De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX) – VIDAL (H-Unesp)

VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). Trad. Florence Marie Dravet. Brasília: UnB, 2009. 352 p. Resenha de: TORRÃO FILHO, Amilcar. De nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). História [Unesp] v.30 no.2 Franca Dec. 2011.

O professor Laurent Vidal, da Universidade de La Rochelle se debruçou sobre as cidades brasileiras ou luso-brasileiras em diversas publicações – como a nômade Mazagão, que atravessou o Atlântico, deixando o Marrocos onde era o último bastião português, passando por Lisboa e vindo aportar, finalmente, na Amazônia portuguesa em 17691 –, agora nos traz uma leitura de fôlego da construção de Brasília, nas comemorações de seus 50 anos. Trata-se de sua tese de doutorado defendida na Universidade de Paris III, em 1995, publicada em francês no ano de 2002 pelo Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine. A primeira e mais evidente qualidade deste trabalho é recuperar o longo período no qual a capital brasileira foi projetada no interior de seu imenso território, desde a Nova Lisboa, que seria a nova sede do novo Reino Unido de uma corte no exílio, até a Brasília de Juscelino Kubitschek, saída do traço da arquitetura moderna diretamente para o planalto central. Além disso, o livro tem a preocupação de colocar uma questão importante, sobretudo no caso de Brasília, que está definida em sua introdução; se com Mazagão Vidal havia se perguntado para que serve uma cidade em suspensão e em trânsito, no caso de Brasília ele questiona: “Para que serve uma cidade quando ela não existe?” Questão que é acrescentada por outra, correlata: “A que corresponde essa imperiosa necessidade social de projetar ou fundar, mesmo no papel ou em palavras, as cidades?” (p. 11). Portanto, este trabalho trata destas duas dimensões fundamentais para a compreensão de Brasília, e de todas as capitais sonhadas e desejadas: a sua dimensão material, com as agruras de sua construção e os resultados urbanísticos de sua efetiva ocupação, mas também a sua dimensão projetiva, imaterial, os projetos realizados ou não, os traços de suas utopias que revelam os desejos, as ambições e os planos por trás de sua construção ou o que vai além de sua redução ao puramente utópico ou técnico, este momento, como define o autor, “intermediário, em que a cidade ainda não possui existência física, mas em que já deixou de ser simplesmente uma visão utópica” (p.11).

No caso de Brasília, cidade capital por definição e por projeto, cabe ainda indagar-se sobre o seu papel na construção de uma memória e uma identidade da nação que ela representa, ou do processo pelo qual “a identidade de uma nação ou de uma comunidade pretende espacializar-se”; o que coloca outra pergunta importante: “quem ou o que produz uma cidade para nela depositar uma memória” (p. 16). Não se trata, portanto, apenas de um projeto de cidade nova, é uma nova capital, e uma capital que deve redefinir o país projetando um Brasil moderno, desenvolvido, interiorizado, correspondendo a um “projeto de sociedade” (p. 18). Uma sociedade até então dividida pela antinomia sertão/litoral, que para muitos impedia o desenvolvimento de todas as suas partes; não por acaso, será a nova cidade chamada de a capital da esperança.

O livro está dividido em sete capítulos, seis dos quais dedicados a projetos para a construção da cidade capital que finalmente faria o sertão vencer a dominância do litoral. O primeiro diz respeito à Nova Lisboa, a cidade que seria construída para substituir o Rio de Janeiro como sede da nova monarquia, num momento no qual havia dúvidas em relação à qualidade da nova corte para assumir o papel de capital, por seu terreno pantanoso, seu clima úmido e cheio de insetos. A decisão de manter a capital no Rio de Janeiro levou a cidade a ser remodelada para adequar-se ao decoro de uma capital real, digna da monarquia portuguesa, reformas que são bastante conhecidas e deram grande parte da feição mais típica da cidade tal como a conhecemos. Entretanto, a necessidade de “interiorização” da capital não desaparece das preocupações geopolíticas e estratégicas, presentes nos projetos de Hipólito José da Costa ou de Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira. A grande cidade portuária, para estes autores, não possui as qualidades requeridas a uma verdadeira capital, cuja criação se torna uma exigência de modernização, na qual o autor observa “um deslocamento da representação do espaço construído para o espaço mental, um deslocamento do conceito da cidade, como espaço político, lugar de trocas econômicas e sociais, para seu inverso imaterial, sua idealização” (p. 48).

O capítulo seguinte trata de projeto similar, já agora no âmbito da construção do Estado nacional separado de Portugal, a Cidade Pedrália, indefectível referência ao príncipe, depois imperador, Pedro I, homenagem de seu idealizador, o desconhecido Paulo Ferreira Menezes Palmiro. A nova capital era parte de um projeto de interiorização e povoamento do imenso interior, o “desertão” brasileiro, de José Bonifácio, o Patriarca, bem como uma estratégia para garantia da unidade territorial e a sua consequente definição da nacionalidade brasileira. Não por acaso a sua localização teria como “coluna vertebral”, diz o autor, o rio São Francisco, o rio da unidade nacional para muitos (p. 61). Apesar destes projetos, para Vidal, a permanência do Rio de Janeiro como capital imperial “se inscreve na lógica do projeto geopolítico definido pelo imperador: inserção da jovem nação brasileira no mercado comercial internacional”, com a necessidade de manter a capital num porto e seguindo a política imaginada por João VI, a “vocação do Brasil como nação ‘européia'” (p. 63). Processo coerente com outra interiorização, diferente da projetada aqui na transferência da capital para o sertão, aquela descrita por Silva Dias, o enraizamento de interesses portugueses no Brasil e o processo de interiorização da metrópole no centro-sul da colônia, sendo a separação com Portugal resultado de um aumento das divergências entre os interesses portugueses no Brasil e o Reino2. É muito mais uma interiorização centrada no Rio de Janeiro, incompatível com a transferência da sede de governo para o interior. Vidal, neste capítulo, recupera o esquecido projeto ilustrado e racional da Cidade Pedrália, de Menezes Palmiro, que pretendia dar corpo a uma ambição social e geopolítica que rompia com os modelos urbanos adotados pelos portugueses até então (p. 70).

