Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] – GONÇALVES (B-RED)

GONÇALVES, Jean Carlos. Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo]. São Paulo: Hucitec, 2019, 172p. Resenha de: FOMIN, Carolina Fernandes Rodrigues. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.14 n.3 São Paulo July/Sept. 2019.01

O livro Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] compõe a coleção Teatro, Série Pedagogia do Teatro, da Hucitec Editora, e traz um olhar investigativo que interliga diferentes campos do conhecimento: educação, teatro e estudos da linguagem. A obra valoriza o encontro e o diálogo dessas esferas, à medida que articula os conceitos advindos das formulações teórico-filosóficas do Círculo de Bakhtin sobre a linguagem com as vozes do teatro que ecoam na educação e as vozes da educação que ecoam no teatro.

O autor, Jean Carlos Gonçalves, é teatrólogo, diretor de teatro e professor de Práticas Teatrais na Universidade Federal do Paraná (UFPR), e vem traçando uma importante trajetória de reflexões acerca da linguagem, com base em pressupostos bakhtinianos. O livro, conforme o autor nos conta, foi concebido a partir de pesquisas anteriores: a tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR e revisões realizadas nos dois estágios de pós-doutoramento no Programa de Estudos Pós-Graduados da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (LAEL/PUC-SP). Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] corrobora a trajetória de reflexão de Gonçalves, que tem como pressuposto o dialogismo e não pretende categorizar ou engessar nenhum dos conceitos apresentados; ao contrário, o pesquisador busca aproximações e novas frentes de discussão.

A apresentação escrita por Beth Brait, supervisora dos Pós-Doutoramentos de Jean Carlos Gonçalves no PEPG em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da LAEL/PUC-SP, destaca o livro como uma forte contribuição à Análise Dialógica do Discurso (ADD) e como “uma encenação possível do texto referência, constituindo-se como única e irrepetível” (BRAIT, 2019, p.12). A expressão texto referência refere-se a “um universo vivo, movente, que não cessa de se expandir, exigindo dos que dele se aproximam (ou dos que são por ele atraídos…) muito estudo, muita dedicação, técnica, método, disciplina e, acima de tudo, uma excepcional capacidade de interpretação criativa” (BRAIT, 2019, p.11). Ao apresentar sua pesquisa, Gonçalves é protagonista dessa interpretação criativa, que se abre à vertente interdisciplinar do conhecimento ao mobilizar dialogicamente as vozes da cena e da pedagogia.

Sobre o referencial teórico da obra, Gonçalves convoca ao diálogo autores dos três campos disciplinares que se propõe a investigar em interconexão: linguagem, educação e teatro. As vozes são múltiplas e, especialmente no que se refere aos estudos da linguagem, o autor extrapola o âmbito dos textos de Bakhtin e do Círculo, evocando outros comentadores e pesquisadores dessa perspectiva teórica. O diálogo acontece também com outros autores da coleção Teatro, Série Pedagogia do Teatro, como Beatriz Cabral (2002), Flavio Desgranges (2006) e Gilberto Icle (2009).

Os enunciados objeto das análises – denominados memoriais – situam-se na esfera educacional e são produzidos por alunos-atores a partir dos processos de montagem de espetáculo, vivenciados durante sua formação como Bacharéis em Teatro-Interpretação da Universidade Regional de Blumenau (FURB). Tendo como fundamento a ADD, que Brait (2019) indica no livro ser “uma perspectiva teórica que se apresenta, principalmente no Brasil, como uma possibilidade de interpretação dos estudos filosóficos-artísticos-discursivos desenvolvidos por Mikhail Bakhtin e o Círculo” (p.12), Gonçalves analisa como os alunos-atores se enunciam, a quem enunciam e quais vozes ecoam nesses enunciados. Ele lê as entrelinhas dos enunciados, as vozes discursivas, os embates valorativos, as posições dos sujeitos que apontam para um horizonte social mais próximo (o da sala de aula e o das relações aluno/professor) ou mais distante (educação e teatro), e suas análises remetem a imaginários sociais que circulam nesses espaços. Contudo, não é objetivo do livro classificar o aluno, o professor ou o diretor de teatro em modelos teatrais ou acadêmicos. O autor busca compreender as vozes que constituem os enunciados dos memoriais que analisa.

O livro está inserido em uma cadeia discursiva que dialoga com elos precedentes e posteriores das esferas que investiga, a cujos enunciados responde ativamente. Alguns desses enunciados estão explícitos e referenciados; outros, implícitos nas diferentes vozes e imaginários sociais presentes na sociedade em geral e nos memoriais analisados no livro. Lembrando Volóchinov (2017, p.219; itálicos no original) “um livro, ou seja, um discurso verbal impresso também é um elemento da comunicação discursiva” e está imerso em uma “discussão ideológica em grande escala: responde, refuta, ou confirma algo, antecipa as críticas possíveis, busca apoio e assim por diante”. E, para o pensador russo, a partir de uma determinada situação de um problema científico, “esse discurso verbal é inevitavelmente orientado para discursos anteriores tanto do próprio autor quanto de outros”.

Como um enunciado, elemento de uma comunicação discursiva, chama-nos a atenção a forma como Gonçalves apresenta e intitula cada uma das partes dessa obra. Primeiramente, destacamos o fato de que a introdução e a conclusão são nomeadas Ensaiando uma introdução e Ensaio aberto, respectivamente. Ao fazer analogia com os ensaios no teatro, Gonçalves aponta para o não acabamento e a não necessidade de se encerrar discussões. Tal qual um ensaio, a obra se coloca como diálogo aberto e aberta a diálogos.

Em Ensaiando uma introdução, Gonçalves nos aproxima do primeiro ensaio de uma apresentação cênica, em que vivências, objetivos e aproximações teóricas são postos em jogo, inaugurando caminhos. Nesse preâmbulo, o autor objetiva compreender o processo de criação teatral na universidade, assume que as relações entre teatro e universidade serão pensadas a partir da ADD e manifesta o diálogo com seu objeto, com o leitor, com os autores que leu e consigo mesmo.

A primeira parte do livro, em que Gonçalves situa as análises e faz acordos teóricos com o leitor, contém dois capítulos, intitulados Pesquisar o teatro feito na universidade e Pesquisar em perspectiva bakhtiniana, respectivamente. No primeiro, antes de trazer as vozes de outros autores, Gonçalves declara o seu lugar teórico e prático e se coloca como “um sujeito intérprete, que analisa seus dados a partir de sua visão única, de seu lugar no mundo, unindo os resultados da sua análise ao seu próprio gesto interpretativo” (p.29). Lembrando Bakhtin (2017, p.36), “não se pode separar interpretação e avaliação: elas são simultâneas e constituem um ato único integral. O intérprete enfoca a obra com sua visão de mundo já formada, de seu ponto de vista”. Consciente disso, além de apresentar um contexto maior, o da criação teatral na esfera acadêmica, Gonçalves conta seu percurso na universidade e assume que suas análises serão permeadas por posições valorativas, um pressuposto de análises em perspectiva bakhtiniana. O autor salienta a impossibilidade de categorizações ou caracterizações estritas para análises que têm como objeto o teatro ou o fazer teatral, pois, nas palavras de Gonçalves, “narrar, descrever o processo de criação teatral, é debruçar-se sobre ele de forma que se possa refletir sobre vivências” (p.31). Com isso, o próprio processo de análise se transforma em um enunciado.

