A arquitetura da alteridade: A cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845) – TORRÃO FILHO (H-Unesp)

TORRÃO FILHO, Amilcar. A arquitetura da alteridade: A cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2010. 347 p. Resenha de: GAMA, Luciana. Retórica na Pitoresca Confusão da Literatura de Viagem. História [Unesp] v.30 no.2 Franca Dec. 2011.

Ordem para a cidade é o heroísmo dos homens, para o corpo a beleza, para a alma a sabedoria, para o ato a excelência, para o discurso a verdade; o contrário disso é a desordem. E, em relação ao homem, à mulher, ao discurso, à ação, à cidade e ao ato particular é necessário honrar com louvor o digno de louvor e sobre o indigno aplicar censura; pois igual erro e ignorância é censurar as coisas louváveis e louvar as censuráveis.

(Górgias, Elogio de Helena).

Com o intuito de demonstrar como o caráter identitário presente nos relatos dos viajantes franceses e britânicos ocorre nas descrições da cidade Luso Brasileira nos séculos XVIII e XIX (1783-1845) edificando, portanto, o discurso da imagem de duas alteridades – a do construído e a do construtor – uma preocupação se impõe e objetiva a metodologia do livro lançado no ano de 2010 pela HUCITEC/ FAPESP, a saber, decifrar ao leitor como a historicidade da cidade colonial brasileira é moldada por meio da representação textual elaborada por autores como Debret, Maria Graham, Saint-Hilaire, Spix e Martius como Suzannet, Thevenot, Thomas Lindley e Luccock entre outros tantos citados e estudados por Amilcar Torrão em sua obra que, propositada, “não privilegia um ou outro autor, mas propõe uma visão de conjunto, por amostragem” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 34).

Aqui, vamos tratar do primeiro dos cinco capítulos, tendo em vista que é emblemático, fazendo-se, às vezes, de exórdio para a leitura dos subsequentes, já que desenvolve o raro questionamento do uso dos relatos de viagem pela historiografia posterior como descrições do real e do existente, como documentos de fidelidade objetiva. Assim, com bibliografia crítica contemporânea impecável e variada, surge uma confusão pitoresca a respeito das definições sobre o “gênero viático” – ou para usar sua nomenclatura mais usual – sobre o “gênero literatura de viagem”. Demonstrando que o gênero, portanto, possui diversas definições, podemos considerar então, pelas negativas, que o que não está definido, indefinido está: seja por sua especifica pluralidade, seja pela grande força esponjosa que o termo “gênero” adquire quando se trata de uma categoria trans-histórica como a denominada por “literatura de viagem”, que se apresenta melhor como um frango com tudo dentro do que como um gênero propriamente dito.

Ao apontar, por exemplo, que uma das principais características do gênero é a problemática de classificá-lo porque é “enorme a sua diversidade de registros” e ao mesmo tempo “grande sua permeabilidade” o autor toca num ponto nefrálgico e naufragável ao descrevê-lo “do ponto de vista da forma” como “diário de campo, cartas, relato, relatório científico, itinerário, relato de peregrinação; além de suas formas ficcionais em prosa e poesia” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 39). Nefrálgico, porque a literatura de viagem não foi associada hermeneuticamente na sua ascensão moderna com um gênero maior como o épico, por exemplo, que comportava obrigatoriamente dentro de si preceitos do gênero trágico, dos quais dependia para formar seu conceito e suas regras, mesmo que um estudioso de envergadura de Normand Doiron tenha generalizado sua definição para “um gênero literário claramente constituído, ‘ dotado de um estilo, de uma poética e de uma retórica que lhe são próprias'” e instituído com precisão: “a data da constituição do gênero de viagem em 1632, ano da publicação de três relatos importantes, de Champlain, Lejune e Sagard” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 37).

O que ocorre aqui, é que há um mesmo uso para o termo “gênero” para categorias que foram instituídas e, portanto, definidas anterior ao século XVIII pós-iluminista como a Ars dictaminis e os Tratados de Peregrinação, com termos que foram instituídos no fim do século XVIII, começo do XIX, como “ficção” e “literatura”. Naufragável, porque falar em gênero sem discutir o seu estatuto tão caro primeiramente a Platão e Aristóteles e depois em seu revival no século XVI, quando a Poética e a Retórica foram utilizadas para a confecção de cânones a que as obras deveriam se ajustar e em que são nitidamente demarcadas, não mudando o “tom preceptista a que o tratamento dos gêneros se associava” até o século XVIII (LIMA, 2002, p.258-260). Coloca em primeiro plano o desconhecimento de uma história dos gêneros, em que apenas seus apontamentos históricos nos orientariam para uma discussão que, se fomos nós que paramos não fomos nós que começamos: O que é literatura? O que é história? O que é ficção? O que é verdade histórica? Ou melhor formulando: Como é distinguível num texto o que é ficção do que é história?