O projeto seguinte é Imperatória ou, como diz o título deste terceiro capítulo, o sonho de uma São Petersburgo tropical, seguindo as intermináveis dúvidas em relação à capacidade do Rio de Janeiro em representar bem seu papel de capital. Trata-se do projeto de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, que critica justamente o comprometimento das principais cidades brasileiras com o comércio internacional, com a exterioridade, não dando espaço à necessária construção da nacionalidade brasileira, que o Visconde buscou tanto na história quanto num projeto de capital. O interior, o homem do sertão seriam, na visão de Varnhagen, os instrumentos de redenção do país, Minas seria, então, a Castela do Brasil (p. 87). O Visconde de Porto Seguro se insere, ao mesmo tempo, num rompimento com o modelo colonizador português que convive com a sua inserção em seu modelo civilizatório lusitano, que afirma a posição preeminente da população branca no controle do aparelho de Estado. Seu modelo urbanizador vê na cidade não um quadro estático, mas “o local, o motor da modernização. Imperatória é assim a cidade do homem brasileiro reconciliado com a modernidade” (p. 100).

O quarto capítulo/projeto trata de Tiradentes, não a cidade mineira antiga São José Del Rei, mas um projeto republicano para uma nova capital que se torna um dispositivo constitucional na República. Trata-se, para Vidal, de um projeto de mudança que oferece “a possibilidade de planejar uma cidade especialmente destinada às elites, uma cidade sem povo” (p. 104). Em 1892, é criada a célebre Comissão de exploração do Planalto Central do Brasil, dirigida por Luís Cruls, diretor do Observatório Astronômico do Rio de Janeiro, que deveria demarcar a localização da nova capital. Para o autor, a mudança funcionava, para as elites republicanas, como uma forma de “conjurar o medo da cidade, da grande cidade como o Rio que, todo dia, inquieta um pouco mais os republicanos no poder” (p. 124-125). O medo, presente tanto em liberais como em conservadores, de que o crescimento da cidade seja acompanhado pelo direito à cidade, o direito à cidadania. Esta discussão se apoia muito menos no conceito de progresso da nação do que na construção de uma nacionalidade na qual a cidade grande aparece para muitos, como Euclides da Cunha, citado por Vidal, como um espaço demasiadamente cosmopolita, que impõe modelos culturais importados, que não traduzem o espírito brasileiro. Uma capital cosmopolita, nessa visão, não seria uma adequada cabeça da nação, não pensaria o país de acordo com os interesses brasileiros (p. 129). Concepção que teria muita fortuna no meio intelectual e acadêmico, das ideias fora de lugar, importadas, que não estariam aclimatadas à “realidade” e ao espírito nacional. Esta visão da capital se materializa não no Planalto Central e na substituição do Rio de Janeiro, mas pela construção de Belo Horizonte, paralelamente às reformas de Pereira Passos, nova adequação da capital carioca aos desígnios das elites. Em 1930, Teodoro Figueira de Almeida propõe no jornal A Ordem um projeto de nova capital chamado Brasília: a cidade histórica da América, demonstrando, segundo Vidal, um gesto deliberado de tentativa de “reescritura da história” por meio da forma urbana, que poderia materializar o sonho de uma “capital sem povo” (p. 142).

A sequência do trabalho de Vidal nos revela como, no tema da nova capital, perpassou praticamente todos os governos monárquicos ou republicanos. O quinto projeto/capítulo trata do período Vargas, que retoma a discussão sobre a transferência para o centro do Brasil de sua sede de poder. Para Vidal, a instauração do Estado Novo, em 1937, procura estabelecer um Estado verdadeiramente nacional, o que implica uma nova divisão territorial do país, o estabelecimento de uma nova geografia, o que culmina com a criação do IBGE, em 1938. Para o autor, está em processo também, no Brasil deste momento, uma “reavaliação do papel da cidade nas atividades de uma nação”, o que é visível, por exemplo, na construção de Goiânia, cujo plano levaria em conta a dupla natureza da cidade, “lugar de exercício do poder e de atividades econômicas e sociais” (p. 156). Em seu segundo governo, Vargas voltaria ao plano de transferência, criando em 1953 a Comissão de Localização da Nova Capital Federal (CLNCF), de evidente tarefa. Neste momento, gesta-se uma ruptura em relação às anteriores propostas, pois aqui não se trata mais de discutir a criação de uma sede administrativa para o país, mas de “dar coerência a uma sociedade não mais dividida, mas reconciliada em torno de um mesmo projeto de futuro” (p. 174).

Um projeto de futuro reconciliado e unificador parece ser o mote para o definitivo projeto de Brasília, obra capital do governo Juscelino Kubitschek, no feliz título de seu sexto capítulo. Vidal trata, aqui, de feitos conhecidos, dando especial atenção ao contexto histórico da construção de Brasília, bem como ao plano vencedor de Lucio Costa e Niemeyer. A qualidade deste capítulo está justamente na forma como as dimensões políticas e arquitetônicas são analisadas na construção, não apenas de uma cidade, mas da “idéia mesmo de capital”, afirmando um Brasil moderno (p. 202). Ou como ressalta adiante, o concurso de Brasília e a sua construção colocam um problema mais amplo do que a simples construção de uma nova cidade, o da “invenção de um urbanismo político adaptado a uma democracia liberal do século XX” (p. 220). O autor vê a possibilidade de um jogo de ambiguidades entre o projeto político e o projeto social de Brasília, ou uma cidade “esticada entre duas tendências: a ambição igualitária do urbanista e do arquiteto e a ambição liberal do político, tudo isso acobertado pela idéia de modernismo” (p. 240). Ou de uma propensão latina de aspiração à grandeza, audácia e imaginação com uma lógica de disciplina que vem tolher estes impulsos.

