Fronteira e fronteiriços: a construção das relações socioculturais entre brasileiros e paraguaios (1954-2014) – BALLER (HO)

BALLER, Leandro. Fronteira e fronteiriços: a construção das relações socioculturais entre brasileiros e paraguaios (1954-2014). Curitiba: CRV, 2014. 280 p. Resenha de: PAGLIARINI JÚNIOR, Jorge. História Oral, v. 18, n. 1, p. 247-251, jan./jun. 2015.

Ao falarem dos espaços, os sujeitos falam de si. Numa das suas acepções, o espaço pode ser entendido pelas fronteiras que distanciam, mas que também aproximam sujeitos. No exercício de compreender a relação entre sujeito e espaço, como lembra o geógrafo Rogério Haesbaert (2011), o espaço pensado apenas enquanto resultado dos propósitos dos Estados já não dá conta da compreensão de seus usos e de suas construções. Mas em tempos de mobilização e de discursos – muitos exacerbados – em torno do nacionalismo, é justamente ao discurso nacional que tende a se apegar a leitura da espacialidade. É nessa tensão entre a fronteira política – geograficamente delimitada como resultado de tratados transnacionais – e a fronteira polissêmica que emerge das entrevistas e demais documentos analisados que se desenrola o estudo de Leandro Baller em Fronteira e fronteiriços: a construção das relações socioculturais entre brasileiros e paraguaios (1954-2014).

Trata-se do livro derivado de sua tese de doutoramento, defendida em 2014 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da A leitura da referida obra leva, antes de mais, a perguntar como o autor se insere no conjunto de investigações e de produções sobre a fronteira entre o Brasil e o Paraguai. A resposta à questão encontra-se justamente no diálogo que o autor consegue estabelecer com suas fontes – diálogo respaldado pelo fato de ser ele mesmo um sujeito fronteiriço –, com base nas quais constrói um entendimento da fronteira como ambiência.

Os termos fronteira e fronteiriços ou, se quisermos, lugar e sujeitos são tomados como objetos, como categorias historicamente delimitadas numa relação pensada no recorte temporal e espacial do estudo, visando entender a fronteira entre Brasil e Paraguai. O livro trata, mais precisamente, da fronteira entre o leste do Paraguai – na altura dos departamentos de Alto Paraná e Canindeyú – e o oeste do Brasil – estados do Paraná e Mato Grosso do Sul –, marcada pelo reservatório do Lago Internacional de Itaipu, durante os anos de 1954 a 2014 – sem que tenha sido desconsiderada, para tal empreitada, a investigação de outros momentos e acontecimentos.

O trabalho apresenta uma leitura da espacialidade da fronteira cuja demarcação territorial envolve disputas de diferentes ordens e temporalidades, indo dos tratados seculares, da longa duração, até as bases demarcadas nas últimas três décadas pelo agronegócio; a análise passa, assim, por disputas veladas, percebidas nos interstícios do cotidiano, que ganham potencial explicativo graças à postura epistemológica da obra, caracterizada pelo esforço do autor de se deslocar pela fronteira e, assim, tomá-la também “do lado de lá”.

A partir do lugar teórico e espacial acima delimitado, o autor apresenta a leitura de um processo que envolve os termos coexistência, contato, estabelecidos e outsiders. Trata-se de uma postura próxima daquela desenhada por Bhabha (1998) ao defender um “lugar teórico” – lugar que é, antes, um lugar político, de onde falam os entrevistados, neste caso a imprensa paraguaia e os documentos oficiais, todos analisados com base nas contribuições de Foucault e na sua ressignificação de conceitos espaciais.