A discussão estava em voga, para usar um exemplo próximo, no setecentos português e pode ser encontrada em autores como Cândido Lusitano e Francisco de Mello e Pina, ou, como fundamenta Adma Muhana “para a poética não se colocou a questão da falsidade ou veracidade da história como matéria da poesia porque a matéria da poesia é as ‘coisas que são, que podem ser, ou que os antigos tiveram por verdadeiras’, importando sim, ‘a conveniência entre as coisas narradas e a imitação conduzidas”. Nesse sentido, “a história também é matéria bruta de toda poesia” e “apresenta-se incompatível com a arte da poesia. Do ponto de vista da poesia, natureza é história. Ou seja, o poeta imita pessoas, coisas e eventos, como os que encontra na história. Mas não são os mesmos: a história narra sucessos ocorridos, já singularizados em sua ocorrência, enquanto o poeta narra ‘verossímeis e possíveis’, nunca esgotados em sua possibilidade de ser” (GAMA, 2009, p.12). Ou, como arqueólogos do saber, podemos desenterrar com Hansen a obra Due Dialogi (1564) de Giorgio Gilio, que “inverteu o conhecido preceito aristotélico da superioridade da poesia, que trata do universal, sobre a história, uma arte das particularidades, afirmando que a história é superior, porque é sempre história sacra” (HANSEN, 1994, p.30). Ou podemos, ainda, recordar, quando se trata de Jean- Batiste Debret, que ” A prescrição de um ‘pintor historiador’ que substitui ‘o pintor poeta’ tinha por referência a fala de um papa, Gregório Magno: ‘A pintura é a história do ignorante’, e logo se transferiu para os discursos, visando regular-lhes a persuasão na propaganda fidei” (HANSEN, 1994, p.30).

No primeiro capítulo do livro de Amilcar Torrão, denominado “Imago Mundi”, chega-se a essa inquestionável pergunta – O que é ficção? – por meio da constatação de que literatura de viagem “trata-se de um gênero compósito, fronteiriço, e esse desejo de clareza e veracidade deve-se em muito, à proximidade que esses textos têm com a ficção, uma tensão que permeia toda a sua história e que colocava problemas difíceis de solucionar” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 43). Nesse sentido, a confusão se torna mais e mais pitoresca: a literatura de ficção e a literatura de viagem se utilizam ambas dos mesmos recursos para formar suas verdades e suas mentiras, ou, suas mentiras e verdades não sabendo mais o leitor o que é verdade ou mentira, o que é ficção o que é história, porque uma se utiliza da outra, sem fronteiras claras, em autores como Defoe, Swift, Walter Scott, Chateaubriand ou até mesmo Italo Calvino. Relembrando, Amilcar autor, obviamente discordando de Sylvie Requemora, que para ele organiza uma apresentação esquemática em demasia do tema:

[…] as relações entre literatura de viagem e a ficção são tão estreitas, que Requemora propõe sua periodização para o século XVII. No período de 1600 a 1640, a teoria da imitação prevalece e os romances barrocos imitam os gregos e os relatos de viagem imitam os relatos da Renascença; de 1640 a 1660 passa-se da imitação à história: seria a época do “Grande Romance” e da “viagem literária”; o terceiro período, entre 1650 a 1700, coloca questões de mímesis e de suas significações, por meio do “romance verdadeiro” e da viagem alegórica; e o período de 1670 a 1700, que vê o apogeu das aproximações entre a literatura e a viagem, com o desenvolvimento das viagens imaginárias e utópicas (TORRÃO FILHO, 2010, p.51).

É como colocar um imã próximo a uma bússola: aqui, obviamente, a confusão já fundamentou seus alicerces, mas para torná-la mais nítida e mais confusa há termos em uso como “retórica”, “tópica” “lugares-comuns (topos)”, “descrição”, “textos retóricos”, “repetição descritiva”, “tradição intertextual da viagem”, “procedimentos retóricos”, “retórica do gênero”, “retórica da alteridade”, “convenção retórica”, seja quando o autor vai tratar diretamente do tema ou quando cita os autores por ele estudados.