De Nova Lisboa a Brasília propõe uma leitura histórica da construção de Brasília não apenas no estabelecimento de uma linhagem cronológica dos diversos projetos e planos de transferência, que pela primeira vez foram tratados em seu conjunto como uma unidade, mas também da representação de uma certa imagem de Brasil, de determinadas expectativas deste gesto fundador da criação de uma capital que coincide com o “batizado” do país e que nasce sob o signo deste gesto tão simples de Lucio Costa em forma de uma cruz que designa o plano piloto, dando-lhe uma feição ao mesmo tempo mítica, mística e moderna. A inauguração de Brasília é um ato fundacional; fundação de uma nação moderna, reconciliada, a marca de uma utopia que o urbanismo moderno muitas vezes sonhou, mas poucas vezes pôde realizar, com toda a esperança e a frustração que envolvem as utopias, tão bem descritas neste trabalho que recupera o longo caminho de invenção de uma capital e de um sonho.

1 VIDAL, Laurent, Mazagão: a cidade que atravessou o Atlântico. Trad. port. Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins, 2008. Primeira edição francesa de 2005.
2 DIAS, Maria Odila Leite da Silva, A interiorização da metrópole e outros estudos. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2005.

Amilcar Torrão Filho – Professor Doutor – Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rua Monte Alegre, 984, Perdizes, São Paulo, CEP: 05014-901. E-mail: [email protected].

Les larmes de Rio. Le dernier jour d’une capitale (20 avril 1960) – VIDAL (H-Unesp)

VIDAL, Laurent. Les larmes de Rio. Le dernier jour d’une capitale (20 avril 1960). Paris: Éditions Flammarion, 2009, 254p. Resenha de: LEMES, Fernando Lobo. Les larmes de Rio. Le dernier jour d’une capitale (20 avril 1960). História [Unesp] v.30 no.1 Franca Jan./June 2011.

Constantinopla, Bizâncio e Istambul. Nomes diferentes para uma mesma cidade que ocupou, sucessivamente, a posição de capital de três grandes impérios: o romano, o bizantino e o otomano. Guardadas as devidas especificidades, a cidade do Rio de Janeiro também atravessou o tempo, através de um percurso que lhe emprestou uma feição muito particular: capital e ponto de convergência no centro-sul da América, no contexto do Império português, posteriormente, capital do Império e, mais tarde, capital e espaço de gestação da nova ordem republicana. Preservando sempre o mesmo nome, atravessou três grandes momentos da história do Brasil, sempre na posição privilegiada conferida pelo status de cidade-capital. Contudo, em 20 de abril de 1960, o Rio de Janeiro vive um acontecimento decisivo: a partir deste dia, não será mais a capital do Brasil. Os elementos que lhe conferem a condição de capital abandonam a cidade para se instalar em Brasília, novo símbolo da modernidade brasileira.

É sobre este evento particular que mergulha Laurent Vidal. Tomando o acontecimento como uma espécie de cruzamento de itinerários possíveis, o autor delineia uma narrativa que revela de forma surpreendente as expressões e os gestos dos atores que viveram aquele momento na cidade do Rio de Janeiro: as encenações elaboradas pelas elites políticas, os testemunhos dos cidadãos comuns e as palavras dos poetas, marcados por sentimentos e emoções que compunham a crônica de uma despedida anunciada.

A mobilidade das capitais ou sedes de governos foram registradas com certa frequência na história das cidades. Assim, desde os Impérios da Antiguidade às dinastias medievais europeias, o nomadismo de imperadores e monarcas sempre dificultou a identificação de suas capitais a uma cidade específica. Na história do Brasil, a transferência de capitais de uma cidade para outra, foi uma constante. Basta lembrar a mudança da capital, sede do vice-reinado, da cidade de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763. Mais tarde, seguindo uma tendência cada vez mais rara, este fenômeno se multiplica sobre o território nacional: as capitais das províncias do Piauí e Sergipe são transferidas, respectivamente, da cidade de Oeiras para Teresina, em 1852, e de São Cristóvão para Aracajú, em 1855. Em Minas Gerais, Ouro Preto perde seu estatuto de capital para Belo Horizonte, em 1897. Em Goiás, a capital é transferida de Vila Boa para Goiânia, inaugurada em 1942.

Embora frequente na história, a transferência do poder político (e das instituições que o acompanham) de uma cidade para outra nunca foi objeto de uma encenação especial. Da mesma forma, mesmo que alguma manifestação tenha sido organizada nestas ocasiões, jamais foi singular o suficiente para atrair a atenção dos contemporâneos ou de historiadores. Reside aqui um dos méritos da obra de Laurent Vidal: sua originalidade.

Les larmes de Rio constitui-se, certamente, na primeira referência, na historiografia das cidades, que não se detém apenas na avaliação da transferência institucional dos poderes políticos de uma cidade para outra. Mais que isso, trata-se de um estudo inédito que elege como objeto o momento da retirada dos aparatos políticos institucionais, lançando luzes sobre as estratégias utilizadas para a transferência das instituições que legitimam e revestem a cidade de sua condição de capital. Por meio de uma análise refinada pelos recursos metodológicos que utiliza, Laurent Vidal traz à superfície de suas reflexões os efeitos e as especificidades que fazem deste fenômeno um acontecimento singular e excepcional.

O interesse e o ponto de vista adotados pelo autor têm implicações mais amplas para a historiografia, pois fazem deste episódio um caminho privilegiado para observar as relações entre cidade e poder, a partir de um viés absolutamente inovador: abandonando a perspectiva positiva que aproxima cidade e poder, comumente associada às narrativas de fundação de cidades e das entradas triunfais (que já mobilizaram vasta literatura), Laurent Vidal lança um outro olhar sobre o tema, privilegiando o aspecto do distanciamento entre a cidade e o poder, consagrando como ponto de inflexão o momento em que o poder deixa a cidade. O maior mérito, contudo, desta perspectiva, que insiste em desvendar os laços e as conexões que se desfazem, pondo em evidência um processo fatal de separação, é apresentar a cidade como espaço de predileção do político, reatando, ao mesmo tempo, o seu vínculo indissolúvel, pois é no espaço real e virtual da cidade que se afirma o poder político.

