Base Nacional Comum Curricular: dilemas e perspectivas – CURY etc. al (EA)

CURY J BNCC dilemas e perspectivas Base Nacional Comum Curricular

CURY, Carlos Roberto Jamil; REIS, Magali; ZANARDI, Teodoro Adriano Costa. Base Nacional Comum Curricular: dilemas e perspectivas. São Paulo: Cortez, 2018. 144 p. Resenha de: PEDRO, Gabriel; MARSICO, Juliana. Explorando limites epistemológicos e políticos da BNCC para pensar possibilidades. Em Aberto, Brasília, v. 33, n. 107, p. 225-230, jan./abr. 2020.

No campo da pesquisa educacional, em um contexto sociopolítico de 225 desarticulação de conquistas e bandeiras importantes à educação pública no Brasil, uma discussão que se dedique à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é imprescindível e potente. Argumentamos que conhecer o que vem sendo enunciado sobre a Base é importante para melhor delinear seus efeitos como documento normativo para a educação básica e discurso que reorganiza valores e sentidos para os sujeitos escolares.

A obra Base Nacional Comum Curricular: dilemas e perspectivas, dos autores Carlos Roberto Jamil Cury, Magali Reis e Teodoro Adriano Costa Zanardi, traz uma discussão atenta aos processos de formulação e efeitos da BNCC, propondo reflexões “[…] imprescindíveis para prosseguir com essa discussão, acalorada e interminável, como é a própria experiência do currículo, um campo de tensões e disputas contínuas” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 8). Propomos neste texto a apresentação dessa obra a fim de estimular o debate e instigar futuros leitores. Nesse momento de disputas em torno da educação básica escolar, consideramos o livro de Cury, Reis e Zanardi uma leitura necessária ao debate.

Na apresentação do livro – “Debates em torno da Base Nacional Comum Curricular” –, os autores fazem um mapeamento do que consideram as publicações mais relevantes a tratar da temática nos últimos anos, explorando uma série de artigos e dossiês publicados entre os anos de 2012 e 2018, nas revistas Teias (Uerj), e-Curriculum (PUC-SP), Currículo sem Fronteiras, entre outras. Apresentando as diversas perspectivas nelas publicadas, buscam elucidar os debates acadêmicos

sobre o assunto. A seção encerra-se com a afirmação de que “a aprovação da BNCC não esgotou os debates como também não resolveu os problemas e lacunas nela observados durante sua elaboração” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 15). Com isso, estabelecem a tônica do livro como crítica à BNCC, que nos remonta à ideia de crítica proposta por Judith Butler (2013) no diálogo com Michel Foucault, rejeitando seu objeto enquanto finalizado e buscando entender seus limites epistemológicos e políticos.

Nesse livro, portanto, os autores fazem uma crítica não apenas ao documento normativo publicado, mas também ao processo de elaboração da BNCC, em um movimento que atua no sentido de “colocar fundamentos em questão, de desnaturalizar hierarquias sociais e políticas e, inclusive, de estabelecer perspectivas a partir das quais uma certa distância com o mundo naturalizado pode ser tomada” (Butler, 2013, p. 161).

Os autores, no primeiro capítulo – “Por uma BNCC democrática, federativa e diferenciada” –, organizam documentos históricos normativos relativos à defesa da necessidade de um conjunto de conhecimentos comuns a todos no Brasil. Nele, argumentam como tal defesa se relaciona com as noções de cidadania e federalismo, culminando em um capítulo na Lei de Diretrizes e Bases (LDB – Lei n° 9.394/1996).

Se, por um lado, o adjetivo “comum” é um descritor para formação indispensável ao exercício da cidadania na LDB/1996, por outro, destaca-se que o próprio Conselho Nacional de Educação (CNE) “enfatizou que as diretrizes tinham dimensões gerais, tendo estas muito mais a prevalência de um rumo, de uma direção, de um caminho tendente a um fim do que de fixação de conteúdos mínimos” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 47). Ademais, os autores salientam que, por via da Emenda Constitucional nº 59/2009 e da Lei nº 13.005/2014, o Plano Nacional de Educação (PNE) tem previsão para configuração de uma base nacional comum curricular mediante instância permanente de negociação e de cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios (Art. 7º, § 5º), alertando que o debate precisa desaguar no “diálogo que a Constituição denomina de regime de colaboração sob a égide da gestão democrática” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 50). Assim, estabelecem limites dentro dos quais acreditam ser necessário que a elaboração da BNCC aconteça, ejetando do campo do desejável outras formas de organizá-la que não seja democrática, federativa e diferenciada.

No segundo capítulo – “BNCC e a universalização do conhecimento” –, são tensionadas questões nos planos normativo e conceitual que levaram à formulação da BNCC tal como aprovada em 2018, buscando analisá-la criticamente para expor sua legitimidade e suas possibilidades a partir do campo de estudos curriculares, em específico,perante uma “concepção comprometida com a teoria freireana como forma de promover uma educação para emancipação” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 55). Aqui, uma importante discussão é travada, problematizando o que significa um conhecimento ser básico e comum, salientando que a neutralidade pretendida não existe de fato, o que resulta num problema difícil de resolver, a afirmação inequívoca de qual é a formação desejada em um território tão extenso e plural como o brasileiro. Desse modo, os autores apontam que adotar uma compreensão curricular pautada em descritores de conteúdos, competências e habilidades, casados com prescrições fixistas, é também assumir um projeto universalizante de conhecimentos comprometidos com a homogeneização, o que os coloca em explícito contraste com uma compreensão de currículo construído democraticamente, do qual decantam práticas que respeitam a pluralidade e as diferenças sociais.

A noção de uma base nacional comum curricular tem, em sua raiz, “o sonho iluminista de universalização de direitos no tocante ao acesso ao conhecimento acumulado e à qualidade de educação que se realizaria pela distribuição igualitária e isonômica dos conhecimentos” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 53). Tal argumento vai ao encontro da noção de cosmopolitismo de Popkewitz (2009), em que se lança mão da razão e de um modo comparativo de raciocínio para planejar transformações no mundo, visando a uma sociedade mais igualitária e justa. Entretanto, para Popkewitz (2009), esse mesmo modo comparativo de raciocínio produz um duplo gesto, uma vez que, ao buscar a inclusão gradativa de todos na sociedade cosmopolita, é preciso definir quem são aqueles sujeitos que a ela pertencem e estão incluídos, simultaneamente, definindo os que não pertencem e estão excluídos, reinscrevendo a exclusão no tecido do planejamento e das práticas escolares.

O terceiro capítulo – “Base Nacional Comum Curricular é Currículo?” – argumenta em duas direções. Na primeira, focaliza-se a discussão sobre algumas concepções de currículo em diálogo com José Gimeno Sacristán, Roberto Macedo e Paulo Freire, a fim de desestabilizar a narrativa do Ministério da Educação (MEC), que posiciona a BNCC como um documento meramente norteador de currículos, revelando sua ação como um currículo prescritivo, tecnicista e meritocrático. A segunda direção diz respeito à BNCC como um objeto não acabado, que constitui um campo de disputa, e as diferentes forças, que atuam no sentido de mobilizar e/ou reificar seus sentidos. Discutem-se os argumentos legitimadores em favor da definição de conteúdos básicos comuns, como, por exemplo, as pesquisas de Michael Young e Demerval Saviani, que defendem a necessidade dessa definição. Para os autores, tal ideia revitaliza “o gerenciamento científico característico das teorias tradicionais do currículo e fortalece a manipulação da educação escolarizada”, além de desconsiderar o “papel dos professores e alunos como sujeitos produtores de conhecimentos valiosos para o currículo” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 89-90).

A partir desse ponto, os autores estabelecem relações entre as organizações internacionais, tais como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as fundações privadas e o próprio Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), a elite capitalista neoliberal e o esforço epistemológico e político, visando à fixação de conhecimentos “básicos” como um objetivo da educação escolarizada. Nesse movimento, os autores contrapõem argumentos daquelas organizações e setores da sociedade civil com o posicionamento de associações brasileiras de estudos curriculares, a saber, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) e a Associação Brasileira de Currículo (ABdC). Para essas associações, algumas questões são colocadas a favor da não publicação de uma base nacional comum curricular, como o fato de não contemplar as dimensões da diversidade na educação brasileira, a problemática centralização no desempenho e na avaliação, a desqualificação do trabalho docente, para dar alguns exemplos. Em grande medida, é pontuado nesse capítulo o posicionamento de tais associações de pesquisa diante do Golpe de 2016, que trouxe “seu autoritarismo, conservadorismo e claro compromisso com a lógica do capital para dentro do processo de elaboração da terceira versão da BNCC” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 98). Nessa direção, os autores mantêm a tônica da obra e apresentam diversos entendimentos sobre o processo de construção da BNCC, em um movimento que busca desnaturalizar os fundamentos e não se exime de pontuar a necessidade do enfrentamento contínuo, sob o risco de homogeneização das diferenças, aprisionamento da educação pública por uma lógica mercadológica e desumanização dos processos dialéticos de construção do conhecimento.

No quarto capítulo – “BNCC e educação das novas gerações: limites conceituais” –, os autores abrem um espaço para problematizar a educação de novas gerações, entendendo a primeira etapa da educação básica também como um campo de disputas e tensões que se expressaram nas diferentes versões do documento curricular. Tal disputa se situa na tensão entre “modelos assistencialistas, de um lado, e escolarizantes, de outro, presentes nas políticas que determinam abordagens de currículo, pedagogia e avaliação para a educação de crianças e jovens” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 101), em torno do que se pensa sobre a educação infantil.

