A construção da identidade nacional nas crônicas da Revista do Brasil – CAMPOS (B-RED)

CAMPOS, Maria Inês Batista. A construção da identidade nacional nas crônicas da Revista do Brasil. São Paulo: Olho d’Água/FAPESP, 2010, 274 p. Resenha de: TREVISAN, Ana Lúcia. A construção da identidade nacional nas crônicas da Revista do Brasil. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso v.7 n.1 São Paulo Jan./June 2012.

A obra de Maria Inês Batista Campos, A construção da identidade nacional nas crônicas da Revista do Brasil, propõe um estudo crítico da formulação discursiva implícita às crônicas veiculadas na Revista do Brasil no período de 1922 a 1925. A pesquisa é fruto da tese de doutorado defendida pela autora na PUC-SP e, transformada em livro, consolida-se em um texto de leitura prazerosa e envolvente, que instiga a reflexão sobre a efervescência das vozes representativas da cultura nacional no início do século XX. Além disso, constrói uma sólida análise de um gênero híbrido e inesgotável: a crônica.

Utilizando como diretriz analítica os estudos do discurso conceituados por M. Bakhtin e seu Círculo, a autora tece um panorama esclarecedor sobre o contexto cultural e histórico da Revista do Brasil. Acompanhando a trajetória editorial da revista, que foi dirigida por Monteiro Lobato de 1918 a 1925, e por Afrânio Peixoto, Paulo Prado e Sérgio Milliet em outros períodos, é possível identificar os caminhos e descaminhos trilhados por escritores e intelectuais que traduziram as muitas faces das identidades nacionais. O estudo dos meandros do tempo e do espaço discursivo anuncia de maneira gradativa a amplitude reflexiva que será posteriormente desenvolvida na análise das 17 crônicas – selecionadas como parte constitutiva do cenário plurívoco da cultura brasileira. Cabe destacar que a forma encontrada para apresentar o corpus, assim como os critérios da seleção cuidadosa, remete à construção dos sentidos dialógicos do discurso, pois, no contexto do mundo da linguagem, vão sendo desvendados os sujeitos históricos por meio de suas citações, marcas de erudição, alusões e ironias, enfim, pela palavra que comunga com as muitas experiências individuais, compondo um quadro discursivo plural da identidade, inserido em um período histórico instigante.

As opiniões políticas e engajamentos culturais dos principais editores da Revista do Brasil são também discutidos no que se refere ao conceito de nacionalismo, que é explorado como diretriz da Revista do Brasil e entendido na sua abrangência significativa, marcada pelos aspectos sociológicos, antropológicos, linguísticos e literários. O projeto nacionalista, personificado na complexidade ideológica dos editores da Revista do Brasil, ganha uma dimensão aprofundada a partir do conceito de dialogismo, uma vez que as muitas vozes referidas e exauridas no interior das crônicas mantêm uma relação ora harmoniosa, ora conflitante com a voz que se distingue como égide dos projetos editoriais incorporados na revista. A análise das crônicas em consonância com a percepção dos muitos nacionalismos brasileiros confere amplitude à obra de Maria Inês Batista Campos. Os leitores encontram a riqueza de um trabalho que entende e demonstra a multiplicidade de tempos, espaços, humores e deslizes de sujeitos distanciados cronologicamente, mas que se tornam vivos em suas posições ideológicas, justamente pela sutileza reveladora da análise discursiva dos muitos interditos.

A comunhão entre as crônicas que compõem o corpus do estudo e o aparato teórico que o sustenta faz dessa obra uma referência valiosa para os estudiosos da cultura brasileira e das relações entre a História e as suas formas de manifestação discursiva. A crônica, entendida como um gênero ambivalente, potencialmente híbrido e plurissignificativo, é apresentada como espaço discursivo privilegiado, propício para o exercício analítico que possui a ideia do cronotopo como força centrípeta.

A obra constrói uma análise a partir da leitura do discurso veemente e perspicaz dos cronistas, que revelaram em seus textos recortes do debate sobre a identidade nacional. Na leitura contemporânea do passado, realizada pela autora, o tempo das crônicas estudadas se revitaliza, pois ressurge em diálogo com o olhar do século XXI. Nesse sentido, temas como identidade, nacionalismo, cultura letrada, universalismo são presente e passado, são motivos e consequências, são origem e também arcaísmos. Paulatinamente, o discurso acadêmico da autora também incorpora alguns dos sentidos mais intrínsecos a uma boa crônica de cultura ou crônica de arte. Afinal, como mergulhar em um gênero e não se contaminar de seus contornos e acentos? Os leitores ganham com essa inserção em terreno híbrido, realizam um mergulho nos diferentes tempos atualizados pelas análises e seguem as trilhas de um Cronos moderno que permite a intersecção das pertinentes luzes teóricas com as tonalidades difusas de uma época inclinada a coroar grandes verdades.