Mas esta separação entre o político e a cidade implica sobretudo numa passagem: o poder federal deixa o Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, o antigo Distrito Federal deve desaparecer para dar nascimento a uma nova capital. A passagem do poder do Rio a Brasília. Não se trata, no entanto, de um simples traslado das instituições existentes no Distrito Federal. Afinal, a capital não é apenas o lugar de concentração dos órgãos da administração que constituem a natureza visível do poder político, é também um reservatório de forças de ordem espiritual. Neste sentido, a autoridade e a natureza do poder que legitima a cidade enquanto capital informa, antes de tudo, a existência de elementos e dados imateriais. É isto, exatamente, que estimula o esforço de Vidal.

Para além das provas materiais da transferência da capital, é necessário apontar os indícios e os efeitos do deslocamento deste poder imaterial, promovendo uma imersão no mundo dos sentimentos e emoções, perseguindo a ressonância dos acontecimentos no universo afetivo e sensível dos protagonistas. Em meio a uma confusão de sentimentos, as lágrimas são perceptíveis nos olhos da população do Rio. Assim, para emergir à superfície da história, o acontecimento deve se realizar no interior de percepções diversificadas e simultâneas que reenviam ao domínio dos afetos. Na narrativa de Laurent Vidal, a emoção parece constitui-se em um dos componentes da inteligência, onde os afetos assumem papel fundamental1.

Mas passagens deste tipo, como lembra o autor, são sempre acompanhadas de cerimoniais bem definidos. Na Roma Antiga, por exemplo, havia mesmo um deus que as governava: Janus, o deus de duas faces, uma voltada para o futuro e outra para o passado, deus dos começos e das passagens, da mudança e da transição, guardião dos cruzamentos, que abre e fecha as portas, vigia as entradas e as saídas. Coincidentemente, ao presidir a passagem do poder do Rio para Brasília, é esta a função que deve assumir Juscelino Kubitschek. É por isso que a despedida do Rio de Janeiro não poderia se limitar a um simples adeus. A morte de uma capital federal implica um luto cuja dimensão pouco banal o grande maestro da mudança tinha perfeita consciência. Era preciso velar pela passagem, afastando os fantasmas das incertezas e preencher os vazios deixados pela partida anunciada do poder.

Assim, a morte iminente da capital nacional seria acompanhada pelo anúncio do nascimento de outra capital: a do Estado da Guanabara. À ausência de um poder corresponderia a emergência de novas instâncias políticas. Contudo, como o destino não tem a pretensão de submeter rigorosamente os acontecimentos, deixa sempre um espaço vazio, uma margem de indefinição entre os episódios2, um inventário aberto de possibilidades. Por isso, seria Juscelino Kubistchek, presidente da república e idealizador de Brasília, encarregado de pacificar esta passagem, este momento incerto, organizando os cerimoniais da transferência da capital como um drama antigo, atuando, ao mesmo tempo, como autor, diretor e ator principal.

Fazendo do drama um mecanismo que permite compartimentar a trama vivida naquele 20 de abril, Vidal não despreza as dimensões sociais e a diversidade dos grupos existentes. De fato, percebe que o drama vivido pelos atores é entrecortado por uma situação de conflito que opõe, na malha dos tempos múltiplos da experiência coletiva, as várias figuras da vida social a um obstáculo comum3. Produzido socialmente, o acontecimento é apropriado de modos diferentes pelo conjunto dos grupos sociais, multiplicando leituras, sentimentos e percepções.

As variadas leituras do evento presentes nos discursos, nas falas e testemunhos, revelam, por outro lado, um outro recurso inovador utilizado pelo autor: uma sociologia da espera4. Neste episódio anunciado e vivido previamente, como é o caso da construção de Brasília e da transferência da capital federal, o estatuto do acontecimento existe antes mesmo que ele se produza de fato, levando o presente que se desenrola aos olhos dos indivíduos a estar subordinado ao futuro. Assim, o horizonte da espera também faz parte das lógicas mentais e organiza parte significativa do acontecimento5. Neste caso, o lapso de tempo que separa o anúncio e os preparativos para a mudança da capital e sua transferência propriamente dita é revestido de uma essência muito particular: descolado de uma cronologia ordinária, este intervalo se diferencia por um ritmo e uma amplitude própria. Portanto, este tempo de espera excita os atores, produz representações carregadas de sentidos, estimula esperanças, projetos, angústias, medos e inquietações. Estas emoções que afloram neste tempo virtual, ainda não realizado, são tomadas pelo autor como um horizonte da experiência dos agentes do drama, enquanto termômetro que permite medir a temperatura dos sentimentos coletivos na cidade.

Do nosso ponto de vista, é a arquitetura do acontecimento que parece sustentar o empreendimento de Laurent Vidal. Sua narrativa parte do pressuposto que o acontecimento tem uma duração que ultrapassa a simples temporalidade dos fatos que o constituem, como se o olhar do autor atravessasse longitudinalmente a cena, expondo o acontecimento em toda a sua riqueza e complexidade, pensando “através” das coisas e dos casos. Deixando nas estantes toda uma bibliografia que prega que a história é uma continuidade que se desdobra num tempo homogêneo, o autor parece denunciar o tempo vivido na história enquanto uma catarata de tempos6, em que múltiplas temporalidades coexistem e constituem uma mesma trama, interferindo nas percepções possíveis do atores.

