014) foram considerados “componentes curriculares” obrigatórios.

Na LDB (reformada pela lei 13.415), palavra “História” é usada como: 1. “O ensino da História do Brasil” que considera as “diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia” (Art. 23, VI, § 4º) 2. Obrigatoriedade do “estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena”, “História da África e dos africanos” nos estabelecimentos do Ensino Médio e do Fundamental, público e privados (Art. 26A). Entre Medida provisória n. 746, de 22 de setembro de 2016, a Lei n. 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 e o lançamento da Base Nacional Comum Curricular não há, portanto, exclusão do componente curricular História do currículo do Ensino Médio.

Que fazer? (Considerações finais)

Observando atentamente a crítica dos generalistas eu questiono: não foram essas mesmas críticas atribuídas às versões primeira e segunda da BNCC? Não há algo estranho acontecendo quando os qualificativos de autoritário, solapador da autonomia docente são atribuídos à versão produzida por mais de uma centena de especialistas e à versão produzida por um comitê gestor? Quando os mesmos qualificativos são atribuídos a uma BNCC produzida por um governo eleito e uma BNCC produzida sob efeito de medida provisória, no seio de um comitê gestor?

Com a atual nomenclatura e as brechas da legislação em termos de “aprendizagens fundamentais”, História poderia entrar sob as rubricas que traduzem a mais comum ideia de conteúdo: “aquilo que se ensina”. Aquilo que se ensina é tipificado como “componente curricular”, “estudos e práticas”, “itinerários formativos”, “direitos e objetivos de aprendizagem” ou “habilidades específicas”.

Como componente curricular ou ensino, a História não está na Medida Provisória, na LDB, nem da BNCC para o Ensino Médio. Na BNCC, penas Língua Portuguesa e Matemática são componentes (e de modo dúbio – na LDB só há “ensino de” LP e M).[i] A História não foi inserida como “estudos e práticas”, a exemplo da Educação Física, Arte, Sociologia e Filosofia” (LDB, Art. 35-A, § 2). Também não é itinerário formativo, como já sabemos.[ii]

Outra forma de figurar na BNCC é sob a rubrica de “direitos e objetos de aprendizagem”. Para o Ensino Médio, eles simplesmente são não prescritos.

O mesmo percebemos com a rubrica “objetos de conhecimento”. Os legisladores entenderam que o Ensino médio, mesmo em relação ao ensino de Língua Portuguesa e Matemática, não cabe prescrever “objetos de aprendizagem”.

Restam, por fim, as competências e habilidades.[iii] As competências são mais amplas e as habilidades mais detalhadas. A BNCC para o ensino fundamental contempla as duas e justifica essa diferença porque o currículo é montado sobre componentes curriculares. Na BNCC do ensino médio não há mais componentes curriculares. Isso significa que as competências se referem diretamente às Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Mas a História está lá, principalmente nas competências 01 e 05. São essas sentenças que vão fundamentar o enunciado de cada objeto de aprendizagem “histórica”, ou seja, o currículo mínimo de História está nas habilidades que realizam as competências 1, 3 e 6.

A partir deste ano (e até 2010), os currículos do Ensino Médio de todas as redes serão modificados. E eles terão a cara dos elaboradores. Isso significa, paradoxalmente, AUTONOMIA total e irrestrita dos Estados, dentro das 1800 horas que lhes cabem ocupar (1800 horas serão ocupadas com a BNCC). É tudo o que os formadores de opinião exigiam do governo do PT. Agora conheceremos, efetivamente, o interesse dos técnicos e dos professores das redes em relação ao ensino de História. Agora veremos o real poder dos professores-historiadores de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro, que rotularam a “BNCC de Dilma” como “A nova face do autoritarismo” (R. Vainfas), “descambando pela ideologia” (J. Ribeiro). Com a experiência que acumulamos, podemos aventar três possibilidades:

  1. Os currículos de História manterão as mazelas identificadas pelos especialistas (enciclopedismo, quadripartidarismo, ênfase na história política, eurocentrismo etc.);
  2. Os currículos de História serão os mais variados do planeta – da extrema-direita separatista do interior gaúcho à centro esquerda de Rio Branco;
  3. O ensino de História pode ter reduzido o seu espaço ou até desaparecer de algumas redes. Em qualquer das hipóteses não se poderá maia alegar que o responsável pelas mudanças foi o bolivarianismo do PT.

Para concluir, fica o alerta: se vocês concordam que História é saber das Humanidades e que as Humanidades têm alguma função social, participem ativamente da elaboração dos currículos do ensino médio.

Notas

[i] E a inclusão de “novos componentes curriculares de caráter obrigatório na BNCC”, segundo a LDB, dependerá da aprovação do Conselho Nacional de Educação e homologação do Ministro da Educação (Art. 26 § 10).

[ii] “Linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica profissional” (Art. 36). Curioso dessa formação é ver o lugar das ciências humanas nesse currículo. Numa hipotética situação onde determinada escola optasse por distribuir equitativamente as 1800 horas reservadas à BNCC (60% das 3000 do ensino médio), veríamos que as humanidades estão em franca ascensão. Quem perdeu com a BNCC foram as ciências naturais. O problema é que as humanidades privilegiadas são as do século XVI ao XVIII, ou seja, as línguas e literaturas. Se a História mantivesse a função exercida naquele tempo (auxiliar à gramática, tradução e retórica), estaríamos no topo. Como nos autonomizamos, a História está fora desse benefício.

[iii] Sintaticamente, competência e habilidade são a mesma coisa: uma sentença constituída por verbos, substantivos e expressões contextualizadoras que informam “as aprendizagens essenciais que devem ser asseguradas aos alunos nos diferentes contextos escolares.”

(*) Fala proferida em agosto de 2020, no Campus de Eunápolis, da Universidade Estadual da Bahia.

A BNCC na contramão do PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas – AGUIAR; DOURADO (EP)

AGUIAR, Márcia Angela da S.; DOURADO, Luiz Fernandes (Org.). A BNCC na contramão do PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas. Recife: Anpae, 2018. Resenha de: FELIZARDO, Clayton Tôrres. Educação Pública, v. 20, n. 21, 9 de junho de 2020.

O livro A BNCC na contramão do PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas tem como organizadores Márcia Angela da Silva Aguiar e Luiz Fernandes Dourado; é dividido em oito capítulos.

No primeiro, intitulado “Relato da resistência à instituição da BNCC pelo Conselho Nacional de Educação mediante pedido de vista e declarações de votos”, a mesma Márcia Angela da Silva Aguiar contempla-nos com a perspectiva de como a Base Nacional Comum Curricular – BNCC foi proposta pelo Ministério da Educação, e votada em sessão pública do Conselho Nacional de Educação em 2017. Foi configurada como uma contrarreforma da Educação Básica, uma ação de desmonte das conquistas democráticas e populares até aí alcançadas. Uma frente minoritária se opôs e efetivou o pedido de vistas ao Parecer e à Resolução da BNCC para o registro histórico. A terceira versão da Base não teve discussão com a sociedade, o que já aponta uma ideia de como o processo democrático foi ferido nesse processo. Voltando em 2015, a primeira versão da BNCC foi elaborada por professores convidados da Educação Básica e do Ensino Superior. Também foi feita uma consulta pública e elaborada a partir dali a segunda versão, que foi colocada à disposição para consulta de educadores em seminários pelo país. A terceira versão foi elaborada por um comitê do MEC e abrangia a Educação Infantil e o Ensino Fundamental, excluindo o Ensino Médio, o que também vai na contramão de outros documentos norteadores da Educação Básica.

O segundo capítulo do livro, “Apostando na produção contextual do currículo”, de Alice Casimiro Lopes, evidencia que a BNCC desde o seu início privilegia um conjunto de conteúdos e objetivos sem o fundamental suporte de referência, não deixando claro o projeto de educação desejado. Sua metodologia de construção é linear, vertical e centralizadora; não deixa espaço para diálogo com os diferentes atores que deveriam estar imersos nesse processo e não cumprindo uma das exigências legais, ao excluir o Ensino Médio.

A Base Nacional Comum estava prevista na Constituição Federal desde 1988 para o Ensino Fundamental e ampliada para o Ensino Médio com a aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE) em 2014.

É necessário que pensemos a educação na sua totalidade. Os conteúdos não fazem sentido se desconectados desse contexto. As diversidades regionais, estaduais e locais devem ser contempladas dentro dessas perspectivas. Considerando a educação como direito de todos, para o pleno desenvolvimento da pessoa e sua cidadania e qualificação para o trabalho, visando a garantia de qualidade social da educação. A BNCC deveria se efetivar com proposta pedagógica que tenha por eixo as Diretrizes Curriculares Nacionais – DCN, contribuindo para superar assimetrias regionais e sociais.

Algumas críticas à normativa são feitas pela autora, como vínculo entre educação e desenvolvimento econômico, redução da educação somente a aprendizagem, todos os alunos terão aprendizados uniformes etc., são pertinentes. As disciplinas e suas comunidades são elementos sociais que orientam o currículo, além da própria formação inicial e continuada dos professores.

No terceiro capítulo, “A Base é a Base. E o currículo o que é?”, Elizabeth Macedo nota que há a presença de instituições internacionais e nacionais privadas nas políticas educacionais e seu modo de gestão, excluindo uma experiência de formação de professores e de pesquisa das universidades brasileiras. A BNCC aparece como um currículo prescrito e balizador da avaliação, em uma estrutura em torno de competências.

O Capítulo 4, “PNE e Base Nacional Comum Curricular (BNCC): impactos na gestão da Educação e da escola”, traz Erasto Fortes Mendonça pontuando que o debate acerca da implementação da Base não teve o mesmo nível de participação que outros documentos norteadores, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). A Base não foi construída em princípio de uma gestão democrática das escolas públicas. Além de não contemplar o Ensino Médio, não trata da Educação de Jovens e Adultos (EJA), nem da Educação do Campo.

No capítulo 5, “Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e os impactos nas políticas de regulação e avaliação da Educação Superior”, os dois autores, Luiz Fernandes Dourado (também organizador do livro) e João Ferreira de Oliveira afirmam que, fruto de quatro anos de debates no congresso, o PNE foi promulgado sem vetos em 2014 e apresenta avanços, como a adoção de 10% do PIB para a Educação até 2024. Após o golpe que rompeu a legalidade democrática no Brasil, passamos a ter retrocessos nas políticas públicas, obedecendo a uma lógica de mercado da creche à pós-graduação. A visão político-pedagógica que estrutura a BNCC não assegura a identidade nacional e seus pluralismos: ela contribui para a padronização e o reducionismo curricular.

No capítulo 6, “PNE, Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e os cotidianos das escolas: relações possíveis?”, a autora Nilda Alves chama a atenção para o fato de que a Educação Básica é responsabilidade dos estados e municípios. Há muitas normatizações curriculares, dentre as quais podemos citar: diretrizes, parâmetros, orientações de documentos municipais e estaduais. O currículo tem de ter sentido, construído contextualmente para uma demanda que não é homogênea, afinal os sujeitos que fazem parte desse processo de ensino-aprendizagem têm histórias e realidades distintas. A qualidade da Educação tende a ser reduzida à assimilação de conteúdos, o que nos remete a um caráter reducionista do que seja a Educação.  A Educação é cultura. Docentes têm de ser envolvidos na produção do currículo para uma Educação de qualidade.

No penúltimo capítulo, “A formação das novas gerações como campo para os negócios?”, Theresa Adrião e Vera Peroni apontam que instituições privadas vêm influenciando a educação pública brasileira, o que corrobora a visão de capítulos anteriores. As autoras trazem à luz críticas de como essas influências podem ter consequências negativas para uma gestão democrática, participativa, por vezes confundindo o limite entre o público e o privado. Abarca também todo o universo escolar, que deve ser plural e contemplar a Educação Indígena, a questão de gêneros e sexualidade, a luta contra o racismo e outros temas e políticas públicas que perpassam esse universo.