No debate sobre a identidade feito nas crônicas da Revista do Brasil, seja nas discussões sobre a cultura ou sobre o nacionalismo, nada melhor que o estudo do discurso para desestabilizar verdades e reler os diálogos implícitos além dos travessões ou das aspas que abrem as citações em língua estrangeira. A obra percorre o tortuoso debate cultural do começo do século XX pelas tangentes, pelas entrelinhas, revivendo as vozes que se ocultam nos parênteses e nas referências indiretas. O estudo do discurso contempla as muitas imagens que marcam o “tempo” da crônica e que são uma porta de entrada para avaliar a ambivalência do passado, surgido nas descrições aparentemente despretensiosas das cidades, das exposições de arte, das notícias e impressões sobre países estrangeiros. A reflexão disseminada nas crônicas está ancorada no intervalo de quase um século, o cotidiano está datado, porém, quando a análise explora a interrelação cultural, o diálogo com o presente é profícuo. Ao perceber a dinâmica das vozes nacionais e estrangeiras que permeiam os textos, entende-se que existe um elo permanente no debate sobre a formação da identidade brasileira. Trata-se do diálogo entre o particular e o universal, tema candente no começo do século que pode ser revisitado nos debates da atualidade, ainda que reapareça com novas roupagens ou, até mesmo, seja silenciado.

Na leitura da cultura brasileira, a autora utiliza o olhar estrangeiro para dividir e somar impressões sobre o nacional. Assim, ao analisar as crônicas escritas por João Ribeiro, Sergio Milliet e Rodrigo Andrade, destaca o diálogo com a cultura francesa. Por outro lado, a presença brasileira se concretiza na esfera dos cronistas Martim Francisco, Gastão Cruls, Câmara Cascudo, Frederico Villar e Orlando Machado. Nessa subdivisão dos olhares em contraponto, há um lugar especial reservado ao estudo das crônicas de Mario de Andrade, que remete a um anexo com seis crônicas do escritor paulista. No capítulo que realiza a detalhada análise do corpus, os leitores experimentam o contato direto com as particularidades e minúcias dos textos; ao ler as crônicas pelo olhar crítico da autora, podem desvendar os sentidos das paródias, das imitações, da mistura de gêneros utilizados pelos cronistas e conseguem, assim, perceber como a memória nacional se constrói pelos ecos das palavras. A memória resgatada pela palavra aprofunda a ideia de que, no ato de transitar pelos sentidos da linguagem, recupera-se a possibilidade de entendimento do genuinamente humano.

O panorama estético da época, o perfil intelectual dos cronistas, os muitos projetos de nacionalismo, enfim, o mergulho no caudal das informações que podem ser apreensíveis por meio da análise do discurso, compõem os temas dos capítulos articulados de forma harmônica, que fazem do estudo crítico de Maria Inês Batista Campos uma bela oportunidade de ingresso na ordem da história e da cultura brasileira por meio de um texto envolvente e lúcido.

Ana Lúcia Trevisan – Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie – UPM, São Paulo, São Paulo, Brasil; [email protected].

A arquitetura da alteridade: A cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845) – TORRÃO FILHO (H-Unesp)

TORRÃO FILHO, Amilcar. A arquitetura da alteridade: A cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2010. 347 p. Resenha de: GAMA, Luciana. Retórica na Pitoresca Confusão da Literatura de Viagem. História [Unesp] v.30 no.2 Franca Dec. 2011.

Ordem para a cidade é o heroísmo dos homens, para o corpo a beleza, para a alma a sabedoria, para o ato a excelência, para o discurso a verdade; o contrário disso é a desordem. E, em relação ao homem, à mulher, ao discurso, à ação, à cidade e ao ato particular é necessário honrar com louvor o digno de louvor e sobre o indigno aplicar censura; pois igual erro e ignorância é censurar as coisas louváveis e louvar as censuráveis.

(Górgias, Elogio de Helena).

Com o intuito de demonstrar como o caráter identitário presente nos relatos dos viajantes franceses e britânicos ocorre nas descrições da cidade Luso Brasileira nos séculos XVIII e XIX (1783-1845) edificando, portanto, o discurso da imagem de duas alteridades – a do construído e a do construtor – uma preocupação se impõe e objetiva a metodologia do livro lançado no ano de 2010 pela HUCITEC/ FAPESP, a saber, decifrar ao leitor como a historicidade da cidade colonial brasileira é moldada por meio da representação textual elaborada por autores como Debret, Maria Graham, Saint-Hilaire, Spix e Martius como Suzannet, Thevenot, Thomas Lindley e Luccock entre outros tantos citados e estudados por Amilcar Torrão em sua obra que, propositada, “não privilegia um ou outro autor, mas propõe uma visão de conjunto, por amostragem” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 34).

Aqui, vamos tratar do primeiro dos cinco capítulos, tendo em vista que é emblemático, fazendo-se, às vezes, de exórdio para a leitura dos subsequentes, já que desenvolve o raro questionamento do uso dos relatos de viagem pela historiografia posterior como descrições do real e do existente, como documentos de fidelidade objetiva. Assim, com bibliografia crítica contemporânea impecável e variada, surge uma confusão pitoresca a respeito das definições sobre o “gênero viático” – ou para usar sua nomenclatura mais usual – sobre o “gênero literatura de viagem”. Demonstrando que o gênero, portanto, possui diversas definições, podemos considerar então, pelas negativas, que o que não está definido, indefinido está: seja por sua especifica pluralidade, seja pela grande força esponjosa que o termo “gênero” adquire quando se trata de uma categoria trans-histórica como a denominada por “literatura de viagem”, que se apresenta melhor como um frango com tudo dentro do que como um gênero propriamente dito.