No entanto, faz-se necessário explicar, aqui, o que o autor está querendo dizer quando usa o termo “retórica”, tendo em vista que o objetivo do autor é “demonstrar como a descrição textual das cidades na literatura de viagem obedece a certas convenções e a uma ‘teoria’ trazida na bagagem do viajante, aos quais o historiador não pode desprezar ao utilizar-se de uma fonte tão rica de informações e, ao mesmo tempo, tão complexa em sua estrutura” (TORRÃO FILHO, 2010, p.89)

Possivelmente, Amilcar Torrão quando diz “retórica” está a se referir ao conjunto de regras que visam à persuasão cuja realização permite convencer o ouvinte do discurso e mais tarde, o leitor da obra, mesmo se aquilo que se pretende inculcar for “falso”. No entanto, também quando escreve “retórica” em seu texto está usando um termo genérico que não se mais sustenta nos dias de hoje como uma palavra metonímica que em seu todo oculta os detalhes de suas partes como técnica, como ensino, como protociência, como uma moral, como uma prática social e uma prática lúdica. (BARTHES, 1975, p. 148). O uso do termo retórica é usado geralmente para significar um discurso falso, diletante e de empirismo grosseiro, que foi muito bem definido e difundido a partir de Locke, no seu “Ensaio sobre o Entendimento Humano III”, 10, 34:

[…] nós precisamos admitir que toda arte do discurso (redekunst), todo emprego artístico ou figurado das palavras encontrado pela eloqüência, não servem para nada além de provocar representações incertas, suscitar paixões e, através disso, desorientar (missleiten) o juízo, sendo assim, de fato, uma completa fraude (FONSECA, 1999, p.29).

O sentido de retórica como discurso falso é amplamente utilizado pelo senso comum nos séculos posteriores ao XVIII e nos faz esquecer de considerar o que Roland Barthes delineava como um verdadeiro império, um “Império Retórico” mais vasto e mais tenaz que qualquer outra dominação política, que por suas dimensões e duração, faz malograr o próprio quadro da ciência e da reflexão históricas, a ponto de pôr em questão a própria história e de obrigar a conceber o que se pôde chamar, aliás, de uma história monumental. Lembremos, ainda com Barthes, que a retórica, mesmo com suas variações internas do sistema, reinou no Ocidente durante dois milênios e meio, de Górgias a Napoleão III (BARTHES, 1975, p. 150).

As preceptivas Retórica e Poética aristotélicas, claro está, se fundem a partir da época de Augusto com Ovídio e Horácio e são consagradas pelo vocabulário da Idade Média em que as artes poéticas são artes retóricas e os grandes retóricos são poetas. Esta fusão é capital, segundo Barthes, pois está na origem da ideia de literatura. Dessa retórica aristotélica, continua Barthes, teremos a teoria com o próprio Aristóteles, a prática com Cícero, a pedagogia com Quintiliano e a transformação por generalização com Dionisio de Halicarnasso, Plutarco e o Anônimo do tratado Do Sublime (BARTHES, 1975, p.156).

Assim reconsiderada, podemos redefinir que quando se diz retórica não se fala em uma sistematização pós-iluminista do saber, de um ramo que pertence exclusivamente às letras ou à literatura, mas de uma disciplina que – ensinada no Trivium e Quadrivium – se fundamenta no discurso sobre o discurso seja ele histórico, médico, geográfico, teológico, político, aritmético ou poético.

Podemos, agora, restaurar o uso de termos que nos são caros hoje em dia e lhes devemos respeito: “descrição” (descriptio) e “tópica” (topostopoi). A retórica, quando mutilada, fosse pela queda da disciplina na Universidade de Coimbra do Portugal pombalino e seus domínios ultramarinos no século XVIII, fosse por Jakobson que a reduziu toda aos tropos de metáfora e metonímia no século XIX, deixou rabos de lagartixas se mexendo durante os séculos posteriores e ainda estava fartamente em uso no século XIX e no Brasil, como nos demonstra Roberto Acízelo, em “O Império da Eloqüência: Retórica e Poética no Brasil Oitocentista” (SOUZA, 1999). Essa autonomia caudal distraiu seus predadores enquanto se retirava para algum refúgio onde não poderia mais ser vista nem notada.

Da lagartixa retórica, cujo corpo não pode ser pensado sem suas cinco partes, a techne rhetorike compreende, a saber, a inventio, a dispositio, a elocutio, a actio e a memória; além disso, as três primeiras sobreviveram e alimentaram a retórica até o seu último suspiro no século XVIII e as duas últimas (actio e memória) foram rapidamente sacrificadas. Assim, apenas para resumir, quando estamos falando de tópica, estamos nos referindo a lugares que se referem à inventio de um texto, quando apontamos para uma descrição em um texto estamos nos referindo à dispositio de um texto e, por fim, quando nos referimos a metáforas ou a usos alegóricos, estamos tratando da elocutio.