Para os autores, há lacunas na BNCC no que se refere a aspectos considerados importantes para a educação na primeira infância, como brincar, experimentar, realizar atividades de livre escolha para a satisfação de diversas necessidades das crianças. Nesse contexto, criticam o modo de afirmar genericamente noções de cuidado, educação e campos de experiência, presentes na BNCC, documento que, conforme alegam, apresenta, quanto à forma de educar crianças, uma ruptura entre a educação infantil e o ensino fundamental. Em contrapartida, trazem argumentos para pensar uma educação infantil que não se concretiza com um currículo mínimo padronizado, em um movimento presente ao longo da obra.

No quinto e último capítulo – “Habemus Base, mas Habemus Freire” –, são retomadas questões problemáticas acerca da BNCC trabalhadas ao longo do livro, para assim afirmar a necessidade de se buscar alternativas a essa proposta curricular com articulações “necessárias à transformação social e ao desvelamento das causas da desigualdade” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 119). Desse modo, dialogam com a obra de Paulo Freire, que corrobora a ideia de transmissão de conhecimentos padronizados para a libertação e emancipação, sem abrir mão do compromisso com a criticidade. Assim, “sob uma perspectiva freireana, não há o desprezo ao conhecimento acumulado historicamente, mas um cuidado democrático e dialógico na construção da proposta curricular” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 121), salientando a potência da rejeição de uma concepção de currículo como doação/imposição aos sujeitos escolares.

Em todo o livro, os autores se dedicam a problematizar a ideia de conhecimentos que qualificam sujeitos para a atuação no mundo neoliberal, afirmando que a terceira versão da Base tornou-se o “local através do qual conteúdo, coerência e controle estão sendo articulados” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 104). Assim, ao refletirem sobre pesquisas que respaldam a necessidade de uma base nacional comum curricular, que afirmam ser a escola, e a educação escolar, o espaço para a construção de uma cidadania democrática e menos desigual, argumentam que tais estudos ignoram a desigualdade produzida socialmente e na qual a escola é incluída. Ao dar visibilidade a essa discussão sobre escola e sociedade, vão ao encontro de autores como Daniel Friedrich, Bryn Jaastad e Thomas S. Popkewitz (2010), quando estes afirmam que a “missão” empreendida pela escola, ao buscar promover uma sociedade mais igualitária, abre espaço para reforçar epistemologicamente a desigualdade como condição ontológica para pensar sobre e planejar o futuro da sociedade, problema que o campo educacional vem confrontando historicamente.

Argumentam os autores do livro, finalmente, que, se “a escola abraçar a BNCC como prescrição a ser detalhadamente cumprida, colocamos em sério risco os princípios estabelecidos pela Constituição de 1988 no que diz respeito à pluralidade, diversidade e não discriminação. Princípios que se constituem em essência de nossa (frágil) democracia” (Cury; Reis; Zanardi, 2018, p. 129). Ao, aparentemente, tomarem certos pressupostos do campo educacional por certezas no início do livro – os objetivos da educação escolarizada como distribuição igualitária e isonômica do conhecimento visando à construção de uma sociedade menos desigual –, assumiram um risco. De maneira não intencional, poderiam por meio de duplos gestos (Popkewitz, 2009) reforçar epistemologicamente as desigualdades que procuram combater enquanto condição ontológica para pensar e, portanto, construir um certo tipo de educação escolarizada (Friedrich; Jaastad; Popkewitz, 2010).

Entretanto, de forma robusta, contornam esse risco ao explorarem a existência e os limites de outras maneiras de pensar a educação, distintas das suas. Assim, rejeitam não apenas a BNCC como terminada e cristalizada, mas também seus próprios pressupostos, realizando algo afeito àquilo que Butler (2013) chamou de crítica enquanto prática de exposição dos limites do horizonte epistemológico de determinado objeto. Buscando entender os limites da BNCC e dos próprios objetivos e estratégias defendidos na obra, os autores não os assumem como verdades a priori, operacionalizando-os antes como posicionamentos epistemológicos e políticos que foram conscientemente construídos e, desse modo, úteis na luta por outra base nacional comum curricular, democraticamente constituída e que pontue práticas que respeitem a pluralidade e as diferenças sociais.

Referências

BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação – PNE e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 26 jun. 2014. Seção 1, p. 1.

BUTLER, J. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Traduzido por Gustavo Hessmann Dalaqua. Cadernos de Ética e Filosofia Política, São Paulo, v. 1, n. 22, p. 159-179, 2013.

FRIEDRICH, D.; JAASTAD, B.; POPKEWITZ, T. S. Democratic education: an (im) possibility that yet remains to come. Educational Philosophy and Theory, Oxford, v. 42, n. 5-6 p. 571-587, 2010.

POPKEWITZ, T. S. The double gestures of cosmopolitanism and comparative studies of education. In.: COWEN, R.; KAZAMIAS, A. M. (Ed.). International handbook of comparative education. Dordrecht: Springer Science, 2009. p.385-401.

Gabriel Pedro – Mestre em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atua no Grupo de Estudos em História do Currículo, no âmbito do Núcleo de Estudos do Currículo (NEC/UFRJ). E-mail: [email protected].

Juliana Marsico – Doutora em Educação, é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), integra o corpo de pesquisadores do Grupo de Estudos em História do Currículo, no âmbito do Núcleo de Estudos do Currículo (NEC/UFRJ). E-mail: [email protected].

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Inovar o ensino e a aprendizagem na universidade – IMBERNÓN (EA)

IMBERNÓN, Francisco. Inovar o ensino e a aprendizagem na universidade. São Paulo: Cortez, 2017. 128 p. Resenha de: GOULART, Sheila Fagundes; BOLZAN, Doris Pires Vargas. Inovação e protagonismo na universidade. Em Aberto, Brasília, v. 32, n. 106, p. 191-195, set/dez. 2019.

O filósofo espanhol Francisco Imbernón lançou, em 2012, a obra Inovar o ensino e a aprendizagem na universidade, cuja temática é a qualificação dos processos de ensino e de aprendizagem desenvolvidos em instituições de ensino superior. O autor busca alternativas ao modo tradicional de transmissão do conhecimento acadêmico e social ao apresentar sua argumentação acerca do aprimoramento da educação realizada nessas instituições. Ele prescreve um caminho a ser trilhado pelo professor universitário, a fim de que consiga transformar a aula “transmissora de conhecimento” em uma aula “magistral”, incentivando a participação dos alunos nas propostas de seu trabalho pedagógico.

Ao longo dos 19 capítulos, Imbernón nos leva a visualizar a importância dos métodos e das técnicas para a qualificação do processo de ensino desenvolvido nas universidades. O autor pontua a necessidade de uma mudança no sentido da transmissão de conhecimentos acadêmicos e sociais, exigindo que o estudante assuma o protagonismo deste processo ao realizar uma aprendizagem “ativa”. Nessa direção, percebemos três focos convergentes, que são priorizados para a inovação do ensino: o primeiro está na aula expositiva e na importância em torná-la “magistral”; o segundo apresenta o estudante como um “ser” capaz de mobilizar a prática docente; e o terceiro, por fim, trata da formação e do desenvolvimento profissional do professor. Aqui podemos afirmar que a organização do ensino implica um evidente compromisso com a aprendizagem, uma vez que o reconhecimento das demandas da dinâmica pedagógica pode favorecer os processos de aprender dos estudantes.

Partimos do ponto em que Imbernón lança a hipótese de que o envolvimento dos estudantes nos processos de ensino e de aprendizagem os torna capazes de consolidar conhecimentos de forma significativa. Assim, a aprendizagem passiva apontada pelo autor – cujo centro do processo é o professor – precisa transformarse em aprendizagem interativa, na qual o estudante assume também o protagonismo no ensino, colocando-se como participante cooperativo na aula ministrada pelo docente.

Para que esse processo de ensino se torne significativo, o professor precisa se desprender da ideia de que o domínio científico do conteúdo que oferta garante uma aula expositiva ou magistral capaz de levar o estudante a estabelecer relações entre o que aprende na universidade e os desafios do mundo na contemporaneidade.

Assim, uma aula expositiva permite a interação entre alunos e destes com seus professores. Esse processo interativo e mediacional é capaz de promover a interlocução no espaço pedagógico, motivando-os a trabalharem e a refletirem sobre os conteúdos desenvolvidos, de modo que suas competências e suas habilidades sejam aprimoradas ao extremo. Nesse modelo de aula proposto pelo autor, a argumentação e a explicação são componentes de destaque. A argumentação, segundo Imbernón, é um modo de explanação do conteúdo científico que pode levar o estudante a alcançar saberes distintos daqueles que tinha, chamados, comumente, de conhecimentos prévios. Tais conhecimentos se desenvolvem juntamente com os conhecimentos atitudinais e procedimentais. A explicação, por sua vez, pode ser considerada como a forma “adequada” de argumentar, ou seja, ela é a própria didática. Nesse sentido, podemos afirmar que a relação conteúdo e forma constituise em duas faces do processo de ensino.

Com início, desenvolvimento e conclusão, a aula expositiva rompe com a inércia estabelecida pela visão de uma atividade transmissora de conhecimento.