Neste caso, num primeiro momento, o acontecimento aparece carregado de percepções e sensibilidades gestadas antes mesmo de sua plena efetivação. Em seguida, no interior do tempo peculiar ao evento propriamente dito, os agentes que o produzem ou a ele estão submetidos o fazem num contexto temporal e histórico que contém ao mesmo tempo seu passado, sua genealogia, sua forma presente e suas visões do futuro. Desta forma, seguindo a trilha deixada por Laurent Vidal e inspirados pelas ponderações de Arlette Farge, vemos que o acontecimento apenas pode ser definido a partir de um sistema complexo de temporalidades7.

Proposta de tal envergadura será, certamente, muito apreciada entre historiadores europeus e brasileiros que assistem, atualmente, ao advento de novas vias que se abrem à história social das cidades. Os novos trilhos para história urbana do Brasil devem provocar estudos mais atentos à multiplicidade dos tempos e dos ritmos sociais, colocando no centro das atenções dos pesquisadores os pontos e contrapontos das identidades e as incertezas das configurações socioespaciais na cidade8Les larmes de Rio confere ao autor outros dois méritos indiscutíveis: primeiro, como guia que indica um caminho a seguir por entre as trilhas renovadas da história das cidades. Segundo, como autor que nos convida para um passeio incontornável por entre os traços, indícios e pistas deixados pelos protagonistas que viveram o último dia do Rio como capital federal.

Esta saída do poder político da cidade é narrada em duas partes principais. A primeira, “Quando o poder deixa a cidade”, divide-se em oito capítulos que, após apresentar os atores principais, eleva as cortinas para descrever o cenário de uma separação dramática. Em quatro atos, desvenda a profundidade dos gestos e palavras utilizados por Juscelino Kubitschek, agentes políticos e a grande imprensa, cujo objetivo visa desfazer os laços complexos que ligam a cidade aos organismos que lhe conferem o estatuto de capital. Na segunda parte, intitulada “Poétique de L’événement”, dividida em quatro capítulos, o autor dialoga com as fontes históricas e os protagonistas da época buscando pôr em evidência as diversas leituras realizadas pelos contemporâneos. Oferecendo a palavra aos poetas, explora seus testemunhos e suas imagens, mesclando suas intuições com as emoções suscitadas pela proximidade do evento anunciado. Assim, procura esboçar o que denomina poétique de l’événement, método ou maneira para se construir um caminho o mais próximo possível do acontecimento, visando desvelar não o seu sentido, mas o modo como ele nos afeta. Se é da obra dos poetas que nascem as primeiras lágrimas do Rio, após a partida da capital serão eles os profetas que anunciarão a ressurreição de uma cidade renovada. Mas esta é apenas uma entre as leituras possíveis do livro de Laurent Vidal. Les larmes de Rio certamente vai estimular outras interpretações na medida em que o leitor aceitar o desafio de revisitar este momento crucial para a história da cidade maravilhosa.

Notas

1 Arlette Farge, « Penser et définir l’événement en histoire ». In: Terrain, nº 38, Qu’est-ce qu’un événement ? (mars 2002), [En ligne], mis en ligne le 06 mars 2007. URL : http://terrain.revues.org/index1929.html. Consulté le 11 octobre 2010, p. 6.         [ Links ]

2 Yves-Marie Berce, “Conclusion : vide du pouvoir. Nouvelle légitimité”. In: Histoire, économie et société. 1991, 10e année, nº 1. Le concept de révolution. pp. 23-25.         [ Links ]

3 Jean Duvignaud, Introduction à la sociologie, Gallimard, Paris, 1966, p. 77.         [ Links ]

4 Laurent Vidal, Mazagão, la ville que traverssa l’Atlantique. Du Maroc à l’Amazonie (1769-1783). Aubier, Paris, 2005.         [ Links ]

5 Arlette Farge, « Penser et définir l’événement en histoire », op. cit., p. 6.         [ Links ]

6 Expressão que emprestamos de Siegfried Kracauer. Siegfried Kracauer, L’histoire. Des avant-dernières choses. Stock, Paris, 2006, p. 272.         [ Links ]

7 Arlette Farge, « Penser et définir l’événement en histoire ». In: Terrain, nº 38, Qu’est-ce qu’un événement ? (mars 2002), [En ligne], mis en ligne le 06 mars 2007. URL : http://terrain.revues.org/index1929.html. Consulté le 11 octobre 2010.         [ Links ]

8 Laurent Vidal, “Os ‘trilhos’ da história do Brasil urbano”. In: Ler História, nº 48, 2005, pp. 75-85. Aqui, p. 85.         [ Links ]

Fernando Lobo Lemes – Doutorando em História. IHEAL – Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine Université Sorbonne Nouvelle/Paris 3 [email protected].

Les larmes de Rio / Laurent Vidal

Há muito os leitores de obras de história deixaram de se surpreender com livros que concentram o interesse de pesquisa no limite temporal de um único dia. Nos anos 1970, quando a história dos processos e estruturas parecia haver desterrado o evento, esse vilão encastelado na historiografia do século XIX, o medievalista George Duby consagrou um livro a um daqueles “dias memoráveis” da história da França, o 27 de julho de 1214.1 O argumento utilizado por Duby para justificar esse seu “retorno ao acontecimento”, foi que ele lhe permitiria alcançar os movimentos obscuros que fazem deslocar lentamente os alicerces de uma cultura.

O cerne do livro Les larmes de Rio (ele será traduzido para a língua portuguesa como As Lágrimas do Rio?), de Laurent Vidal, é um dia da vida da cidade do Rio de Janeiro, o dia 20 de abril de 1960, o dia do fechamento dos portões do Palácio do Catete e do embarque do presidente Juscelino Kubitschek para a nova capital, Brasília. Contudo, a relação entre evento e estrutura não está mais no centro da preocupação dos historiadores e o que Laurent Vidal tem em vista, enfrentando o trabalho com o tempo, esse desafio permanente dos historiadores, é voltar àquele dia e indagar sobre o que está contido nele.