No 8º capítulo, “Políticas curriculares no contexto do golpe de 2016: debates atuais, embates e resistências”, Inês Barbosa de Oliveira convida a uma reflexão de que se faz necessário, de modo coletivo e propositivo, continuar lutando por uma agenda democrática e inclusiva na Educação. Pesquisas de anos mostram que processos curriculares não se repetem de uma escola para outra, ou seja, fórmulas prontas não dão conta da complexidade como é entendido esse organismo chamado de escola. Há sempre a criação do novo em ações que aparentam repetição. Inês Barbosa nos presenteia com uma frase que é um convite a uma reflexão: “Tratar igualmente os desiguais é aprofundar a desigualdade”.

Referências

AGUIAR, Márcia Angela da S.; DOURADO, Luiz Fernandes (Org.). A BNCC na contramão do PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas. [Livro eletrônico]. Recife: Anpae, 2018.

Clayton Tôrres Felizardo

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Base Nacional Comum Curricular: dilemas e perspectivas – CURY etc. al (EA)

CURY J BNCC dilemas e perspectivas

CURY, Carlos Roberto Jamil; REIS, Magali; ZANARDI, Teodoro Adriano Costa. Base Nacional Comum Curricular: dilemas e perspectivas. São Paulo: Cortez, 2018. 144 p. Resenha de: PEDRO, Gabriel; MARSICO, Juliana. Explorando limites epistemológicos e políticos da BNCC para pensar possibilidades. Em Aberto, Brasília, v. 33, n. 107, p. 225-230, jan./abr. 2020.

No campo da pesquisa educacional, em um contexto sociopolítico de 225 desarticulação de conquistas e bandeiras importantes à educação pública no Brasil, uma discussão que se dedique à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é imprescindível e potente. Argumentamos que conhecer o que vem sendo enunciado sobre a Base é importante para melhor delinear seus efeitos como documento normativo para a educação básica e discurso que reorganiza valores e sentidos para os sujeitos escolares.

A obra Base Nacional Comum Curricular: dilemas e perspectivas, dos autores Carlos Roberto Jamil Cury, Magali Reis e Teodoro Adriano Costa Zanardi, traz uma discussão atenta aos processos de formulação e efeitos da BNCC, propondo reflexões “[…] imprescindíveis para prosseguir com essa discussão, acalorada e interminável, como é a própria experiência do currículo, um campo de tensões e disputas contínuas” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 8). Propomos neste texto a apresentação dessa obra a fim de estimular o debate e instigar futuros leitores. Nesse momento de disputas em torno da educação básica escolar, consideramos o livro de Cury, Reis e Zanardi uma leitura necessária ao debate.

Na apresentação do livro – “Debates em torno da Base Nacional Comum Curricular” –, os autores fazem um mapeamento do que consideram as publicações mais relevantes a tratar da temática nos últimos anos, explorando uma série de artigos e dossiês publicados entre os anos de 2012 e 2018, nas revistas Teias (Uerj), e-Curriculum (PUC-SP), Currículo sem Fronteiras, entre outras. Apresentando as diversas perspectivas nelas publicadas, buscam elucidar os debates acadêmicos

sobre o assunto. A seção encerra-se com a afirmação de que “a aprovação da BNCC não esgotou os debates como também não resolveu os problemas e lacunas nela observados durante sua elaboração” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 15). Com isso, estabelecem a tônica do livro como crítica à BNCC, que nos remonta à ideia de crítica proposta por Judith Butler (2013) no diálogo com Michel Foucault, rejeitando seu objeto enquanto finalizado e buscando entender seus limites epistemológicos e políticos.

Nesse livro, portanto, os autores fazem uma crítica não apenas ao documento normativo publicado, mas também ao processo de elaboração da BNCC, em um movimento que atua no sentido de “colocar fundamentos em questão, de desnaturalizar hierarquias sociais e políticas e, inclusive, de estabelecer perspectivas a partir das quais uma certa distância com o mundo naturalizado pode ser tomada” (Butler, 2013, p. 161).

Os autores, no primeiro capítulo – “Por uma BNCC democrática, federativa e diferenciada” –, organizam documentos históricos normativos relativos à defesa da necessidade de um conjunto de conhecimentos comuns a todos no Brasil. Nele, argumentam como tal defesa se relaciona com as noções de cidadania e federalismo, culminando em um capítulo na Lei de Diretrizes e Bases (LDB – Lei n° 9.394/1996).

Se, por um lado, o adjetivo “comum” é um descritor para formação indispensável ao exercício da cidadania na LDB/1996, por outro, destaca-se que o próprio Conselho Nacional de Educação (CNE) “enfatizou que as diretrizes tinham dimensões gerais, tendo estas muito mais a prevalência de um rumo, de uma direção, de um caminho tendente a um fim do que de fixação de conteúdos mínimos” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 47). Ademais, os autores salientam que, por via da Emenda Constitucional nº 59/2009 e da Lei nº 13.005/2014, o Plano Nacional de Educação (PNE) tem previsão para configuração de uma base nacional comum curricular mediante instância permanente de negociação e de cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios (Art. 7º, § 5º), alertando que o debate precisa desaguar no “diálogo que a Constituição denomina de regime de colaboração sob a égide da gestão democrática” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 50). Assim, estabelecem limites dentro dos quais acreditam ser necessário que a elaboração da BNCC aconteça, ejetando do campo do desejável outras formas de organizá-la que não seja democrática, federativa e diferenciada.

No segundo capítulo – “BNCC e a universalização do conhecimento” –, são tensionadas questões nos planos normativo e conceitual que levaram à formulação da BNCC tal como aprovada em 2018, buscando analisá-la criticamente para expor sua legitimidade e suas possibilidades a partir do campo de estudos curriculares, em específico,perante uma “concepção comprometida com a teoria freireana como forma de promover uma educação para emancipação” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 55). Aqui, uma importante discussão é travada, problematizando o que significa um conhecimento ser básico e comum, salientando que a neutralidade pretendida não existe de fato, o que resulta num problema difícil de resolver, a afirmação inequívoca de qual é a formação desejada em um território tão extenso e plural como o brasileiro. Desse modo, os autores apontam que adotar uma compreensão curricular pautada em descritores de conteúdos, competências e habilidades, casados com prescrições fixistas, é também assumir um projeto universalizante de conhecimentos comprometidos com a homogeneização, o que os coloca em explícito contraste com uma compreensão de currículo construído democraticamente, do qual decantam práticas que respeitam a pluralidade e as diferenças sociais.

A noção de uma base nacional comum curricular tem, em sua raiz, “o sonho iluminista de universalização de direitos no tocante ao acesso ao conhecimento acumulado e à qualidade de educação que se realizaria pela distribuição igualitária e isonômica dos conhecimentos” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 53). Tal argumento vai ao encontro da noção de cosmopolitismo de Popkewitz (2009), em que se lança mão da razão e de um modo comparativo de raciocínio para planejar transformações no mundo, visando a uma sociedade mais igualitária e justa. Entretanto, para Popkewitz (2009), esse mesmo modo comparativo de raciocínio produz um duplo gesto, uma vez que, ao buscar a inclusão gradativa de todos na sociedade cosmopolita, é preciso definir quem são aqueles sujeitos que a ela pertencem e estão incluídos, simultaneamente, definindo os que não pertencem e estão excluídos, reinscrevendo a exclusão no tecido do planejamento e das práticas escolares.

O terceiro capítulo – “Base Nacional Comum Curricular é Currículo?” – argumenta em duas direções. Na primeira, focaliza-se a discussão sobre algumas concepções de currículo em diálogo com José Gimeno Sacristán, Roberto Macedo e Paulo Freire, a fim de desestabilizar a narrativa do Ministério da Educação (MEC), que posiciona a BNCC como um documento meramente norteador de currículos, revelando sua ação como um currículo prescritivo, tecnicista e meritocrático. A segunda direção diz respeito à BNCC como um objeto não acabado, que constitui um campo de disputa, e as diferentes forças, que atuam no sentido de mobilizar e/ou reificar seus sentidos. Discutem-se os argumentos legitimadores em favor da definição de conteúdos básicos comuns, como, por exemplo, as pesquisas de Michael Young e Demerval Saviani, que defendem a necessidade dessa definição. Para os autores, tal ideia revitaliza “o gerenciamento científico característico das teorias tradicionais do currículo e fortalece a manipulação da educação escolarizada”, além de desconsiderar o “papel dos professores e alunos como sujeitos produtores de conhecimentos valiosos para o currículo” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 89-90).

A partir desse ponto, os autores estabelecem relações entre as organizações internacionais, tais como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as fundações privadas e o próprio Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), a elite capitalista neoliberal e o esforço epistemológico e político, visando à fixação de conhecimentos “básicos” como um objetivo da educação escolarizada. Nesse movimento, os autores contrapõem argumentos daquelas organizações e setores da sociedade civil com o posicionamento de associações brasileiras de estudos curriculares, a saber, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) e a Associação Brasileira de Currículo (ABdC). Para essas associações, algumas questões são colocadas a favor da não publicação de uma base nacional comum curricular, como o fato de não contemplar as dimensões da diversidade na educação brasileira, a problemática centralização no desempenho e na avaliação, a desqualificação do trabalho docente, para dar alguns exemplos. Em grande medida, é pontuado nesse capítulo o posicionamento de tais associações de pesquisa diante do Golpe de 2016, que trouxe “seu autoritarismo, conservadorismo e claro compromisso com a lógica do capital para dentro do processo de elaboração da terceira versão da BNCC” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 98). Nessa direção, os autores mantêm a tônica da obra e apresentam diversos entendimentos sobre o processo de construção da BNCC, em um movimento que busca desnaturalizar os fundamentos e não se exime de pontuar a necessidade do enfrentamento contínuo, sob o risco de homogeneização das diferenças, aprisionamento da educação pública por uma lógica mercadológica e desumanização dos processos dialéticos de construção do conhecimento.

No quarto capítulo – “BNCC e educação das novas gerações: limites conceituais” –, os autores abrem um espaço para problematizar a educação de novas gerações, entendendo a primeira etapa da educação básica também como um campo de disputas e tensões que se expressaram nas diferentes versões do documento curricular. Tal disputa se situa na tensão entre “modelos assistencialistas, de um lado, e escolarizantes, de outro, presentes nas políticas que determinam abordagens de currículo, pedagogia e avaliação para a educação de crianças e jovens” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 101), em torno do que se pensa sobre a educação infantil.

Para os autores, há lacunas na BNCC no que se refere a aspectos considerados importantes para a educação na primeira infância, como brincar, experimentar, realizar atividades de livre escolha para a satisfação de diversas necessidades das crianças. Nesse contexto, criticam o modo de afirmar genericamente noções de cuidado, educação e campos de experiência, presentes na BNCC, documento que, conforme alegam, apresenta, quanto à forma de educar crianças, uma ruptura entre a educação infantil e o ensino fundamental. Em contrapartida, trazem argumentos para pensar uma educação infantil que não se concretiza com um currículo mínimo padronizado, em um movimento presente ao longo da obra.

No quinto e último capítulo – “Habemus Base, mas Habemus Freire” –, são retomadas questões problemáticas acerca da BNCC trabalhadas ao longo do livro, para assim afirmar a necessidade de se buscar alternativas a essa proposta curricular com articulações “necessárias à transformação social e ao desvelamento das causas da desigualdade” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 119). Desse modo, dialogam com a obra de Paulo Freire, que corrobora a ideia de transmissão de conhecimentos padronizados para a libertação e emancipação, sem abrir mão do compromisso com a criticidade. Assim, “sob uma perspectiva freireana, não há o desprezo ao conhecimento acumulado historicamente, mas um cuidado democrático e dialógico na construção da proposta curricular” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 121), salientando a potência da rejeição de uma concepção de currículo como doação/imposição aos sujeitos escolares.