Ao apontar, por exemplo, que uma das principais características do gênero é a problemática de classificá-lo porque é “enorme a sua diversidade de registros” e ao mesmo tempo “grande sua permeabilidade” o autor toca num ponto nefrálgico e naufragável ao descrevê-lo “do ponto de vista da forma” como “diário de campo, cartas, relato, relatório científico, itinerário, relato de peregrinação; além de suas formas ficcionais em prosa e poesia” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 39). Nefrálgico, porque a literatura de viagem não foi associada hermeneuticamente na sua ascensão moderna com um gênero maior como o épico, por exemplo, que comportava obrigatoriamente dentro de si preceitos do gênero trágico, dos quais dependia para formar seu conceito e suas regras, mesmo que um estudioso de envergadura de Normand Doiron tenha generalizado sua definição para “um gênero literário claramente constituído, ‘ dotado de um estilo, de uma poética e de uma retórica que lhe são próprias'” e instituído com precisão: “a data da constituição do gênero de viagem em 1632, ano da publicação de três relatos importantes, de Champlain, Lejune e Sagard” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 37).

O que ocorre aqui, é que há um mesmo uso para o termo “gênero” para categorias que foram instituídas e, portanto, definidas anterior ao século XVIII pós-iluminista como a Ars dictaminis e os Tratados de Peregrinação, com termos que foram instituídos no fim do século XVIII, começo do XIX, como “ficção” e “literatura”. Naufragável, porque falar em gênero sem discutir o seu estatuto tão caro primeiramente a Platão e Aristóteles e depois em seu revival no século XVI, quando a Poética e a Retórica foram utilizadas para a confecção de cânones a que as obras deveriam se ajustar e em que são nitidamente demarcadas, não mudando o “tom preceptista a que o tratamento dos gêneros se associava” até o século XVIII (LIMA, 2002, p.258-260). Coloca em primeiro plano o desconhecimento de uma história dos gêneros, em que apenas seus apontamentos históricos nos orientariam para uma discussão que, se fomos nós que paramos não fomos nós que começamos: O que é literatura? O que é história? O que é ficção? O que é verdade histórica? Ou melhor formulando: Como é distinguível num texto o que é ficção do que é história?

A discussão estava em voga, para usar um exemplo próximo, no setecentos português e pode ser encontrada em autores como Cândido Lusitano e Francisco de Mello e Pina, ou, como fundamenta Adma Muhana “para a poética não se colocou a questão da falsidade ou veracidade da história como matéria da poesia porque a matéria da poesia é as ‘coisas que são, que podem ser, ou que os antigos tiveram por verdadeiras’, importando sim, ‘a conveniência entre as coisas narradas e a imitação conduzidas”. Nesse sentido, “a história também é matéria bruta de toda poesia” e “apresenta-se incompatível com a arte da poesia. Do ponto de vista da poesia, natureza é história. Ou seja, o poeta imita pessoas, coisas e eventos, como os que encontra na história. Mas não são os mesmos: a história narra sucessos ocorridos, já singularizados em sua ocorrência, enquanto o poeta narra ‘verossímeis e possíveis’, nunca esgotados em sua possibilidade de ser” (GAMA, 2009, p.12). Ou, como arqueólogos do saber, podemos desenterrar com Hansen a obra Due Dialogi (1564) de Giorgio Gilio, que “inverteu o conhecido preceito aristotélico da superioridade da poesia, que trata do universal, sobre a história, uma arte das particularidades, afirmando que a história é superior, porque é sempre história sacra” (HANSEN, 1994, p.30). Ou podemos, ainda, recordar, quando se trata de Jean- Batiste Debret, que ” A prescrição de um ‘pintor historiador’ que substitui ‘o pintor poeta’ tinha por referência a fala de um papa, Gregório Magno: ‘A pintura é a história do ignorante’, e logo se transferiu para os discursos, visando regular-lhes a persuasão na propaganda fidei” (HANSEN, 1994, p.30).

No primeiro capítulo do livro de Amilcar Torrão, denominado “Imago Mundi”, chega-se a essa inquestionável pergunta – O que é ficção? – por meio da constatação de que literatura de viagem “trata-se de um gênero compósito, fronteiriço, e esse desejo de clareza e veracidade deve-se em muito, à proximidade que esses textos têm com a ficção, uma tensão que permeia toda a sua história e que colocava problemas difíceis de solucionar” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 43). Nesse sentido, a confusão se torna mais e mais pitoresca: a literatura de ficção e a literatura de viagem se utilizam ambas dos mesmos recursos para formar suas verdades e suas mentiras, ou, suas mentiras e verdades não sabendo mais o leitor o que é verdade ou mentira, o que é ficção o que é história, porque uma se utiliza da outra, sem fronteiras claras, em autores como Defoe, Swift, Walter Scott, Chateaubriand ou até mesmo Italo Calvino. Relembrando, Amilcar autor, obviamente discordando de Sylvie Requemora, que para ele organiza uma apresentação esquemática em demasia do tema:

[…] as relações entre literatura de viagem e a ficção são tão estreitas, que Requemora propõe sua periodização para o século XVII. No período de 1600 a 1640, a teoria da imitação prevalece e os romances barrocos imitam os gregos e os relatos de viagem imitam os relatos da Renascença; de 1640 a 1660 passa-se da imitação à história: seria a época do “Grande Romance” e da “viagem literária”; o terceiro período, entre 1650 a 1700, coloca questões de mímesis e de suas significações, por meio do “romance verdadeiro” e da viagem alegórica; e o período de 1670 a 1700, que vê o apogeu das aproximações entre a literatura e a viagem, com o desenvolvimento das viagens imaginárias e utópicas (TORRÃO FILHO, 2010, p.51).