No primeiro capítulo, Fronteira: ocorrência teórica e historiográfica, Baller discute o olhar historiográfico sobre a fronteira, destacando dessa perspectiva três momentos: 1) o dos tratados e da construção do sentido nacional da fronteira no século XIX, atrelado ao IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro); 2) a passagem de uma história técnica e preocupada com as lutas de demarcação para uma história dos tipos sociais frente à conquista das fronteiras, sob influência de Turner até a década de 1970; 3) o dos estudos brasileiros e paraguaios feitos a partir da década de 1980, com um posicionamento epistemológico de denúncia da naturalização da fronteira. O autor segue com a apresentação dos discursos produzidos pela historiografia do oeste do Paraná, dos quais resultou um rico corpus documental que ganharia novas leituras nas décadas seguintes à sua publicação, com a fronteira assumindo corpo conceitual. Nesse ponto a obra se ocupa de problemáticas ambientais, de relações de poder e sociabilidade na tríplice fronteira, de conflitos de terra, da abordagem de movimentos sociais, do impacto de Itaipu e de preocupações de caráter étnico. Da historiografia paraguaia se destacam os diálogos do autor com pesquisadores locais, dos quais se ressalta a crítica do literato paraguaio Roa Bastos de que a produção historiográfica nacional deveria ir além dos limites da “ilha Paraguai”. As análises de Baller se aproximam epistemologicamente das de Foucault, ao proporem a desnaturalização da fronteira sob as perspectivas da genealogia e da heterotopia, que levam o leitor a perceber os meandros da divisa, que é geográfica (marco visível), política (material e institucional) e simbólica (vivida).

Na sequência dessa base historiográfica é apresentado o capítulo A pluralidade histórico-social agrária no Paraguai, no qual a questão agrária serve como pano de fundo para o estudo do fronteiriço; problematiza-se aí o processo de luta pela terra, mas também as lutas pela manutenção de costumes como a moeda e a língua – levando em conta notícias veiculadas pela mídia local e entrevistas com moradores da fronteira (brasileiros, paraguaios e brasiguaios).

A contextualização da migração remete ao governo de Stroessner, marcado pela intensificação da formação de latifúndios, política que facilitou a entrada de brasileiros, freada apenas em 2004, quando temores em torno da construção da lei da faixa de fronteira paraguaia apresentaram novas conjecturas para as práticas de fronteira. O desafio de analisar a transitoriedade dos sujeitos na fronteira leva o autor à problemática do retorno para o Brasil, apresentada nas construções semânticas do termo brasiguaio.

A generalização do termo brasiguaio se dá tanto pela imprensa paraguaia – que o associa a grandes proprietários que se apossam de terras no país desde a década de 1950 – quanto pelos pesquisadores brasileiros – que o atribuem àqueles que, depois de migrarem para o Paraguai nas décadas de 1960 e 1970, retornaram ao Brasil a partir de meados de 1980 e se engajaram em movimentos sociais de luta pela terra. Nas entrevistas examinadas por Baller, percebem-se a desconfiança, a confusão, as resistências e o próprio estigma que marcam esses sujeitos. Essas formas de resistência – pensando nos termos de Bhabha, exemplos da ameaça do híbrido à fronteira tomada pela sua dualidade – se contrapõem ao modelo de identidade nacional construído pela historiografia oficial, seja ela brasileira, seja paraguaia.

No terceiro capítulo, intitulado Coexistência fronteiriça: ações e representações, o autor, ancorado nas noções de representação social e de negociação cultural, aplica atenção ao modus vivendi dos fronteiriços e apresenta uma fronteira que, frente à virtual ausência de um e de outro Estado, é pouco estática.

Assim, no debate com fontes orais e com documentos escritos, possibilita- se a representação de disputas a respeito da aplicabilidade do conceito de coexistência fronteiriça, momento em que o texto problematiza a questão agrária – mais especificamente, as práticas de migração de retorno de brasileiros e descendentes, ocorridas em função da busca por melhores condições de educação para os filhos, de saúde para a família, de direitos sociais buscados no “crime autorizado” da região fronteiriça. O sentimento de pertencimento dos brasiguaios é posto à prova pelos ataques públicos de líderes de movimentos sociais de luta por terra ao modelo agrícola (da soja) dos brasileiros; esses discursos generalizam questões referentes aos resultados de modelos agrários existentes desde 1950, intensificados com Stroessner, em consequência da falta de modernização das técnicas dos campesinos e dos indígenas.

No último capítulo, Fronteiriços construindo fronteiras, chega-se às disputas que marcam a coexistência, não sem que o autor antes apresente dois momentos que estruturam a questão agrária paraguaia: o primeiro, o que se estende da década de 1970 até a de 1980, intrinsecamente relacionado às transformações da estrutura agrária do oeste do Paraná; o segundo, a partir da década de 1990, marcado pela transformação da estrutura da agricultura paraguaia, com intensificação do latifúndio monocultor e agroexportador.