Por meio de perguntas, exemplos, mudanças de assunto, recursos variados, o professor estabelece uma relação de reciprocidade com os estudantes. O início de uma aula magistral deve apresentar elementos que envolvam os estudantes, despertando-lhes o interesse sobre o assunto que ainda não conhecem ou dominam.

Para que tenham o desejo de apropriar-se do conteúdo a ser trabalhado e, também, para que organizem a temática a ser desenvolvida, os estudantes precisam ser mobilizados a se envolverem nas atividades de ensino propostas pelo professor. Este, por sua vez, tem a incumbência de inquietar o aluno por meio de questionamentos e problematizações, despertando a curiosidade e a imaginação necessárias ao processo de aprendizagem. Nessa primeira etapa, Imbernón desenvolve os conceitos de retroação positiva ou descritiva, retroação avaliativa e efeito primazia como elementos orientadores da estruturação inicial da aula. Ao destacar esses conceitos, leva-nos a refletir sobre a importância de valorizarmos o estudante, colocando-o como corresponsável pelo êxito da sua formação, pois um modo de organização que faz o estudante interessar-se pelo processo de aprendizagem resulta no reconhecimento da necessidade de construir novos saberes acadêmicos e sociais.

O desenvolvimento de uma aula é considerado a parte central de todo o processo. Nesse momento, o professor precisa estar atento a sua turma, uma vez que é necessário considerar o tempo e o modo como cada estudante se mobiliza para aprender. Além disso, ao apontar possibilidades de elaboração do conhecimento, cria condições para que o grupo compreenda o assunto tratado, tendo nas atividades um suporte para seu trabalho. Por fim, o encerramento da atividade precisa ser realizado com tranquilidade e sintetizar o que foi trabalhado na aula magistral.

Ainda no primeiro foco, há pequenos capítulos que problematizam as normas de conduta adotadas por professores, destacando a aula expositiva como um processo de comunicação que existe em função da relação professor-estudante. Há também a definição de pautas para a elaboração de um roteiro de aula. A primeira pauta apontada por Imbérnon é a “análise da situação de comunicação”, que incide na observação do contexto em que a aula magistral será desenvolvida; já a segunda, chamada de “delimitação do tema e coleta de informações”, consiste na delimitação do assunto a ser trabalho e na busca por dados que auxiliem em seu desenvolvimento.

Por último, o autor destaca que, para a “elaboração do plano” de aula, é necessário refletir acerca do que queremos que os estudantes aprendam, sobre o quanto eles podem aprender e como podemos facilitar essas aprendizagens.

Em nossa categorização, pontuamos o papel do estudante como o segundo foco tratado por Imbernón. Nos capítulos que compõem a metade da obra, o autor explicita as estratégias para a participação dos alunos em sala de aula, o trabalho em grupo como uma possibilidade metodológica e o estudante como mobilizador do trabalho docente. Esses pontos fomentam a ideia de que as instituições de ensino superior devem primar por aulas nas quais as competências e as habilidades sejam desenvolvidas em detrimento da memorização e da repetição mecânica. Cabe salientar que, segundo o autor, não há modelos metodológicos bons ou ruins, mas práticas de sucesso ou não, realizadas com base em determinado modelo. Nesse sentido, o que importa são as concepções de ensino e de aprendizagem de cada professor. Portanto, o docente precisa revisitar suas concepções a respeito da formação para propor aulas motivadoras, capazes de incentivar a criatividade e a autonomia do estudante. Outro aspecto que precisa ser considerado nesse processo é a perspectiva de inovação pensada a partir da transformação dos modelos tradicionais de ensino, potencializados pelo acesso à tecnologia da informação e da comunicação desenvolvidas na educação superior.

Nesse contexto, não há como o professor reproduzir as mesmas condições e nuances de um ensino tradicional, uma vez que a condução do processo educativo não é unilateral, ou seja, ela acontece como consequência das relações estabelecidas entre todos os seus envolvidos. Logo, para que o estudante assuma o protagonismo do processo formativo é necessário, além do empenho do professor, que ele deseje e, também, se reconheça como capaz de autoformar-se. Cabe a ele construir sua autonomia, neste caso, desprender-se do aval docente, para elaborar saberes a partir de suas necessidades, tornando-se responsável pela sua própria aprendizagem e desenvolvimento.

No terceiro foco delineado, tratamos do desenvolvimento profissional docente. Para Imbernón, o conceito de desenvolvimento profissional não pode ser confundido com o de formação permanente, uma vez que este se dá pelas experiências vividas no contexto laboral e pode possibilitar ou não o progresso na vida profissional dos professores. Ao qualificar sua prática pedagógica, revistar suas crenças e aprimorar os conhecimentos relativos à docência, o professor colabora para o seu progresso profissional e, ainda, coopera para o desenvolvimento coletivo das instituições de ensino nas quais atua. Além disso, o autor registra que o conceito de inovação é uma mistura de “formação e contexto”, logo é preciso que o docente perceba a formação permanente como um elemento dinâmico, que resulta em melhorias sociais, capazes de estabelecer novos modelos relacionais.

Portanto, para que o professor possa contribuir para as mudanças necessárias à inovação do ensino e da aprendizagem, é preciso que busque alternativas para a sistematização qualitativa do trabalho, ampliando as possibilidades de produzir inovações, mobilizando, assim, as concepções docentes sobre esses processos. Nessa perspectiva, a obra de Imbernóm leva-nos a compreender que a educação deve estar intimamente relacionada às mudanças e aos incrementos do contexto social. Logo, o professor precisa transformar sua prática docente, colocando-se como profissional capaz de produzir conhecimento com os estudantes, aberto às novas tecnologias e ao modo de ser e de estar dos demais sujeitos do processo educativo.

A contribuição do autor não marca profícua expressão na área da inovação do ensino e da aprendizagem. Entretanto, ele apresenta de forma bastante didática diretrizes aos professores universitários, que podem contribuir para a qualificação das atividades desenvolvidas na educação superior. Isso porque a qualidade de uma instituição depende das formas de organização do trabalho pedagógico e da sua repercussão no contexto sociocultural dos estudantes. Para que se estabeleça um processo formativo que resulte no desenvolvimento do professor, seja no âmbito pessoal, seja no profissional, é preciso romper com a visão linear da prática educativa.

Observamos que a obra de Imbernón apresenta diretrizes nada complexas, cabendo ao professor universitário aproveitá-las como possibilidade de tornar seu trabalho dinâmico e mobilizador do outro.

Com a intenção de mostrar a importância de desenvolver processos metodológicos que contribuam para a qualidade do ensino e da aprendizagem promovido nas universidades, Francisco Imbernón leva-nos a perceber que é necessária uma mudança epistemológica nos modelos de formação. É imperativo transformarmos os processos acadêmicos, em que a transmissão dos conhecimentos, a memorização e a prática unilateral levam ao posicionamento passivo de estudantes.

A construção de uma aula unitária, na qual o professor dirige seu discurso ao grupo, como unidade, já não tem mais espaço. A possibilidade de avançarmos em direção a uma atividade pautada em perspectiva relacional, na qual estudantes e professores protagonizem os processos de ensinar e de aprender, é a chave de uma dinâmica pedagógica mais eficiente e exitosa, capaz de favorecer a inovação da aula universitária.

A clássica obra de Imbernón problematiza o campo da formação de professores e serve de possibilidade para redefinirmos ações de formação continuada, focando na importância de um desenvolvimento profissional docente marcado por processos auto e interformativos.

Sheila Fagundes Goulart – É doutoranda em Educação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected].

Doris Pires Vargas Bolzan – É professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Departamento de Metodologia do Ensino (PPGE/CE/MEN) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected].

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Assessoria pedagógica na universidade: (con)formando o trabalho docente – BROILO (EA)

BROILO, Cecília Luiza. Assessoria pedagógica na universidade: (con)formando o trabalho docente. Araraquara, SP: Junqueira & Marin, 2015. 264 p. Resenha de: AZEVEDO, Maria Antonia Ramos de: CARRASCO, Ligia Bueno Zangali. Inovação na universidade e o papel da assessoria pedagógica. Em Aberto, Brasília, v. 32, n. 106, p. 185-190, set/dez. 2019.

O livro Assessoria pedagógica na universidade: (con)formando o trabalho docente, escrito por Cecília Luiza Broilo, trata da tese de doutorado da autora, que realizou sua pesquisa por meio da análise da atuação pedagógica das assessorias junto ao trabalho de docentes universitários em três países. A referida obra produziu uma poderosa reflexão acerca da formação pedagógica do docente universitário e da atuação do assessor pedagógico como coparticipante da dinâmica formativa nos espaços institucionais.

Com apresentação de Denise Leite (orientadora da tese) e prefácio de Isabel Alarcão (orientadora de Cecília em Portugal), o livro apresenta uma pergunta central: a ação de assessoria dentro das universidades qualifica e/ou (con)forma o trabalho docente? Denise Leite indica, em sua apresentação, que a pesquisa foi realizada na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), do Brasil, na Universidad de La República (Udelar), do Uruguai, e na Universidade de Aveiro (UA), de Portugal.

Explica, ainda, que a autora possui larga experiência na área, pois atuou profissionalmente como assessora pedagógica.