É como colocar um imã próximo a uma bússola: aqui, obviamente, a confusão já fundamentou seus alicerces, mas para torná-la mais nítida e mais confusa há termos em uso como “retórica”, “tópica” “lugares-comuns (topos)”, “descrição”, “textos retóricos”, “repetição descritiva”, “tradição intertextual da viagem”, “procedimentos retóricos”, “retórica do gênero”, “retórica da alteridade”, “convenção retórica”, seja quando o autor vai tratar diretamente do tema ou quando cita os autores por ele estudados.

No entanto, faz-se necessário explicar, aqui, o que o autor está querendo dizer quando usa o termo “retórica”, tendo em vista que o objetivo do autor é “demonstrar como a descrição textual das cidades na literatura de viagem obedece a certas convenções e a uma ‘teoria’ trazida na bagagem do viajante, aos quais o historiador não pode desprezar ao utilizar-se de uma fonte tão rica de informações e, ao mesmo tempo, tão complexa em sua estrutura” (TORRÃO FILHO, 2010, p.89)

Possivelmente, Amilcar Torrão quando diz “retórica” está a se referir ao conjunto de regras que visam à persuasão cuja realização permite convencer o ouvinte do discurso e mais tarde, o leitor da obra, mesmo se aquilo que se pretende inculcar for “falso”. No entanto, também quando escreve “retórica” em seu texto está usando um termo genérico que não se mais sustenta nos dias de hoje como uma palavra metonímica que em seu todo oculta os detalhes de suas partes como técnica, como ensino, como protociência, como uma moral, como uma prática social e uma prática lúdica. (BARTHES, 1975, p. 148). O uso do termo retórica é usado geralmente para significar um discurso falso, diletante e de empirismo grosseiro, que foi muito bem definido e difundido a partir de Locke, no seu “Ensaio sobre o Entendimento Humano III”, 10, 34:

[…] nós precisamos admitir que toda arte do discurso (redekunst), todo emprego artístico ou figurado das palavras encontrado pela eloqüência, não servem para nada além de provocar representações incertas, suscitar paixões e, através disso, desorientar (missleiten) o juízo, sendo assim, de fato, uma completa fraude (FONSECA, 1999, p.29).

O sentido de retórica como discurso falso é amplamente utilizado pelo senso comum nos séculos posteriores ao XVIII e nos faz esquecer de considerar o que Roland Barthes delineava como um verdadeiro império, um “Império Retórico” mais vasto e mais tenaz que qualquer outra dominação política, que por suas dimensões e duração, faz malograr o próprio quadro da ciência e da reflexão históricas, a ponto de pôr em questão a própria história e de obrigar a conceber o que se pôde chamar, aliás, de uma história monumental. Lembremos, ainda com Barthes, que a retórica, mesmo com suas variações internas do sistema, reinou no Ocidente durante dois milênios e meio, de Górgias a Napoleão III (BARTHES, 1975, p. 150).

As preceptivas Retórica e Poética aristotélicas, claro está, se fundem a partir da época de Augusto com Ovídio e Horácio e são consagradas pelo vocabulário da Idade Média em que as artes poéticas são artes retóricas e os grandes retóricos são poetas. Esta fusão é capital, segundo Barthes, pois está na origem da ideia de literatura. Dessa retórica aristotélica, continua Barthes, teremos a teoria com o próprio Aristóteles, a prática com Cícero, a pedagogia com Quintiliano e a transformação por generalização com Dionisio de Halicarnasso, Plutarco e o Anônimo do tratado Do Sublime (BARTHES, 1975, p.156).

Assim reconsiderada, podemos redefinir que quando se diz retórica não se fala em uma sistematização pós-iluminista do saber, de um ramo que pertence exclusivamente às letras ou à literatura, mas de uma disciplina que – ensinada no Trivium e Quadrivium – se fundamenta no discurso sobre o discurso seja ele histórico, médico, geográfico, teológico, político, aritmético ou poético.

Podemos, agora, restaurar o uso de termos que nos são caros hoje em dia e lhes devemos respeito: “descrição” (descriptio) e “tópica” (topostopoi). A retórica, quando mutilada, fosse pela queda da disciplina na Universidade de Coimbra do Portugal pombalino e seus domínios ultramarinos no século XVIII, fosse por Jakobson que a reduziu toda aos tropos de metáfora e metonímia no século XIX, deixou rabos de lagartixas se mexendo durante os séculos posteriores e ainda estava fartamente em uso no século XIX e no Brasil, como nos demonstra Roberto Acízelo, em “O Império da Eloqüência: Retórica e Poética no Brasil Oitocentista” (SOUZA, 1999). Essa autonomia caudal distraiu seus predadores enquanto se retirava para algum refúgio onde não poderia mais ser vista nem notada.

Da lagartixa retórica, cujo corpo não pode ser pensado sem suas cinco partes, a techne rhetorike compreende, a saber, a inventio, a dispositio, a elocutio, a actio e a memória; além disso, as três primeiras sobreviveram e alimentaram a retórica até o seu último suspiro no século XVIII e as duas últimas (actio e memória) foram rapidamente sacrificadas. Assim, apenas para resumir, quando estamos falando de tópica, estamos nos referindo a lugares que se referem à inventio de um texto, quando apontamos para uma descrição em um texto estamos nos referindo à dispositio de um texto e, por fim, quando nos referimos a metáforas ou a usos alegóricos, estamos tratando da elocutio.