Nesse contexto, demarcam-se as diferenças entre o modelo brasileiro, criticado pelos opositores do sistema de latifúndio, e as práticas dos “campesinos”, para muitos ultrapassadas por concentrarem-se em grande medida numa produção de subsistência. A análise aproxima-se do debate em torno de práticas de integração e dificuldades em estipular quem são os estabelecidos e quem são os outsiders. Afinal, além do tempo de residência, somam-se à análise, o grande número de brasileiros residentes na fronteira e o estigma aplicado sobre aqueles que fracassaram na atividade rural. Dessa maneira contemplam-se vários focos, como os produtos consumidos, a chegada de tecnologias de comunicação, o resultado do cooperativismo etc.

Enfim, o sucesso desse estudo envolve o posicionamento metodológico e epistemológico adotado no tratamento das fontes orais. O recurso à história oral é um dos caminhos para que Leandro Baller abarque as memórias sobre o processo analisado. O trabalho também se baseia em cautelosa investigação de arquivos oficiais e não oficiais, bem como da imprensa paraguaia. Além do equilíbrio entre essas diferentes fontes, destaca-se também o rigor metodológico e a necessária postura ética do autor. Baller trabalha com entrevistas inéditas e com entrevistas publicadas por outros autores, a maioria produzida em meados da década de 1990; entre as inéditas, algumas foram conduzidas pelo próprio autor e outras (produzidas entre 1994 e 2014) advêm da colaboração de outros pesquisadores. Apesar disso, de certa forma, o leitor tem a impressão que se trata de um único corpus documental, o que revela a qualidade do trato do autor com as memórias e com a suas temáticas comuns, quais sejam a situação do fronteiriço e a disputa pela construção de identidades e de memórias.

Referências

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

ALDRIGHI, Clara. Memorias de insurgencia: historias de vida y militância en el MLN-Tupamaros. 1965-1975. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2009. 456p.

Jorge Pagliarini Junior – Professor efetivo do curso de História da Universidade Estadual do Paraná (Unespar), campus de Campo Mourão. E-mail: [email protected].

 

 

 

 

 

A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios entre o Brasil e o Paraguai – ALBUQUERQUE (RTF)

ALBUQUERQUE, José Lindomar Coelho. A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios entre o Brasil e o Paraguai. São Paulo: Annablume, 2010, 268p. Resenha de: BALLER, Leandro. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 2, jul.-dez., 2012.

De forma clara o autor no início do livro observa as suas relações com os su-jeitos, ou atores sociais da pesquisa, mostrando ao leitor a sua análise metodológica e teórica, sem perder de vista o seu metiê, que é a Sociologia, ou melhor, às Ciências So-ciais, sem, todavia, esquecer dos perigos que uma pesquisa no ambiente fronteiriço re-presenta ao pesquisador.

Isso posto, auxilia na compreensão do objetivo central do trabalho que está ligado a pensar as representações nacionais e as relações de poder entre o Brasil e o Paraguai, a partir dos discursos dos imigrantes, líderes camponeses paraguaios, jornalistas, empresários, religiosos, entre outros. Acredito que as tipologias de fontes utilizadas supriram os objetivos no tratamento da problemática, as entrevistas, as reportagens nos jornais e revistas, e os documentos analisados foram suportes para pensar tais representações, no recorte da análise.

Referente à bibliografia ela se mostrou variada tanto no tocante às explicações teóricas e do tema específico, percebi uma preocupação em aplicar a interdisciplinaridade especialmente na construção textual, mesmo compreendendo que tal preo-cupação é resultado imediato do trabalho de campo, ou seja, não basta utilizar a inter-disciplinaridade referindo-se apenas a autores e obras de outras áreas, mas sim, esta-belecer da melhor forma possível um diálogo interdisciplinar.