O livro se orienta por três planos que permitem capturar esse adensamento de tempos diferentes. Deixemos que o próprio autor sintetize essa conjunção: ele se propõe a enfocar “Um acontecimento esperado (já que enunciado), vivido (o dia de seu desenrolar), e por fim percebido, integrado num discurso retrospectivo” (p. 11). O livro está assim organizado: um Prólogo; Parte I (“Quando o poder deixa a cidade”); Parte II (Poética do acontecimento) e Epílogo. Dirigiremos a maior parte dos nossos comentários à Parte I, que se divide em dois itens (“A perigosa entrada em cena de Juscelino Kubitschek” e “Juscelino, como Janus”) e cinco “Atos” sucessivamente intitulados “A cortina se levanta… sobre a Cinelândia”; “Quanto a cidade entra em cena”; “O apelo aos cariocas”; “Onde Juscelino se desfaz dos últimos laços com o Rio” e “A porta das lágrimas”. Segue um último tópico desta parte, sob o título de “à beira da cena, o herói e suas dúvidas”. A Parte II se intitula “Poética do acontecimento”, em que o autor busca reconstituir as “modalidades de percepção”, reconstituindo não o sentido do evento, mas “o modo como ele nos afeta” (p. 115), explorando para isso os escritos de intelectuais ligados à vida carioca.

O movimento do poder se desligando e se despedindo da cidade, produzindo um estado de suspense e despertando uma excepcional força coletiva, propiciou ao autor excelente matéria para sua narrativa. A separação entre cidade e poder é o problema central do livro. O autor inscreve seu problema no campo da historiografia, a partir da seguinte questão: há muitos estudos sobre a entrada do poder na cidade; em contrapartida, os historiadores têm dedicado pouco interesse aos momentos em que o poder deixa a cidade levando consigo as instituições, seus símbolos, sua corte de funcionários. No Rio, restará um palácio de portas fechadas, e como pretenso prêmio de compensação aos cariocas, a criação do estado da Guanabara.

A efetivação da transferência da capital foi um processo delicado. Num ambiente de ardentes ambições políticas, a mudança da capital abriu o caminho para a insegurança, o temor e fortes expectativas em relação ao futuro. O Rio de Janeiro, corte no período imperial e capital federal no período republicano, perderia a condição de capital e os cariocas reagiram revelando sentimentos os mais diversos (entre os principais estava o ressentimento e o alívio).

As lágrimas do Rio não é resultado de uma primeira aventura transoceânica de Laurent Vidal. Como outros trabalhos do autor, ele foi pensado e vivido. Vidal cruzou o oceano na direção do Brasil pela primeira vez há alguns anos, aterrissou em Brasília, morou no Rio de Janeiro e divide sua vida entre a França e o Brasil. Enquanto realizava suas próprias travessias, ele estudava outras travessias, todas relacionadas com o lado de cá do Atlântico.

Por exemplo: a travessia das utopias no curso do tempo, desvelando o poder exercido pelas imagens do futuro sobre o presente, em sua tese de doutoramento “Un projet de ville: Brasília et la formation du Brésil moderne, 1808-1960”, defendida na Universidade de Paris III, no ano de 1995, e que tomou a forma de livro publicado na França em 2002, com o título “De Nova Lisboa à Brasília: l´invention d´une capitale” e no Brasil, em 2008, com o título de “De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX).2 A imaginação dos homens já aparece neste livro como força mobilizadora. Nele, o mundo dos sonhos e dos desejos extrapola o tempo vivido, se projeta no futuro sob a forma de utopias, mas estão enraizados na vida social do presente.

Outra linha de orientação, associada à anterior, é o esforço teórico e poético dedicado à captura dos movimentos do tempo, que se projeta para diante e para trás sob a forma de nascimentos, mortes e renascimentos das cidades brasileiras entre os séculos XVIII-XX3, desenhando uma dinâmica que se exprime nas diversas experiências de deslocamento que lançaram na direção do Brasil franceses das mais variadas origens e nas mais variadas circunstâncias.4 Desse modo, o historiador identifica as fissuras naquilo que é aparentemente compacto, naquilo que está aparentemente imobilizado no espaço, paralisado no tempo do presente. Vidal tem chamado à atenção para isso em vários ensaios em que vem esboçando uma história social da espera, e os primeiros sinais dessa história se encontram no livro magnífico que liga e cruza, dentro da tessitura da lógica colonial e da memória dos indivíduos, três continentes e a história de um deslocamento: Mazagão: la ville qui traversa l´Atlantique.5 Em As lágrimas do Rio ele retoma, agora explorando o movimento dentro do tempo consagrado à espera, na curtíssima duração, dentro de uma cidade, o tempo que se volta para o passado mítico e o tempo que se projeta no futuro do Brasil moderno.

A pergunta que atravessa todo o livro é: diante da instabilidade agudizada pelo processo de separação entre cidade e poder, como assegurar essa transição, como superar esse “vazio” do poder legítimo, como administrar os sentimentos dos cariocas em face do despojamento do Rio de Janeiro de sua condição de capital federal? A mobilização do rito cumpre exatamente esse papel de reestabelecer o equilíbrio nesse momento delicado:.

Na cidade, o político se apodera do tempo e, criando a ilusão de dominá-lo, se instala na duração – como se estivesse protegido das inquietações do mundo. Ora, eis que, no Brasil, o político (Juscelino Kubitschek) decide se colocar a caminho e deixar definitivamente a cidade (Rio de Janeiro). Deixá-la no discretamente, mas ao contrário, magnificamente, fazendo de sua saída, de seus adeuses, um ato cerimonial. E como se trata de uma saída de cena, é preciso fazer da cidade um teatro onde o poder, representado, pode-se colocar em movimento. (p. 19).