Já Isabel Alarcão, ex-vice-reitora da UA, traz um breve panorama das transformações na universidade que ocorreram por diversos fatores, entre eles a grande expansão que, em sua opinião, apesar de ser algo positivo, trouxe novas realidades, as quais exigem adaptação. Explica que, como as universidades são instituições por natureza conservadoras, acabam alimentando resistência às mudanças.

Ao explicitar o motivo da escolha do título da pesquisa, a professora Isabel destaca que o foco foi causar reflexão e questionamento sobre o entendimento acerca do ato de formar professores. Para a autora, essa reflexão é fundamental, pois manifesta a urgência de que as universidades criem espaços de ressignificação docente para atuação no ensino, na pesquisa e na extensão, bem como na gestão acadêmica.

Sob a perspectiva de análise do contexto universitário e da correlação com o âmbito pedagógico, é palpável a ideia de que a competência profissional na área de atuação do professor universitário é algo importante e de grande valor, mesmo que seja determinada institucionalmente a exigência de pós-graduação nos níveis de mestrado e doutorado.

É nessa direção que a ideia de profissão e profissionalização da docência toma força e acaba por ser, para a autora, o rumo da pesquisa que se dá no contexto do trabalho docente, pensando mais especificamente na formação pedagógica. Nesse sentido, as ações institucionais que vêm acontecendo, tanto no contexto brasileiro quanto no internacional, devem ter como pilar a busca da construção identitária dos professores que precisam constantemente ressignificar suas ações pedagógicas mediante um processo de desenvolvimento profissional, via assessorias.

Broilo (2015) menciona no texto que, em 1991, em um congresso na Espanha denominado Formación Pedagógica del Professorado Universitário y Calidad de la Educación, houve um grande debate acerca da formação pedagógica do docente universitário. Além de discutir as concepções de docência e de formação desse profissional, Dalceggio (1993 apud Broilo, 2015, p. 37) afirmou que identificou na Universidade de Montreal um importante trabalho de formação e aperfeiçoamento pedagógico do docente. Nessa experiência, as ações estavam atreladas à avaliação institucional como uma “consequência lógica da avaliação do ensino”. No entanto, conclui que as experiências demonstram que “as atividades de avaliação do ensino não serão verdadeiramente eficazes se não forem acompanhadas por medidas, especialmente de valorização do ensino e de aperfeiçoamento pedagógico dos professores” (Broilo, 2015, p. 37).

Em nosso País, com apoio em Masetto (1998), a autora afirma que “os cursos de Ensino Superior no Brasil vêm se caracterizando cada vez mais pela fragmentação do saber e das qualificações profissionais, concentrando-se na formação específica de seus profissionais” (Broilo, 2015, p. 38). Ressalta o fato de que ainda é problemática, no contexto brasileiro, a correlação entre a avaliação de ensino e o trabalho docente de qualidade, no ato educativo de saber ensinar.

Cecilia Broilo segue pontuando diversos estudos – Cunha e Leite (1996); Cunha (1997); Cunha (1998); Scheibe (1987); Bernstein (1990) –, que mostram que os conhecimentos e saberes pedagógicos são pouco valorizados pela docência universitária e que o currículo é visto de maneira enviesada, colocando a imensa inquietação no sentido de buscar uma tomada de consciência de que “ser professor universitário significa antes de tudo ser professor, e ser professor significa relacionarse e envolver-se de forma pedagógica com o ensino” (Broilo, 2015, p. 42).

Por outro lado, a autora alerta que, apesar de não ter delimitada a formação para a docência legítima, o professor universitário muitas vezes valoriza seu status profissional na área em que se formou (médico, engenheiro, bioquímico), desconsiderando a necessária aprendizagem que deve vivenciar para se tornar um docente qualificado. É pertinente que procuremos problematizar a reflexão sobre o papel dos assessores, que necessitam urgentemente buscar igualmente sua identidade como profissionais que devem possuir carga teórica e metodológica de peso nas diferentes áreas de conhecimento para conseguirem, de fato, auxiliar os professores na ressignificação de suas práticas.

A autora analisou os processos formativos das universidades pesquisadas a partir das avaliações externas pelas quais essas universidades passaram.

No Brasil, com o início dessas avaliações por meio do “Provão”, foi possível detectar a necessidade de melhorar os processos formativos junto aos professores.

Já em Portugal, os fatores que têm desencadeado uma maior preocupação com a formação do docente universitário, além da avaliação, são: o financiamento, o processo de acreditação dos cursos e as orientações da Declaração de Bolonha. Em todas as universidades pesquisadas, há o fato da expansão de vagas, o que muda o perfil dos estudantes nesses locais. Assim, é fundamental repensar os processos de ensino e de aprendizagem na universidade.

No Uruguai, na Universidad de La República, a autora teve a oportunidade de acompanhar a Comissão Setorial de Ensino, que desencadeava ações pedagógicas e acompanhava o trabalho docente e que muito contribuiu para melhorar a formação do professor.

Em Portugal, na Universidade de Aveiro, mesmo não havendo um setor específico de assessoria pedagógica, há o Departamento de Didática e Tecnologia Educativa e o de Ciências da Educação, os quais promovem programas e projetos para atender às necessidades formativas. Dessa forma, há investimento institucional para a organização de projetos pedagógicos.

A autora acredita que deva acontecer na universidade forte investimento no setor de assessoramento pedagógico, levando-se em consideração as especificidades dos diferentes campos de conhecimento e o envolvimento das propostas formativas com as capacidades humanas e técnico-profissionais específicas. Retoma a tentativa de Boaventura Souza Santos (1975) de repensar a universidade, onde ele destaca a importância da democratização pedagógica e administrativa para que a instituição realmente possibilite “a produção de conhecimento, a formação de profissionais e o desenvolvimento de novos pesquisadores” (Broilo, 2015, p. 53-54).

A obra retoma a questão da pedagogia universitária, lembrando que não há uma pedagogia, mas diversas pedagogias e que é por meio desse campo de conhecimento que se pode desenvolver um novo olhar para o processo de ensinar e de aprender. Assim, o estudo analisa a atuação das assessorias pedagógicas como meio de qualificar o ensinar e o aprender na universidade, pontuando que no Brasil há várias universidades que possuem setores pedagógicos para acompanhamento dos processos voltados ao ensino na instituição.

Explicando sua metodologia de pesquisa, a autora afirma que seu estudo foi desenvolvido sob a perspectiva qualitativa e que se baseou em Franco (1998) para elaborar as categorias de análise, elaboração essa efetuada a priori e a posteriori, de acordo com o referencial teórico e com sua experiência profissional na área pedagógica. Em seguida, incluiu outros elementos a partir das entrevistas e das leituras realizadas no decorrer da coleta de dados. Assim, as dimensões de análise foram definidas: a) professores universitários – quem são e o que fazem em seus espaços institucionais; b) saberes profissionais – pedagógicos, formação profissional, curricular e experiência; c) inovação pedagógica como prática de construção de conhecimento; d) atuação pedagógica.

A partir dessas dimensões, a autora levanta sete categorias que nos levam a uma reflexão importante:

1) Professores como intelectuais públicos e formativos – a reflexão sobre o docente como sujeito público, comprometido com os aspectos sociais e com os paradigmas emancipatórios, destaca-se nessa categoria. Nela também se expressa a necessidade de que as assessorias pedagógicas institucionais invistam fortemente no empoderamento de seus professores como docentes intelectuais historicamente situados.

2) Construção dos conhecimentos e dos saberes pedagógicos dos professores – essa perspectiva se direciona à constituição dos saberes e à construção do conhecimento dos docentes sobre a prática pedagógica. Entretanto, a autora salienta que essa construção se dará, de fato, quando os professores exercerem plenamente sua autonomia nas trajetórias profissionais. Para tal, é papel dos assessores pedagógicos subsidiarem os docentes com aportes teórico-conceituais e pedagógicos.

3) Inovação pedagógica na educação universitária – nesse caso, a inovação é compreendida como “um processo descontínuo de ruptura com os paradigmas tradicionais vigentes na educação, no ensino e na aprendizagem ou como uma transição paradigmática, em que ocorre uma reconfiguração de saberes e poderes” (Leite, 2002, p. 49 apud Broilo, 2015, p. 87). A inovação pedagógica deve estar fortemente vinculada à proposta formativa dos cursos nos quais os professores estão envolvidos, exigindo que sejam protagonistas ao pensar e ao executar tais propostas.

4) Interdisciplinaridade como possibilidade para inovação pedagógica – essa categoria traz reflexões sobre a interdisciplinaridade como um exercício epistemológico e uma alternativa de inovação educativa. A interdisciplinaridade deve ser compreendida nas diferentes áreas de conhecimento, assim como nas práticas docentes (metodologia interdisciplinar) ao serem desencadeadas.

5) Sala de aula como espaço de ruptura com o ensino tradicional – nessa categoria, há um olhar sobre as relações existentes dentro e fora desse espaço. Há pertinência nessa colocação, entendendo o espaço de aula como um território de intervenção do pensar e do fazer cidadão.

6) Autoinvestigação em uma abordagem reflexiva e construtiva – fundamentando-se em Schön (1992) e Zeichner (1993), traz a ideia do professor como um profissional prático-reflexivo que constrói seus conhecimentos e saberes docentes a partir da reflexão sobre a ação. Tem o intuito claro de ressignificação de suas práticas e de seus saberes.