As fronteiras são conceituadas na pesquisa como um limite territorial nas migrações fronteiriças, quanto à presença de brasileiros no Paraguai, sem deixar de lado, as questões políticas, jurídicas e culturais. As representações abordadas pelo au-tor muitas vezes são negativas por meio de conflitos violentos e disputas de território, a imigração clandestina, o tráfico de drogas e o roubo de carros é uma das realidades reforçadas pela imprensa, não que isso seja mentira, mas auxilia na estigmatização acentuada dessas ocorrências. O fenômeno da imigração produz pluralidades de fronteiras, entre o material e o simbólico, a abordagem historiográfica como paradigma a ser seguido nos leva a aplicar grande parte de seus significados na Marcha para o Oeste, algumas vezes confundida até mesmo com a abordagem de Turner, como um mito fundacional da identidade que é elaborada pelos historiadores, a percepção da alteridade pelos antropólogos, sociólogos e geógrafos, que tentam explicar o movi-mento migratório no Brasil pelas frentes de expansão e frente pioneira. No caso dos Brasiguaios isso não se aplica nas migrações fronteiriças. O autor reconhece as diferentes perspectivas e inovações no cenário dos atuais estudos fronteiriços especial-mente etnográficos e históricos, e não apenas aqueles que se dão em relação aos estudos que refletem sobre locais privilegiados de análise, dessa forma encontramos nesses atores sociais o cruzador de fronteiras e o reforçador de fronteiras, tais processos po-dem ser vistos nas teorias pós-coloniais.

A articulação do autor entre as vertentes de pensamento se dá de maneira bastante clara, como por exemplo, com o que denominamos na historiografia de pós-moderno. “Os espaços de intercâmbio cultural não significam espaços de integração social. Hibridismo não é sinônimo de integração” (p. 51). O que parece ser uma característica do pesquisador em relação ao tema; quero dizer que a clareza entre correntes de pensa-mento é para mim um “trânsito” intelectual que coloca o autor em evidência na perspectiva dos estudos fronteiriços.

Seguindo como referência as teorias dos movimentos migratórios tradicionais – migrar do mais pobre para o mais rico – a tônica migracional do Brasil para o Para-guai está invertida, e a grande quantidade de brasileiros indo para o país vizinho a par-tir de 1960 e se acentuando na década de 1970 se explica por alguns fatores; como a proximidade geopolítica, a migração espontânea, as políticas de incentivo, a construção da Itaipu, e o boom do comércio fronteiriço.

O autor retoma os principais eventos históricos do século XIX para dar um ponto de partida à sua explicação e mostrar a ocorrência histórica do movimento migratório, bem como denota a situação política entre 1870 e 1932, um período entre guerras que o Paraguai sobreviveu entre golpes políticos. A abordagem que o pesquisador dá na retomada da articulação política entre os dois países após a Guerra da Tríplice Aliança, mostra um período de ditaduras, concessões e apoio, inclusive na construção de grandes projetos. O que se denominou de estratégias geopolíticas que mostrava o crescimento do Paraguai, era na verdade a legitimação do governo de Stroessner (1954-1989), com o Brasil atuando como expansionista e subimperialista naquele país, Stroessner facilitou a entrada e a compra de grandes extensões de terras nas zonas de fronteiras por estrangeiros, entre eles a maioria brasileiros.

No tocante ao comércio e o seu crescimento o autor denota a importância que é a baixa carga de impostos naquele país e o crescimento das cidades mais próximas ao Brasil, o que se percebe é a forma de fazer este comércio “ilegal” de exportação e importação entre os dois países (sacoleiros, muambeiros, camelôs, atravessadores, […]). O que se percebe é que a economia paraguaia se volta para fora do país e não ao seu interior, especialmente uma dependência para com o Brasil, frutos das políticas de expansão dos dois países que ultrapassa os territórios nacionais.

O quantitativo demográfico brasileiro no Paraguai não é exato, até pela diferente metodologia de controle que é exercida pelos dois países, mas por outro lado, é também fruto de interesses políticos e econômicos, seja do governo, da igreja, da imprensa em geral, etc. essa inexatidão não é neutra de valores, e quanto à ilegalidade e legalidade demográfica há um receio político nessas áreas de fronteiras, como, por exemplo, brasileiros “legais” ocupando cargos políticos, ou mesmo em questões mais diretas como a questão de votos e bases eleitorais em cidades nos dois países.