Quando consideramos uma descrição das ruas de uma cidade num texto de um viajante dos séculos XVIII ou XIX e a deslocamos para fundamentar uma argumentação, estamos desconsiderando sua teleologia, isto é, a sua finalidade que comporta uma causa, que por sua vez, está explícita no prêmio da obra, porque não estamos levando em conta seus mecanismos de invenção e disposição retóricas. O uso do termo “descrição” é recorrente e corrente quando se trata da historiografia da literatura de viagem e é importante que se estabeleça, portanto, que a descrição é uma subdivisão, um elemento da narração (narratio) que, por sua vez, pertence à dispositio, e é codificada em topográfica (lugares), cronográfica (tempo) e prosopográfica (retratos).

Já as tópicas – essas formas vazias comuns a todos os argumentos (e quanto mais vazias, mais comuns) não são os próprios argumentos, mas sim os compartimentos em que são ordenados, são estereótipos, proposições muito repetidas, uma reserva plena, um método de se encontrar os argumentos (quis? quid? ubi?) que pertencem à parte da retórica que diz respeito à inventio, “essa parte da retórica encarregada de fornecer conteúdos ao raciocínio” (BARTHES, 1975, p. 194-197) – são amplamente citadas e demonstradas por Amilcar Torrão em todo o livro: tanto as mapeadas pelos Jesuítas (preguiça, hospitalidade), as da falta de letras (letramento) e as da natureza sã versus os maus costumes (PÉCORA, 2001, p.44) – que vai vigorar nas descrições dos viajantes do XVIII e XIX quando o assunto é levado ao limite pelos autores franceses e britânicos ao discorrerem sobre a “imoralidade, desordem e caos da sociedade e das cidades luso-brasileiras (TORRÃO FILHO, 1995, p.205) – quanto as fundamentadas pelos próprios viajantes, como por exemplo, a do “desleixo das edificações” (TORRÃO FILHO, 1995, p. 196), ou da “cidade suja” como poderemos verificar no capítulo quatro e a “tópica dos ciúmes” que advém da falta de gentileza com os viajantes, uma herança portuguesa, já que por três séculos esconderam “ciumentamente sua principal colônia da cobiça das nações mercantes” (TORRÃO FILHO, 1995, p.114, p.212), ecos de uma condenação à colonização portuguesa.

Uma tópica recorrente e bem explorada por Amilcar Torrão é a da “edênica paisagem exterior”, na chegada às cidades do Rio de Janeiro, Salvador ou Olinda, cuja fruição estanca cidade adentro que é obscura com seus negros e bastante suja (TORRÃO FILHO, 1995, p.250). Alegorizando essas paisagens, inicialmente encantadoras, comparando-as com um “anfiteatro” de Salvador no caso de Tollenare como em Arsène Isabelle, em visita ao Rio Grande do Sul, em 1834, onde a cidade de Porto Alegre é “elevada em anfiteatro”; e também por Debret, em 1816, cujo “quadro textual praticamente ignora a presença de uma cidade na paisagem do Rio de Janeiro”; ou o viajante Lacordaire: o que importa é que essas “serão algumas das imagens mais fortes criadas pela literatura de viagem sobre o Rio de Janeiro que serão transpostas a todas as cidades luso-brasileiras: sua beleza ilusória, percebida apenas à distância, enquanto a aproximação do viajante, uma apreciação pedestre da cidade, revela a sua mácula e a sua desordem” (TORRÃO FILHO, 1995, p.238).

Podemos transpor essa metáfora da paisagem inicial como um anfiteatro para outra, a saber, de que essa paisagem é um proêmio, um exórdio que não cumpre o que esboça na sua narração, na sua disposição interior, tornando-a, assim, um monstro, um espetáculo horrendo e mal formado aderindo, aqui, à tópica da doutrina da proporção decorosa dos efeitos das obras, o ut pictura poesis horaciano nos versos 361-365: “como a pintura é a poesia: coisas há que de perto mais te agradam e outras, se a distância estiveres. Esta quer ser vista na obscuridade e aquela à viva luz, por não recear o olhar penetrante dos seus críticos; esta, só uma vez agradou, aquela dez vezes vista, sempre agradará” (HORÁCIO, 1984, p. 109-111).

A paisagem da chegada, portanto, vista de longe, é uma imagem icástica, proporcional ao paradigma do europeu, e a imagem fantástica, a cidade que se adentra, uma deformação ou desproporção da imagem icástica, a cidade de perto, obscura:

[…] a desproporção fantástica pressupõe, mimeticamente, o ponto de vista icástico que a proporciona como desproporção: ela só é fantástica como uma das séries da relação, ou seja, é um efeito, ou um diferencial. Esta relação é objeto de uma arte das desproporções proporcionadas – a cenografia, skenografia– dos tratados de óptica […] Pensando-se o ut pictura poesis cenograficamente, a relação de proporcional/desproporcional – ou de icástico/ fantástico – implica não qualquer proximidade ou qualquer distanciamento, mas, sempre a correta distância, a distância exata […]. (HANSEN, 2007, p. 183).