Em todo o livro, os autores se dedicam a problematizar a ideia de conhecimentos que qualificam sujeitos para a atuação no mundo neoliberal, afirmando que a terceira versão da Base tornou-se o “local através do qual conteúdo, coerência e controle estão sendo articulados” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 104). Assim, ao refletirem sobre pesquisas que respaldam a necessidade de uma base nacional comum curricular, que afirmam ser a escola, e a educação escolar, o espaço para a construção de uma cidadania democrática e menos desigual, argumentam que tais estudos ignoram a desigualdade produzida socialmente e na qual a escola é incluída. Ao dar visibilidade a essa discussão sobre escola e sociedade, vão ao encontro de autores como Daniel Friedrich, Bryn Jaastad e Thomas S. Popkewitz (2010), quando estes afirmam que a “missão” empreendida pela escola, ao buscar promover uma sociedade mais igualitária, abre espaço para reforçar epistemologicamente a desigualdade como condição ontológica para pensar sobre e planejar o futuro da sociedade, problema que o campo educacional vem confrontando historicamente.

Argumentam os autores do livro, finalmente, que, se “a escola abraçar a BNCC como prescrição a ser detalhadamente cumprida, colocamos em sério risco os princípios estabelecidos pela Constituição de 1988 no que diz respeito à pluralidade, diversidade e não discriminação. Princípios que se constituem em essência de nossa (frágil) democracia” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 129). Ao, aparentemente, tomarem certos pressupostos do campo educacional por certezas no início do livro – os objetivos da educação escolarizada como distribuição igualitária e isonômica do conhecimento visando à construção de uma sociedade menos desigual –, assumiram um risco. De maneira não intencional, poderiam por meio de duplos gestos (Popkewitz, 2009) reforçar epistemologicamente as desigualdades que procuram combater enquanto condição ontológica para pensar e, portanto, construir um certo tipo de educação escolarizada (Friedrich; Jaastad; Popkewitz, 2010).

Entretanto, de forma robusta, contornam esse risco ao explorarem a existência e os limites de outras maneiras de pensar a educação, distintas das suas. Assim, rejeitam não apenas a BNCC como terminada e cristalizada, mas também seus próprios pressupostos, realizando algo afeito àquilo que Butler (2013) chamou de crítica enquanto prática de exposição dos limites do horizonte epistemológico de determinado objeto. Buscando entender os limites da BNCC e dos próprios objetivos e estratégias defendidos na obra, os autores não os assumem como verdades a priori, operacionalizando-os antes como posicionamentos epistemológicos e políticos que foram conscientemente construídos e, desse modo, úteis na luta por outra base nacional comum curricular, democraticamente constituída e que pontue práticas que respeitem a pluralidade e as diferenças sociais.

Referências

BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação – PNE e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 26 jun. 2014. Seção 1, p. 1.

BUTLER, J. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Traduzido por Gustavo Hessmann Dalaqua. Cadernos de Ética e Filosofia Política, São Paulo, v. 1, n. 22, p. 159-179, 2013.

FRIEDRICH, D.; JAASTAD, B.; POPKEWITZ, T. S. Democratic education: an (im) possibility that yet remains to come. Educational Philosophy and Theory, Oxford, v. 42, n. 5-6 p. 571-587, 2010.

POPKEWITZ, T. S. The double gestures of cosmopolitanism and comparative studies of education. In.: COWEN, R.; KAZAMIAS, A. M. (Ed.). International handbook of comparative education. Dordrecht: Springer Science, 2009. p.385-401.

Gabriel Pedro – Mestre em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atua no Grupo de Estudos em História do Currículo, no âmbito do Núcleo de Estudos do Currículo (NEC/UFRJ). E-mail: [email protected].

Juliana Marsico – Doutora em Educação, é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), integra o corpo de pesquisadores do Grupo de Estudos em História do Currículo, no âmbito do Núcleo de Estudos do Currículo (NEC/UFRJ). E-mail: [email protected].

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Base Nacional Comum Curricular: Dilemas e perspectivas – CURY; ZANARDI (REC)

CURY, Roberto Jamil; REIS, Magali; ZANARDI, Teodoro Adriano. Base Nacional Comum Curricular: Dilemas e perspectivas. São Paulo: Cortez, 2018. Resenha de: CASTRO, Luzia de Marilac; PEREIRA, Sandra Márcia Campos. Base Nacional Comum Curricular: é currículo prescrito ou documento norteador? Revista Espaço do Currículo, João Pessoa, v.12, n.3, p. 431-433, set/dez. 2019.

Na obra Base Nacional Comum Curricular: dilemas e perspectivas, os autores trazem uma discussão sobre as bases legais que deram sustentação à elaboração de um currículo nacional, fazem um recorte temporal das legislações que tratam de currículo desde o ano de 1823 aos dias atuais, trazem para o debate conceitos que estão na base e problematizam-os à luz de teóricos que discutem currículo.O livro está organizado em cinco capítulos que podem ser lidos e discutidos separadamente, mapeia várias publicações relativas à BNCC logo na apresentação da obra. Além da referência da obra, também há uma referência exclusiva de publicações referentes a Base com autores conceituados, como: Alice Casimiro Lopes, Elizabeth Macedo, Inês Barbosa Oliveira, Ana Maria Saul, entre outros. O livro resenhado é uma importante ferramenta no âmbito das discussões curriculares, pois traz aspectos históricos para entendermos como no passado esse assunto foi tratado e traz o panorama atual do debate em torno da BNCC.

Cury tem pós doutorado em Direito pela USP, é professor titular (aposentado) da Faculdade de Educação da UFMG, da qual é professor emérito. Reis é doutora e pós doutora em educação, na área de concentração: Sociedade e Cultura, pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente, é Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da PUC- Minas. E Zanardi possui doutorado em Educação (Currículo) pela PUC de São Paulo, é Professor Adjunto IV do Programa de Pós-graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Na parte de apresentação do livro, que recebe o título Debates em torno da Base Nacional Comum Curricular, os autores fogem do formato padrão de apresentar os capítulos que compõem a obra. Eles fazem um apanhado de publicações e debates em torno da Base Nacional Comum Curricular a partir do ano de 2012. Citam dossiês e revistas que fomentaram essas discussões a partir desse período até o ano de 2018. Numa espécie de estado da arte, apresentam as discussões relativas à BNCC. Algumas publicações ficaram de fora, certamente, mas o levantamento feito na apresentação do livro subsidia os pesquisadores e estudiosos da área de currículo.

O primeiro capítulo, Por uma BNCC democrática, federativa e diferenciada, tem como objetivo identificar como o ordenamento educacional formulou a constituição de currículos escolares por meio dos principais documentos normativos, desde a Constituição de 1823 até o Plano Nacional de Educação, Lei nº 13.005/2014. Os autores estabelecem uma relação entre currículo nacional e o conceito de cidadania, contextualizam suas falas com trechos dos documentos normativos desse período e finalizam conclamando esforços, clareza de posições, com estudos sólidos para que aconteça de fato o diálogo que a Constituição chama de regime de colaboração entre os entes federados.

Problematizar criticamente a proposta da BNCC levando em consideração o contexto normativo em que foi gestada como também suas as bases conceituais é o objetivo do 2º capítulo, que traz o título BNCC e a universalização do conhecimento. Os autores afirmam que a Base traz o sonho iluminista de resolver os problemas da desigualdade de acesso ao conhecimento por meio da educação escolarizada e dizem ser necessário pontuar os caminhos normativos e conceituais para compreender a proposta da Base. Para tal empreitada, analisam os princípios estabelecidos na Constituição Federal, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDB) e no Plano Nacional de Educação. Finalizam citando a atuação da Fundação Lemann na defesa da BNCC, exemplificando esse interesse através da conhecida pesquisa publicada pela fundação em 2015.

Base Nacional Comum Curricular é Currículo? É o título e a pergunta central que direciona todo o debate do 3º capítulo. Os autores asseveram que a BNCC, como está sendo posta, é sim currículo. Traz conceitos de currículo na concepção de Sacristán, Roberto Macedo e Ana Saul e dizem que a Base se aproxima dos conceitos dos dois primeiros autores citados. Falam do processo de disputa de posicionamentos de setores empresariais e comunidade científica no processo de elaboração das três versões da BNCC. Para discutir o conceito de currículo comum, refletem sobre os estudos de Michel Young e Demerval Saviani trançando um paralelo de pontos comuns e divergentes entre os dois, mas frisam que ambos defendem a viabilidade de um currículo comum. Por fim, trazem as críticas das associações de pesquisa acadêmicas mostrando que estas são contrárias a uma ideia de currículo nacional.

As questões relativas ao currículo para a educação da infância são tratadas no 4º capítulo do livro, BNCC e Educação das Novas Gerações: Limites Conceituais, os autores advogam que o currículo da educação infantil tem sido um campo de disputas e que isso tem reflexos em três temas significativos no campo do currículo: conteúdo, coerência e acompanhamento. E que esses três temas são vistos de maneiras diferentes e até opostas por teorias educacionais e pelas políticas públicas. Debatem o conceito de experiência, que na BNCC vem como campos de experiência. Na visão dos autores, o conceito de experiência na Base é lacunar. Para fundamentar a discussão, trazem os estudos de Walter Benjamim para se pensar os conceitos de experiência e fundamentos da educação de crianças pequenas.

As contribuições de Paulo Freire, para discussão do currículo comum, vem no 5º e último capítulo, Habermus Base, mas Habermus Freire. O capítulo traz várias considerações sobre a BNCC, relacionando-as com as contribuições de Freire. Os autores reconhecem que o patrono da educação brasileira não se debruçou diretamente sobre uma teoria curricular, mas inegável são as suas contribuições em relação ao saberes e conhecimentos. Advogam que Freire não despreza os conhecimentos acumulados historicamente, mas que é preciso problematizá-los. Os autores defendem a ideia de que as escolas não devem abraçar a BNCC como currículo prescrito, que o momento é oportuno para renovar a proposta emancipatória de Paulo Freire. Concluem: “Desvelar a BNCC se constitui em obrigação dos educadores para a compreensão dos projetos que se colocam em disputa no sociedade e no interior da escola.” (130)

É imprescindível a leitura e discussão da obra aqui resenhada, tendo em vista o momento atual em que todas as escolas da rede pública e privada estão em processo de (re)elaboração curricular. A obra traz aspectos relevantes que suscitam o debate em torno da Base Nacional Comum Curricular. Os capítulos da obra, cada um com sua especificidade, atendem todas as etapas da educação básica, desde a educação infantil ao ensino médio. Quando o livro foi publicado ainda não tínhamos a aprovação da Base do Ensino médio, mas as discussões aqui trazidas servem também para repensar o currículo da última etapa da educação básica. A obra serve como referência para todos os educadores da educação básica e para pesquisadores do campo do currículo.

Referências

SIMIANO, Luciane Pandini; SIMÃO, Márcia Buss. Base Nacional Comum Curricular para a educação infantil: entre desafios e possibilidades dos campos de experiência educativa. EccoS – Rev. Cient., São Paulo, n. 41, p. 77-90, set./dez. 2016.

IHU- INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. Base Nacional Comum Curricular: O futuro da educação brasileira. São Leopoldo: RS. Nº 516, ano XVII, 4/12/2017.

SAVIANI, D. Da nova LDB ao plano nacional de educação.3.ed.rev.Campinas: Autores Associados,2000. (Educação contemporânea).

Luzia de Marilac Pereira Castro – Mestranda em Ensino pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia-UESB e Coordenadora Pedagógica na Educação Infantil. E-mail: [email protected].