Os fluxos migratórios ao Paraguai são frutos de duas frentes, uma vinda do sul do Brasil – a maior – e outra do norte e nordeste – a menor. O que ocorre segundo o autor, são várias migrações internas no interior do Brasil e depois ultrapassa-se a barreira internacional, como percebemos nas fontes orais (p. 73/74/75), dessa forma há uma mescla migracional e de naturalidade no interior das famílias. O Paraná é uma das últimas fronteiras nacionais em direção ao Paraguai, desses dois fluxos migratórios.

O autor com o auxílio da bibliografia de Sprandel denota classificações ou estratificações sociais dos brasileiros no Paraguai em seis grupos diferentes (p. 76/77). Há outros autores como Oliveira que pensa essas classificações como categorias na-tivas, tendo assim um sentido histórico e analítico mais rico, do que um sistema de conceitos sociológicos. O autor “utiliza também as classificações dos próprios agentes sociais, que a todo instante estabelecem suas hierarquias sociais e as nomeiam de várias formas” (p. 78). Essa realidade é diversa e complexa para o autor, justamente porque a problemática estudada, em relação às identidades dos imigrantes que viera já de regiões distintas do Brasil.

No Paraguai a frente de expansão capitalista atua em antagonismo, pois en-riquece os de “fora”, ao mesmo tempo em que empobrece e expulsa os pequenos agricultores, o que provoca uma mudança nos sistemas políticos e econômicos, justamente por causa dos organismos de fomento – Bancos – com o fim das ditaduras, os agricultores pobres vislumbram novas possibilidades de propriedade no Brasil com o Pl-no Nacional de Reforma Agrária (PNRA), para muitos pesquisadores esse é o movimento que deu origem aos denominados Brasiguaios. Nesse mesmo contexto, os empresários e grandes agricultores se mantiveram no país e se fortaleceram, com outros incentivos, acordos e demandas, como por exemplo, com o Mercosul em 1995 (Tratado de Assunção), especialmente com o plantio de soja e a aplicação de novas tecnologias, sendo desse montante entre 70 e 80% responsáveis os imigrantes e desses em sua maioria brasileiros.

O autor denota alguns exemplos de como essa expansão é desigual no Paraguai. Por exemplo, ele cita a renda per capita no departamento de Alto Paraná no Paraguai que gira em torno de 14 mil dólares, enquanto no restante do país ela cai para aproximadamente 950 dólares. Os principais indicadores dessa expansão é a pre sença brasileira que se dá pelo plantio em larga escala de soja, pela Usina de Itaipu, e pelo comércio da Ciudad del Este, o que de certa forma legitima nesse contexto espacial um crescimento na zona fronteiriça, não descartando em momento algum a expansão em seus moldes para o interior daquele país. No interior do país ocorrem outras formas de vislumbrar essa expansão ocorrendo até mesmo atritos interclasses, haja vista que adentram as áreas dos Menonitas.

Esses atritos e conflitos fazem com que muitos empresários agrícolas, e grandes agricultores brasileiros voltem seus olhares para a aquisição de propriedades no Brasil comprando terras especialmente em MT, RN, PA, e GO. Por outro lado, quem permanece no Paraguai acaba aumentando seu poder econômico e político com a nacionalização dos filhos e descendentes, como ocorre em Santa Rita. “Nessa perspectiva, os estrangeiros seriam os porta vozes dos ideais da modernidade, enquanto os paraguaios seriam tradicionais e atrasados […]” (p. 90).

A influência cultural brasileira no Paraguai se dá muito em relação ao idioma português nas zonas fronteiriças, essa questão mexe com “todos” os aspectos culturais nacionais paraguaios desde as escolas, televisão, rádios, fachadas de lojas, letreiros públicos, entre outras formas. Tais aspectos acabam mesclando as culturas em um com-plexo, ambíguo e ambivalente movimento migratório, com seus conflitos, sejam “bons ou ruins”, em permanente desequilíbrio econômico de um país que se adapta no interior do outro.

O autor explora de maneira hábil as fontes a que se propõe sobre os conflitos na zona de fronteiras, mostrando a perspectiva bilateral das questões que envolvem brasileiros e paraguaios, e ainda que há outros imigrantes que não são brasileiros nestes locais. Existe até mesmo de maneira bastante visível uma tendência conflituosa entre paraguaios e indígenas naquele país, o que mostra que as relações de poder não são uníssonas. Aparecem nesse contexto de disputas de terras as várias narrativas coletadas pelo autor como a visão de paraguaios, brasileiros, jornalistas, autoridades, professores, motoristas, diretores de escolas, entre outros profissionais e segmentos. Muitos deles pela perspectiva do autor buscam mostrar a origem do movimento migratório para o Paraguai na “oferta” que se dava no período ditatorial em ambos os países.