A vista do arrazoado disposto acima, fica mais claro o entendimento da tópica da natureza sã, exuberante versus os maus costumes, bem como a alegoria da paisagem da chegada nas cidades como anfiteatro.

É inevitável observar que todas essas tópicas irão repercutir em nossa historiografia até os dias de hoje, com base nas determinações de Von Martius em Como se deve escrever à história do Brasil, em 1847, pelo Instituto Histórico e Geográfico, esquecendo, que são tópicas, muitas delas que remontam as obras de Homero, Ovídio ou Virgilio, suas fontes. Por serem tópicas, se repetem por séculos, em vários textos, garantindo a argumentação. Se, dentro delas, propositadamente (claro está: o domínio das técnicas do império retórico não admite nenhuma inocência discursiva) nomes ou livros são citados metonimicamente, estamos invariavelmente entrando no reinado das “auctoritas”, dos argumentos de autoridade. É a esta rede milenar textual maquinada pela retórica que o autor vai denominar, heroicamente, de “Memória de Biblioteca”. (TORRÃO FILHO, 2010, p.302).

Se chamamos o autor de herói é também porque a impecável bibliografia foi por ele composta, nos fornecendo, assim, a chance de ter acesso a uma bibliografia opulenta traçada e usada em todas as páginas do seu livro que demonstra um intelecto hercúleo. Quero deixar claro que a aparente desordem exposta no primeiro capítulo é decorrente da grandeza da matéria tratada pelo autor ao tentar caminhar com as preceptivas da retórica e da historiografia juntas. Se tal metodologia se torna pitoresca é porque a empreitada é salutar: como “ir a Jerusalém caminhando para Emaús”, capitalizando aqui o empréstimo que João Adolfo Hansen fez de um sermão de Vieira. É como se no itinerário traçado para a hipótese desenvolvida por Amilcar Torrão, ele arranjasse confusão no primeiro porto, na primeira parada, ou tivesse que enfrentar o Gigante Adamastor definitivamente para cruzar o Cabo da Boa Esperança, explicando para confundir, confundindo para esclarecer.

No entanto, o autor optou pelo caminho mais longo que é sempre mais curto que o mais curto para usar uma máxima talmúdica: optou por um trajeto desconhecido ao colocar na sua nau elementos da retórica literária como instrumento de navegação que serão então utilizados nos capítulos posteriores para medir tabus historiográficos da terra ignota: mapear a construção da imagem da cidade luso-brasileira por meio da narração da literatura de viagem e dos viajantes franceses e britânicos, desconstruindo, assim, tópicas e lugares-comuns que emprestamos deles para construir as nossas sobre as nossas cidades, coisa que, de quebra, fornece também uma boa oportunidade, após a leitura de “A Arquitetura da Alteridade: A cidade Luso-Brasileira na Literatura de Viagem”, para que se possa dizer ou escrever com consciência histórico-discursiva que o Rio de Janeiro continua lindo, mesmo que isso seja inútil, mesmo que seja só uma paisagem, um retrato num prato, ou uma descrição de Maria Graham.

Referências

BARTHES, R. A Retórica Antiga. In: COHEN, J. et al. Pesquisas de Retórica. Rio de Janeiro: Vozes, 1975, pp.147-227.         [ Links ]

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HANSEN, J. A. Prefácio. In: PÉCORA, A. Teatro do Sacramento. São Paulo: Unicamp/ Edusp, 1994, p. 15-36         [ Links ]

HANSEN, J. A. Ut Pictura Poesis e Verossimilhança na doutrina do conceito no século XVII colonial. Revista de Crítica Literária LatinoAmericana, Peru, Año 23, n 45, p.177-191, 2007.         [ Links ]

HORÁCIO. Arte Poética. Introdução, Tradução e Comentário de R.M. Rosado Fernandes. Lisboa: Inquérito, 1984.         [ Links ]

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NIETZSCHE, F. Curso de Retórica. In: FONSECA, T. L. (tradução e notas). Cadernos de Tradução, São Paulo, nº.4, p. 23-69.         [ Links ]

PÉCORA, A. A Arte das Cartas Jesuíticas do Brasil. In: Máquina de Gêneros. São Paulo: Edusp, 2001.         [ Links ]

SOUZA, R. A. O Império da Eloquência. Rio de Janeiro: Uerj/ Eduff, 1999.         [ Links ]

Luciana Gama (SHLOMIT OR) – Mestre em Teoria e História Literária – IEL/Unicamp – Doutoranda -Programa de Teoria e História Literária -Universidade Estadual de Campinas – IEL/Unicamp – Rua Sérgio Buarque de Holanda, 571. CEP 13083-859 -Campinas – São Paulo e no Dept. of Romance and Latin – American Studies – The Hebrew University of Jerusalém-HUJI. Mount Scopus, 91905 – Jerusalem – Israel. Bolsista Fapesp. E-mail: [email protected].