Sandra Márcia Campos Pereira – Professora titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. E-mail: [email protected].

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A BNCC na contramão do PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas – AQUIAR; DOURADO (RF)

AGUIAR, Márcia Angela da S.; DOURADO, Luiz Fernandes (Org.). A BNCC na contramão do PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas. [Livro eletrônico]. Recife: Anpae, 2018. Resenha de: RODRIGUES Luiz Alberto Ribeiro. REVASF, Petrolina, vol. 8, n.15, p. 164-168, jan./abr., 2018.

Esta obra, publicada pela Associação Nacional de Políticas e Administração da Educação (Anpae), reúne uma série de oito artigos produzidos por pesquisadores das áreas de política educacional e currículo, em que discutem o significado do processo que tem gerado a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e seus desdobramentos frente ao PNE 2014-2024.

São apresentados elementos que têm caracterizado a BNCC, construída em três distintas versões, sendo a primeira elaborada por especialistas no MEC e submetida a apreciação pública, recendo contribuições, em grande parte individualizada; a segunda versão, apresentada por componentes curriculares, foi discutida em seminários em todo o país, coordenados pela Undime e Consed. A terceira versão incorporou contribuições definidas por um grupo gestor instituído pelo MEC e excluiu a etapa do ensino médio.

Toda essa trajetória e as características que assumem cada versão deve ser compreendida a partir do contexto no qual a BNCC vem sendo instituída, ou seja, um tumultuado contexto político em torno da composição do governo central, na figura do presidente Michel Temer, após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, e que, a partir 2016 vem provocando um desmonte das conquistas democráticas e populares, sobretudo no que diz respeito aos avanços efetivados nas últimas décadas quanto ao direito à educação e às políticas educacionais. No âmbito educacional, posto em ação uma contrarreforma da Educação Básica, que impôs por meio de Medida Provisória, a reforma do ensino médio.

O contexto da contrarreforma da educação em curso apresenta-se bastante conservador e privatista, sobretudo porque veio acompanhada por um amplo processo de (des)regulação da educação, que favorece a expansão privada mercantil. Assim, questiona-se a ausência de um marco de referência, capaz de indicar princípios educacionais, concepções, utopias, sonhos, os desejados definidos coletivamente, no sentido de subsidiar as decisões em torno da BNCC. Lembrou-se ainda que no Brasil documentos semelhantes já foram lançados, a exemplo dos “Guias Curriculares” nos anos 1980, os “Parâmetros Curriculares” nos anos 90 e as “Diretrizes Curriculares Nacionais” em 2001.

Contesta-se nesta obra a anseio da BNCC em fixar mínimos curriculares nacionais ou engessar a ação pedagógica com objetivos de aprendizagem dissociados do desenvolvimento integral do estudante. Argumenta-se que esta pretensão limita o direito a educação e a aprendizagem. Defende-se ao contrário, a garantia dos princípios constitucionais de liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, bem como o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas.

Em defesa do currículo, põe-se em questão pressupostos que simplificam o debate pedagógico sobre o tema, tais como o vínculo imediato entre educação e desenvolvimento econômico, a redução da educação a níveis de aprendizagem, a restrição da crítica teórica à BNCC ao registro ideológico, a suposição de que os docentes não sabem o que fazer nas escolas sem uma orientação curricular comum.

Além disso, sustenta esta obra, a BNCC fere o princípio de valorização das experiências extraescolares; afronta o princípio da gestão democrática das escolas públicas; atenta contra a organicidade da Educação Básica necessária à existência de um Sistema Nacional de Educação (SNE).

Rebatem os autores a pretensão de que, para garantir metas de aprendizagem, todas escolas precisam da mesma proposta curricular e da mesma orientação pedagógica. Em assim sendo, esconde-se a problemática da desigualdade social associada à educação, o fator investimento diferenciado na carreira do professor e nas condições de trabalho nas escolas, além do peso das condições de vida das famílias e das condições de estudo dos estudantes. Nesse sentido, defende-se que não é necessário que o currículo seja igual em todo país, até porque, na prática isso não seria possível.

Ainda na linha do currículo, contesta os autores a auto determinação da Base como currículo prescrito e como norteador da avaliação. Afirma-se no debate, a ideia de que a BNCC resulta em uma listagem de competências, não podendo ser considerado currículo. Aponta-se, à luz de experiências nacionais e internacionais, a ausência de fatores fundamentais para o êxito de políticas desta natureza, tais como o formato de intervenção descentralizada via currículos, a valorização dos professores, o financiamento inadequado para a educação.

Foi identificada ainda que no bojo de seu conteúdo, falta à BNCC a articulação referente à concepção e diretrizes da Educação Básica, tendo em vista a construção de uma educação formadora do ser humano, cidadão, capaz de influir nos rumos políticos e econômicos do país, capaz de criar novos conhecimentos, de criar novas direções para o nosso futuro comum.

Em meio a esse momento de crise da política brasileira, ganham força na definição de políticas curriculares que estabeleceu o último formato da BNCC, algumas organizações privadas, assumindo um papel condutor e indutor de sua aprovação e disseminação. Realce para a Fundação Lemann associada ao Cenpec, Instituto Natura, Instituto Ayrton Senna, Instituto Unibanco, Fundação SM, Insper e Instituto Fernando Henrique Cardoso.

Os autores analisam esse contexto e apontam para a existência de uma nova configuração de poder que se vai se afirmando no âmbito do MEC e a consequente alteração na correlação de forças do CNE, na perspectiva de fortalecer políticas que, no limite, apresentam um forte viés privatista favorecendo interesses do mercado.

Ressalta esta obra que as políticas materializam-se em estratégias de privatização e incidem em três dimensões estratégicas, didaticamente consideradas em separado: oferta educativa; gestão educacional e sobre o currículo.

Alerta-se ainda para outros passos que poderão ocorrer em decorrência da BNCC, entre as quais a avaliação em larga escala, que terminam por legitimar determinados saberes e ampliar ainda mais a seletividade da educação, prejudicando grupos sociais menos favorecidos e elevando a desigualdade educacional.

Mas afinal, o que tem justificado então a BNCC? No contexto desta obra há indicações de que os interesses imediatos do mercado pautam a possível criação de um mercado para livros didáticos, ambientes instrucionais informatizados, cursos para capacitação de professores, consultorias na formulação dos “currículos em ação” nos municípios; seminários envolvendo instituições estrangeiras com vistas à formação de professores; movimentos das diversas fundações no sentido de produção de material e capacitação.

Interessante crítica nesta obra sobre o significado que ganha a BNCC, como um artifício que pode ser chamado de “apostilagem dos processos pedagógicos”, ou seja, os problemas da educação são apropriados por fundações privadas, inúmeras delas ligadas a bancos, e são dadas soluções que entendem ser as ‘indispensáveis’, porque “mais rápidas e mais fáceis”. Recorda o texto que essas fundações têm sido buscadas por gestores públicos, em nível estadual e municipal, com objetivos de indicar aos professores como devem atuar, a partir de períodos curtos de formação, com a criação de material didático que devem seguir à risca – o que dar em que dia, em que hora, ou seja, verdadeiras “apostilas” – e com um controle do que fazem em sala de aula.

Lembra os autores tratar-se de uma falsa aí inclusa, pensar que tudo estará resolvido, se os docentes forem obedientes, aplicando em seus estudantes estas fórmulas mágicas. Como ocorrem em outros países, esse tipo de intervenção não tem dado certo, não considera a realidade complexa onde a escola se encontra. Tendem ser portanto, soluções insuficientes e a culpa voltará aos docentes, por “não executarem” o processo indicado e ainda reforça um discurso culpabilizando-se as universidades pela má formação dada aos docentes.

Também se reconhece que, apesar dos equívocos quanto a tentativa de imposição da BNCC como um currículo, de sua vinculação à processos de avaliação em larga escala, ao mercado de livros e material didático, há um contraponto a ser considerado: a autonomia na gestão pedagógica, garantida aos sistemas de ensino, nos estados e município, e materializada nos projetos políticos pedagógicos (PPP).

Além disso, recordam os autores de processos de resistências observados neste período histórico, em que surgiram movimentos com ideias que mobilizam estudantes e seus docentes em torno do que significam e como devem ser as escolas que querem e que estão dispostos a fazer funcionar porque atendem às suas necessidades. Nesse sentido são mencionados a força de resistência expressa em movimentos, como os “Ocupa”, que foi sendo produzido nas salas de aulas, por seus docentes e discentes nestes últimos anos. Ressalta esta obra, não é possível quebrar os sonhos de milhares de docentes e de milhões de estudantes por escolas melhores dos quais eles são muito bons conhecedores.

Expressam ainda os autores a necessidade de reconhecer, nas realidades cotidianas, mais práticas educativas do que as de obediência subserviente às normas autoritárias. Assim, expressam a necessidade de reconhecer que não estivemos e não estamos parados, que a luta pela escola pública e por propostas curriculares respeitosas com os sujeitos da escola e plurais epistemológica e culturalmente, vale a pena e já está em andamento.

A contribuição de reconhecidos pesquisadores na área, tais como seus organizadores somados aos demais autores, Alice Casimiro Lopes; Elizabeth Macedo; Erasto Fortes Mendonça; João Ferreira de Oliveira; Inês Barbosa de Oliveira; Nilda Alves; Theresa Adrião e Vera Peroni, faz dessa obra um registro crítico necessário para construir horizontes de superação dos limites em que foram impostos a atual política educacional no Brasil. Trata-se portando de uma obra recomendada aos educadores e pesquisadores da educação que buscam examinar a política da educação no Brasil e reconstruir os novos rumos para uma formação cidadã, a partir de uma educação pública e de qualidade social referenciada.

Referências

AGUIAR, M. A. da S. e DOURADO, L. F. (Orgs). A BNCC na contramão do PNE 2014- 2024: avaliação e perspectivas. [Livro Eletrônico]. Recife: ANPAE, 2018.

Luiz Alberto Ribeiro Rodrigues – Professor Adjunto da UPE, Doutor em Educação pela UFPE Membro do Colegiado do Programa de Mestrado Profissional em Educação. E-mail: [email protected]

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Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire – ROCHA (SO)

ROCHA, Ronai Pires da. Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire. São Paulo: Contexto, 2017. Resenha de: SECCO, Gisele Dalva. Sofia, Vitória, v.6, n.3, p. 175-191, jul./dez., 2017.

INTRODUÇÃO: UM POUCO DE CONTEXTO

Muitos dos temas e problemas com os quais lida Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire (ROCHA, 2017) são frutos de reflexões germinadas no ainda pouco explorado Ensino de filosofia e currículo (ROCHA, 2008). Exemplarmente constam ali críticas do “princípio do presépio” como critério capital de desenho curricular; da concepção expressivista de currículo; da imagem da desnutrida da escola como mero aparelho de reprodução de desigualdades sociais; das abstrusas caracterizações de interdisciplinaridade mobilizadas em documentos e debates sobre currículo escolar, do populismo pedagógico; das projeções de ferinas disputas universitárias em ambiente escolar.

A Introdução de Quando ninguém educa informa que a motivação final para sua escrita data de fins de 2015, quando da publicação do ofício endereçado ao Conselho Nacional de Educação (CNE) por pesquisadores da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) com o apoio da Associação Brasileira de Currículo (ABdC). Intitulado “Exposição de Motivos sobre a Base Nacional Comum Curricular”,2 o documento apresenta, em nove tópicos, observações desfavoravelmente críticas à forma e ao conteúdo da primeira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) — naquela ocasião, sujeita à consulta e a debates públicos.