Para o capítulo seguinte, Pesquisar em perspectiva bakhtiniana, Gonçalves faz um levantamento de autores que se dedicaram a essa aproximação entre as artes da cena e as formulações de Bakhtin, Volóchinov e Medviédev e afirma que a pesquisa dessa relação “parece ainda não ter tido seu momento de acontecimento. No Brasil, pouquíssimos pesquisadores têm-se dedicado com afinco a estudar as aproximações possíveis entre o pensamento bakhtiniano e as artes da cena” (p.45), motivo pelo qual essa obra se mostra tão importante. Dentre os principais conceitos apresentados nesse capítulo, estão: alteridade, interação, campo/esfera, vozes discursivas, multivocalidade, posições axiológicas e autoria. Esses conceitos são premissas e dão sustentação às análises que atravessam todo o livro.

A segunda parte da obra também se divide em dois capítulos: Vozes da educação no teatro e Vozes do teatro na educação. Neles, Gonçalves instiga o leitor a refletir sobre o jogo de vozes e a multivocalidade presentes nas esferas que se propõe a analisar a partir da perspectiva dialógica: educação e teatro.

Em Vozes da educação no teatro, o primeiro tópico está relacionado aos imaginários sociais referentes ao professor enquanto condutor de práticas teatrais na universidade. “Seria ele um professor-diretor?” é a pergunta que instiga a discussão. O próximo tópico vai ao encontro de questões relacionadas à autoridade docente. Por meio da pergunta “quem decide?”, o autor discute a heteroglossia, o encontro sociocultural de vozes sociais e os jogos dialógicos de dizeres que se cruzam. A questão da avaliação em teatro é provocada pela pergunta “Vai ter nota?” e o capítulo se encerra com a problematização do espaço físico da sala de aula como espaço de ensaios. Novamente, chama a atenção a forma de apresentação dos enunciados, pois cada um desses subitens, ao invés de nomear conceitos ou categorias de análises, são, na verdade, perguntas pelas quais o autor busca provocar o leitor e mobilizar discussões. Ou seja, perguntas que convocam o leitor ao diálogo.

Em Vozes do teatro na educação, segundo capítulo da Parte II, os subitens seguem apresentados em forma de perguntas. Primeiro, Gonçalves questiona se os processos de criação cênica a partir do modelo de processos colaborativos seriam uma utopia, distinguindo conceitos como coletividade e processos colaborativos. Na sequência, aborda a autoria nos memoriais analisados e a “multivocalidade constituinte dos sujeitos e seus enunciados” (p.127). Já no segundo tópico, debate o modelo de encenação teatral (ou se haveria um modelo) e as acepções da figura do diretor teatral. Nesse ponto, o autor ressalta as principais diferenças entre ensaiador, encenador e diretor teatral, bem como a figura do professor. Os memoriais analisados apontam para os imaginários sociais, uma vez que “as vozes estão imbricadas, sobrepostas, gerando outros sentidos, outras possibilidades de significação na própria situação comunicativo-discursiva” (p.143). No último subitem, a partir da noção de teatro de grupo correlata à formação em teatro na universidade, Gonçalves destaca o conceito de forças enunciativas centrípetas (que tendem a centralizar o poder) e centrífugas (que resistem a um poder imposto). Antes de finalizar o capítulo, entretanto, ainda discorre sobre o conceito de alteridade.

Percebemos que a distinção entre vozes do teatro na educação e vozes da educação no teatro tem caráter didático e necessário, mas uma voz não poderia ser analisada sem a outra, pois, como indica o autor, há uma “amálgama de vozes” (p.125) e os enunciados (os memoriais analisados) apontam para vozes “conversando entre si, se reconhecendo num mesmo espaço dialógico” (p.125).

A conclusão do livro é intitulada Ensaio aberto, referindo-se a prática de grupos de teatro de convidar pessoas para assistir a um ensaio, antes da estreia, e, nesse ensaio, o público é convidado à interlocução. Ao escolher esse título para as considerações finais do livro, o autor explicita que seu olhar é um dentre outros possíveis e convida o leitor a novas proposições para a criação teatral a partir da perspectiva dialógica de Bakhtin e do Círculo. Em perspectiva dialógica, “um texto, assim como uma voz, é algo que sempre chama outros, que sempre faz com que outras vozes cheguem, seja por intenção, seja por efeito. […] as vozes são múltiplas e múltiplos são os momentos e os modos em que elas se fazem ouvir” (AMORIM, 2004, p.155). O autor, à vista disso, dialogicamente convida o leitor a ouvir e se fazer ouvir do primeiro ao último ensaio do livro, da introdução às considerações finais.

Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] é uma importante contribuição aos pesquisadores interessados tanto nas Artes Cênicas (e Artes do Corpo), como em Educação e Linguagem. Essa obra, enquanto enunciado, modifica as pesquisas nessas esferas e incita novas reflexões a respeito dos campos disciplinares que propõe investigar por meio do objeto de análise: os memoriais dos alunos em formação em teatro. Ao apresentar um estudo que articula e inter-relaciona esses campos de estudo, Gonçalves nos instiga a perceber que as fronteiras entre teatro, educação e linguagem não são absolutas, mas, ao contrário, estão em diálogo – e as vozes de um campo atravessam as do outro, refletindo e refratando outras vozes discursivas.

Referências

AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa Editora, 2004. [ Links ]

BAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017, p.21-56. [ Links ]

BRAIT, B. Entre a cena e a pedagogia, o dialogismo. In: GONÇALVES, J. Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo]. São Paulo: Hucitec, 2019, p.11-15. [ Links ]

CABRAL, B. Avaliação em teatro: implicações, problemas e possibilidades. Revista Sala Preta, n.2, p.213-220, 2002. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57093/60081. Acesso em: 28/02/2019. [ Links ]

DESGRANGES, F. Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Hucitec, 2006. [ Links ]

ICLE, G. Pedagogia teatral como cuidado de si. São Paulo: Hucitec, 2009. [ Links ]

VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório deSheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. [ Links ]

Carolina Fernandes Rodrigues Fomin – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP), Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, SP, Brasil; CAPES PROSUC, Proc. 88887.314270/2019-00; https://orcid.org/0000-0001-5120-049X; [email protected].

 

Fama pública: Poder e costume nas Minas setecentistas – ROMEIRO (VH)

SILVEIRA, Marco Antonio. Fama pública: Poder e costume nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2015. 356 p. ROMEIRO, Adriana. Varia História. Belo Horizonte, v. 33, no. 61, Jan./ Abr. 2017.

Mais de quinze anos depois de sua defesa como tese de doutorado, vem à luz o livro Fama pública: poder costume nas Minas setecentistas, de Marco Antônio Silveira, em cuidadosa edição da Hucitec, prefaciada por João Adolfo Hansen.