De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX) – VIDAL (H-Unesp)

VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). Trad. Florence Marie Dravet. Brasília: UnB, 2009. 352 p. Resenha de: TORRÃO FILHO, Amilcar. De nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). História [Unesp] v.30 no.2 Franca Dec. 2011.

O professor Laurent Vidal, da Universidade de La Rochelle se debruçou sobre as cidades brasileiras ou luso-brasileiras em diversas publicações – como a nômade Mazagão, que atravessou o Atlântico, deixando o Marrocos onde era o último bastião português, passando por Lisboa e vindo aportar, finalmente, na Amazônia portuguesa em 17691 –, agora nos traz uma leitura de fôlego da construção de Brasília, nas comemorações de seus 50 anos. Trata-se de sua tese de doutorado defendida na Universidade de Paris III, em 1995, publicada em francês no ano de 2002 pelo Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine. A primeira e mais evidente qualidade deste trabalho é recuperar o longo período no qual a capital brasileira foi projetada no interior de seu imenso território, desde a Nova Lisboa, que seria a nova sede do novo Reino Unido de uma corte no exílio, até a Brasília de Juscelino Kubitschek, saída do traço da arquitetura moderna diretamente para o planalto central. Além disso, o livro tem a preocupação de colocar uma questão importante, sobretudo no caso de Brasília, que está definida em sua introdução; se com Mazagão Vidal havia se perguntado para que serve uma cidade em suspensão e em trânsito, no caso de Brasília ele questiona: “Para que serve uma cidade quando ela não existe?” Questão que é acrescentada por outra, correlata: “A que corresponde essa imperiosa necessidade social de projetar ou fundar, mesmo no papel ou em palavras, as cidades?” (p. 11). Portanto, este trabalho trata destas duas dimensões fundamentais para a compreensão de Brasília, e de todas as capitais sonhadas e desejadas: a sua dimensão material, com as agruras de sua construção e os resultados urbanísticos de sua efetiva ocupação, mas também a sua dimensão projetiva, imaterial, os projetos realizados ou não, os traços de suas utopias que revelam os desejos, as ambições e os planos por trás de sua construção ou o que vai além de sua redução ao puramente utópico ou técnico, este momento, como define o autor, “intermediário, em que a cidade ainda não possui existência física, mas em que já deixou de ser simplesmente uma visão utópica” (p.11).

No caso de Brasília, cidade capital por definição e por projeto, cabe ainda indagar-se sobre o seu papel na construção de uma memória e uma identidade da nação que ela representa, ou do processo pelo qual “a identidade de uma nação ou de uma comunidade pretende espacializar-se”; o que coloca outra pergunta importante: “quem ou o que produz uma cidade para nela depositar uma memória” (p. 16). Não se trata, portanto, apenas de um projeto de cidade nova, é uma nova capital, e uma capital que deve redefinir o país projetando um Brasil moderno, desenvolvido, interiorizado, correspondendo a um “projeto de sociedade” (p. 18). Uma sociedade até então dividida pela antinomia sertão/litoral, que para muitos impedia o desenvolvimento de todas as suas partes; não por acaso, será a nova cidade chamada de a capital da esperança.

O livro está dividido em sete capítulos, seis dos quais dedicados a projetos para a construção da cidade capital que finalmente faria o sertão vencer a dominância do litoral. O primeiro diz respeito à Nova Lisboa, a cidade que seria construída para substituir o Rio de Janeiro como sede da nova monarquia, num momento no qual havia dúvidas em relação à qualidade da nova corte para assumir o papel de capital, por seu terreno pantanoso, seu clima úmido e cheio de insetos. A decisão de manter a capital no Rio de Janeiro levou a cidade a ser remodelada para adequar-se ao decoro de uma capital real, digna da monarquia portuguesa, reformas que são bastante conhecidas e deram grande parte da feição mais típica da cidade tal como a conhecemos. Entretanto, a necessidade de “interiorização” da capital não desaparece das preocupações geopolíticas e estratégicas, presentes nos projetos de Hipólito José da Costa ou de Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira. A grande cidade portuária, para estes autores, não possui as qualidades requeridas a uma verdadeira capital, cuja criação se torna uma exigência de modernização, na qual o autor observa “um deslocamento da representação do espaço construído para o espaço mental, um deslocamento do conceito da cidade, como espaço político, lugar de trocas econômicas e sociais, para seu inverso imaterial, sua idealização” (p. 48).