A oferta da BNCC pelo Ministério da Educação (MEC) em 2015 fora prescrita em 1996, no artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. O objetivo fulcral do documento sugere-se em sua denominação: servir de alicerce para edificações de currículos nas redes estaduais (caso do Ensino Médio, a partir de agora EM) e municipais (caso do ensino fundamental, a partir de agora EF), e em cada instituição de ensino brasileira. A proposição da BNCC, portanto, configura-se como uma condição de possibilidade do exercício pleno dos direitos garantidos pela lei máxima da educação nacional.

Para além do destaque à reação das entidades representantes da comunidade de pesquisadores em educação frente à proposição da primeira versão da BNCC, vale ressaltar outro elemento do cenário em que se compôs o livro aqui analisado: o fato de que, como se conta no primeiro capítulo (“O currículo e as competições ferozes”), aquela reação foi uma de outras, todas fluindo em peculiar leito midiático:

De um dia para outro a conversa sobre o currículo saiu do círculo dos especialistas, passou para os editoriais dos grandes jornais e dali foi para as redes sociais. A questão da existência ou não de uma base curricular nacional deixou de ser um tema dos especialistas e passou a ser matéria do noticiário cotidiano. (Rocha, 2017, p. 23)

Voltemos ao ofício da ANPEd: em uma passagem, declara-se existir, na base de elaboração da Base, um descolamento entre “as constantes críticas dos especialistas na área” e os alicerces curriculares estipulados na LDB, que deveriam figurar na BNCC. Alega-se ainda, na mesma passagem, que nos anos imediatamente anteriores à publicação da BNCC o MEC operou silenciamentos “sobre os debates, avanços e políticas no sentido de democratização e valorização da diversidade” em prol de um “projeto unificador e mercadológico na direção que apontam as tendências internacionais” (ANPED, Ofício n.º 01/2015/GR, p. 1). Se é fato a ruptura entre o que dizem os especialistas na área (mencionados do ofício da ANPEd) e os especialistas chamados pelo MEC a elaborar a BNCC, perguntar parece propício: o que nos insinua tal fato? Por que a BNCC, parece, teria sido elaborada sem considerar as referidas “críticas constantes”, encarnando um modelo de currículo a elas avesso?

Questão de segunda ordem: seriam tais perguntas respondidas a contento pela via explicativa de mão única que enfatiza as opções políticas desta ou daquela gestão ministerial, e de cada equipe de professores e pesquisadores por elas mobilizadas na confecção da Base? Ou, como acadêmicos dedicados a pensar em como nossa área (a Filosofia) pode contribuir para os debates sobre a construção da Base, nos seria permitido duvidar desta via expressa, buscando compreender as coisas sob outras perspectivas em teorias curriculares? É apostando em respostas positivas a esta última questão, que Quando ninguém educa foi publicado — sem para nada excluir como irrelevantes os elementos de ordem política que compõem o quadro das práticas curriculares no Brasil.

Sobre o momento desta publicação, é trivial lembrar que se trata de um período de padecimento para todos. Vivemos consideráveis perdas de direitos sociais, e ameaças de maiores, mais profundos e variados retrocessos. É inevitável mencionar, nesse contexto, a proposta de revogação do título de Patrono da Educação Nacional, pertencente a Paulo Freire, por parte de mensageiros de “movimentos” “sem partido”, nem ideologia. Um sobreaviso, assim, quase tarda: o livro aqui anotado não seja tratado, por motivo de subtítulo, como gato no saco de desmastreios em que estão metidas iniciativas de similar estirpe. Se é verdade que Quando ninguém educa (QNE) foi publicado em momento turvo e tenso, não é menos verdade que por seus estilo, teor e dicção, visa um público extenso e multiforme, e tem um dilatado potencial para provocar conversas, debates e autocríticas cuja urgência e importância não podemos falhar em reconhecer. Que o mapa que se pode traçar a partir das anotações a seguir possa servir para estimular a leitura deste livro, contracorrente.

1 SOBRE A PRIMEIRA PARTE: A TRAMA E A CRÍTICA

Do ponto de vista morfológico o livro está composto de três partes intercaladas por quatro parábolas, denominadas pelo autor como “fábulas de Zilbra”. O comparecimento de tais historietas não configura aspecto ignorável, pois não somente impõem certo ritmo à leitura das partes principais do livro, como também um tom que pode gerar desconfortos em leitores mais sensíveis às críticas embutidas nesta peculiar eleição retórica. O mesmo se aplica aos primeiros parágrafos do capítulo inaugural, em que, ao modo de pastiche, encontramos uma comparação entre discussões atuais acerca de currículo escolar e debates sobre o valor universal da democracia no Brasil dos anos 1970. Desde o início, portanto, saiba o leitor da possibilidade de estranhamentos diversos no que diz respeito ao modo como são apresentadas as ideias do autor. Quais são elas?

Sigo aqui a ordem da composição. Após a proposição do pastiche como forma de verificarmos semelhanças e diferenças entre o cenário atual e o cenário em que se iniciou o processo de suspensão da tradição de estudos curriculares no Brasil, a primeira parte do livro narra o processo de estabelecimento da teoria curricular hoje hegemônica no país, fortemente calcada em estudos culturais e sociologias do conhecimento (trata-se, portanto, do advento de teorias críticas e teorias pós-críticas do currículo, ocorrido com o abandono das teorias tradicionais). Desde cedo em QNE somos impelidos a pensar que as críticas ao modelo teórico tradicional — o assim chamado currículo por objetivos — resultaram, no Brasil da segunda metade do século passado, em um processo de descarte do abacate junto com o caroço. Vejamos, ainda de que brevemente, quais eram os pontos principais destas críticas.

O primeiro deles indica que teorias como as de Ralph Tyler e Hilda Taba (nomes dos mais conhecidos nos estudos curriculares de então), tal como praticadas no Brasil e a despeito de algum sucesso do ponto de vista de “metas triviais”, não satisfaziam “os fins mais amplos da educação” (ROCHA, 2017, p. 28). Foram, assim, batizadas de tecnicistas. A segunda acusação alegava que a formulação de objetivos de aprendizagem em termos operacionais, válida para o campo empresarial, não valeria para o educacional. Ademais, tal modelo pressionaria em demasia os professores quanto ao planejamento sequencial das fases da aprendizagem, sem espaço para desdobramentos da ordem do imprevisível, que exigiriam menos planejamento e mais capacidade de improviso por parte dos docentes.3 A esta crítica se associa uma quarta, relativa ao privilégio de comportamentos cognitivos enquadráveis em avaliações e mensurações que acabariam por excluir a dimensão humana da experiência escolar — razão pela qual se incriminou o modelo por baixa densidade democrática. Finalmente, dada a padronização da avaliação dos resultados das aprendizagens escolares em termos de mensurações objetivas, artes e ciências humanas não caberiam no espartilho de um tal modelo curricular, cujo descarte estaria, assim, plenamente justificado. Uma sugestão de pesquisa, no livro somente implicada, propõe comparar os cinco pontos das críticas ao modelo tradicional de currículo com os nove pontos de crítica apresentados pela ANPEd no oficio acima descrito: quais diferenças e repetições vigoram entre elas?

O capítulo inicial remete ainda à discussão proposta no segundo capítulo de Ensino de filosofia e currículo (EFC), onde Rocha delineia uma perspectiva sobre educação na qual convivem em paz seu objetivo principal, o da conservação da herança cultural da humanidade — e que será esclarecido adiante no livro, na seção “A educação é conservadora” — e o respeito ao “aspecto essencial de indeterminação, intrínseco à formação educativa” (ROCHA, 2017, p. 29). O capítulo finaliza num duplo movimento: por um lado, e com base nas sugestões de Lawrence Stenhouse, “desempacota” o conceito de educação, como o conceito de um complexo contendo ao menos cinco etapas ou eixos:

Quanto mais nos elevamos nas camadas do processo educativo — habituação, treinamento, instrução, iniciação, indução — mais torna-se complexa a aplicação do modelo de currículo por objetivos. Os problemas mais interessantes ocorrem na área de indução ao conhecimento, pois trata-se de uma tarefa na qual as diferentes camadas da educação estão presentes. De um lado, quando aprendemos a falar colocamos em ação as estruturas conceituais e inferenciais da linguagem, das quais nem sempre temos uma consciência explícita e de cujas potências nem sempre suspeitamos; mas quando aprendemos nossa língua materna não estamos apenas dominando um código, pois ele traz consigo algo que um dia chamaremos, com sorte, de “mundo”. Aqui surge (ou não) a aventura do conhecimento, pois queremos induzir nossos filhos a uma explicitação dos níveis básicos de conhecimento que acompanham a aquisição da língua materna. O nome disso pode ser escola e currículo. (ROCHA, 2017, p. 31).

Por outro lado, o autor sugere que é possível retomar alguns dos bons elementos da tradição de desenhos curriculares calcada no modelo por objetivos, desde que nossa atitude como filósofos e teóricos do currículo não consista na dogmática postura de virar-lhe as costas, sem qualquer empenho de compreensão e subsequente avaliação de seu valor na empreitada de aprimorar a cultura curricular e pedagógica nacional. Além disso, após oferecer — novamente com o apoio de Stenhouse — uma caracterização de currículo como esforço para comunicar as linhas gerais de propósitos educacionais de maneira constitutivamente aberta à crítica, Rocha termina por alinhavar a primeira apreciação mais pungente do espectro hegemônico do campo curricular no Brasil. É neste momento que começamos a entender a função que a análise da opera magna de Paulo Freire tem no livro, pois somos então informados de que

No final dos anos 1970, o giro sociopolítico no campo do currículo consolidou-se e, com ele, os estudos curriculares ligados aos conteúdos e às didáticas foram varridos para baixo do tapete pedagógico. No lugar deles entraram as teorias da ação social aplicadas à educação. O esvaziamento da escola foi de tal ordem que surgiu no início dos anos 1980 um movimento que procurou recuperar o que havia sido sacrificado no altar da crítica. (ROCHA, 2017, p. 33).

Ora, foi justamente o grupo da “Pedagogia histórico-crítica” ou “Pedagogia crítico-social dos conteúdos” o responsável por tecer as primeiras críticas à pedagogia freiriana. Nela não estariam contemplados, de modo adequado, a entrada das crianças e dos jovens no universo dos conhecimentos escolares. De acordo com os primeiros críticos, esta insuficiência se deve, em larga medida, à ênfase desmesurada na valorização da cultura extraescolar na experiência pedagógica. Veremos a seguir, porque o deixa bastante claro o autor, que uma tal desmedida parece se dever um pouco menos à letra do texto de Paulo Freire do que a certas apropriações inadequadamente dogmáticas, derivadas de leituras anacrônicas, de sua Pedagogia do oprimido.

O segundo capítulo segue a narrativa acerca do que chama de extravio da cultura curricular nacional, mobilizando discussões acerca da natureza da escola, uma reflexão sobre as melhores maneiras de conversar sobre currículo, e uma importante crítica à “visão expressivista do currículo” — exposta em documentos oficiais como as Orientações curriculares para o ensino médio . Nesta visão, o currículo é compreendido como um tipo de orientação sem poder de prescrição . A ideia é a de que um currículo que descreva comportamentos esperados de cada ator do teatro educacional não deve desdobrar seu potencial de prescrição das melhores atitudes a esperar de professores e alunos,4 mas tão somente manifestar, revelar, exteriorizar (quiçá sem critério algum?) o que cada sistema e escola entende como o melhor para sua comunidade particular (estaríamos diante de uma sorte especial de relativismo pedagógico?).