Trata-se de um livro original. E por várias razões, a começar pelo investimento maciço num corpus documental tão rico quanto pouco explorado pela historiografia sobre Minas Gerais: os libelos cíveis, depositados no Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência. Em segundo lugar, pela sofisticação de sua abordagem teórico-metodológica, presente também em trabalho anterior do mesmo autor, O universo do indistinto, inegavelmente uma referência obrigatória sobre a sociedade mineira do século XVIII, cujas questões centrais são aqui retomadas e aprofundadas a partir de uma nova perspectiva. E, por fim, pelo olhar arguto com que Silveira formula seu repertório de problemas às fontes.

A arquitetura do livro merece destaque. Já de início, o autor apresenta as referências conceituais que orientam a investigação, expondo ao leitor os fundamentos teóricos sobre os quais constrói o seu argumento. Cada um dos capítulos é dedicado então à análise de um ou mais libelos cíveis, os quais desvelam histórias de vida, conflitos familiares, solidariedades vicinais, enfim, a trama microscópica que compunha o cotidiano das comunidades rurais da capitania, ao longo do século XVIII. Essa trama densa, protagonizada por brancos, negros e mestiços, é a matéria-prima de uma reflexão sólida e instigante sobre a natureza e a dinâmica da sociedade mineira. Ao final de cada capítulo, o autor junta os fios dispersos e alinhava as suas teses, desenhando uma interpretação inovadora sobre a “invenção da sociedade mineira” (p.27).

Do ponto de vista metodológico, a obra alia uma abordagem antropológica a uma perspectiva histórica. Como antropólogo, Silveira se debruça ao rés-do-chão, aproximando as suas lentes do cotidiano das comunidades rurais, com o propósito de sondar as ideias, os valores, as práticas e os comportamentos que estruturavam a vida social. É da antropologia inglesa, particularmente dos trabalhos de Victor W. Turner, que vem a inspiração para a estratégia analítica calcada na “possibilidade de traçar, por meio deles, as estruturas sociais que lhes emprestavam significado” (p.29). Graças ao conceito de drama social, o leitor se vê como o espectador privilegiado de uma cena que se desenrola diante dos seus olhos: a experiência cotidiana de homens e mulheres, extraída da vida real e concreta. Nota-se também a influência do método de descrição densa de Clifford Geertz, sobretudo na ênfase dada à dimensão social dos significados partilhados pelos sujeitos históricos; e do paradigma indiciário de Carlo Ginzburg.

Como historiador, Silveira investiga o impacto das transformações em curso no século XVIII na dinâmica da sociedade mineira, articulando-o ao contexto macroscópico da emergência do mercado capitalista, que solapou os velhos valores e solidariedades, transtornando as sociabilidades tradicionais. É nesse cenário que a sociedade mineira teve de se inventar, elaborando os seus códigos de estratificação, em meio a forças de sedimentação e subversão, do que resultou um universo fluido, convulsionado e instável, permeado por contradições de toda sorte. Contradição entre as diferentes propostas de ordenamentos social, entre o costume e a lei, entre as solidariedades comunitárias e o apego à propriedade privada, entre as sociabilidades e a privacidade burguesa, entre a piedade e a violência das relações mercantis, entre a caridade e o lucro… Contradições que dão lugar a uma sociedade extremamente conflituosa, que Silveira descreve recorrendo a metáforas bélicas, tais como “campos de batalha” e “guerra”, em tudo contrária à imagem de comunidades idílicas e harmoniosas.

Ao leitor atento, não passam despercebidos os ecos das geniais análises de Sérgio Buarque de Holanda sobre a instabilidade congênita do universo social mineiro, que mal conseguia “dissimular a ebulição íntima”, pois que nascido sob a égide do aluvionismo, era “uma estrutura movediça que se desmancha, em partes, e se recompõe continuamente, ao sabor de contingências imprevisíveis (…)” (Holanda,1982, p.259-310) Para Silveira, é no arrivismo que se encontra a origem dessa dinâmica: de negros a brancos, todos buscavam ali a ascensão social, legitimando suas demandas por meio do repertório dos costumes locais, dos valores cristãos como piedade e caridade, do direito formal, num esforço para esgarçar as fronteiras da classificação social.

É de Sérgio Buarque de Holanda também outro conceito-chave do livro: o descrédito do formalismo, ou seja, o embaralhamento dos signos de distinção, típico do processo vertiginoso de ascensão, esvaziada dos padrões europeus de civilização. Homens rudes que o ouro enriquecia, mas não civilizava, transformavam a lógica social do Antigo Regime numa espécie de simulacro banal.

Os libelos cíveis põem a nu esse intrincado e complexo processo de ordenamento social, no qual a cultura jurídica funcionava como mais um instrumento de disputa nas mãos de homens e mulheres empenhados em fazer valer seus direitos, privilégios e benefícios, em meio à fragilidade do Estado, à economia moral comunitária e às exigências da nova ordem econômica. Nas palavras do autor, “manipulando o choque entre formal e informal, homens e mulheres reunidos no buraco negro das obrigações mútuas buscavam remodelar a seu favor as disposições de poder e patrimônio” (p.273).

O livro de Silveira ainda nos coloca diante de uma questão fundamental: será possível falar em colonização, sem levar em consideração os múltiplos sentidos que ela adquiriu no cotidiano de homens e mulheres? Aqui, já não se trata mais de privilegiar modelos teóricos apriorísticos, ou de perseguir a adesão ou a resistência ao projeto colonizador português, mas de reconhecer o peso da dimensão cultural e valorativa dos agentes históricos e sua imensa capacidade de criar sentidos novos. A colonização surge então como experiência – no sentido de E.P. Thompson – que só pode ser entendida à luz das inúmeras dimensões da vida social, num emaranhado em que se confundem “as práticas sociais e os valores, a vida material e as elaborações simbólicas, as instituições e o cotidiano.” (Silveira, 2001, p.985)

Fama pública é, por fim, um livro corajoso. Nesses tempos em que conceitos como acomodação e negociação tendem a elidir contradições e conflitos, ele nos proporciona uma representação da sociedade mineira como guerra sem trégua…Ou, ainda, quando se assiste ao deslocamento da escravidão como chave para compreensão do mundo colonial, em nome de aproximações com as categorias do Antigo Regime, Silveira, inspirado pela melhor tradição historiográfica brasileira, nos lembra que, afinal, a colônia foi, acima de tudo, uma sociedade escravista.

Referências

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Metais e pedras preciosas. In HOLANDA, Sérgio B. de (ed.). História Geral da Civilização Brasileira , 5a ed., tomo 1, vol. 2. São Paulo: Difel, 1982. p.259-310. [ Links ]

SILVEIRA, Marco Antonio . Ideologia, colonização, sociabilidade. In JANCSÓ, István e KANTOR, Iris (org.) Festa: cultura e sociabilidade na América Portuguesa . vol. 2 São Paulo: FAPESP/Imprensa Oficial, 2001. p.979-990. [ Links ]

Adriana Romeiro – Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais, Av. Antônio Carlos 6627, Campus Universitário, Belo Horizonte, MG,Brasil 31.270-901, [email protected].

A arquitetura da alteridade: A cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845) – TORRÃO FILHO (H-Unesp)

TORRÃO FILHO, Amilcar. A arquitetura da alteridade: A cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2010. 347 p. Resenha de: GAMA, Luciana. Retórica na Pitoresca Confusão da Literatura de Viagem. História [Unesp] v.30 no.2 Franca Dec. 2011.