Atualmente e na visão do autor ele percebe as formas de resistência nestas relações de poder, bem como se ordenam os discursos políticos de políticos brasileiros no Paraguai, e de discursos políticos paraguaios, ou seja, as decisões se dão na maioria das vezes obedecendo a conjunturas políticas da atualidade, e propósitos políticos lo-cais, sempre atuando sobre forte pressão, um exemplo, é a aprovação da Lei de Segurança Nacional Fronteiriça, que antes era defendida sob o jugo da questão territorial e não era aprovada, no momento de sua aprovação ela foi defendida enquanto propósito da identidade e do nacionalismo. E mais atualmente a criação do Mercosul deu espaços de infiltração multinacional nessas mesmas áreas. Considero as percepções do autor excelentes ao remeter muitas dessas questões atuais a um passado memoria-lístico dramático nas relações dos dois países, ou seja, mesmo em momentos de “apa rente” tranqüilidade, a disputa é um ponto efervescente em qualquer discussão entre pessoas desses dois países, seja nos meios políticos, intelectuais especialmente de es-querda, e muito mais ainda entre proprietários e campesinos, isto é, se estabelece na percepção do autor uma disputa cotidiana no senso comum. E este aspecto mostra co-mo o autor se relaciona com seus interlocutores, bem como, a maneira como explora a literatura em relação ao método da História Oral.

A narração histórica da nação na fronteira ocorre por recortes sincrônicos, sem uma perspectiva linear, dilemas que remontam aos impérios metropolitanos, sem-do primeiro por questões religiosas – Jesuítas – depois por questões de enfrentamento – Guerra da Tríplice Aliança – e por último a influência geopolítica – proximidade territorial – entre Brasil e Paraguai.

O autor percebe um discurso atual no Paraguai que os leva a uma imagem negativa da presença dos brasileiros, como os coloniais Bandeirantes, esses discurso se fortalece com a monumentalização dos locais de memória, que para as “pessoas comuns” possui um valor simbólico importante. A visualização é propagada por bispos que exercem forte influência política, além de religiosa em alguns Departamentos, por outro lado, estes discursos sofrem resistências internas por parte da imprensa que muitas vezes defende os brasileiros que ali residem. Nota-se que as fronteiras imprecisas do século XVII, fazem com que religiosos até hoje se vejam como guardiões das fronteiras, como ocorria, por exemplo, com as reduções indígenas, o Paraguai atual-mente herda excessivamente esse discurso, de proteção espanhola, seja na Argentina guaranítica, e nas margens dos grandes rios dessas regiões. O Brasil traz consigo o es-tigma de imperialista e/ ou expansionista, como se apresentavam os Bandeirantes do Século VXII, contra os indígenas convocados pelos espanhóis para defender esse território.

Outros defendem o progresso que os brasileiros levam ao Paraguai, podemos perceber isso como uma luta simbólica, em que o brasileiro está em permanente avanço silencioso no outro país, na visão de segmentos de esquerda. Não se negou em mo-mento algum a ressignificação da memória que se herdou das duas batalhas – Tríplice Aliança, e Guerra do Chaco. Bem como, os marcos simbólicos de ambas que se juntam num mesmo sentimento nas experiências bélicas do passado, reforçando com isso o nacionalismo paraguaio. Pelo lado brasileiro essas experiências segundo o autor podem ser denotadas pelos escravos, ou seja, as questões bélicas funcionam como um espécie de calvário para o Paraguai. Terminam-se os combates, mas continuam as lu-tas simbólicas de heróis e traidores. O autor retoma e conduz muito bem o revisionismo historiográfico do pós-guerra no Paraguai, especialmente com Leon Pomer, Ju-lio José Chiavenatto, e Francisco Doratioto, sem deixar de lado outras abordagens so-bre a questão, como uma que se apresenta nos livros didáticos do Paraguai em que a figura de Solano Lopes não é aceita como herói pelos próprios paraguaios.