7) Reconceituação da supervisão de atuação pedagógica na universidade – a concepção de supervisão deve ser entendida como um ato propulsor de ideias e ações docentes e não como um olhar punitivo ou fiscalizador por parte dos assessores. Não basta importar a ideia da supervisão contida no âmbito da educação básica para o ensino superior. É preciso reconhecer as especificidades da formação acadêmica e organizar os espaços institucionais de formação continuada, levando sempre em conta os desafios, dilemas e superações que emergem no exercício profissional de quem está frente a frente com os alunos, com a realidade, com o conhecimento e com o mundo do trabalho.

A autora traz, a partir das análises das entrevistas realizadas nas três universidades e contando com sua vasta experiência no campo da formação docente pedagógica, as seguintes considerações:

−− Muitas instituições têm realizado ações pedagógicas inovadoras, buscando novos caminhos de atuação no sentido de romper com o ensino tradicional e tornar a educação mais significativa. No entanto, ainda existe muita dificuldade de compreensão acerca da importância do trabalho pedagógico na universidade, seus espaços institucionais de formação continuada e principalmente sobre a concepção e atuação profissional que os assessores precisam assumir para que possam efetivamente contribuir com a qualificação do trabalho pedagógico.

−− É fundamental a existência de um setor pedagógico nas universidades que trabalhe na direção da formação docente, como apoio, parceria. Para que “haja inovação efetivamente como prática de construção de conhecimento, a fim de recuperar a prática centrada na aprendizagem […] rompendo com a repetição e a reprodução dos conhecimentos” (p. 238).

É possível concluir que as inovações pedagógicas podem ressignificar a ação do professor desde que existam mudanças paradigmáticas em relação à compreensão de conhecimento que impacta sua profissionalidade docente. Também as inovações podem impactar a forma como os professores se apropriam de suas experiências, sempre que suas intervenções teórico-metodológicas estiverem acompanhadas de reflexões e significâncias. Nesse caso, as assessorias pedagógicas representam um papel importante no trabalho conjunto e de respeito às singularidades e sincronicidades inerentes às diferentes áreas de conhecimento.

Referências

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CUNHA, M. I. Aula universitária: inovação e pesquisa. In: LEITE, D.; MOROSINI, M. (Orgs.). Universidade futurante: produção do ensino e inovação. Campinas, SP: Papirus, 1997. p. 79-94.

CUNHA, M. I. O professor universitário na transição de paradigmas. Araquara, SP: JM Editora, 1998.

CUNHA, M. I; LEITE, D. Decisões pedagógicas e estruturas de poder na universidade. Campinas, SP: Papirus, 1996.

DALCEGGIO, P. La formación pedagógica de los profesores de la enseñanza superior: informes sobre actividades de formación pedagógica durante los últimos años. In: LORENTE, L. M. L. Formación pedagógica del profesorado universitário y calidad de la educación. Valencia, Espanha: Servei de Formación Permanente, Universidad de Valencia y C.I.D.E., Ministério da Educación y Ciencia, 1993. p. 31-64.

FRANCO, M. E. D. P; WITTMANN, L. C. Experiências inovadoras/exitosas em administração da educação nas regiões brasileiras. Brasília: Inep, Fundação Ford, Anpae, 1998. 115 p. (Série Estudos e Pesquisas, Caderno nº 5).

LEITE, D. Innovaciones em la educación universitária. In: CONTERA, C. Primer foro innovaciones educativas em la ensiñanza de grado. Montevideo, Uruguay: Comisión Sectorial de Ensiñanza, Universidad de La República, 2002. p. 45-53.

MASETTO, M. Professor universitário: um profissional da educação na atividade docente. In: MASETTO, M. Docência na universidade. Campinas, SP: Papirus, 1998. p. 9-26.

SANTOS, B. S. Democratizar a universidade: universidade para quê? Para quem? Coimbra, Portugal: Centelha, 1975. (Estudos Nosso Tempo, 5).

SCHEIB, L. Pedagogia universitária e transformação social. 1987. 187 f.

Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 1987.

SCHÖN, D. La formación de profisionales reflexivos: hacia um nuevo diseño de la ensiñanza y el aprendizaje em las profesiones. Madrid: Paidós, 1992.

ZEICHNER, K. A formação reflexiva de professores: ideias e práticas. Lisboa, Portugal: Educa Professores, 1993.

Maria Antonia Ramos de Azevedo – Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutora em Pedagogia Universitária na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), é vice-diretora do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, onde é professora na área de Didática. É líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Pedagogia Universitária (Geppu/Unesp). E-mail: [email protected].

Ligia Bueno Zangali Carrasco – Mestra em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro e doutoranda em Educação na mesma universidade, é diretora de escola na rede municipal de ensino de Rio Claro e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Pedagogia Universitária (Geppu/Unesp). E-mail: [email protected].

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A literatura infantil e juvenil em língua espanhola: história, teoria, ensino – CARDOSO (EA)

CARDOSO, Rosane Maria (Org.). A literatura infantil e juvenil em língua espanhola: história, teoria, ensino. Campinas, SP: Pontes Editores, 2018. 407 p. Resenha de: MONTEMEZZO, Luciana Ferrari. Literaturas para o ensino de língua espanhola. Em Aberto, Brasília, v. 32, n. 105, p. 205-210, maio/ago. 2019.

Em 2018, a Pontes Editores brindou-nos com a publicação da obra A literatura infantil e juvenil em língua espanhola: história, teoria, ensino. Organizada pela professora Rosane Maria Cardoso, da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), vem cumprir o importante papel de trazer à tona reflexões acerca do papel dos professores de línguas adicionais perante grupos discentes variados: desde o ensino básico até a formação de professores e seus cursos de licenciatura.

A preocupação com o tema, conforme conta a organizadora na apresentação da obra, surgiu das inquietudes internas dos alunos do curso de licenciatura em Letras. Ansiosos pelo ingresso em sala de aula, esses alunos projetam novas possibilidades para o ato de ensinar. Durante esse processo, percebem que, via de regra, a literatura que aprendem na universidade acaba ficando de fora da sala de aula, no ensino básico. Ali, por questões que se referem sobretudo às exigências de avaliações em que a literatura não é contemplada, há espaço apenas para o ensino de língua adicional, em escassas horas semanais.

Identificado o desafio, surge o grupo de pesquisa “Didáticas de Língua e de Literatura: leituras na educação básica”, que busca pensar, em conjunto, alternativas para essa lacuna. E, das reflexões do grupo, nasce o livro aqui resenhado.

A inserção da literatura em aulas de língua não apenas pode ser implementada, como tende a ser um de seus braços mais destacados. Quando se trata especificamente de literatura em língua espanhola, o farto material e a qualidade da literatura produzida no mundo hispânico favorecem a seleção de textos que podem estimular os alunos a conhecer a língua, por conseguinte, sua literatura e, por meio desta, também a cultura e a história dos países que têm o espanhol como língua oficial.

Isso significa, para os alunos brasileiros, a oportunidade de ampliar o conhecimento sobre os países fronteiriços, com os quais compartilhamos hábitos e paisagens. Por exemplo, lendo os contos do uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937), o estudante brasileiro perceberá a existência de paisagens e costumes muito semelhantes aos do Sul do Brasil. Tal reconhecer-se no outro poderá provocar um importante movimento identitário, de fundamental relevância para despertar o interesse do discente, que seguirá estudando e descobrindo com autonomia.

Ciente desse quadro e buscando propor respostas às inquietações de professores e alunos, a coletânea organizada pela professora Rosane Maria Cardoso conta com artigos de pesquisadores de vários países de fala hispânica: Espanha, Peru, Uruguai, Colômbia, Guatemala e Venezuela. Inclui também artigo de autora brasileira cuja pesquisa lança um olhar estrangeiro sobre o objeto, ressignificando-o.

Tal fato demonstra não apenas a capacidade de integração e articulação entre pesquisadores, mas também a pertinência de seus estudos.

Além disso, esta obra marca posição em uma área que, infelizmente, ainda carece de estudos, sobretudo no Brasil. Se a literatura, em termos gerais, vem merecendo cada vez menos atenção das políticas culturais no âmbito brasileiro, o que se pode esperar da fatia dedicada aos pequenos leitores? Como muito bem assevera Gretel Eres Fernández, no prefácio que acompanha a publicação, nosso país atravessa um momento delicado, em que o ensino da língua espanhola é visto com certo desprestígio. Nesse sentido, trazer à luz essa obra anima e revigora todos aqueles que acreditam que o ensino de uma língua adicional é primordial, não apenas para a comunicação, mas também para a ampliação de horizontes do ser humano, no sentido mais incondicional de sua existência. Nada melhor do que a literatura para estabelecer essa ponte entre o que é próprio e o que é alheio (Carvalhal, 2003).

A obra está dividida em três partes: “Sobre a literatura infantil em língua espanhola”, “Literatura infantil e práticas de leitura” e “Leituras da literatura infantil em língua espanhola”. Essa organização responde a perspectivas distintas, mas não excludentes, uma vez que o principal objetivo da publicação é ampliar o diálogo sobre o tema. Diante da impossibilidade de resenhar cada um dos capítulos, destacarei brevemente apenas um de cada parte, à guisa de exemplo.