Esta primeira e também extensa parte do livro contém ainda cinco capítulos. Antes de expor a crítica a Freire, e a certo freirismo, constante no capítulo “Ninguém educa ninguém”, direi do contexto da crítica no fluxo narrativo-argumentativo de QNE. É que imediatamente antes do estudo de caso crítico, aparece “Formas do conhecimento”. Este capítulo abre com uma máxima de dupla função: de um lado, arrematar o que fora exposto nos capítulos “O currículo como iniciação” e “O currículo como mensagem” (duas perspectivas pouco ou nunca sonhadas pelo grosso da pedagogia nacional) e, de outro, anunciar a tônica de sua crítica: “Conversar sobre currículo sem falar em epistemologia é como pacto sem espada, vira conversa fiada” (ROCHA, 2017, p. 59). Que o modo de adágio desta frase não aligeire o leitor a ignorar a que imediatamente se segue:

Se é verdade que o currículo implica poder e política, pois ele está ligado às formas de distribuição e transmissão de conhecimento, é igualmente verdadeiro que estamos falando exatamente sobre conhecimento .” ( Loc. cit .).

Quem, em são entendimento, poderia desviar-se de tamanha evidência? A quem serviria ler QNE de modo a ignorar sua obstinação na discussão conceitual, filosófica, sobre as relações internas entre categorias epistemológicas e curriculares? Possivelmente somente àqueles sectários afeitos à erística, dessidente do jogo de dar e pedir razões — dos quais temos exemplos de sobra tanto à direita quanto a esquerda do espectro político-ideológico.5 Mas voltemos ao texto.

Antes, no capítulo sobre o currículo como mensagem, o leitor havia sido familiarizado com o vocabulário, algo denso, advindo de uma sociologia da educação epistemologicamente tratada, encarnada na obra de Basil Bernstein. Destaque-se aqui a centralidade da distinção entre conhecimento ou discurso horizontal e vertical , a partir da qual somos a apresentados à crítica do “populismo pedagógico” como fruto de uma confusão entre tais categorias. Registre-se, de modo telegráfico, que se os discursos ou conhecimentos horizontais são da ordem do mostrar — das coisas que aprendemos em nossas comunidades locais, por meio de treino e exemplo (amarrar os sapatos, usar talheres) —, os conhecimentos horizontais são da ordem do dizer : eles operam e se aprendem por meio de “estruturas simbólicas especializadas de tipo explícito, proposicional” (ROCHA, 2017, p. 50). Tais conhecimentos, que Michael Young compreende como efetivamente “empoderadores”,6 demandam ambientes especialmente desenhados, como escolas, para sua aquisição.

Ora, o que em QNE se chama populismo pedagógico se resume num conjunto de práticas curriculares balizadas na polarização entre o conhecimento popular e o conhecimento especializado, frequentemente associadas a uma romantização ou supervalorização do primeiro em detrimento do segundo. Podese neste ponto antecipar os resultados das críticas ao modo hegemônico de ler a Pedagogia do oprimido como uma forma particular de populismo pedagógico: de tanto proteger o aluno de “sustos didáticos”7 (derivados de coisas como aprender a demonstrar um teorema geométrico ou compreender o que é se contradizer), o populismo pedagógico acarreta o abandono de aprendizagens daquele “conhecimento poderoso” de que fala Young (como aprender a demonstrar um teorema geométrico ou ser capaz de reconhecer ou visualizar a relação lógica de contradição no clássico quadro das oposições, ou a aprender a ler mapas, ou uma obra de Clarice Lispector).8

A trama de fundo da crítica a Freire e a seu modo habitual de apropriação e propagação apresentada na seção “Ninguém educa ninguém” envolve ainda a ênfase de Rocha na ideia de que a epistemologia, como investigação sobre as variedades do conhecimento humano, é indispensável para práticas curriculares adequadas aos fins da escola. Aquelas, as variedades, dizem respeito aos distintos critérios para a disposição e ajuste curricular dos conhecimentos, tais como: suas fontes, seus tipos, objetos, as estruturas dos objetos de conhecimento, os tipos de consciência que cada saber mobiliza, seus graus de publicidade, e as não menos relevantes condições sociais e históricas de sua produção e apropriação. Já os fins da escola, por sua vez, tomam corpo na ideia de empoderamento intelectual e humano dos estudantes, e serão ainda tematizados em ao menos três das “séries de lembranças” que compõem a parte final do livro. De todo modo, desta trama praticamente se pode deduzir a pergunta pela epistemologia sobre a qual se erige a referência máxima da pedagogia nacional. Chegamos, assim, ao acontecimento crítico central da primeira parte de QNE.

O capítulo dedicado, ao modo de estudo de caso, a analisar a Pedagogia do oprimido se desdobra em quatro momentos, a começar por um duplo reconhecimento: o da importância histórica da obra, combinado ao do anacronismo de suas leituras mais comuns. Se da primeira não há folga em esquecer, do segundo pouco se diz. As luzes anacrônicas que geralmente se projetam sobre esta obra de Freire, mostra Rocha, se revelam no modo como uma distinção importante como aquela entre educação bancária e educação emancipadora é transportada, do contexto em que foi engendrada — com a finalidade de criticar os modos de relação dos dirigentes políticos da ação revolucionária com as massas, afinal “o tema do livro são as relações de opressão consideradas em um nível de bastante abrangência” (ROCHA, 2017, p. 69) — para contextos de discussão sobre os fins e meios da escola . Não à toa, somos informados, a palavra “escola” aparece em escassas cinco ocasiões ao longo de toda a obra. Mas o problema indicado com as parcas referências à escola não se encerra nesta observação, estendendo-se ao modo como Freire pensa a relação entre lar e escola, fortemente influenciada pelas assim chamadas visões reprodutivistas. Tais perspectivas consideram a escola, prioritariamente, com um aparelho de réplica das desigualdades sociais típicas de instituições como a família (em que os pais mandam e as crianças obedecem, e não pensam) e as prisões (comparação suficientemente desgastada como para exigir alguma explicação aqui).

Que uma distinção tão central para o livro de Freire, como entre “bancário” e “emancipador” seja assim generalizada — do contexto de alfabetização de adultos para o contexto de alfabetização de crianças em idade escolar — explica-se pelo fato de que além de anacrônicas, as leituras mais comuns da Pedagogia do oprimido são também seletivas. De acordo com Rocha, a dificuldade de contextualizar o que Freire diz nos capítulos inicial e final do livro acaba por induzir os leitores contemporâneos a simplesmente ignora-los, para o mal de sua compreensão. Nesses capítulos, aponta Rocha, Freire indica claramente a quem o livro se dirige (os companheiros revolucionários, por quem era acusado de não ser suficientemente comunista, e a quem acusa de agir conforme um sectarismo tão nefasto quanto o de seus efetivos oponentes), e de onde brotam os princípios que orientam, por exemplo, a necessária “reeducação ‘dos profissionais de formação universitária ou não’”, calcada em um alargamento das estratégias dialógicas de ação cultural por parte dos revolucionários. Rocha destaca que

O tema da reeducação dos acadêmicos ocupa quatro páginas no final do livro e é mais uma das formulações freirianas que somente faz sentido quando se tem presente o flerte de muitos intelectuais com o maoísmo da época. Como já antecipei, o livro era um libelo contra o dirigismo revolucionário que contaminava as fileiras da esquerda e a educação bancária a que se o livro se refere pouco tem a ver com os processos de escolarização formal. (ROCHA, 2017, p. 70).

Tendo mostrado suficientemente como a falta de sentido histórico é um aspecto importante na avaliação da atualidade da Pedagogia do oprimido , Rocha se dedica a auscultar a epistemologia sugerida nas considerações de Freire acerca da estruturação do conhecimento. Não se vai longe: citadas algumas passagens, ficamos sabendo que as importantíssimas fontes de saber que são memória e testemunho são ali desprezadas, dando-se a entender “que quando alguém nos conta alguma coisa não há um trabalho de conhecimento” (ROCHA, 2017, p. 71). Do que resulta uma concepção de saber que, aceitas as maneiras de encarar os fenômenos relativos ao conhecimento desde a perspectiva em epistemologia contemporânea aqui adotada, faz pouco sentido — embora se adeque à causa da época.

Ao postular uma educação libertadora que parece não atentar a elementos relevantes para uma descrição minimamente adequada dos processos de conhecimento — como a participação da memória e do testemunho de outros seres humanos na construção de diferentes tipos de saber — engasta-se na obra de Freire a ideia de que “ninguém educa ninguém”. Rocha enfatiza que esta tese foi mobilizada pelo autor no contexto de abordagem da tarefa de alfabetizar adultos. Quer parecer, portanto, que uma reterritorialização da tese para “pensar a escola, o currículo e o conhecimento em outros níveis que não o da alfabetização de adultos” (ROCHA, 2017, p. 72) implicaria alguma mudança no modo de ver a coisa. Deveríamos nos precaver de generalizar teses situadas em contextos específicos. Para que possa o leitor ele mesmo julgar se a concepção sobre o conhecimento humano que encontramos na Pedagogia do oprimido é, como pretende Rocha, demasiadamente restrita, o capítulo “Variedades do conhecimento” mostrará, articuladas, uma gama de distinções conceituais. Vendo este capítulo como uma sorte de “introdução à epistemologia para fins de desenho curricular”, e dado o atual contexto de discussões sobre o que é e como se faz currículo, talvez seja este um dos momentos mais importante de todo o livro. Para Rocha, os critérios de classificação das formas de conhecer, a que já me referi acima e que recebem uma organização gráfica bastante simpática (cf. Rocha, 2017, p. 82), devem ser incorporados ao léxico dos desenhistas de currículos. Isso se justifica na medida em que se aceita a adequação deste gênero de taxonomia diante da tarefa de projeção de distintas e plurais dimensões da formação e das aprendizagens humanas (objeto de estudo da epistemologia aqui mobilizada) nos currículos escolares. A título de amostra da articulação entre epistemologia e currículo escolar proposta por Rocha, ofereço abaixo uma importante passagem deste capítulo final da primeira parte:

A noção de conhecimento precisa de um esclarecimento simples e importante. Não podemos considerar o conhecimento humano apenas como o conjunto das afirmações verdadeiras sobre os diversos aspectos da realidade. O conhecimento tem muitas outras dimensões. As afirmações que encontramos nas diversas áreas de realizações e conhecimentos surgiram a partir do exercício de habilidades e procedimentos duramente conquistados ao longo da história da humanidade. O conhecimento não é apenas produto, é antes de tudo um processo, e a Pedagogia, de modo coerente com essa compreensão, não é um misto de teoria e prática acompanhada de consciência política. A capacidade profissional de intervenção do pedagogo não é adquirida apenas pelo estudo de teorias; ela surge da combinação disso com a formação de uma capacidade de julgamento e avaliação de situações particulares. Essas habilidades surgem no contexto de uma formação por meio de situações de conhecimento por familiaridade, ligadas ao desenvolvimento da capacidade de saber-fazer. (ROCHA, 2017, p. 85)

Além de servir também para que não se acuse o autor de proclamar uma monarquia do conhecimento proposicional, vale destacar que esta passagem participa de um argumento crítico de certas estratégias de estudo sobre currículo de teor sobremaneira sociologizante e descontrutivista, de que a Pedagogia do oprimido é exemplar. Em geral, para Rocha, elas consistem na desidratação de considerações de ordem metateórica que são imprescindíveis para bem situar e realizar o que pretendem — desmantelar as edificações erguidas a partir de nefastas relações de poder e saber, “construções sociais de x ”. Nelas também se encontra um uso “de descrições homogeneizadoras e estereotipadas da ‘ciência’, do ‘ocidental’, da ‘objetividade’, da ‘neutralidade’.” (ROCHA, 2017, p. 85) Isso posto, não é de se espantar a baixa atratividade de muitos debates sobre currículo e pedagogia no Brasil para o público do campo filosófico: enquanto a fenomenologia do conhecimento e da ciência que perpassa as estratégias desconstrucionistas permanecer tão precária como nos apresenta Rocha, parece que nosso destino guarda forte tendência a seguirmos patinando em discursos dotados de tanto sentido quanto a maior parte das experiências escolares cotidianas — sobre as quais, sabemos, incidem elementos que por óbvio ultrapassam os temas de QNE, que afinal não é um livro sobre a dimensão política da escola. Somente leituras tortuosamente motivadas podem esperar deste livro mais do que ele pretende fornecer: uma perspectiva em estudos curriculares que, posicionando o estudioso em primeira, e não mais terceira em pessoa, favoreça o resgate de uma mística mínima para a escola.