Nesse ínterim a figura de Stroessner não demora à aparecer como o “pa-triarca do progresso”, sendo ele o principal personagem da imigração brasileira para o Paraguai, essa questão durante anos personificou sua imagem com o auxílio das forças armadas, às vezes se compara à outros heróis do passado surgindo lado-a-lado com outros famosos personagens. Em 35 anos de ditadura ele apoiou a entrada de capital estrangeiro e de imigrantes com o “intuito” de desenvolver o país, uma ditadura personalista que viu desde a ascensão com a construção da Usina de Itaipu Binacional, até a decadência com o final das ditaduras na América do Sul. Mas para o povo para-guaio apenas em 2008 se rompeu com o Partido Político Colorado e os ideais de Stroessner com a eleição do bispo Fernando Lugo, nota-se uma espécie de nostalgia a Stroessner no Paraguai, que o autor denota como a necessidade de uma construção identitária forte e coletiva espelhada no General, especialmente para pessoas que viveram naquele período, bem como pelos imigrantes brasileiros que foram favorecidos pelo seu sistema de governo.

As lembranças dos momentos significativos servem para demarcar fronteiras políticas e culturais, e reafirmar identidades nacionais no confronto contemporâneo na zona fronteiriça […], as recordações do passado servem para reativar e alimentar os sentidos das lutas do presente” (p. 159). Percebe-se que de uma coletividade pode haver a reativação e intensificação dos ressentimentos, reafirmando inferioridades e superioridades nacionais.

O autor denota o “jogo” de representações que se configuram, nestas “fronteiras entre ‘nós’ e ‘eles’”, a partir de discursos classificatórios entre imigrantes brasileiros e os paraguaios, faz inclusive uma rememoração no tempo histórico na in-tenção de mostrar os caracteres do jogo identitário e de alteridade, desde o movimento migratório europeu para a América e em consequência para o Brasil e seus principais descendentes – italianos, alemães, portugueses, holandeses (…). Nesse sentido, muito do que é representado no Paraguai é o que se herdou desses discursos provindos da Europa, com ideologias prontas e que são reproduzidas no Paraguai, como por exemplo, a ideologia do trabalho, da limpeza, da organização, e a valorização dessa cultura considerada superior tanto por parcelas paraguaias, quanto por parcelas brasileiras. Esse ethos classificatório mostra na relação entre as pessoas dos dois países a gestação de preconceitos que também ganham força em outro tempo histórico – a Guerra da Tríplice Aliança no século XIX.

Tais analises valorativas mostradas por meio de suas fontes cria estigmas que provocam outras conseqüências, como as ondas nacionalistas nesses países e a construção de discursos de ambos os lados que fazem com que se generalizam aspectos culturais, sociais, agrícolas, econômicos, religiosos, entre outros, nos dois países. Esses aspectos estigmatizantes encontram teses que advém do período colonial, como já foi posto anteriormente. A relação de poder nessa construção de discursos encontra variá-veis que servem para denotar a realidade, ou para atender um objetivo atual ligado a questões políticas e de propriedade, o que o autor chama de figuração de poder, que está diretamente permeada nas relações de poder, momentos em que as construções das imagens são feitas, aparecendo geralmente o valorativo superior e inferior, isto é, é a produção das identidades que estão em disputa, em um meio bastante dinâmico que são os movimentos migratórios nas zonas fronteiriças e nesse contexto “todos” os fa-tores culturais estão atuantes.

Talvez a grande expectativa que o autor lançou e que é difícil de conferir em sua escrita clara e objetiva, é de como legitimar estes discursos, por se tratar, como ele mesmo afirma, de realidades heterogêneas, e de representações homogêneas, para isso o esforço do autor é interessante, pois a percepção desses discursos classificatórios neste contexto fronteiriço é um jogo de expressões que de certa forma explicam tais expectativas como disputas simbólicas, em que se percebe as resistências, as imposições, as micro relações sociais, as tensões culturais e especialmente como isso “tudo” é res-significado pelas pessoas, isso quer dizer “os termos estão em permanente mudança de sentido e são ativados conforme as relações conflituosas que se estabelecem no cenário das relações interculturais” (p. 191). As relações discursivas muitas vezes são produzidas pela imagem do espelho do ‘outro’, e este ‘outro’ não pode ser generalizado, seja em seu espaço, tempo, ou história. Enfim o que denota-se aqui é um Brasil com aspectos supe-riores, e um Paraguai inferiorizado.