O segundo capítulo da primeira parte, de autoria de Elvira Cámara Aguilera, “Panorama general de la LIJ y su traducción en España: evolución y tendências”, oferece ao leitor um panorama da produção literária em literatura infantil e juvenil (LIJ) na Espanha, a partir de seus processos tradutórios. Remontando aos primórdios da literatura nesse país, ao citar Gonzalo de Berceo, poeta do século 13, a autora recompõe a trajetória da produção literária para crianças e destaca também as relações que a referida produção estabelece com obras estrangeiras.

El origen de la LIJ española está intrínsecamente ligado a la traducción. Así, la obra Kalila wa-Dimna (Calila e Dimna), que serviría de inspiración a Don Juan Manuel para escribir El Conde Lucanor, llega hasta nosotros desde toda una serie de traducciones y cuyo punto de partida es la obra hindú Panchatantra, del 200 a. C. (Cámara Aguilera, 2018, p. 38).1 A consequência de uma tradição fundada na diversidade pode resultar na intensificação desse processo, como conclui a própria autora, quando menciona o boom da literatura infantil e juvenil na Espanha dos anos 1980. Segundo ela, o fato de que, paralelamente ao espanhol, convivem no país outros idiomas cooficiais, – catalão, vasco e galego – certamente contribuiu para o incremento da produção de obras infantojuvenis. Tal diversidade gerou, por conseguinte, uma posição de destaque para a área, no que se refere a traduções.

Hay que destacar que fue el segundo subsector con mayor porcentaje de traducciones (37,5 %), solo por detrás y a una escasa diferencia de Tiempo Libre (38,8 %). La principal lengua de traducción fue el inglés (50,2 %), seguido por el francés (16 %), el castellano (10,4 %) y el italiano (6,8 %). (Cámara Aguilera, 2018, p. 43).2 Esse panorama somente é possível graças ao apoio de políticas educacionais que fomentam a leitura, a educação e a formação cidadã. Além dessas, merecem destaque as atividades promovidas pela Asociación Nacional de Investigación en Literatura Infantil y Juvenil (ANILIJ), que articula pesquisadores e promove intensos diálogos entre pares. Com base em tais observações, a autora explicita avaliações e processos tradutórios desenvolvidos em aula, com vistas a melhor abordar o público infantil. De acordo com a pesquisadora, as investigações que reúnem tradução e literatura infantil e juvenil precisam levar em conta a opinião – ainda que empírica – das crianças, embora essa ainda não seja uma prática efetiva. Afinal, são elas o objetivo final do trabalho de autores e tradutores.

Na segunda parte, o capítulo intitulado “Literatura eletrônica em língua espanhola: seleção e aplicabilidade de obras na escola”, de Naiane Carolina Menta Três, do Brasil, discute os novos desafios de (…) investigar sobre o ensino da língua espanhola na cibercultura. Sendo assim, define-se a problemática: “Como a literatura eletrônica, voltada ao público infantil, pode ser lida na escola e auxiliar na formação de leitores em língua espanhola?” (Menta Três, 2018, p. 254).

A pesquisadora chama a atenção para os espaços internos das escolas, como laboratórios de informática e bibliotecas, considerando-os ambientes privilegiados para a formação de novos leitores na era digital. Ressalta, nesse sentido, a fundamental importância da escola, uma vez que esta poderá orientar as leituras do público infantojuvenil, tendo em vista a diversificada – e nem sempre confiável – oferta virtual. Contudo, a autora apresenta um problema relevante: a formação de professores ainda é restrita à literatura impressa. Diferencia a segunda – que apenas foi digitalizada –, da primeira, que foi produzida por meio digital, o que a caracteriza como “um objeto digital” (Menta Três, 2018, p. 257).

A pesquisadora ressalta, por outro lado, as desigualdades das escolas brasileiras: em algumas, há acesso irrestrito à tecnologia, enquanto em outras, professores e alunos ainda estão limitados a técnicas rudimentares. Entretanto, em sua opinião, o telefone celular – tido como vilão em sala de aula – pode transformarse em um aliado, desde que tenha seu uso mediado por um profissional. Sob essa perspectiva, a autora conclui seu texto com a esperança de que todos os alunos possam ter acesso à literatura digital e, por conseguinte, motivar-se ante essa arte tão importante e transformadora.

Na terceira parte da obra, o texto intitulado “El paraíso perdido de la infancia en Paulina de Ana María Matute”, de autoria de Sara Núñez de la Fuente (Espanha), trata do livro, publicado em 1960, por Ana María Matute (1925-2014). A partir da contextualização da obra e da autora no âmbito da literatura espanhola contemporânea, a pesquisadora enfatiza suas relações com outros autores espanhóis que a crítica convencionou chamar filhos da guerra: “niños asombrados por la perplejidad con que tuvieron que asumir la guerra civil [en] el tránsito de la infancia a la adolescencia”.

Refere-se, portanto, àqueles autores que começaram a publicar na década de 1950, em plena ditadura franquista, para os quais a metáfora representou muito mais do que um recurso expressivo e acabou tornando-se uma forma de resistência.

Nesse contexto, surge a infância como símbolo de paraíso perdido, que pode ser interpretado como a perda da liberdade e dos direitos individuais e coletivos de uma sociedade que vive sob forte repressão. A autora relaciona, também, a obra infantil de Matute com sua obra para público adulto, evidenciando que as fronteiras, no caso matuteano, não são assim tão inflexíveis. Ao mencionar a obra adulta Paraiso inhabitado (2008), a pesquisadora destaca o papel que teve a infância na vida da protagonista Adriana e a compara com protagonistas de outros romances de Matute: Sol Roda, de En esta tierra (1955), Mónica, de Los hijos muertos (1958), e Matia, de Primera memoria (1959).

De acordo com a autora, há muito de autobiográfico em Paulina, sobretudo no que se refere à condição de saúde da protagonista, que, assim como aconteceu com Matute na infância, se recupera de longa enfermidade em companhia de seus familiares, em espaço rural. Ali, a literatura é a melhor companhia para a menina que precisa aliar-se ao tempo para obter a cura de sua enfermidade.

Siguiendo un esquema literario que presenta los tópicos de Heidi (1880), como el amor por la naturaleza y la relación de la niña con su abuelo, la escritora ambienta su historia en el espacio real de Mansilla de la Sierra, un pueblo de La Rioja donde solía veranear con su família. (Núñez de la Fuente, 2018, p. 373).3 3 Seguindo um esquema literário que apresenta os tópicos de Heidi (1880), como o amor pela natureza e o relacionamento da garota com seu avô, a escritora ambienta sua história no espaço real de Mansilla de la Sierra, uma cidade de La Rioja onde ela costumava passar o verão com sua família (Núñez de la Fuente, 2018, p. 373). (Traduzido por Jessyka Vásquez).

A vigorosa e bem fundamentada análise simbólica do romance demonstra, uma vez mais, os objetivos peculiares da obra matuteana voltada para a infância: o duplo destinatário e a multiplicidade de significações. Levando em conta que, em alguns casos, os adultos “participam” da leitura de seus filhos, Matute constrói narrativas que servem para ambos os públicos. Quando um adulto lê para um filho, não o faz de forma passiva. Se se envolve com a narrativa – o que é comum quando se trata da literatura de Matute – certamente aprofundará, a partir dela, muitas reflexões e será, ele também, mais um leitor.

Por outro lado, um texto baseado em relações simbólicas tende a dificultar o trabalho de censores que, em regimes de exceção, costumam identificar na arte um de seus mais importantes inimigos. A autora conclui seu texto destacando a influência que teve Elena Fortún (1886-1952) na obra de Ana María Matute. Esse tema, ao que tudo indica, merece pesquisas mais aprofundadas, uma vez que a autora madrilenha, exilada na Argentina, foi importante referencial para vários autores da geração de 1950.

É preciso enfatizar, diante do exposto, sem medo de ser redundante, que a obra organizada pela professora Rosane Maria Cardoso é de suma importância no contexto atual. Além de tudo o que já foi dito, vale ressaltar que a referida obra apresenta textos escritos originalmente em português e em espanhol. O que pode, de início, parecer um descuido é, na verdade, parte da proposta investigativa: que nos entendamos sem barreiras, ou melhor, que não avaliemos as diferenças como obstáculos ao entendimento. Todos somos diferentes e, a partir de nossas diferenças – que são constitutivas –, podemos nos irmanar, se nos une um objetivo comum.

Nesse caso, o amor pelas palavras, pela arte literária, pelo ensino de língua espanhola (e suas respectivas literaturas) e, por fim, pela esperança do que as crianças e os adolescentes significam neste mundo já um pouco corrompido pelos adultos: um futuro melhor, em que reinem a paz e a tolerância entre todos.

Referências

CÁMARA AGUILERA, Elvira. Panorama general de la LIJ y su traducción en España: evolución y tendências. In: CARDOSO, Rosane Maria (Org.). A literatura infantil e juvenil em língua espanhola: história, teoria, ensino. Campinas, SP: Pontes Editores, 2018. p. 37-56.

CARVALHAL, Tania Franco. O próprio e o alheio. São Leopoldo, Ed. Unisinos, 2003.

MATUTE, Ana María. Paulina, el mundo y las estrelas. Barcelona: Editorial Garbo, 1960.

MENTA TRÊS, Naiane Carolina. Literatura eletrônica em língua espanhola: seleção e aplicabilidade de obras na escola. In: CARDOSO, Rosane Maria (Org.). A literatura infantil e juvenil em língua espanhola: história, teoria, ensino. Campinas, SP: Pontes Editores, 2018. p. 253-268.