Ordem para a cidade é o heroísmo dos homens, para o corpo a beleza, para a alma a sabedoria, para o ato a excelência, para o discurso a verdade; o contrário disso é a desordem. E, em relação ao homem, à mulher, ao discurso, à ação, à cidade e ao ato particular é necessário honrar com louvor o digno de louvor e sobre o indigno aplicar censura; pois igual erro e ignorância é censurar as coisas louváveis e louvar as censuráveis.

(Górgias, Elogio de Helena).

Com o intuito de demonstrar como o caráter identitário presente nos relatos dos viajantes franceses e britânicos ocorre nas descrições da cidade Luso Brasileira nos séculos XVIII e XIX (1783-1845) edificando, portanto, o discurso da imagem de duas alteridades – a do construído e a do construtor – uma preocupação se impõe e objetiva a metodologia do livro lançado no ano de 2010 pela HUCITEC/ FAPESP, a saber, decifrar ao leitor como a historicidade da cidade colonial brasileira é moldada por meio da representação textual elaborada por autores como Debret, Maria Graham, Saint-Hilaire, Spix e Martius como Suzannet, Thevenot, Thomas Lindley e Luccock entre outros tantos citados e estudados por Amilcar Torrão em sua obra que, propositada, “não privilegia um ou outro autor, mas propõe uma visão de conjunto, por amostragem” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 34).

Aqui, vamos tratar do primeiro dos cinco capítulos, tendo em vista que é emblemático, fazendo-se, às vezes, de exórdio para a leitura dos subsequentes, já que desenvolve o raro questionamento do uso dos relatos de viagem pela historiografia posterior como descrições do real e do existente, como documentos de fidelidade objetiva. Assim, com bibliografia crítica contemporânea impecável e variada, surge uma confusão pitoresca a respeito das definições sobre o “gênero viático” – ou para usar sua nomenclatura mais usual – sobre o “gênero literatura de viagem”. Demonstrando que o gênero, portanto, possui diversas definições, podemos considerar então, pelas negativas, que o que não está definido, indefinido está: seja por sua especifica pluralidade, seja pela grande força esponjosa que o termo “gênero” adquire quando se trata de uma categoria trans-histórica como a denominada por “literatura de viagem”, que se apresenta melhor como um frango com tudo dentro do que como um gênero propriamente dito.

Ao apontar, por exemplo, que uma das principais características do gênero é a problemática de classificá-lo porque é “enorme a sua diversidade de registros” e ao mesmo tempo “grande sua permeabilidade” o autor toca num ponto nefrálgico e naufragável ao descrevê-lo “do ponto de vista da forma” como “diário de campo, cartas, relato, relatório científico, itinerário, relato de peregrinação; além de suas formas ficcionais em prosa e poesia” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 39). Nefrálgico, porque a literatura de viagem não foi associada hermeneuticamente na sua ascensão moderna com um gênero maior como o épico, por exemplo, que comportava obrigatoriamente dentro de si preceitos do gênero trágico, dos quais dependia para formar seu conceito e suas regras, mesmo que um estudioso de envergadura de Normand Doiron tenha generalizado sua definição para “um gênero literário claramente constituído, ‘ dotado de um estilo, de uma poética e de uma retórica que lhe são próprias'” e instituído com precisão: “a data da constituição do gênero de viagem em 1632, ano da publicação de três relatos importantes, de Champlain, Lejune e Sagard” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 37).

O que ocorre aqui, é que há um mesmo uso para o termo “gênero” para categorias que foram instituídas e, portanto, definidas anterior ao século XVIII pós-iluminista como a Ars dictaminis e os Tratados de Peregrinação, com termos que foram instituídos no fim do século XVIII, começo do XIX, como “ficção” e “literatura”. Naufragável, porque falar em gênero sem discutir o seu estatuto tão caro primeiramente a Platão e Aristóteles e depois em seu revival no século XVI, quando a Poética e a Retórica foram utilizadas para a confecção de cânones a que as obras deveriam se ajustar e em que são nitidamente demarcadas, não mudando o “tom preceptista a que o tratamento dos gêneros se associava” até o século XVIII (LIMA, 2002, p.258-260). Coloca em primeiro plano o desconhecimento de uma história dos gêneros, em que apenas seus apontamentos históricos nos orientariam para uma discussão que, se fomos nós que paramos não fomos nós que começamos: O que é literatura? O que é história? O que é ficção? O que é verdade histórica? Ou melhor formulando: Como é distinguível num texto o que é ficção do que é história?

A discussão estava em voga, para usar um exemplo próximo, no setecentos português e pode ser encontrada em autores como Cândido Lusitano e Francisco de Mello e Pina, ou, como fundamenta Adma Muhana “para a poética não se colocou a questão da falsidade ou veracidade da história como matéria da poesia porque a matéria da poesia é as ‘coisas que são, que podem ser, ou que os antigos tiveram por verdadeiras’, importando sim, ‘a conveniência entre as coisas narradas e a imitação conduzidas”. Nesse sentido, “a história também é matéria bruta de toda poesia” e “apresenta-se incompatível com a arte da poesia. Do ponto de vista da poesia, natureza é história. Ou seja, o poeta imita pessoas, coisas e eventos, como os que encontra na história. Mas não são os mesmos: a história narra sucessos ocorridos, já singularizados em sua ocorrência, enquanto o poeta narra ‘verossímeis e possíveis’, nunca esgotados em sua possibilidade de ser” (GAMA, 2009, p.12). Ou, como arqueólogos do saber, podemos desenterrar com Hansen a obra Due Dialogi (1564) de Giorgio Gilio, que “inverteu o conhecido preceito aristotélico da superioridade da poesia, que trata do universal, sobre a história, uma arte das particularidades, afirmando que a história é superior, porque é sempre história sacra” (HANSEN, 1994, p.30). Ou podemos, ainda, recordar, quando se trata de Jean- Batiste Debret, que ” A prescrição de um ‘pintor historiador’ que substitui ‘o pintor poeta’ tinha por referência a fala de um papa, Gregório Magno: ‘A pintura é a história do ignorante’, e logo se transferiu para os discursos, visando regular-lhes a persuasão na propaganda fidei” (HANSEN, 1994, p.30).

No primeiro capítulo do livro de Amilcar Torrão, denominado “Imago Mundi”, chega-se a essa inquestionável pergunta – O que é ficção? – por meio da constatação de que literatura de viagem “trata-se de um gênero compósito, fronteiriço, e esse desejo de clareza e veracidade deve-se em muito, à proximidade que esses textos têm com a ficção, uma tensão que permeia toda a sua história e que colocava problemas difíceis de solucionar” (TORRÃO FILHO, 2010, p. 43). Nesse sentido, a confusão se torna mais e mais pitoresca: a literatura de ficção e a literatura de viagem se utilizam ambas dos mesmos recursos para formar suas verdades e suas mentiras, ou, suas mentiras e verdades não sabendo mais o leitor o que é verdade ou mentira, o que é ficção o que é história, porque uma se utiliza da outra, sem fronteiras claras, em autores como Defoe, Swift, Walter Scott, Chateaubriand ou até mesmo Italo Calvino. Relembrando, Amilcar autor, obviamente discordando de Sylvie Requemora, que para ele organiza uma apresentação esquemática em demasia do tema:

[…] as relações entre literatura de viagem e a ficção são tão estreitas, que Requemora propõe sua periodização para o século XVII. No período de 1600 a 1640, a teoria da imitação prevalece e os romances barrocos imitam os gregos e os relatos de viagem imitam os relatos da Renascença; de 1640 a 1660 passa-se da imitação à história: seria a época do “Grande Romance” e da “viagem literária”; o terceiro período, entre 1650 a 1700, coloca questões de mímesis e de suas significações, por meio do “romance verdadeiro” e da viagem alegórica; e o período de 1670 a 1700, que vê o apogeu das aproximações entre a literatura e a viagem, com o desenvolvimento das viagens imaginárias e utópicas (TORRÃO FILHO, 2010, p.51).