Quando consideramos uma descrição das ruas de uma cidade num texto de um viajante dos séculos XVIII ou XIX e a deslocamos para fundamentar uma argumentação, estamos desconsiderando sua teleologia, isto é, a sua finalidade que comporta uma causa, que por sua vez, está explícita no prêmio da obra, porque não estamos levando em conta seus mecanismos de invenção e disposição retóricas. O uso do termo “descrição” é recorrente e corrente quando se trata da historiografia da literatura de viagem e é importante que se estabeleça, portanto, que a descrição é uma subdivisão, um elemento da narração (narratio) que, por sua vez, pertence à dispositio, e é codificada em topográfica (lugares), cronográfica (tempo) e prosopográfica (retratos).

Já as tópicas – essas formas vazias comuns a todos os argumentos (e quanto mais vazias, mais comuns) não são os próprios argumentos, mas sim os compartimentos em que são ordenados, são estereótipos, proposições muito repetidas, uma reserva plena, um método de se encontrar os argumentos (quis? quid? ubi?) que pertencem à parte da retórica que diz respeito à inventio, “essa parte da retórica encarregada de fornecer conteúdos ao raciocínio” (BARTHES, 1975, p. 194-197) – são amplamente citadas e demonstradas por Amilcar Torrão em todo o livro: tanto as mapeadas pelos Jesuítas (preguiça, hospitalidade), as da falta de letras (letramento) e as da natureza sã versus os maus costumes (PÉCORA, 2001, p.44) – que vai vigorar nas descrições dos viajantes do XVIII e XIX quando o assunto é levado ao limite pelos autores franceses e britânicos ao discorrerem sobre a “imoralidade, desordem e caos da sociedade e das cidades luso-brasileiras (TORRÃO FILHO, 1995, p.205) – quanto as fundamentadas pelos próprios viajantes, como por exemplo, a do “desleixo das edificações” (TORRÃO FILHO, 1995, p. 196), ou da “cidade suja” como poderemos verificar no capítulo quatro e a “tópica dos ciúmes” que advém da falta de gentileza com os viajantes, uma herança portuguesa, já que por três séculos esconderam “ciumentamente sua principal colônia da cobiça das nações mercantes” (TORRÃO FILHO, 1995, p.114, p.212), ecos de uma condenação à colonização portuguesa.

Uma tópica recorrente e bem explorada por Amilcar Torrão é a da “edênica paisagem exterior”, na chegada às cidades do Rio de Janeiro, Salvador ou Olinda, cuja fruição estanca cidade adentro que é obscura com seus negros e bastante suja (TORRÃO FILHO, 1995, p.250). Alegorizando essas paisagens, inicialmente encantadoras, comparando-as com um “anfiteatro” de Salvador no caso de Tollenare como em Arsène Isabelle, em visita ao Rio Grande do Sul, em 1834, onde a cidade de Porto Alegre é “elevada em anfiteatro”; e também por Debret, em 1816, cujo “quadro textual praticamente ignora a presença de uma cidade na paisagem do Rio de Janeiro”; ou o viajante Lacordaire: o que importa é que essas “serão algumas das imagens mais fortes criadas pela literatura de viagem sobre o Rio de Janeiro que serão transpostas a todas as cidades luso-brasileiras: sua beleza ilusória, percebida apenas à distância, enquanto a aproximação do viajante, uma apreciação pedestre da cidade, revela a sua mácula e a sua desordem” (TORRÃO FILHO, 1995, p.238).

Podemos transpor essa metáfora da paisagem inicial como um anfiteatro para outra, a saber, de que essa paisagem é um proêmio, um exórdio que não cumpre o que esboça na sua narração, na sua disposição interior, tornando-a, assim, um monstro, um espetáculo horrendo e mal formado aderindo, aqui, à tópica da doutrina da proporção decorosa dos efeitos das obras, o ut pictura poesis horaciano nos versos 361-365: “como a pintura é a poesia: coisas há que de perto mais te agradam e outras, se a distância estiveres. Esta quer ser vista na obscuridade e aquela à viva luz, por não recear o olhar penetrante dos seus críticos; esta, só uma vez agradou, aquela dez vezes vista, sempre agradará” (HORÁCIO, 1984, p. 109-111).

A paisagem da chegada, portanto, vista de longe, é uma imagem icástica, proporcional ao paradigma do europeu, e a imagem fantástica, a cidade que se adentra, uma deformação ou desproporção da imagem icástica, a cidade de perto, obscura:

[…] a desproporção fantástica pressupõe, mimeticamente, o ponto de vista icástico que a proporciona como desproporção: ela só é fantástica como uma das séries da relação, ou seja, é um efeito, ou um diferencial. Esta relação é objeto de uma arte das desproporções proporcionadas – a cenografia, skenografia– dos tratados de óptica […] Pensando-se o ut pictura poesis cenograficamente, a relação de proporcional/desproporcional – ou de icástico/ fantástico – implica não qualquer proximidade ou qualquer distanciamento, mas, sempre a correta distância, a distância exata […]. (HANSEN, 2007, p. 183).

A vista do arrazoado disposto acima, fica mais claro o entendimento da tópica da natureza sã, exuberante versus os maus costumes, bem como a alegoria da paisagem da chegada nas cidades como anfiteatro.

É inevitável observar que todas essas tópicas irão repercutir em nossa historiografia até os dias de hoje, com base nas determinações de Von Martius em Como se deve escrever à história do Brasil, em 1847, pelo Instituto Histórico e Geográfico, esquecendo, que são tópicas, muitas delas que remontam as obras de Homero, Ovídio ou Virgilio, suas fontes. Por serem tópicas, se repetem por séculos, em vários textos, garantindo a argumentação. Se, dentro delas, propositadamente (claro está: o domínio das técnicas do império retórico não admite nenhuma inocência discursiva) nomes ou livros são citados metonimicamente, estamos invariavelmente entrando no reinado das “auctoritas”, dos argumentos de autoridade. É a esta rede milenar textual maquinada pela retórica que o autor vai denominar, heroicamente, de “Memória de Biblioteca”. (TORRÃO FILHO, 2010, p.302).