Laurent Vidal narra os momentos decisivos (horas, minutos) daquele dia intenso para Juscelino e para a cidade do Rio de Janeiro. O narrador acompanha o deslocamento do interesse da cena do espaço público para os ambientes privados, o papel decisivo dos pronunciamentos do Presidente, o magnetismo de seus atos, o impacto das imagens, o modo como cada ator ou grupo de atores entra em cena, extraindo de cada imagem, gesto e sinal o significado que eles assumem no momento em que aparecem. Ele captura o efêmero, empregando com desenvoltura os instrumentos da antropologia, da sociologia e da literatura, enlaçando com naturalidade os fatos e a teoria. Vidal dispõe os fios da trama dos eventos, escandindo o tempo para reconstituir o ritmo certo dos acontecimentos, mostrando o adensamento e a dispersão dos fatos, e assim revelando ao leitor a tessitura fina daquele dia 20 de abril.

As qualidades para a tarefa, o autor já as havia revelado em obras anteriores: o estilo competente, o manejo eficaz da teoria, o olhar formado nas sutilezas, requisitos necessários para que possa dar conta da descrição de um momento delicado como aquele. Porque não é tarefa fácil para o historiador lidar com esses objetos: o tempo que extrapola a cronologia, os atos políticos que se movem e articulam o desejo do futuro e o apelo ao passado, os sentimentos complexos dos homens do poder, dos intelectuais e dos populares, as hesitações de Juscelino Kubitschek, a participação popular, o modo como cada voz deveria entrar nesse concerto (e como efetivamente entra), a oposição parlamentar, a ritualização elaborada com a finalidade de “reativar o mito da unidade do grupo”. (p. 35).

O centro do drama vivido por Juscelino é precisamente este: no curso de mudança da capital, como separar essas duas dimensões do poder sem abrir as portas às ambições políticas da oposição, sem colocar em perigo a ordem social, diante do temor de que a população carioca reagisse mal à perda de privilégios que a condição de capital federal lhes assegurava? Ao mesmo tempo, o vazio produzido por essa operação de separação é preenchido por uma operação de produção de novas identidades, recorrendo à história, mobilizando gestos, imagens, palavras. Palavras “que separam a função de capital da cidade e que convidam a preencher esse vazio pela busca de uma identidade mais autêntica.” (p. 49).

O livro inicia com a apresentação do contexto político da chegada de Juscelino Kubitschek à presidência, as forças políticas em jogo, a situação crítica em que ele sobe ao poder. A seguir, Vidal mostra as hesitações de Juscelino diante da complexidade dos fatos relacionados à transferência. Esses dois primeiros capítulos tratam do período anterior ao drama do dia 20, enfocado os eventos e os processos que preparam o drama. Sob o ponto de vista organizacional, a estrutura do livro, construída sobre uma ordem cronológica, favorece a clareza, sobretudo tendo-se em vista o público de língua francesa, desconhecedor da história do Brasil, a quem o livro inicialmente se destinou. Mas para o leitor brasileiro (pelo menos o leitor culto), que domina os elementos básicos do processo político que levou Kubitschek ao poder, essa estrutura talvez tenha sido demasiado benevolente e isso repercute no livro, que tem a sua primeira parte enfraquecida porque o que interessa é a dramatização do dia 20. Não é que esse diretor de cena (Laurent Vidal e não Juscelino Kubitschek) tenha errado a marcação da luz. Mas há leitores que prefeririam ver tudo isso reunido, toda a matéria do livro contida num único dia, absorvendo e subordinando dentro dela os antecedentes históricos, os elementos desencadeadores do “drama”, tudo encravado dentro da narrativa do dia 20 e não figurando na exterioridade dos “antecedentes históricos”. Se assim tivesse sido concebida a obra, esses tempos entrelaçados no dia 20 ganhariam em dramaticidade, em complexidade e em densidade. Isso não é um reparo à estrutura de As lágrimas do Rio. É provável que essa ousadia de composição da peça dedicada ao dia 20 de abril requeresse um esforço extraordinário e uma sofisticação no tratamento do tema impossível nesse momento. Mas é cabível pensar que o avanço das reflexões e das experiências do autor em torno da “história social da espera”, a que ele tem consagrado suas energias, lhe permita futuramente aventurar-se nessas audácias, se elas lhe interessarem.

As lágrimas do Rio é um livro que instiga, porque dá conta da tarefa a que se propõe e ainda provoca no leitor um repertório de indagações suplementares, indagações a que, ressalte-se, o autor não pretendeu responder. Apontarei duas, uma decorrente da outra, extraídas do centro mesmo do livro, do enredo e do cenário desse drama do dia 20. É Vidal quem escreve: “Kubitschek vai representar a saída do poder como um drama clássico”, protagonizando o grande espetáculo para uma multidão de espectadores e de ouvintes, “atentos a todas as posturas, a todas as palavras”. Trata-se de um drama, segundo Vidal, onde Juscelino “é ao mesmo tempo o autor, o diretor e o ator principal”. (p. 33). Juscelino é o mobilizador de mitos (p. 37). Ele é Janus, o deus de face dupla, o deus que deve presidir as situações de passagens.

O desenrolar do livro demonstra exatamente isso. O cálculo, as estratégias, as decisões, a escolha dos rituais adequados, as palavras medidas, uma vontade excepcionalmente dotada para todas as ocasiões, ainda que não possa evitar instantes de hesitação, é isso que distingue Juscelino. Juscelino é o centro desencadeador, tudo provém dele (exceção feita a dois colaboradores pontuais: um amigo que escreveu a história das mudanças das capitais, e um coronel que, em depoimento a Vidal, afirmou que sugeriu ao presidente transformar o palácio do Catete em Museu da República). E a peça é conduzida dentro do roteiro previsto, com pequenas transgressões ocorridas no calor dos entusiasmos, mas sem chegar a alterar o seu curso.