É como colocar um imã próximo a uma bússola: aqui, obviamente, a confusão já fundamentou seus alicerces, mas para torná-la mais nítida e mais confusa há termos em uso como “retórica”, “tópica” “lugares-comuns (topos)”, “descrição”, “textos retóricos”, “repetição descritiva”, “tradição intertextual da viagem”, “procedimentos retóricos”, “retórica do gênero”, “retórica da alteridade”, “convenção retórica”, seja quando o autor vai tratar diretamente do tema ou quando cita os autores por ele estudados.

No entanto, faz-se necessário explicar, aqui, o que o autor está querendo dizer quando usa o termo “retórica”, tendo em vista que o objetivo do autor é “demonstrar como a descrição textual das cidades na literatura de viagem obedece a certas convenções e a uma ‘teoria’ trazida na bagagem do viajante, aos quais o historiador não pode desprezar ao utilizar-se de uma fonte tão rica de informações e, ao mesmo tempo, tão complexa em sua estrutura” (TORRÃO FILHO, 2010, p.89)

Possivelmente, Amilcar Torrão quando diz “retórica” está a se referir ao conjunto de regras que visam à persuasão cuja realização permite convencer o ouvinte do discurso e mais tarde, o leitor da obra, mesmo se aquilo que se pretende inculcar for “falso”. No entanto, também quando escreve “retórica” em seu texto está usando um termo genérico que não se mais sustenta nos dias de hoje como uma palavra metonímica que em seu todo oculta os detalhes de suas partes como técnica, como ensino, como protociência, como uma moral, como uma prática social e uma prática lúdica. (BARTHES, 1975, p. 148). O uso do termo retórica é usado geralmente para significar um discurso falso, diletante e de empirismo grosseiro, que foi muito bem definido e difundido a partir de Locke, no seu “Ensaio sobre o Entendimento Humano III”, 10, 34:

[…] nós precisamos admitir que toda arte do discurso (redekunst), todo emprego artístico ou figurado das palavras encontrado pela eloqüência, não servem para nada além de provocar representações incertas, suscitar paixões e, através disso, desorientar (missleiten) o juízo, sendo assim, de fato, uma completa fraude (FONSECA, 1999, p.29).

O sentido de retórica como discurso falso é amplamente utilizado pelo senso comum nos séculos posteriores ao XVIII e nos faz esquecer de considerar o que Roland Barthes delineava como um verdadeiro império, um “Império Retórico” mais vasto e mais tenaz que qualquer outra dominação política, que por suas dimensões e duração, faz malograr o próprio quadro da ciência e da reflexão históricas, a ponto de pôr em questão a própria história e de obrigar a conceber o que se pôde chamar, aliás, de uma história monumental. Lembremos, ainda com Barthes, que a retórica, mesmo com suas variações internas do sistema, reinou no Ocidente durante dois milênios e meio, de Górgias a Napoleão III (BARTHES, 1975, p. 150).

As preceptivas Retórica e Poética aristotélicas, claro está, se fundem a partir da época de Augusto com Ovídio e Horácio e são consagradas pelo vocabulário da Idade Média em que as artes poéticas são artes retóricas e os grandes retóricos são poetas. Esta fusão é capital, segundo Barthes, pois está na origem da ideia de literatura. Dessa retórica aristotélica, continua Barthes, teremos a teoria com o próprio Aristóteles, a prática com Cícero, a pedagogia com Quintiliano e a transformação por generalização com Dionisio de Halicarnasso, Plutarco e o Anônimo do tratado Do Sublime (BARTHES, 1975, p.156).

Assim reconsiderada, podemos redefinir que quando se diz retórica não se fala em uma sistematização pós-iluminista do saber, de um ramo que pertence exclusivamente às letras ou à literatura, mas de uma disciplina que – ensinada no Trivium e Quadrivium – se fundamenta no discurso sobre o discurso seja ele histórico, médico, geográfico, teológico, político, aritmético ou poético.

Podemos, agora, restaurar o uso de termos que nos são caros hoje em dia e lhes devemos respeito: “descrição” (descriptio) e “tópica” (topostopoi). A retórica, quando mutilada, fosse pela queda da disciplina na Universidade de Coimbra do Portugal pombalino e seus domínios ultramarinos no século XVIII, fosse por Jakobson que a reduziu toda aos tropos de metáfora e metonímia no século XIX, deixou rabos de lagartixas se mexendo durante os séculos posteriores e ainda estava fartamente em uso no século XIX e no Brasil, como nos demonstra Roberto Acízelo, em “O Império da Eloqüência: Retórica e Poética no Brasil Oitocentista” (SOUZA, 1999). Essa autonomia caudal distraiu seus predadores enquanto se retirava para algum refúgio onde não poderia mais ser vista nem notada.

Da lagartixa retórica, cujo corpo não pode ser pensado sem suas cinco partes, a techne rhetorike compreende, a saber, a inventio, a dispositio, a elocutio, a actio e a memória; além disso, as três primeiras sobreviveram e alimentaram a retórica até o seu último suspiro no século XVIII e as duas últimas (actio e memória) foram rapidamente sacrificadas. Assim, apenas para resumir, quando estamos falando de tópica, estamos nos referindo a lugares que se referem à inventio de um texto, quando apontamos para uma descrição em um texto estamos nos referindo à dispositio de um texto e, por fim, quando nos referimos a metáforas ou a usos alegóricos, estamos tratando da elocutio.

Quando consideramos uma descrição das ruas de uma cidade num texto de um viajante dos séculos XVIII ou XIX e a deslocamos para fundamentar uma argumentação, estamos desconsiderando sua teleologia, isto é, a sua finalidade que comporta uma causa, que por sua vez, está explícita no prêmio da obra, porque não estamos levando em conta seus mecanismos de invenção e disposição retóricas. O uso do termo “descrição” é recorrente e corrente quando se trata da historiografia da literatura de viagem e é importante que se estabeleça, portanto, que a descrição é uma subdivisão, um elemento da narração (narratio) que, por sua vez, pertence à dispositio, e é codificada em topográfica (lugares), cronográfica (tempo) e prosopográfica (retratos).