NÚÑEZ DE LA FUENTE, Sara. El paraíso perdido de la infancia en Paulina de Ana María Matute. In: CARDOSO, Rosane Maria (Org.). A literatura infantil e juvenil em língua espanhola: história, teoria, ensino. Campinas, SP: Pontes Editores, 2018. p. 365-387.

Notas

1 A origem do LIJ espanhol está intrinsecamente ligada à tradução. Assim, a obra Kalila wa-Dimna (Calila e Dimna), que inspiraria Dom Juan Manuel a escrever O Conde Lucanor, chega até nós em toda uma série de traduções e cujo ponto de partida é a obra hindu Panchatantra, de 200 a. C. (Cámara Aguilera, 2018, p. 38). (Traduzido por Jessyka Vásquez).

2 Cabe destacar que foi o segundo subsetor com a maior porcentagem de traduções (37,5%), só ficou atrás e a uma ligeira diferença de Tempo Livre (38,8%). O principal idioma da tradução foi o inglês (50,2%), seguido pelo francês (16%), espanhol (10,4%) e italiano (6,8%). (Cámara Aguilera, 2018, p. 43).( Traduzido por Jessyka Vásquez).

Luciana Ferrari Montemezzo – Professora de Literatura Espanhola e Tradução na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), desde 1996, e, atualmente, em estágio pós-doutoral na Facultad de Traducción e Interpretación da Universidad de Granada, Espanha. E-mail: [email protected].

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Literatura infantil brasileira: uma nova / outra história – LAJOLO; ZILBEREMAN (EA)

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: uma nova / outra história. Curitiba: PUCPress; FTD, 2017. 152 p. Resenha de: SILVA, Raquel Souza da; CAMPOS, Cleide de Araúo. Revisitando a história da literatura infantil e juvenil brasileira. Em Aberto, Brasília, v. 32, n. 105, p.199-203, maio/ago. 2019.

A leitura do livro Literatura infantil brasileira: uma nova / outra história, de Marisa Lajolo e Regina Zilberman, traz à tona outros olhares para o universo da literatura infantil e juvenil brasileira, centralizando uma produção diferenciada nos últimos trinta anos. A obra possui caráter de continuidade da história literária já registrada, entretanto, com uma perspectiva que ultrapassa a menção cronológica de obras e de autores, objetivando ampliar os conhecimentos sobre esse gênero literário em contexto nacional de modo mais analítico. Estruturalmente, o livro está dividido em quatro grandes eixos. O primeiro deles diz respeito à natureza da literatura infantil e juvenil além-livro impresso: há o detalhamento das discussões sobre o futuro do texto literário em papel, o que é o livro, o que constitui a arte literária, as novas perspectivas e os nomes representativos da produção para crianças e jovens na era digital e sobre as relações entre o tradicional e a novidade, entre o impresso e o digital. O segundo eixo trata da força que as instituições têm sobre a literatura infantil: são discutidas as influências do mercado editorial sobre esse gênero literário, bem como a adequação e a capacitação das figuras que compõem uma obra – como o escritor, o ilustrador, o designer gráfico etc.; faz-se ainda debate sobre a intervenção da escola e do Estado no processo de formação leitora de crianças e jovens. No terceiro eixo, há um grande arcabouço de exemplos e breves análises de autores e obras que caminham sob um novo viés estético da criação literária, em que novas temáticas são pensadas, como a figura  não estereotipada do indígena, havendo também o destaque para a linguagem não verbal nas obras destinadas a crianças e jovens. Por fim, o último eixo está relacionado à questão da possibilidade de haver livro e leitura além-universo escolar, com discussões e menção a autores que estão à margem das paredes escolares, mas que se revelam muito próximos do gosto do público mirim.

De maneira geral, as autoras trazem reflexões e questionamentos especialmente para pensar o futuro do livro, o mercado editorial, o avanço das técnicas oferecidas pelo mundo digital, a função da escola e o papel do Estado nesse processo. Elas apontam possíveis explicações para a disseminação de obras cada vez mais interativas e de materialidades diversas nas produções para o público infantil e juvenil, como a corrida da indústria do livro, em que a lógica neoliberal predomina.

Para as pesquisadoras, é “nesse cenário globalizado e economicamente vicejante que escritores e ilustradores têm produzido muitos e belos livros” (Lajolo; Zilberman, 2017, p. 77). Seja ela impressa ou em ambiente virtual, os profissionais que produzem a obra literária procuram atender os diferentes gostos do público leitor ao qual ela se destina e têm forte reconhecimento quando recebem prêmios, distribuídos nacional e internacionalmente. Além disso, a proximidade com o público tem se solidificado cada vez mais, se pensarmos que os autores frequentam as mesmas feiras literárias que os consumidores, visitam escolas, promovem encontros de diversas naturezas, a fim de estreitar essa relação. Tais movimentos permitem conhecer e entender as crianças e os jovens mais de perto, fato que há poucas décadas não era visto como tão importante.

Diante das dinâmicas e das múltiplas alternativas para ler livros de literatura infantil e juvenil, as autoras convidam o leitor a adotar “uma nova e uma outra” posturas em relação à leitura literária nos dias atuais, que são definidas conforme a necessidade do público e das rápidas mudanças que um mundo globalizado impõe a ele. Assim, o suporte e o destino do livro ultrapassam a tradição, saltando do patamar do impresso e da linguagem uniformizada para as hipermídias e para as múltiplas formas de expressão, bem como rompendo cada vez mais com paradigmas que estigmatizam as histórias ficcionais ao longo da tradição literária.

Nesse contexto, é compreensível que constituir um arcabouço da novíssima história da literatura endereçada ao público infantil e juvenil siga uma linha cronológica e restrita a nomes específicos. O movimento que o grupo produtor e receptor dessa literatura realiza é tão acelerado, que torna efêmera qualquer proposição de listagem de autores e de obras, por isso destacamos a escolha e a justificativa das autoras logo na introdução do livro aqui discutido. As estudiosas seguem, portanto, analisando alguns títulos de nomes representativos para falar do tema proposto, mostrando que conhecer autores e suas obras é importante, mas que entender o contexto de produção e de recepção deles também é essencial. Tudo isso pode minimizar o risco de se continuar a pensar em gêneros literários apresentados de uma única maneira, como se o leitor também fosse uniforme, quando na verdade sabemos que sua diversidade é imensa e considerar sua subjetividade é indispensável.

Levando em consideração alguns dos desafios impostos pela contemporaneidade, a literatura infantil e juvenil vem se reinventando na busca por mercados e leitores nascidos em plena era digital. Nesse sentido, procurando estabelecer algumas considerações acerca dos últimos trinta anos de produção para o público mirim, são apresentados alguns autores que ocupam o cenário das plataformas virtuais. Há, ainda, menção a autores que abordam a temática indígena sob um olhar diferenciado do que comumente se propagou até agora. Também recebem destaque reflexões sobre a linguagem visual, com sua importância cada vez mais reconhecida.

Em relação às obras multimidiáticas, as pesquisadoras atentam para a possibilidade de autores menos visados circularem por gêneros que ainda encontram resistência para serem publicados, como o texto poético. Sobre “um novo indianismo”, mencionado na obra, é possível realçar que todos os autores apresentados por Marisa Lajolo e Regina Zilberman prezam pelo reconhecimento próprio da cultura narrada, afirmando as identidades locais e rompendo com os estereótipos fortemente marcados sobre a figura do indígena ao longo da tradição literária como um todo, não só da infantil e juvenil. No que diz respeito ao texto não verbal, o diferencial são as inovações proporcionadas pelo universo virtual, em que, transgredindo “as técnicas sugeridas pelos meios de comunicação do mundo do impresso, a tecnologia digital suscitou novas possibilidades de expressão que repercutem positivamente na produção de livros para crianças” (Lajolo; Zilberman, 2017, p. 101-102). Assim, reconhecemos a importância de diálogo entre os suportes, lembrando que diversificálos pode possibilitar o interesse e a ampliação de repertório leitor para crianças e jovens.

Como mencionado anteriormente, as autoras também se preocupam em discorrer sobre em que medida a escola atual (não) realiza a mediação das novidades da produção literária destinadas a crianças e a adolescentes. Além do mais, a intervenção estatal, que gerencia o movimento escolar, também é apresentada como forte influenciadora sobre como se entende a produção literária infantil e juvenil.

Elas problematizam essa força institucional, por vezes negativa, pontuando que, no Brasil do século 21, “livros para crianças e jovens continuam, salvo em fugidios momentos de intervenção e vanguarda, gerenciados pelo discurso didático e ideológico de órgãos centrais da Educação e da Cultura” (Lajolo; Zilberman, 2017, p. 68).

Percebendo o cenário exposto, ainda que ações exitosas aconteçam, a figura do Estado sobre a escola caminha contramão quando, por exemplo, ele ainda mantém a prática de destinar para as instituições de ensino obras encomendadas ao seu gosto pragmático e distante das possibilidades de constituição de sujeitos que repensem seu papel social. Muitas editoras, nesse caso, não ficam para trás, priorizando sua lógica mercadológica e atendendo à demanda estatal, sem necessariamente prezar as obras que centralizem a natureza estética como indispensável na formação de leitores. Sabemos que isso não acontece por acaso, pois os encaminhamentos dessas instituições são pensados com vistas à tentativa de formar um público que não questione a sua hegemonia.