2 SOBRE A SEGUNDA PARTE: EPISTEMOLOGIA, CURRÍCULO, E UM CHAMAMENTO

Após noventa páginas de abertura, e precedida por uma parábola que conta sobre o início da derrocada da hierarquização das disciplinas no currículo escolar, a segunda parte de QNE se dedica a fazer o que apontou como ausente nas estratégias anteriormente criticadas: refletir, em perspectiva de segunda ordem, sobre as relações conceituais que mobiliza em seus argumentos. Assim, os dois capítulos desta parte do livro tematizam, o primeiro, as relações entre o campo da epistemologia e o campo do currículo; o segundo, os modos como a noção de interdisciplinaridade floresceu nos documentos e nos debates sobre desenho curricular — como solução algo mágica para o fenômeno do “professor fragmentado”. Vejamos quais os principais pontos de cada capítulo.

Em “Currículo e epistemologia”, Rocha retoma algumas questões já abordadas em outros momentos de sua obra,9 descrevendo os bons frutos que uma interação entre estas duas áreas pode gerar para ambas e, em especial, para as práticas de desenho e realização de currículo. Resgatando as perspectivas sobre currículo apresentadas anteriormente (currículo como iniciação e como mensagem ou narrativa daquilo que valoramos como passível de transmissão às novas gerações), o autor reconhece a evidência de que as práticas curriculares são objeto de disputas que envolvem a tentativa de “chegar a acordos sobre os aspectos centrais de nosso reservatório curricular” (ROCHA, 2017, p. 93). Tal reconhecimento calibra, por meio de um contraste, os aspectos sociológicos dos fenômenos curriculares com os aspectos primordiais, os que implicam “uma teoria do conhecimento, ligada ao papel da escola como uma instituição comprometida com o que temos de melhor.” ( Loc. cit .).

Da parte da epistemologia, Rocha a descreve novamente utilizando a categoria da narração: “é o estudo do conhecimento — daquilo que contamos como conhecimento, sua natureza, fontes, limites, formas etc.” ( Idem , grifos meus), e segue esclarecendo que os problemas da epistemologia são tão polimorfos quanto as variedades já exploradas. Tais problemas e variedades incluem, em um polo, temas ligados ao papel de formalismos de ordem lógica na estruturação de certos conhecimentos e, no oposto, temas vinculados aos aspectos políticos e sociais das diferentes formas de saber. Os dois campos nomeados com as palavras “epistemologia” e “currículo” podem andar juntos sem estranheza:

Isso parece ser cada vez mais necessário, na conjuntura em que vivemos, diante das muitas propostas de intervenção no currículo escolar: as pressões para a introdução de conteúdos sobre criacionismo e ensino religioso, as polêmicas sobre a base curricular nacional e as propostas de mordaças na escola. Nessa hora fala-se sobre muita coisa e pouco sobre os critérios conceituais que devem presidir as decisões de desenho curricular, menos ainda sobre a penúria de nossa cultura pedagógica, curricular e avaliativa. (ROCHA, 2017, p. 94)

Oportuna, a lembrança da aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE) que se segue a esta passagem não nos deixa esquecer que, a despeito das rupturas e dificuldades que vivemos, este livro participa do esforço em continuar e qualificar os debates sobre educação no país. O PNE renovou as pressões anteriores para que se pratique interdisciplinaridade nas escolas, o que supõe planejadores “boa noção das características dos domínios da experiência e do conhecimento que serão alvo do currículo” ( Idem ). Ocorre que planejar currículos interdisciplinarmente articulados exige muito mais do que tem sido feito — vide o exemplo das duas primeiras versões da BNCC para o Ensino Médio, claramente confeccionadas sem qualquer sinal de contato entre diferentes interfaces disciplinares. Diante destes fatos, e das sugestões até aqui colocadas em QNE, aparece um conjunto de nove “perguntas singelas”, das quais destaco as que dizem respeito ao tipo de unidade curricular que se pode supor, à organização curricular de diferentes disciplinas ou saberes (ou seja, dadas as disciplinas de que dispomos, pode-se deduzir uma organização implícita do currículo ou qualquer critério organizacional é externo às disciplinas?), à compreensão da estrutura conceitual de cada disciplina , e de suas relações.

Um dos esclarecimentos mais importantes no que diz respeito ao tema da interdisciplinaridade no currículo é elaborado na segunda seção deste capítulo. Trata-se da distinção entre um nível avançado, dito “de pesquisa”, e um nível mais elementar, propriamente escolar. Vale destacar que para Rocha, independentemente da perspectiva assumida, qualquer empreitada interdisciplinar precisa, por manutenção de sentido, reconhecer o respeito pelo conhecimento disciplinar. A não ser que se retorne a algum ideal absolutista de unificação dos saberes, parece que a famigerada fragmentação dos conhecimentos precisa ser recolocada, e avaliada, em seu devido lugar.

Enquanto a interdisciplinaridade à serviço da pesquisa tem a ver com o desenvolvimento de explicações de fenômenos tão complexos a ponto de exigir a associação de disciplinas existentes (e às vezes mesmo a criação de novos campos de saber, como observa Olga Pombo)10, a interdisciplinaridade a serviço da escola “é uma tarefa curricular e didático-pedagógica”:

É curricular porque pode ser antecipada nas fases de macroplanejamento, é didático-pedagógica porque sua realização efetiva na escola depende da mobilização de vontades particulares, da sensibilidade aos contextos de aprendizagem e da subordinação aos objetivos formacionais. Pense aqui, como exemplo, nas relações de dependência conceitual entre a matemática e a física, ou entre habilidades de argumentação e domínio da língua: não aprendemos a argumentar adequadamente no vazio conceitual. O interdisciplinar escolar não entra em conflito com as disciplinas e tampouco é uma panaceia contra a falta de unidade do saber e a fragmentação dos conhecimentos. Por vezes a gente esquece que “disciplina” também quer dizer “ter cuidado”. (ROCHA, 2017, p. 95)

A última observação, associada ao reconhecimento de um fato conhecido por quase todos os educadores do Brasil — o que de não somos habituados a trabalhar como equipes — o que se segue até o final do capítulo é uma reflexão instigante acerca do conceito de transmissão (lembra-se aqui do desprezo de Freire pela narração como transmissão), posto que as disciplinas escolares passam e ser vistas como “rizomas de realizações e curiosidades humanas” (ROCHA, 2017, p. 96) que merecem e devem ser transmitidas, ou traduzidas,11 para aqueles que se iniciam no mundo através da escola. Reconhecendo que os processos de transmissão de tais rizomas culturais não são passíveis de formulações canônicas satisfatórias, Rocha termina por considerar o currículo como sendo “para a educação, como um roteiro ou guião, com a diferença importante de que temos que contar a história” (ROCHA, 2017, p. 97). Este, por assim dizer, “dever curricular” deriva, na perspectiva de Rocha, de sua concordância com a filósofa que tão bem abordou o tema do caráter conservador da educação — Hannah Arendt.

O capítulo seguinte, segundo e final desta parte do livro, nos conta como e por quais motivações os documentos oficiais trazem à tona a demanda por ações curriculares interdisciplinares e contextualizadas. A história é complicada e repleta de matizes, os quais apenas insinuarei aqui. Em primeiro lugar, cabe destacar como um exemplo de complicação (por vagueza) conceitual o texto dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), de acordo com o qual as disciplinas escolares figuram no currículo como passos a serem superados por uma esperada — e entretanto jamais circunscrita ou positivamente caracterizadas — interdisciplinaridade. Em seu “segundo afloramento”, nas Orientações Curriculares Nacionais (OCN), a questão da integração e da articulação no currículo passa a ser tratada, mostra-nos a análise de Rocha, por meio de verbos como relacionar, conectar, vincular, sem no entanto diferenciarem-se os modos como propostas de inter, trans, e outros gêneros curriculares se diferenciam entre si com relação a tais ações. “As expressões surgem como um rol de reis assírios, sonoras, belas, mas magras” (ROCHA, 2017, pp. 103-4). A imagem sugerida nesta passagem certamente faz referência ao princípio de organização curricular já criticado em EFC, o princípio do presépio . De acordo com este princípio, que por inércia seguimos quase todos, cada professor, em cada escola, traz para o currículo aquilo que consegue, sem jamais se perguntar pelo que trazem os demais como contribuição para as aprendizagens dos estudantes. Após seis páginas de uma detalhada análise do modo como se compreende a interdisciplinaridade nas OCN (“O mistério da multiplicação das áreas do conhecimento”), Rocha aborda o desejo de “Resgate do uno” — exemplificado num documento de orientação curricular do estado do Rio Grande do Sul. O capítulo termina com a sugestão de que uma das melhores maneiras de evidenciar a penúria de nossos debates sobre o assunto é a defesa da tendência, autorizada por documentos como o que por último foi analisado, a uma eventual democracia epistemológico-curricular (a postulação radical de uma igualdade de direitos entre todas as disciplinas escolares, refletida na distribuição igual de horas semanais). Para sustentar a legitimidade desta evidência, o autor retoma pontos já trabalhados, como a necessidade de escrutínio de importantes pressuposições conceituais das nossas conversas sobre currículo:

Tal crença na igualdade democrática das disciplinas implicaria um conjunto adicional de crenças sobre a natureza e o papel delas no crescimento e na formação humanas. Ora, estaríamos aí no núcleo duro de uma discussão de epistemologia e currículo, no início de uma longa conversa sobre a natureza dos conhecimentos, habilidades e competências que queremos promover na escola. (ROCHA, 2017, p. 110).

Nesse ponto o leitor poderia com razão reclamar do caráter algo evasivo da sugestão de discussão sobre as relações entre epistemologia e currículo. Gostaríamos de ver como elas se refletiriam ou desdobrariam, por exemplo, em negociações sobre distribuição de horários de diferentes disciplinas, ou em discussões sobre a presença compulsória de distintas disciplinas no currículo escolar — discussão de relevância fundamental após a publicação da Lei 13.415 de 16 de fevereiro de 2017, que modifica substancialmente a estrutura curricular do Ensino Médio e seus meios de financiamento.12

Aproveitando a referência à situação atual, é oportuno ressalvar as perguntas inicialmente propostas nestas notas, relativas a um fato reconhecido no documento da ANPEd: a falta de diálogo entre gestores, formuladores de currículo (mais especificamente a BNCC — que, não custa lembrar, não é um currículo ) e os especialistas que constantemente criticam os moldes e conteúdos das iniciativas propostas em distintos documentos oficiais. Propus, então, uma leitura de acordo com a qual QNE é um esforço, eminentemente acadêmico , em responder à pergunta pela possibilidade de explicar esta falta de diálogo de modo crítico e positivo. O livro de Rocha poderia, e talvez mesmo deveria, ser lido como proposição de caminhos, alternativos ao hegemônico na academia brasileira, de diálogo entre os que tomam decisões políticas acerca da educação, os professores e gestores no chão da escola e os pesquisadores em educação. Em tempos de rupturas como as que vivemos, esta não é uma tarefa de pouca valia — embora possa ser entendida por alguns como inadequada concessão ao campo inimigo. Foi em razão desta possibilidade interpretativa — além, é claro, do que se pode identificar como estrito caroço da proposta — que, também nas notas introdutórias a este texto, caracterizei QNE como um livro contracorrente. Se o leitor com nada mais concordar, fica ao menos um chamamento para a continuidade da prosa, que se adverte cedo ou tarde inevitável: precisamos falar sobre currículo.