O capítulo seguinte trata de projeto similar, já agora no âmbito da construção do Estado nacional separado de Portugal, a Cidade Pedrália, indefectível referência ao príncipe, depois imperador, Pedro I, homenagem de seu idealizador, o desconhecido Paulo Ferreira Menezes Palmiro. A nova capital era parte de um projeto de interiorização e povoamento do imenso interior, o “desertão” brasileiro, de José Bonifácio, o Patriarca, bem como uma estratégia para garantia da unidade territorial e a sua consequente definição da nacionalidade brasileira. Não por acaso a sua localização teria como “coluna vertebral”, diz o autor, o rio São Francisco, o rio da unidade nacional para muitos (p. 61). Apesar destes projetos, para Vidal, a permanência do Rio de Janeiro como capital imperial “se inscreve na lógica do projeto geopolítico definido pelo imperador: inserção da jovem nação brasileira no mercado comercial internacional”, com a necessidade de manter a capital num porto e seguindo a política imaginada por João VI, a “vocação do Brasil como nação ‘européia'” (p. 63). Processo coerente com outra interiorização, diferente da projetada aqui na transferência da capital para o sertão, aquela descrita por Silva Dias, o enraizamento de interesses portugueses no Brasil e o processo de interiorização da metrópole no centro-sul da colônia, sendo a separação com Portugal resultado de um aumento das divergências entre os interesses portugueses no Brasil e o Reino2. É muito mais uma interiorização centrada no Rio de Janeiro, incompatível com a transferência da sede de governo para o interior. Vidal, neste capítulo, recupera o esquecido projeto ilustrado e racional da Cidade Pedrália, de Menezes Palmiro, que pretendia dar corpo a uma ambição social e geopolítica que rompia com os modelos urbanos adotados pelos portugueses até então (p. 70).

O projeto seguinte é Imperatória ou, como diz o título deste terceiro capítulo, o sonho de uma São Petersburgo tropical, seguindo as intermináveis dúvidas em relação à capacidade do Rio de Janeiro em representar bem seu papel de capital. Trata-se do projeto de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, que critica justamente o comprometimento das principais cidades brasileiras com o comércio internacional, com a exterioridade, não dando espaço à necessária construção da nacionalidade brasileira, que o Visconde buscou tanto na história quanto num projeto de capital. O interior, o homem do sertão seriam, na visão de Varnhagen, os instrumentos de redenção do país, Minas seria, então, a Castela do Brasil (p. 87). O Visconde de Porto Seguro se insere, ao mesmo tempo, num rompimento com o modelo colonizador português que convive com a sua inserção em seu modelo civilizatório lusitano, que afirma a posição preeminente da população branca no controle do aparelho de Estado. Seu modelo urbanizador vê na cidade não um quadro estático, mas “o local, o motor da modernização. Imperatória é assim a cidade do homem brasileiro reconciliado com a modernidade” (p. 100).

O quarto capítulo/projeto trata de Tiradentes, não a cidade mineira antiga São José Del Rei, mas um projeto republicano para uma nova capital que se torna um dispositivo constitucional na República. Trata-se, para Vidal, de um projeto de mudança que oferece “a possibilidade de planejar uma cidade especialmente destinada às elites, uma cidade sem povo” (p. 104). Em 1892, é criada a célebre Comissão de exploração do Planalto Central do Brasil, dirigida por Luís Cruls, diretor do Observatório Astronômico do Rio de Janeiro, que deveria demarcar a localização da nova capital. Para o autor, a mudança funcionava, para as elites republicanas, como uma forma de “conjurar o medo da cidade, da grande cidade como o Rio que, todo dia, inquieta um pouco mais os republicanos no poder” (p. 124-125). O medo, presente tanto em liberais como em conservadores, de que o crescimento da cidade seja acompanhado pelo direito à cidade, o direito à cidadania. Esta discussão se apoia muito menos no conceito de progresso da nação do que na construção de uma nacionalidade na qual a cidade grande aparece para muitos, como Euclides da Cunha, citado por Vidal, como um espaço demasiadamente cosmopolita, que impõe modelos culturais importados, que não traduzem o espírito brasileiro. Uma capital cosmopolita, nessa visão, não seria uma adequada cabeça da nação, não pensaria o país de acordo com os interesses brasileiros (p. 129). Concepção que teria muita fortuna no meio intelectual e acadêmico, das ideias fora de lugar, importadas, que não estariam aclimatadas à “realidade” e ao espírito nacional. Esta visão da capital se materializa não no Planalto Central e na substituição do Rio de Janeiro, mas pela construção de Belo Horizonte, paralelamente às reformas de Pereira Passos, nova adequação da capital carioca aos desígnios das elites. Em 1930, Teodoro Figueira de Almeida propõe no jornal A Ordem um projeto de nova capital chamado Brasília: a cidade histórica da América, demonstrando, segundo Vidal, um gesto deliberado de tentativa de “reescritura da história” por meio da forma urbana, que poderia materializar o sonho de uma “capital sem povo” (p. 142).