Se chamamos o autor de herói é também porque a impecável bibliografia foi por ele composta, nos fornecendo, assim, a chance de ter acesso a uma bibliografia opulenta traçada e usada em todas as páginas do seu livro que demonstra um intelecto hercúleo. Quero deixar claro que a aparente desordem exposta no primeiro capítulo é decorrente da grandeza da matéria tratada pelo autor ao tentar caminhar com as preceptivas da retórica e da historiografia juntas. Se tal metodologia se torna pitoresca é porque a empreitada é salutar: como “ir a Jerusalém caminhando para Emaús”, capitalizando aqui o empréstimo que João Adolfo Hansen fez de um sermão de Vieira. É como se no itinerário traçado para a hipótese desenvolvida por Amilcar Torrão, ele arranjasse confusão no primeiro porto, na primeira parada, ou tivesse que enfrentar o Gigante Adamastor definitivamente para cruzar o Cabo da Boa Esperança, explicando para confundir, confundindo para esclarecer.

No entanto, o autor optou pelo caminho mais longo que é sempre mais curto que o mais curto para usar uma máxima talmúdica: optou por um trajeto desconhecido ao colocar na sua nau elementos da retórica literária como instrumento de navegação que serão então utilizados nos capítulos posteriores para medir tabus historiográficos da terra ignota: mapear a construção da imagem da cidade luso-brasileira por meio da narração da literatura de viagem e dos viajantes franceses e britânicos, desconstruindo, assim, tópicas e lugares-comuns que emprestamos deles para construir as nossas sobre as nossas cidades, coisa que, de quebra, fornece também uma boa oportunidade, após a leitura de “A Arquitetura da Alteridade: A cidade Luso-Brasileira na Literatura de Viagem”, para que se possa dizer ou escrever com consciência histórico-discursiva que o Rio de Janeiro continua lindo, mesmo que isso seja inútil, mesmo que seja só uma paisagem, um retrato num prato, ou uma descrição de Maria Graham.

Referências

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SOUZA, R. A. O Império da Eloquência. Rio de Janeiro: Uerj/ Eduff, 1999.         [ Links ]

Luciana Gama (SHLOMIT OR) – Mestre em Teoria e História Literária – IEL/Unicamp – Doutoranda -Programa de Teoria e História Literária -Universidade Estadual de Campinas – IEL/Unicamp – Rua Sérgio Buarque de Holanda, 571. CEP 13083-859 -Campinas – São Paulo e no Dept. of Romance and Latin – American Studies – The Hebrew University of Jerusalém-HUJI. Mount Scopus, 91905 – Jerusalem – Israel. Bolsista Fapesp. E-mail: [email protected].

Profissão Artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras – SIMIONI (H-Unesp)

SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Profissão Artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 2008, 360p., ISBN 8531410754. Resenha de: FANINI, Michele Asmar. Nem excepcionais, nem amadoras: Artistas Profissionais. História [Unesp] v.28 no.2 Franca  2009.

Tese de doutorado elaborada por Ana Paula Cavalcanti Simioni, ora convertida em livro, Profissão Artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras preenche uma importante lacuna nos estudos sobre a sociologia da arte brasileira, e não apenas em virtude do original recorte estabelecido pela autora mas, sobretudo, pela riqueza das fontes compulsadas, que garantiram seu criterioso encaminhamento.

Como o próprio título sugere, o livro apresenta como fio condutor a investigação acerca das possibilidades de profissionalização feminina na esfera das “belas artes” brasileira, em sua fase acadêmica, mais precisamente, durante o período que enfeixa os anos de 1884 e 1922. De saída, é possível notar que o recorte temporal se define como um contraponto à “tendência a se desqualificar tudo o que fosse anterior ao modernismo paulista” (p.23), i.e., à artificialidade daquelas disposições responsáveis pela transformação do entresséculos em alvo privilegiado de um processo intenso de deslegitimação encetadas, por sua fase subseqüente, a saber, a modernista (MICELI, 1977; PASSIANI, 2003). Além disso, as datas que delimitam o intervalo em tela correspondem a acontecimentos em nada fortuitos: o ponto de partida, 1884, é o ano em que a artista plástica Abigail de Andrade é agraciada com a medalha de ouro em duas, das cinco obras que exibe na Exposição Geral (p. 206), enquanto o ano de 1922 não apenas representa, simbolicamente, o ocaso do academicismo, com a Semana de Arte Moderna, como assiste à consagração de Georgina de Albuquerque no gênero artístico que ocupava o topo da escala hierárquica acadêmica, até então marcadamente masculino, qual seja, a pintura de história (p.286-287).

Mais propriamente, a construção do objeto de investigação se processa a partir da constatação da existência de uma incongruência entre, de um lado, as canônicas presenças de artistas como Anita Malfatti e Tarsila do Amaral em nosso “panteão estético” e, de outro, a aparente ausência de antecessoras de semelhante “quilate” na história da arte brasileira imediatamente pregressa, tanto na pintura quanto na escultura. Uma vez diagnosticada tal “descontinuidade”, Ana Paula Cavalcanti Simioni considera improcedente a existência de tão celebrados nomes em nosso cenário modernista, sem que houvesse uma tradição anterior de mulheres artistas que os justificasse. Portanto, a hipótese da autora erige-se sobre tal desconfiança, e acena para a necessidade de problematização da presença destas renomadas artistas como “casos isolados”: elas seriam, antes disso, parte de uma memória pouco conhecida e, tal como comprova, artificialmente obnubilada pelos sujeitos responsáveis por sua “escrita” (críticos e historiadores da arte, museólogos, curadores).