Já as tópicas – essas formas vazias comuns a todos os argumentos (e quanto mais vazias, mais comuns) não são os próprios argumentos, mas sim os compartimentos em que são ordenados, são estereótipos, proposições muito repetidas, uma reserva plena, um método de se encontrar os argumentos (quis? quid? ubi?) que pertencem à parte da retórica que diz respeito à inventio, “essa parte da retórica encarregada de fornecer conteúdos ao raciocínio” (BARTHES, 1975, p. 194-197) – são amplamente citadas e demonstradas por Amilcar Torrão em todo o livro: tanto as mapeadas pelos Jesuítas (preguiça, hospitalidade), as da falta de letras (letramento) e as da natureza sã versus os maus costumes (PÉCORA, 2001, p.44) – que vai vigorar nas descrições dos viajantes do XVIII e XIX quando o assunto é levado ao limite pelos autores franceses e britânicos ao discorrerem sobre a “imoralidade, desordem e caos da sociedade e das cidades luso-brasileiras (TORRÃO FILHO, 1995, p.205) – quanto as fundamentadas pelos próprios viajantes, como por exemplo, a do “desleixo das edificações” (TORRÃO FILHO, 1995, p. 196), ou da “cidade suja” como poderemos verificar no capítulo quatro e a “tópica dos ciúmes” que advém da falta de gentileza com os viajantes, uma herança portuguesa, já que por três séculos esconderam “ciumentamente sua principal colônia da cobiça das nações mercantes” (TORRÃO FILHO, 1995, p.114, p.212), ecos de uma condenação à colonização portuguesa.

Uma tópica recorrente e bem explorada por Amilcar Torrão é a da “edênica paisagem exterior”, na chegada às cidades do Rio de Janeiro, Salvador ou Olinda, cuja fruição estanca cidade adentro que é obscura com seus negros e bastante suja (TORRÃO FILHO, 1995, p.250). Alegorizando essas paisagens, inicialmente encantadoras, comparando-as com um “anfiteatro” de Salvador no caso de Tollenare como em Arsène Isabelle, em visita ao Rio Grande do Sul, em 1834, onde a cidade de Porto Alegre é “elevada em anfiteatro”; e também por Debret, em 1816, cujo “quadro textual praticamente ignora a presença de uma cidade na paisagem do Rio de Janeiro”; ou o viajante Lacordaire: o que importa é que essas “serão algumas das imagens mais fortes criadas pela literatura de viagem sobre o Rio de Janeiro que serão transpostas a todas as cidades luso-brasileiras: sua beleza ilusória, percebida apenas à distância, enquanto a aproximação do viajante, uma apreciação pedestre da cidade, revela a sua mácula e a sua desordem” (TORRÃO FILHO, 1995, p.238).

Podemos transpor essa metáfora da paisagem inicial como um anfiteatro para outra, a saber, de que essa paisagem é um proêmio, um exórdio que não cumpre o que esboça na sua narração, na sua disposição interior, tornando-a, assim, um monstro, um espetáculo horrendo e mal formado aderindo, aqui, à tópica da doutrina da proporção decorosa dos efeitos das obras, o ut pictura poesis horaciano nos versos 361-365: “como a pintura é a poesia: coisas há que de perto mais te agradam e outras, se a distância estiveres. Esta quer ser vista na obscuridade e aquela à viva luz, por não recear o olhar penetrante dos seus críticos; esta, só uma vez agradou, aquela dez vezes vista, sempre agradará” (HORÁCIO, 1984, p. 109-111).

A paisagem da chegada, portanto, vista de longe, é uma imagem icástica, proporcional ao paradigma do europeu, e a imagem fantástica, a cidade que se adentra, uma deformação ou desproporção da imagem icástica, a cidade de perto, obscura:

[…] a desproporção fantástica pressupõe, mimeticamente, o ponto de vista icástico que a proporciona como desproporção: ela só é fantástica como uma das séries da relação, ou seja, é um efeito, ou um diferencial. Esta relação é objeto de uma arte das desproporções proporcionadas – a cenografia, skenografia– dos tratados de óptica […] Pensando-se o ut pictura poesis cenograficamente, a relação de proporcional/desproporcional – ou de icástico/ fantástico – implica não qualquer proximidade ou qualquer distanciamento, mas, sempre a correta distância, a distância exata […]. (HANSEN, 2007, p. 183).

A vista do arrazoado disposto acima, fica mais claro o entendimento da tópica da natureza sã, exuberante versus os maus costumes, bem como a alegoria da paisagem da chegada nas cidades como anfiteatro.

É inevitável observar que todas essas tópicas irão repercutir em nossa historiografia até os dias de hoje, com base nas determinações de Von Martius em Como se deve escrever à história do Brasil, em 1847, pelo Instituto Histórico e Geográfico, esquecendo, que são tópicas, muitas delas que remontam as obras de Homero, Ovídio ou Virgilio, suas fontes. Por serem tópicas, se repetem por séculos, em vários textos, garantindo a argumentação. Se, dentro delas, propositadamente (claro está: o domínio das técnicas do império retórico não admite nenhuma inocência discursiva) nomes ou livros são citados metonimicamente, estamos invariavelmente entrando no reinado das “auctoritas”, dos argumentos de autoridade. É a esta rede milenar textual maquinada pela retórica que o autor vai denominar, heroicamente, de “Memória de Biblioteca”. (TORRÃO FILHO, 2010, p.302).

Se chamamos o autor de herói é também porque a impecável bibliografia foi por ele composta, nos fornecendo, assim, a chance de ter acesso a uma bibliografia opulenta traçada e usada em todas as páginas do seu livro que demonstra um intelecto hercúleo. Quero deixar claro que a aparente desordem exposta no primeiro capítulo é decorrente da grandeza da matéria tratada pelo autor ao tentar caminhar com as preceptivas da retórica e da historiografia juntas. Se tal metodologia se torna pitoresca é porque a empreitada é salutar: como “ir a Jerusalém caminhando para Emaús”, capitalizando aqui o empréstimo que João Adolfo Hansen fez de um sermão de Vieira. É como se no itinerário traçado para a hipótese desenvolvida por Amilcar Torrão, ele arranjasse confusão no primeiro porto, na primeira parada, ou tivesse que enfrentar o Gigante Adamastor definitivamente para cruzar o Cabo da Boa Esperança, explicando para confundir, confundindo para esclarecer.

No entanto, o autor optou pelo caminho mais longo que é sempre mais curto que o mais curto para usar uma máxima talmúdica: optou por um trajeto desconhecido ao colocar na sua nau elementos da retórica literária como instrumento de navegação que serão então utilizados nos capítulos posteriores para medir tabus historiográficos da terra ignota: mapear a construção da imagem da cidade luso-brasileira por meio da narração da literatura de viagem e dos viajantes franceses e britânicos, desconstruindo, assim, tópicas e lugares-comuns que emprestamos deles para construir as nossas sobre as nossas cidades, coisa que, de quebra, fornece também uma boa oportunidade, após a leitura de “A Arquitetura da Alteridade: A cidade Luso-Brasileira na Literatura de Viagem”, para que se possa dizer ou escrever com consciência histórico-discursiva que o Rio de Janeiro continua lindo, mesmo que isso seja inútil, mesmo que seja só uma paisagem, um retrato num prato, ou uma descrição de Maria Graham.