A sequência do trabalho de Vidal nos revela como, no tema da nova capital, perpassou praticamente todos os governos monárquicos ou republicanos. O quinto projeto/capítulo trata do período Vargas, que retoma a discussão sobre a transferência para o centro do Brasil de sua sede de poder. Para Vidal, a instauração do Estado Novo, em 1937, procura estabelecer um Estado verdadeiramente nacional, o que implica uma nova divisão territorial do país, o estabelecimento de uma nova geografia, o que culmina com a criação do IBGE, em 1938. Para o autor, está em processo também, no Brasil deste momento, uma “reavaliação do papel da cidade nas atividades de uma nação”, o que é visível, por exemplo, na construção de Goiânia, cujo plano levaria em conta a dupla natureza da cidade, “lugar de exercício do poder e de atividades econômicas e sociais” (p. 156). Em seu segundo governo, Vargas voltaria ao plano de transferência, criando em 1953 a Comissão de Localização da Nova Capital Federal (CLNCF), de evidente tarefa. Neste momento, gesta-se uma ruptura em relação às anteriores propostas, pois aqui não se trata mais de discutir a criação de uma sede administrativa para o país, mas de “dar coerência a uma sociedade não mais dividida, mas reconciliada em torno de um mesmo projeto de futuro” (p. 174).

Um projeto de futuro reconciliado e unificador parece ser o mote para o definitivo projeto de Brasília, obra capital do governo Juscelino Kubitschek, no feliz título de seu sexto capítulo. Vidal trata, aqui, de feitos conhecidos, dando especial atenção ao contexto histórico da construção de Brasília, bem como ao plano vencedor de Lucio Costa e Niemeyer. A qualidade deste capítulo está justamente na forma como as dimensões políticas e arquitetônicas são analisadas na construção, não apenas de uma cidade, mas da “idéia mesmo de capital”, afirmando um Brasil moderno (p. 202). Ou como ressalta adiante, o concurso de Brasília e a sua construção colocam um problema mais amplo do que a simples construção de uma nova cidade, o da “invenção de um urbanismo político adaptado a uma democracia liberal do século XX” (p. 220). O autor vê a possibilidade de um jogo de ambiguidades entre o projeto político e o projeto social de Brasília, ou uma cidade “esticada entre duas tendências: a ambição igualitária do urbanista e do arquiteto e a ambição liberal do político, tudo isso acobertado pela idéia de modernismo” (p. 240). Ou de uma propensão latina de aspiração à grandeza, audácia e imaginação com uma lógica de disciplina que vem tolher estes impulsos.

De Nova Lisboa a Brasília propõe uma leitura histórica da construção de Brasília não apenas no estabelecimento de uma linhagem cronológica dos diversos projetos e planos de transferência, que pela primeira vez foram tratados em seu conjunto como uma unidade, mas também da representação de uma certa imagem de Brasil, de determinadas expectativas deste gesto fundador da criação de uma capital que coincide com o “batizado” do país e que nasce sob o signo deste gesto tão simples de Lucio Costa em forma de uma cruz que designa o plano piloto, dando-lhe uma feição ao mesmo tempo mítica, mística e moderna. A inauguração de Brasília é um ato fundacional; fundação de uma nação moderna, reconciliada, a marca de uma utopia que o urbanismo moderno muitas vezes sonhou, mas poucas vezes pôde realizar, com toda a esperança e a frustração que envolvem as utopias, tão bem descritas neste trabalho que recupera o longo caminho de invenção de uma capital e de um sonho.

1 VIDAL, Laurent, Mazagão: a cidade que atravessou o Atlântico. Trad. port. Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins, 2008. Primeira edição francesa de 2005.
2 DIAS, Maria Odila Leite da Silva, A interiorização da metrópole e outros estudos. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2005.

Amilcar Torrão Filho – Professor Doutor – Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rua Monte Alegre, 984, Perdizes, São Paulo, CEP: 05014-901. E-mail: [email protected].