A acertada aposta em tal incoerência conduz Simioni a desbravar aqueles espaços “intencionalmente esquecidos” pela história da pintura no Brasil, procedendo à desconstrução da imagem de “mulheres excepcionais”, que as artistas modernistas em questão exemplarmente recendem. A problematização desta “terminologia de supervalorização de uma minoria” deixa evidente a existência de uma pronunciada relação entre seu estratégico manejo e a enviesada construção do cânone artístico, edificado sobre grandes “lacunas historiográficas” (p.36), ficando relegadas à sombra importantes presenças femininas da tradição artística anterior ao modernismo, encobertas pelo cintilante véu da autoritária excepcionalidade.

O cenário, por excelência, da análise, não poderia ser outro, senão o Rio de Janeiro, e por fatores multifários, relacionados à posição privilegiada que a cidade ocupava no circuito da produção estética nacional, o que se deve ao fato de ter sediado a Imperial Academia de Belas Artes e sua sucessora republicana, a Escola Nacional de Belas Artes, espaço de formação artística prestigiado, que não só monopolizava o principal canal de exposição de arte acadêmica, o salão anual, como atuava na subvenção de artistas, na promoção de cerimônias de premiação etc. Contudo, a influência da França, principal pólo de difusão cultural do período, não haveria de ser negligenciada em um estudo desta envergadura. Levando isto em conta, e sem perder de vista seu foco de interesse, Simioni expande seu recorte, de modo a contemplar o impacto da Académie Julian, escola privada inaugurada em 1867 por Rodolf Julian (1839-1907), internacionalmente reconhecida, no processo de formação das artistas brasileiras.

Conciliando um ambiente “bem freqüentado”, ou seja, exclusivamente composto por mulheres de recursos, a um rigor técnico comparável ao da EBA [École de Beaux-Arts], a escola [Académie Julian] tornou-se um sucesso universal, atraindo jovens de todo o mundo para seus quadros. E as mulheres eram um excelente negócio na medida em que pagavam o dobro para uma formação quase equivalente à dos colegas (p. 156).

Para comprovar e fundamentar suas suposições iniciais, a autora recorre a acervos públicos e particulares do Brasil e da França, detendo-se especialmente em dicionários e nos catálogos de Exposições Gerais de Belas-Artes e dos Salões Nacionais de Belas-Artes, vindo a identificar entre eles uma notável dissonância. Com efeito, o mergulho nos “desvãos” documentais lhe revelou a não-correspondência entre os nomes registrados nos dicionários, que atestavam a quase ausência de artistas brasileiras no período estudado, e os referidos catálogos, que bradavam a impressionante cifra de mais de duzentas expositoras. O acesso a tais fontes lhe facultou a elaboração de um “Campo das Mulheres”, formado por um contingente significativo de artistas do sexo feminino, que expuseram seus trabalhos e obtiveram algum tipo de reconhecimento nas artes plásticas. Tal empreitada deixa evidente que a “ausência” de artistas plásticas profissionais no entresséculos passava ao largo de sua inexistência de fato.

Com o intuito de iluminar os modos pelos quais os obstáculos à profissionalização artística foram enfrentados por “mulheres concretas“, que “conseguiram driblar tais impeditivos e se afirmarem como artistas no pleno sentido do termo” (p. 197), a autora dedica um dos capítulos a um conjunto emblemático de pintoras e escultoras, selecionado em função da densidade da documentação que sobre elas encontrou. São elas: Abigail de Andrade, Berthe Worms, Julieta de França, Nicolina Vaz de Assis Pinto do Couto e Georgina de Albuquerque. Aliás, o critério adotado pela pesquisadora para a escolha das artistas evidencia, por si só, se tratar apenas da “ponta de um iceberg”, i.e., de uma amostra, em meio a tantas outras trajetórias artísticas eclipsadas pelos registros historiográficos.

Para além das idiossincrasias que individualizam cada percurso analisado, todos eles convergem, ao traduzirem “formas surdas de transgressão” e de reação às impossibilitações concretas de profissionalização artística experimentadas pelas mulheres do entresséculos. Tais reconstruções evidenciam, paradigmaticamente, as incursões destas pintoras e escultoras no campo artístico como uma espécie de resposta às práticas culturais e ao ramerrão teórico de apelo cientificista embebido em correntes teóricas deterministas e positivistas então em voga, detidamente analisadas pela autora no capítulo inaugural, que apreendiam as mulheres como seres “essencialmente inferiores aos homens“. Simioni mostra que esta assimetria, ao se espraiar para o campo artístico, aparecia cristalizada em certo “rótulo de convenção”, mais propriamente em uma classificação que não apenas estabelecia uma hierarquia entre os artistas em função do sexo ao qual pertenciam mas, e sobretudo, situava as mulheres em uma posição desvantajosa neste “sistema de reputações“, arbitrariamente as desautorizando: trata-se da pecha de “amadora”, que “assombrava como um fantasma a produção artística das mulheres em sua totalidade” (p. 43), opondo-se frontalmente ao termo “profissional”, qualificativo este recorrentemente empregado para nomear os artistas do sexo masculino (p.37).