3 SOBRE A TERCEIRA PARTE: POR OUTRA CULTURA CURRICULAR

Feita álbum, a reunião de lembranças de que é composta a parte final de QNE organiza-se em cinco partes, ou variações, sobre os principais temas abordados anteriormente. Como explicitação de pressupostos, o final do livro atesta a legitimidade da descrição fornecida ainda na em sua Introdução, como “caderneta de campo muito pessoal” do professor Ronai.

Autorizada pela consideração de que o que foi dito até aqui serve suficientemente como descrição do contexto e da estrutura do livro — e também por julgar que estas descrições funcionam como chamado à leitura do texto aqui anotado — não apresentarei com o mesmo detalhamento os capítulos de sua parte final. O que ofereço ao leitor, a partir de agora, é uma avaliação do livro, condensada em algumas perguntas que incidem menos sobre o que nele é dito, e mais no que ele pode nos mostrar.

Começo pelo que está posto no capítulo “Quarta série de lembranças”, em que se discute com mais fôlego o tema da interdisciplinaridade escolar a partir da postura de respeito às disciplinas. Para Rocha, vivemos em um clima conceitual pautado por muitos especialistas do esfarelamento curricular, no qual ocorre um “triplo jogo de faz de conta”. Nele, manter as disciplinas implica fragmentações já insuportáveis; a escola deve visar a unificação destes fragmentos; e as áreas de saber são, ainda assim, unidades pedagogicamente operacionais. Juntos, estes três elementos tornam a situação conceitualmente insustentável, pelo seguinte:

Em primeiro lugar, a diversidade de disciplinas não é o resultado de caprichos burocráticos. Ela expressa apenas o fato trivial que cada uma das disciplinas tradicionais é uma faceta peculiar da curiosidade humana, com suas características e nuances. Em segundo lugar, não podemos confundir os anseios por um sentimento de unidade na vida de cada um de nós com a fantasia de uma unidade do conhecimento. O que isso significaria: uma mesma metodologia operacional aplicada a todas as ciências? Por fim, a pesquisa sobre a integração das disciplinas em áreas, se existe, não chega nem às escolas nem aos livros. A prática usual de uma escola é a do “cada um por si”, mas isso nada tem a ver com uma suposta falta de unidade do conhecimento humano, é apenas uma falha no trabalho de formação pedagógica. (ROCHA, 2017, p. 132)

Quadro que, reconhecido, impõe a questão sobre o que fazer — especialmente com relação à formação docente nas universidades brasileiras.13 Quanto a isto, para o autor (e para esta autora), é um fato que não podemos decidir como seguir se não entendermos como chegamos até onde estamos. Nossas principais dificuldades envolvem fatores ligados à democratização do acesso à escola pública sem a devida atenção em termos de políticas de acolhimento do “novo público”, e à consequente queda de qualidade do ensino e das aprendizagens; à ênfase desmedida em leituras sociológicas e políticas das relações educacionais, em detrimento de estudos curriculares epistemologicamente tratados; mas passam também pelo fato de que, para profissionais da filosofia, é claro que a pesquisa pedagógica prática é melhor em áreas que se dedicam há mais tempo (Ciências Naturais e Matemática, por exemplo).

Além disso, a tão falada “bacharelização” dos cursos de licenciatura em filosofia constitui um dos elementos chaves neste processo, e tarda muito em ser discutida de maneira adequada entre nós — especialmente no momento em que todos os cursos de licenciatura do Brasil estão em vias de modificar seus currículos para adequar-se à já referida Lei 13.415, à Resolução nº 02, de 1º de julho de 2015 do CNE14 e à proposta, no momento ainda não divulgada, da versão final da BNCC do Ensino Médio. Sobre “As licenciaturas”, seu futuro, Rocha afirma o predomínio do ceticismo:

A formação docente que ocorre no interior das universidades ainda não encontrou um formato adequado, mas isso pouco tem a ver com boas ou más vontades . Há fatores objetivos que concorrem para isso. O principal deles é que o ciclo de afirmação dos departamentos de conhecimento básico, que são essenciais para as licenciaturas, ainda está em curso. As melhores energias institucionais ainda se concentram na fixação da identidade profissional de cada disciplina e na construção de uma rede de pós-graduação. (ROCHA, 2017, p. 137, grifos meus)

Sublinhando as ricas experiências de formação docente (inicial e continuada) possibilitadas por importantes iniciativas dos governos anteriores (seja o PIBID, Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, agora ameaçado de extinção, o exemplo), não pareceria, ao contrário, haver muita má vontade distribuída em nossos departamentos no que tange à tarefa de formar bons professores para as escolas de nosso país?

Encerro este texto de modo um pouco abrupto, alinhavando uma avaliação do livro que pretende pensar menos o que ele faz e mais o que ele ainda pode fazer , com as seguintes perguntas:

  1. Quanto ao tipo de pesquisa que nos permitiria avaliar melhor a plausibilidade da ideia e da instauração de currículos “epistemologicamente democráticos”: o que podemos somente com os conceitos destacados neste livro?
  2. Quanto ao comprometimento dos Departamentos, em especial os de Filosofia, nas discussões sobre educação: é pouco mesmo o papel das vontades, e maior o das questões “objetivas” (consolidação das identidades dos cursos de graduação e da rede de Pós-Graduação)?
  3. Nas reformas curriculares das licenciaturas, agora em curso: como podemos aplicar o que em QNE é pensado na direção da relação com a escola? Quais adaptações são necessárias para que apliquemos as críticas feitas no livro aos departamentos alheios (de Educação) sobre nós mesmos (do campo da Filosofia)?

Comentando Tolstoi, Wittgenstein disse que a compreensibilidade geral de um tópico é, no mais das vezes, dificultada pelo que “a maioria das pessoas quer ver”. Por causa disso, seguiu, “as coisas mais óbvias podem se tornar as mais difíceis de compreender. Não é relacionada ao entendimento que uma dificuldade precisa ser superada, senão à vontade” (Wittgenstein, 2000). Dadas certas dificuldades da vontade que mui provavelmente alguns de nós enfrentarão com a leitura de QNE — sejamos ou não do campo da Filosofia — só posso lembrar das palavras de outro excelso escritor, silogizando algumas delas num adágio final: em filosofia da educação, muitas vezes, o que a lida quer da gente é coragem.15

Notas

1 Professora no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

2 Disponível em: <http://www.anped.org.br/sites/default/files/resources/Of_cio_01_2015_CNE_BNCC.pdf>. Acesso em: 09 de novembro de 2017.

3 Valeria perguntar-se aqui pela ideia que fazem os críticos, de ontem e hoje, acerca do improviso na arte, invariavelmente acionada como modelo de prática a ser seguida pela pedagogia, em detrimento de modelos como as práticas científicas.

4 Estranha ideia, sobretudo se pensarmos, por exemplo, no caráter inevitavelmente normativo do uso de dispositivos como mapas, que servem para representar e fornecer orientação (a não ser que se deseje flanar sem rumo, mapas prescrevem os melhores caminhos a seguir dadas certas finalidades: chegar mais rápido ao destino, ou com mais segurança, ou pelo caminho mais agradável etc.).

5 O que, aliás, não só era de conhecimento de Paulo Freire, como foi levado em conta como audiência privilegiada da Pedagogia do oprimido , conforme se conta na seção “Os sectários de esquerda e de direita” (ROCHA, p. 69). A esta altura faz-se imperioso lembrar de “A educação depois de 1968, ou cem anos de ilusão”, ensaio no qual Bento Prado Jr. reflete acerca das transformações nas ideias sobre educação no Brasil entre as décadas de 1960 e 1980. Nosso filósofo aborda então o que chamou de “descarrilamento do pensamento progressista”, alinhavando críticas similares às que Rocha concretiza em QNE no que diz respeito a aporias que a filosofia da educação brasileira deveria, já naquela ocasião, enfrentar. Que me seja permitido sugerir ao leitor sugestionado uma visita a este belo e atualíssimo ensaio.

6 Aludo em especial a um dos poucos textos deste sociólogo traduzido do inglês para nossa pátria, “Para que servem as escolas?” (YOUNG, 2007).

7 A expressão foi emprestada de Tiago Irigaray, estudante licenciatura e bolsista do PIBID Filosofia UFRGS que, sob a supervisão da Prof.ª Rúbia Vogt, realiza sua iniciação à docência no Colégio de Aplicação da UFRGS. Tiago batizou assim o efeito de práticas didáticas — atualmente sob experimentação — nas quais os alunos respondem muito positivamente às novidades conceituais que lhes são apresentadas nas aulas de Filosofia.

8 Aprender a demonstrar teoremas, mais do que aprender a calcular, é um modo de alfabetização simbólica, de aprender a manipular diagramas e figuras, usar definições, seguir regras, imaginar movimentos e testar possibilidades de percepção e raciocínio. Somente alguma sorte de cegueira diante dos prazeres estéticos e intelectuais da matemática pode engendrar qualquer desprezo por seu ensino, ou apagar as possibilidades de articulação entre práticas matemáticas e artísticas.

9 Não somente em EFC (em especial no capítulo “Estudos curriculares e filosofia”), mas também em “Qual epistemologia? Qual currículo?” (ROCHA, 2016).

10 Em um texto que serve de excelente complemento bibliográfico a esta seção, “Epistemologia da interdisciplinaridade” (POMBO, 2008). 11 Utilizo o recurso à sinonímia possível entre traduzir e transmitir a partir da constatação de similaridades positivamente relevantes entre QNE e o precioso livrinho, há pouco publicado na França, Transmettre, apprendre (BLAIS, GAUCHET & OTTAVI, 2014).

12 O texto da lei encontra-se em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2017/lei-13415-16fevereiro-2017-784336-publicacaooriginal-152003-pl.html>.

13 De todas as opiniões de especialistas recentemente veiculadas sobre este assunto, destaco uma das mais recentes, de Bernadete Gatti, disponível no link a seguir. (A manchete afirma o óbvio.):  http://epoca.globo.com/educacao/noticia/2016/11/bernardete-gatti-nossas-faculdades-nao-sabemformar-professores.html.

14 Disponível em: http://ced.ufsc.br/files/2015/07/RES-2-2015-CP-CNE-Diretrizes-CurricularesNacionais-para-a-forma%C3%A7%C3%A3o-inicial-em-n%C3%ADvel-superior.pd.

15 Agredeço aos colegas César Santos, Frank Sautter, Elisete Tomazetti, Mitieli Seixas e Rogério Saucedo, pelas diversas análises e críticas que compartilhamos na tarde de debates sobre o QNE organizada pelo Departamento de Filosofia da UFSM — algumas das quais foram incorporadas a este texto.

Referências

BLAIS, Marie-Claude & GAUCHET & OTTAVI, Dominique. Transmettre, apprendre . Paris: Stock, 2014.

POMBO, Olga. Epistemologia da interdisciplinaridade. Revista do Centro de Educação de Letras da Unioeste — Campus de Foz do Iguaçu , vol. 10, n. 1, pp. 940, 2008.

PRADO Jr., Bento. A educação depois de 1968 ou cem anos de ilusão. In: ______. Descaminhos da Educação. Pós — 68. São Paulo: Brasiliense, 1980. pp. 9-30.

ROCHA, Ronai Pires da. Ensino de filosofia e currículo . Petrópolis: Vozes, 2008.

______. Qual epistemologia? Qual currículo?. In: SECCO, Gisele Dalva (Ed.) Epistemologia e currículo: registros do II Workshop de Filosofia e Ensino . Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. pp. 95-132.

______. Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire . São Paulo: Contexto. 2017.

YOUNG, Michael. Para que servem as escolas?. Educação e Sociedade . Campinas, vol. 28, n. 101, pp. 1287-1302, 2007.

Gisele Dalva Secco1 – Professora no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Brasil. E-mail: [email protected]

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