Referências

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HANSEN, J. A. Prefácio. In: PÉCORA, A. Teatro do Sacramento. São Paulo: Unicamp/ Edusp, 1994, p. 15-36         [ Links ]

HANSEN, J. A. Ut Pictura Poesis e Verossimilhança na doutrina do conceito no século XVII colonial. Revista de Crítica Literária LatinoAmericana, Peru, Año 23, n 45, p.177-191, 2007.         [ Links ]

HORÁCIO. Arte Poética. Introdução, Tradução e Comentário de R.M. Rosado Fernandes. Lisboa: Inquérito, 1984.         [ Links ]

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SOUZA, R. A. O Império da Eloquência. Rio de Janeiro: Uerj/ Eduff, 1999.         [ Links ]

Luciana Gama (SHLOMIT OR) – Mestre em Teoria e História Literária – IEL/Unicamp – Doutoranda -Programa de Teoria e História Literária -Universidade Estadual de Campinas – IEL/Unicamp – Rua Sérgio Buarque de Holanda, 571. CEP 13083-859 -Campinas – São Paulo e no Dept. of Romance and Latin – American Studies – The Hebrew University of Jerusalém-HUJI. Mount Scopus, 91905 – Jerusalem – Israel. Bolsista Fapesp. E-mail: [email protected].

Desarquivando a ditadura. Memória e justiça no Brasil – SANTOS et al. (EH)

SANTOS, Cecília Macdowel; TELLES, Edson; TELES, Janaína de Almeida (org). Desarquivando a ditadura. Memória e justiça no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2009. Resenha de: FREIRE, Américo. Ditadura, democracia e estado de exceção. Estudos Históricos, v.24 n.47 Rio de Janeiro Jan./June 2011.

Nas duas últimas décadas, os estudos históricos voltados para o exame da natureza do regime civil-militar brasileiro experimentaram um enorme impulso. Por certo, não faltam razões para explicar esse verdadeiro boom que, evidentemente, não é um fenômeno que diz respeito apenas ao Brasil. Basta consultar a programação dos inúmeros congressos internacionais que tratam de temáticas contemporâneas para se verificar a ampla presença de trabalhos voltados para a análise de experiências dramáticas vividas por indivíduos e grupos de diferentes sociedades sob o jugo de regimes ditatoriais.

No caso da produção recente sobre a ditadura brasileira, há duas vertentes de trabalho que têm despertado interesse e aberto caminho para novas incursões analíticas.

Uma delas está relacionada ao estudo de um fenômeno que, à falta de melhor denominação, pode ser chamado de institucionalização autoritária, o qual se associa aos processos pelos quais os governos militares levaram adiante o propósito de demarcar-se das demais ditaduras por meio de aplicação de medidas assentadas em textos político-legais, fosse a carta constitucional, fosse a própria legislação autoritária. Tais iniciativas expressaram-se também no estabelecimento de relações ambíguas com diferentes instituições do Estado brasileiro, em particular com os poderes Judiciário e Legislativo, já que foram assegurados, para ambos, determinados espaços de atuação político-institucional.

Outro campo que tem sido privilegiado é o que examina, sob diferentes perspectivas, a transição política brasileira e suas implicações para o estabelecimento de uma nova ordem política democrática no país. Vários autores, com base no pressuposto de que se deve conceber a dinâmica da transição brasileira como uma via de mão dupla entre o Estado e amplas parcelas político-sociais, têm buscado estabelecer linhas de continuidade entre o processo gradualista e acordado de retirada dos militares do centro do poder, no qual a Lei de Anistia cumpriu papel decisivo, e as “estratégias de esquecimento” que foram e têm sido acionadas pelos governos civis da chamada “Nova República”.

Lançado em 2009, em meio aos debates políticos e acadêmicos acerca da revisão da Lei de Anistia no Brasil, Desarquivando a ditadura nos propicia um excelente roteiro para o exame de algumas das questões historiográficas acima levantadas, além de muitas outras.

A obra é composta por dois volumes, ambos organizados em torno dos eixos “memória política” e “justiça”. O primeiro volume, dirigido para o estudo dos anos de repressão política, é dividido em duas partes: um conjunto de artigos relativos às memórias e às histórias de diferentes atores que resistiram ao arbítrio; e um outro conjunto, dirigido ao estudo da ideologia militar e das instituições do Estado.

Três dos capítulos que compõem a primeira parte do livro abordam temas ainda muito pouco explorados na literatura sobre o regime. Antônio Luigi Negro brinda-nos com um interessante texto sobre as expectativas e angústias de mulheres revolucionárias que se envolveram na experiência de se integrar à produção como operárias. Valendo-se de um rico conjunto documental produzido à época pelas organizações que apostaram naquela prática, o autor traz nova abordagem ao tema, quando se propõe a lidar não apenas “com o que as militantes queriam fazer com as operárias, mas também o que as operárias fizeram com as militantes”.

Já Flamarion Maués acompanha a publicação e distribuição do livro Tortura: a história da repressão política no Brasil, de autoria do jornalista Antônio Carlos Fon e publicado pela Editora Global, em 1979. Em seu estudo, o autor examina, em primeiro lugar, a rede de relações que se estabeleceu entre setores da grande imprensa e o governo Geisel no contexto da aplicação do projeto de distensão política. Em seguida, coloca-nos a par da dinâmica própria do campo das pequenas editoras de oposição do país, do qual a Global foi um dos exemplos mais expressivos.

Na sequência, Tatiana Paiva apresenta em texto um extrato de sua original pesquisa acerca de um lado ainda obscuro do exílio: o do impacto daquela experiência nos filhos dos que se viram obrigados a sair do país por motivos políticos.

O texto de Janaína Teles a respeito da luta dos familiares de mortos e desaparecidos fecha a primeira parte do livro. Nele, a autora discorre sobre as estratégias acionadas pelos governos militares no sentido de promover o desaparecimento de militantes assassinados pelo regime, sem deixar de chamar atenção para o fato de que foi no período do “moderado” Geisel que se deu a intensificação dessa prática.

Na segunda parte do livro, três textos lidam com questões que dizem respeito diretamente ao tema da justiça, sendo que dois deles, o de Anthony Pereira e o de Kathia Martin-Chenut, se associam a um duplo movimento que tem dado bons frutos para a história política brasileira, a saber, o uso do método comparativo e a crescente aproximação de saberes entre a História, as Ciências Sociais e o Direito.

Anthony Pereira toma como objeto a maneira pela qual os regimes ditatoriais do Brasil, do Chile e da Argentina se relacionaram com seus sistemas judiciais para processar seus opositores. Para o autor, uma variável a se levar em conta nesse caso diz respeito às relações que historicamente foram sendo construídas entre as elites judicial e militar. Em outras palavras, quanto maior for o nível de integração entre esses dois atores,  como no caso brasileiro, mais possível se a torna institucionalização da aplicação da justiça. Já Kathia Martin-Chenut examina a estruturação do Estado de exceção brasileiro à luz da legislação internacional sobre direitos humanos. Segundo a autora, estabeleceu-se no país um Estado de exceção complexo ou anômalo, dado que fundado em um sistema jurídico de alta complexidade, o qual foi expressão do “esforço de racionalização jurídica por parte dos detentores do poder, esforço que distingue o regime autoritário brasileiro de outros instaurados na América Latina”.