Esse poder extraordinário que vemos irradiar de Juscelino pode surpreender os historiadores mais sensíveis às estruturas do poder e aos rituais que costumam ser mobilizados para a legitimação do poder. Juscelino revela um poder taumatúrgico que reforça no leitor brasileiro a imagem de um presidente sedutor que está nas evocações pessoais de quem conviveu com ele e que alimenta a memória política dos grandes homens. Impõe-se a indagação a respeito de como num Estado que estava se organizando em bases modernas (a mudança da capital para Brasília, e Laurent Vidal o demonstra neste livro e em livro anterior, é um momento de separação, ruptura e de formação de um novo Brasil, o Brasil moderno) o presidente reine como uma figura solitária na condução das coisas, imperando sobre o protocolo, sobre os assessores, dispensando a figura de um conselheiro permanente, montando sozinho o roteiro do seu espetáculo, organizando os atos, estabelecendo os ritos que acompanharão essa retirada do poder…

Não aparecem no livro de Laurent Vidal os mecanismos burocráticos, o corpo especializado de auxiliares, a rede de poder que a gente imagina se movimentando em torno dele. Como se pensar nesse quadro um Brasil moderno desprovido de uma estrutura burocrática que interfira nos movimentos do poder num momento tão decisivo? Teriam os burocratas e tecnocratas relegado a programação espetacular do dia 20 de abril a um domínio exterior às razões da política, fazendo dela uma espécie de resíduo inofensivo encerrado no campo das prerrogativas e do personalismo de Juscelino? A indagação incide, na verdade, sobre a nossa modernidade política, e evidentemente não cabe a esse livro que cabe respondê-la. Não podemos dizer que essas questões aparecem como fios soltos na tessitura que Laurent Vidal oferece ao leitor. Mas se elas tivessem sido contempladas, o tecido do dia 20 de abril apresentaria a nossos olhos outras cores e desenhos ainda mais ricos.

E para o leitor que aceitar a interpretação proposta por Vidal, ficará mais uma indagação a respeito desse artífice e ator da cena de 20 de abril: afinal, como se produziu esse êxito de Juscelino nos efeitos de persuasão do ritual coletivo que apaixonou a vida dos cariocas naquele dia? Uma resposta poderia ser arriscada aqui. Ela talvez possa ser obtida se examinarmos a formação pessoal de Juscelino e se enveredarmos nos caminhos da sua memória. É provável que na memória desse homem no poder estivesse vivo o repertório recolhido da infância das cidades mineiras do ouro. Os ouvidos formados sob o estímulo sensorial das procissões da cidade engalanada, embriagando os atores e a assistência com os sons, as cores, o cintilar de luzes na noite, ritualizando a fé naquele teatro barroco que se deslocava nas ruas do velho Arraial do Tijuco, a cada novo ciclo do ano – é possível que tudo isso tenha lhe fornecido instrutivas lições de psicologia coletiva, pensada e sentida, a respeito da força dos rituais coletivos sobre as almas dos indivíduos, mineiros ou cariocas… É perfeitamente plausível que o presidente Juscelino conservasse na memória algo mais do que a canção cordial vinda dos fundos das Minas Gerais, o Peixe Vivo.

Quando fizer a travessia das línguas e chegar ao leitor carioca e brasileiro, o belo livro de Laurent Vidal provavelmente ganhará o sentido duplo que a língua francesa recusa a seus leitores. Afinal, para os francófonos, Les larmes de Rio é só (e tudo) isso: as lágrimas da cidade do Rio de Janeiro. Mas para os ouvidos lusófonos o título reserva essa ambiguidade das lágrimas da cidade que são ao mesmo tempo as águas do rio, promovendo o encontro semântico entre essas imagens ancestrais e muito brasileiras das lágrimas do rio que corre e das águas dos olhos que choram… É difícil pensar que Laurent Vidal, amoroso do Rio de Janeiro, não tenha concebido essa ambiguidade linguística no interior de um território de encontro entre duas culturas. Escrevendo para franceses, ele pensou como brasileiro.

O autor começa o livro com o relato de uma tarde de 21 de junho de 2006, narrando a sua aproximação do Palácio do Catete, contemplando-o, dialogando com ele. As Lágrimas do Rio é o resultado daquelas indagações. Concluída a leitura do livro, tendo presenciado, por força dessa narrativa evocadora, a intensidade do gesto de fechamento do palácio esvaziado de suas funções, o leitor (em especial o leitor carioca) nunca mais deverá olhar com os mesmos olhos os portões do Museu da República. Do mesmo modo que não sentirá mais essa passagem entre os dias 20, 21 e 22 de abril dominada pela memória da morte de Tiradentes e do Descobrimento do Brasil. A transferência da capital inscreveu dentro desse calendário o dia que suscitou a experiência que mobilizou com intensidade os cariocas, quando eles choraram vendo o despojamento de sua cidade, se dobraram sobre o seu luto e logo renasceram.

Notas

1. DUBY, Georges. O Domingo de Bouvines: 27 de Julho de 1214. São Paulo: Paz e Terra, 1993.

2. VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa à Brasília: l´invention d´une capitale, XIXe-XXe siècle, Paris: IHEAL éditions, 2002. VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). Trad. Florence Marie Dravet. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2009.

3. La ville au Brésil (XVIIIe-XXe siècles): naissances, renaissances.(Dir. Laurent Vidal). Paris: Les Indes Savantes, 2008.

4. Franceses no Brasil: séculos XIX-XX (org. Laurent Vidal e Tania de Luca).São Paulo: Editora UNESP, 2009.

5. VIDAL, Laurent. Mazagão, la ville qui traversa l´Atlantique: du Maroc à l´Amazonie (1769-1783). Flammarion, 2008. Traduzido para a língua portuguesa: VIDAL, Laurent. Mazagão, a cidade que atravessou o Atlântico: do Marrocos à Amazônia (1769-1783). Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins, 2008.

Raimundo Pereira Alencar Arrais – Professor Associado do Departamento de História – UFRN. Doutor em História Social – USP.


VIDAL, Laurent. Les larmes de Rio. Paris: Éditions Flammarion, 2009. 255p. Resenha de: ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. Revista Porto. Natal, n.1, v.1, p.131-137, 2011. Acessar publicação original [IF].