Feito esse contexto, voltamos à proposição inicial das autoras e destacamos que, de acordo com o prefácio escrito por Roger Chartier, desde o século 18, a definição do objeto livro é associada à ideia de “originalidade da escritura” e de “propriedade literária de seu autor”. Diante dos excertos, constatamos que o objeto livro ainda mantém a sua especificidade inicial, mas que vem se reformulando a cada época. É por isso que uma das propostas discutidas na obra é a relação entre o impresso e o digital, pois, no mercado editorial do livro, é evidente o cenário de mudanças de suportes que a literatura infantil e juvenil vem passando. Tais desdobramentos não poderiam ser muito diferentes, afinal, as crianças e os jovens estão cada vez mais imersos na era tecnológica desde muito cedo, e negar o contexto sociocultural do público ao qual uma obra se destina é também negar a matéria viva que constitui a literatura: o tempo, o espaço e as vivências de seus autores e de seus receptores. Logo, quando a proposta maior é formar leitores, o menos ideal a se fazer é restringir ao público a diversidade de linguagens em que, cada vez mais acelerada, caminha a produção literária infantil e juvenil.

O suporte, a materialidade do livro, vem resistindo e se ressignificando perante as diversas possibilidades de funcionalidades e de expansão tecnológica. Marisa Lajolo e Regina Zilberman pontuam em suas análises que escritores e editoras acompanham uma diminuição da cultura impressa e investem na modernização de suas produções literárias para crianças e jovens. Estes são os pontos cruciais para as autoras quando elas conceituam o que é o livro, suas implicações e suas pluralidades. Ao longo de toda a obra aqui discutida, reforça-se a constituição da literatura infantil e juvenil brasileira nas três últimas décadas, pontuando as evoluções mais significativas ocorridas no decorrer dos últimos tempos.

As estudiosas salientam que as obras infantis são produzidas em múltipla autoria (escritores, ilustradores, designers gráficos, editores e outros). Elas chamam atenção para o Ciberespaço, definido como um ambiente virtual que pode servir de suporte para a criação e a circulação das obras literárias. Esse espaço torna as fontes de informação cada vez mais acessíveis e mais rápidas, facilitando o digital, mas sem negar o suporte impresso, podendo, inclusive, dialogar com ele.

Em virtude do acesso às tecnologias digitais de informação e das múltiplas plataformas, os textos que circulam na sociedade são cada vez mais multimodais, favorecendo as variadas formas de leituras entre crianças e jovens. Assim, o modo de ler um livro digital é diferente, tanto pelo fato do público ser diversificado quanto pelas inúmeras formas de comunicação, que inevitavelmente a era tecnológica proporcionou.

Por fim, realçamos o diferencial que Marisa Lajolo e Regina Zilberman deram ao tratar da história da literatura infantil nas últimas décadas. Desta vez, elas nos convidam a atentar para o fenômeno das rápidas mudanças em relação às obras destinadas para crianças e jovens, justificando que essa aceleração decorre principalmente por conta do avanço das tecnologias, da corrida do mercado editorial e da própria sociedade, que anseia por novidade e está cada vez mais dinâmica no processo leitor. Nesse sentido, cabe reforçar que mais vale um diálogo entre o impresso e o digital do que uma disputa entre os dois, pois, como mostrado pelas autoras, essa pode ser uma maneira exitosa para formar leitores de literatura infantil e juvenil.

Raquel Souza da Silva – Mestranda em Educação na Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente. E-mail: [email protected].

Cleide de Araújo Campos – Doutoranda em Educação na Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente. E-mail: [email protected] Recebido em 21 de junho de 2019

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Reading is my window: books and the art of reading in women’s prisons – SWEENEY (EA)

SWEENEY, Megan. Reading is my window: books and the art of reading in women’s prisons. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2010. Resenha de: SPEZIA, Carlos Humberto. Uma janela para a esperança. Em Aberto, Brasília, v. 24, n. 86, p. 159-161, nov. 2011.

Megan Sweenney realiza um mergulho no universo feminino da leitura em prisões. Em 94 entrevistas diretas, realizadas nos Estados da Carolina do Norte, de Ohio e da Pensilvânia, a autora faz uma abordagem criteriosa sobre como as detentas trabalham os escassos materiais de leitura disponíveis dentro do presídio para entender um mundo do qual, agora presas, estão distantes. Apesar da limitada oferta de títulos bibliográficos, a autora consegue mostrar como as mulheres encarceradas utilizam esses poucos recursos literários para enriquecer suas experiências, o que colabora para o aumento da autoestima e da conexão com o mundo fora das grades. Sempre contundentes, citações com estas estão presentes em todo o estudo de Megan Sweenney e ilustram as diferentes visões e experiências das mulheres encarceradas:

[…] se há várias pessoas que voltam às prisões, então temos que repensar o sistema prisional. (Monique) A prisão tem sido uma experiência de aprendizagem para mim. Eu cresci aqui. Eu me tornei a mulher que sou hoje. Aprendi a processar as coisas diferentemente e agora entendo o meu valor. (Starr)

O trabalho de Megan Sweeney compreendeu um longo estudo da análise dos hábitos de leitura de várias detentas do sistema prisional americano. Suas entrevistas misturam-se com a narrativa da obra, e o leitor torna-se cúmplice dos depoimentos sempre traumáticos das mulheres encarceradas. Esse clima, embora trágico, constitui o fertilizante para o desabrochar das histórias das personagens, que têm em comum a aproximação da socialidade por meio da leitura, mesmo vivendo numa estrutura na qual o objetivo menos específico é sua ressocialização.

As personagens de Sweeney permanecem sempre perto do leitor, compartilhando pensamentos e desejos inspirados no bem estar que a leitura proporciona ante as aviltações da prisão.

A maior parte da obra de Megan é composta de entrevistas com suas próprias personagens reais representadas por pseudônimos. Dessa forma, o leitor acaba por compartilhar das variadas experiências por elas relatadas, tendo como constante o sofrimento físico e moral em suas histórias de vida.

Os depoimentos coletados por Megan Sweeney transportam o leitor para dentro da realidade individual do universo prisional, ilustrando como cada uma das detentas consegue extrair algo de positivo para suas vidas por meio dos livros que lhes são ofertados.

Denise, por exemplo, deixa claro em depoimento sua necessidade angustiante de ler para lutar por conhecimento ou por qualquer informação que seja, mesmo com a ciência de não entender o que está lendo.

[…] Você não sabe o que encontrará na leitura dos jornais […] eu leio cada centímetro do jornal. Não tenho a menor ideia do que seja Nasdaq, mas leio sobre isso, pois eu não sei e então crio minha própria história sobre o que leio.

Apesar de Sweeney afirmar que a preferência de leitura das detentas reflete a disponibilidade de títulos literários na biblioteca das prisões, ela baseia seu estudo em três gêneros específicos: ficção, narrativa e livros de autoajuda. Devido ao acesso limitado a livros, as mulheres detentas escolhem o que está disponível nas prateleiras, mas a autora frisa que as leitoras têm suas preferências de gêneros literários.

Muitas vezes elas leem o que não gostam ou desconhecem por uma simples questão de oferta de títulos bibliográficos.

Tal fato está destacado no início do capítulo 5, na citação de uma das personagens: “Não me importa se o livro é desconhecido para mim. Eu sei que ele irá me ajudar, eu o lerei. Nunca encontrei um livro que não me ajudasse.” (Ellen).

Sweeney enfatiza a preocupação com a discriminação da sociedade em relação às mulheres encarceradas, que muitas vezes é exercida pelos próprios funcionários das prisões. A autora frisa que a maioria da população prisional é composta por mulheres afrodescendentes, as quais se encontram presas a um instituto que, em vez de trabalhar sua ressocialização, as deixam isoladas. Os livros, que lhes poderiam servir de lenimento, são escassos e limitados em termos de gêneros literários. A leitura em prisões é vista como um favor, uma premiação, uma recompensa para o bom comportamento, uma forma de mantê-las ocupadas, mas não como um direito.

Valhalla e Denize, algumas das personagens recorrentes, descrevem os livros em termos de amizade e os caracterizam como amigos fiéis que podem ajudá-las nos momentos difíceis: “Há personagens que conheci que os guardo dentro de mim.” Embora o hábito da leitura não seja plenamente estimulado nas prisões, Megan Sweeney expõe no relato de seus personagens quão importante a leitura é para as detentas:

[…] é como se pudesse ver aquele livro ali parado, e me misturando em suas páginas.

Quando eu leio, vou tão fundo que consigo sentir os perfumes. Se leio sobre a floresta, vejo os insetos andando sobre as folhagens, vejo a água escorrendo das folhas.

As dificuldades enfrentadas pelas detentas, quer no âmbito do acesso à leitura, quer no do sofrimento do encarceramento, nos fazem refletir sobre questões como sistema prisional, ressocialização, punição, direitos, deveres, desejos, e, acima de tudo, sobre a busca de significados da vida dos dois lados dos muros. A leitura nesse caso é a esperança de sol na escuridão da existência prisional e perpassa a janela, condicionalmente, em tênues raios de luz.

Carlos Humberto Spezia – Mestre em Bioética pela UnB, professor de l íngua portuguesa e ingles, é especialista em Linguística e gestãode projetos. Trabalha há 20 anos na educação de jovens e adultos. E-mail: [email protected].

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