A simples menção de amadoras englobava vários significados: como o de que se tratava de pessoas sem um adequado conhecimento das regras do ofício, carentes de formação; além disso, acreditava-se que elas não buscavam na arte um modo de sustento, mas um simples passatempo. Evidentemente essa era uma categoria relacional, cujo uso presumia uma comparação, nem sempre explícita, mas sempre presente, com os artistas homens. Eles, os profissionais, detinham a formação adequada, o conhecimento suficiente, o respaldo institucional para, com as artes, exercerem o ofício de modo a conquistarem dinheiro, fama e glória. Para eles a arte era um empreendimento sério, uma profissão; para elas, um refinamento do espírito (p. 301).

Afigurando-se, pois, como uma “regalia” masculina, a profissionalização nas artes plásticas traduzia um processo marcadamente excludente, do qual inúmeras artistas foram deixadas de fora, seja porque tiveram suas obras inadvertidamente inscritas nos tímidos limites do amadorismo ou, o que dá no mesmo, rebaixadas à categoria de prática diletante. Neste espaço perpassado por categorias impregnadas pelas lógicas de gênero, às artistas não “agraciadas” com o epíteto de “excepcionais”, portanto, à grande e esmagadora maioria, era reservada como inescapável fortuna “a vala comum do esquecimento coletivo”.

Simioni ilustra muito bem esta situação, ao pôr em tela uma das mais contundentes barreiras com as quais as mulheres do período se deparavam ao objetivarem a profissionalização artística: o acesso às aulas de pintura a partir de modelo vivo que, no Brasil, apenas lhes foi autorizada em 1897 (embora tardia, esta data antecede o acesso feminino ao nu, se comparada às academias de arte européias). Sendo o domínio das representações do corpo humano exigência fundamental para uma formação consistente – em conformidade com os moldes academicistas – e, por conseguinte, para a obtenção de renome artístico, as mulheres que, durante séculos, foram alijadas desta modalidade essencial de conhecimento (vale dizer, por questões morais que recaíam sobre a pudicícia), encontraram-se não apenas em indiscutível desvantagem se comparadas a seus pares, como esteticamente desautorizadas. Tendo isto em vista, não é de se estranhar a exígua presença das mesmas em um espaço cujas formas de obtenção de prestígio apareciam atreladas às prerrogativas de gênero. Nas palavras da autora,

o acesso ao modelo vivo era absolutamente indispensável à formação de um artista acadêmico. A ênfase da discussão feminista em torno da exclusão do mundo artístico está, justamente, neste ponto: as artistas mulheres foram impedidas de conhecer e dominar, ao longo dos séculos XVIII e XIX, as principais etapas de formação do ‘gênio’ artístico na medida em que o acesso ao nu lhes foi vetado por ser considerado imoral. Afirmam as historiadoras que sem o controle dos meios de expressão simbólicos característicos daquele fazer artístico, as mulheres foram relegadas a toda sorte de pinturas vistas como ‘menores’, as quais não exigiam o completo domínio da representação do corpo humano e, também demandavam menos preparo físico e intelectual. De sorte que se montava um círculo vicioso: as artes menores passavam a ser vistas como adequadas às inábeis mulheres e, toda a arte feita por mulheres, era colocada entre aspas, rotulada como menor (p. 110).

Em linhas gerais, Profissão Artista nos brinda com uma rica e minuciosa exploração dos mais variados óbices que se impunham àquelas mulheres que almejavam fazer carreira no restrito “espaço dos possíveis” do universo acadêmico brasileiro, em um período duramente refratário à presença feminina. Em uma abordagem despida de qualquer ar triunfalista, o livro todo revela a preocupação da autora com a “arte produzida por mulheres”, sem ceder à tentação de enxergá-la pela lente reducionista e simplificadora de um “feminino universal” que, na análise, é substituído pela apreensão da “feminilidade” como discurso produzido social e historicamente. Neste processo de desmistificação de essencializações, nos são apresentados os mais diversos mecanismos por meio dos quais

as artistas acadêmicas permaneceram por muito tempo nas sombras e suas obras sofreram uma dupla desvalorização. Como muitas produções do período, inclusive as masculinas, padeceram das conseqüências do legado modernista, que com seu crivo impiedoso desmereceu tudo o que lhe era anterior, salvo o Barroco, cujas obras foram por eles alçadas como genuinamente nacionais. Além disso, por serem vistas em sua época como artistas “menores”, deixaram menos rastros do que os colegas masculinos bem-sucedidos; a pecha do amadorismo, essa invenção do século XIX, inibiu por muito tempo estudos sobre suas produções (p.303).

As discussões encaminhadas e também ilustradas por meio de trajetórias concretas evidenciam, para além das formas possíveis de superação da sina reservada às mulheres que aventuravam seguir carreira naqueles espaços tradicionalmente androcêntricos, a porção individual das “ousadias discretas” (p.287) por elas agenciadas, para que conseguissem subverter as posições desvantajosas em que se encontravam, tirando partido de adequadas conjugações entre “o nível educacional, a habilidade técnica, o capital social, as parcerias afetivas, a sagacidade pessoal” (p. 26), elementos capazes de lhes facultar maiores ou menores possibilidades de êxito no exercício da “profissão artista”.

Um trabalho de restituição de “ausências” como este não pode passar despercebido!

Michele Asmar Fanini – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – FFLCH – Universidade de São Paulo – USP – 05508-030 – São Paulo – SP – Brasil. E-mail: [email protected].