Acredito que as identidades fronteiriças é o cerne da pesquisa do autor, o entrelaçamento das propostas que discute no decorrer do livro, é resultado de uma extensa pesquisa. Consolidar identidades a meu ver é impossível, em um ambiente fronteiriço e que envolvem práticas culturais discrepantes, e a latente sociabilidade co-mo percebe-se na coexistência entre brasileiros, paraguaios, e Brasiguaios, isso se torna ainda mais complexo, pois não existem construções/produções/processos humanos eternos, e a identidade faz parte desse jugo em meio as expressões e dos discursos pro-duzidos e que alimentam essas práticas e o seu cotidiano; como ocorre com a im-prensa, intelectuais, políticos, empresários, religiosos, camponeses, campesinos, entre outros grupos, sejam eles grupos étnicos, nacionais, de proprietários, comunidades, etc.

Percebe-se que são os vários conflitos de ordem objetiva e subjetiva que demonstram a complexidade da pesquisa, ao observar a tentativa de construção indentitária como algo que não age sem a resistência de grupos, comunidades, nações, etnias, ou seja, as relações de poder que o autor inúmeras vezes aborda é uma complexa rede de simbologias e concretudes que não se auto explicam, muito pelo comtrário servem para legitimar perspectivas despreparadas que não percebem a ambiva-lência que está alocada nos dois lados desses países, isto é, o olhar bilateral do autor nos leva a ver que a noção de cidadania se conquista e se perde ao longo do processo histórico que existe enquanto ocorrência histórica entre Brasil e Paraguai, e posterior-mente com os Brasiguaios. Uma história que tem genealogia próxima de meio século de ocorrência e que sofre interferências desde o século XVII, até a atualidade.

As práticas culturais que fazem parte da convivência de brasileiros e paraguaios considerados “puros” são claras, como por exemplo, a música, o tererê, o idio-ma, a moeda, as escolas, as famílias […]. Tais práticas corroboram na hibridação desse novo grupo e dos considerados “puros” como um processo inacabado. Por último concordo com a abrangência maior que o autor dá ao termo Brasiguaio, algo que já de-fendi em outros estudos, isso quer dizer que a compreensão em torno do que é ser brasiguaio é independente do entendimento desse grupo, como sentido de etnicidade; quero pensar que muitos estudos auxiliam a pensar esta perspectiva enquanto escolha teórica e metodológica em relação ao tema, mas que não dá conta da totalidade que representa a formação do grupo, bem como a sua manutenção no tempo presente, sem, todavia deixar de reconhecer a importância de outras abordagens, no ambiente fronteiriço, especialmente entre os conflitos harmoniosos ou de tensões que o Brasil mantem com os países vizinhos na América do Sul.

As hipóteses de futuras e prováveis pesquisas que o autor levanta no final do livro são riquíssimas, justamente por que não se pode cair em perspectivas generalizantes em relação às fronteiras e aos países e suas gentes que circundam o Brasil. Ou seja, cada caso possui suas especificidades. Acredito que a mobilidade do autor em re-lação às diferentes “correntes” de pensamento, seja na Sociologia, na Antropologia, na Geografia e na História, é importante para a que a obra não sofra classificações teóricas e metodológicas, quero dizer que a preocupação em abordar diferentes perspectivas como a pós-modernidade, o marxismo, a história do tempo presente, a história oral, a imprensa, entre outras sintetiza para o leitor não especialista no assunto uma realidade complexa da fronteira e que pode ser compreendida por meio das fontes trabalhadas, independente das questões simétricas ou assimétricas sobre a identidade. Esta resenha não substitui a leitura integral do livro, tem como objetivo, estabelecer pontos de reflexões e de abordagens que a pesquisa do autor denota.

Leandro Baller – Universidade Federal Mato Grosso do Sul. Centro de Ciências Humanas e Sociais Campus de Nova Andradina, Cidade Universitária Rodovia MS 134 Km 3. CEP 79750-000. Nova Andradina – MS – Brasil. E-mail: [email protected].