O segundo volume da obra dirige-se para o estudo da transição política e para o estabelecimento da ordem democrática no país. Dos capítulos que compõem a primeira parte, três discutem a Lei de Anistia brasileira sob diferentes perspectivas. O primeiro deles, de Samuel Soares e Larissa Prado, concentra o foco de análise no controle que os militares exerceram sobre o processo de anistia, assim como na análise das razões pelas quais a hierarquia militar utiliza-se do seu poder de veto para barrar quaisquer iniciativas que representem mudanças substantivas no espírito da norma aprovada em 1979. Já Glenda Mezarobba oferece-nos um quadro mais dinâmico da questão, quando acompanha em detalhes as políticas que têm sido adotadas pelos governos democráticos no sentido de dar respostas, ainda que parciais, às demandas dos que sofreram arbitrariedades durante o regime civil-militar. Por fim, Lucia Elena Bastos apresenta um painel bastante amplo das Leis de Anistia na América Latina, examinando-as à luz do direito internacional.

Os capítulos da seção final do livro são voltados para questões relativas à construção democrática no Brasil. Heloísa Greco, em “Anistia anamnese VS. Anistia amnésia: dimensão trágica da luta pela anistia”, além de registrar a pouca importância dada pela historiografia ao estudo do caráter instituinte da luta pela anistia, analisa os fundamentos das estratégias de esquecimento que têm sido acionadas por diferentes governos, contando para tal com apoio da mídia e de amplos setores da sociedade brasileira. Edson Teles fecha o livro passando em revista os principais temas e questões abordados nos dois volumes: os limites do consenso da transição pactuada; a política de silêncio em torno dos desaparecidos; os problemas em torno do acesso aos arquivos do regime.

Concluída a leitura dos dois volumes, há muito a se discutir a respeito do duro diagnóstico de boa parte dos autores acerca da maneira pela qual a democracia brasileira tem lidado com os inúmeros problemas do passado. O que importa aqui, no entanto, é registrar, uma vez mais, a relevância da obra para a historiografia e para a cidadania brasileiras.

Américo Freire – Professor associado do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas (FGV), Rio de Janeiro, Brasil ([email protected]).

A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845) – ARAUJO (HH)

ARAUJO, Valdei Lopes. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008, 204pp. Resenha de: TURIN, Rodrigo. Experiência, história e modernidade no Brasil oitocentista. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, p.299-305 março 2010.

Experiência, história e modernidade no Brasil oitocentista 300 Apresentado originalmente como tese de doutoramento junto à PUC-Rio, em 2003, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845), de Valdei Lopes de Araújo, não era um trabalho desconhecido aos estudiosos da historiografia brasileira oitocentista. Ainda em seu formato de tese, já havia se tornado uma referência incontornável ao debate acadêmico sobre a formação de um conceito moderno de história no Brasil. Sua publicação pela editora Hucitec, dentro da importante coleção Estudos Históricos, vem, portanto, fazer justiça à valiosa contribuição representada por seu trabalho, cujos desdobramentos se estendem em uma série de artigos e capítulos de livros. Essa publicação vem somar-se, igualmente, aos recentes trabalhos realizados sobre a história dos conceitos, referentes tanto ao Brasil em particular, como também ao mundo Ibérico – com destaque para o Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil (cujos verbetes farão parte de um Diccionario político y social iberoamericano), para o qual Valdei também contribuiu, em parceria com João Paulo Pimenta, escrevendo sobre o conceito de “história”. (FERES JÚNIOR; JASMIN 2007; FERES JÚNIOR 2009; SEBASTIÁN; FUENTES 2002; PADILLA 2002; PADILLA 2008). Aliam-se aqui, com extrema competência, trabalho historiográfico e reflexão teórica, numa definição de historiografia que tem se mostrado cada vez mais necessária e, felizmente, ampliada em nosso campo – para o qual Valdei Araújo, deve-se dizer, tem contribuído como poucos, não apenas com seus trabalhos, como também na organização de espaços que possibilitam a troca e o debate entre os especialistas.

A hipótese central de A experiência do tempo vincula-se às célebres investigações capitaneadas por Reinhart Koselleck acerca da formação dos conceitos fundamentais da Modernidade, cujos resultados encontram-se na monumental obra coletiva Geschichtliche Grundbegriffe. Lexikon zur Politischezocialen Sprache in Deutschland, organizada com Werner Conze e Otto Brunner.

De acordo com a tese de Koselleck, entre 1750 e 1850 houve uma transformação no sentido dos conceitos sócio-políticos no mundo linguístico germânico, assim como a criação de neologismos que denunciavam uma mudança no modo como o passado e o futuro (ou “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”, entendidos como categorias meta-históricas) eram relacionados enquanto “forma” da experiência. A produção de uma crescente assimetria entre essas categorias fez com que as expectativas em relação ao futuro se desvinculassem de tudo quanto as experiências do passado tinham sido capazes de oferecer aos homens no presente. Com isso, o próprio tempo era alçado a “objeto” da experiência, assumindo um caráter reflexivo cujo resultado seria a própria formação do conceito moderno de história como um singular coletivo (KOSELLECK, 2006). Koselleck denomina esse período de forte mudança conceitual como Sattelzeit – uma espécie de antecâmara da Modernidade propriamente dita (Neuzeit). O que as investigações de Valdei Lopes de Araújo sugerem é justamente a existência de um análogo ao Sattelzeit kosellekiano para o Brasil oitocentista.

A hipótese que permeia suas investigações está centrada em uma “real descontinuidade discursiva” e conceitual ocorrida na década de 1830 (pp.19-20). Esta descontinuidade caracteriza-se, como mostra o autor, pela formação de uma experiência moderna do tempo no Brasil, marcada por uma crescente historicização da realidade, frente à experiência dos letrados provenientes do ambiente ilustrado português, ainda presos a modelos cíclicos. Assim, entre a geração que participou do processo de independência e aqueles que se veriam incumbidos da tarefa de construir uma narrativa identitária nacional, uma nova rede semântica foi configurada – ao mesmo tempo índice e fator de um novo espaço de experiência que marcava a inserção do Brasil na Modernidade. No desenvolvimento desta tese central, Valdei Araújo discute uma ampla variedade de tópicos e autores, cuja articulação, além de reforçar o sentido de seu argumento, permite vislumbrar a extensão abarcada por essa mudança conceitual em seus níveis ético, estético, político e intelectual. Não podendo, aqui, fazer jus à riqueza trazida por suas análises desses diversos tópicos, concentrarei minha leitura em torno de duas noções mais gerais que permeiam sua narrativa e que, igualmente, me permitem organizar alguns problemas envolvendo o meu próprio interesse na historiografia oitocentista. Estas noções são as de “descontinuidade” e de “Modernidade”.

As duas partes que dividem A experiência do tempo estruturam a forma narrativa e analítica através da qual o autor apresenta esse processo de descontinuidade conceitual. Na primeira, centrada nos textos de José Bonifácio, Valdei Araújo realiza uma apurada análise semântica dos termos através dos quais Bonifácio, expressando uma consciência de crise do Império lusitano, procurava orientar as ações necessárias para sua solução. Seus projetos de reformas ilustradas, definidas em momentos sucessivos, apoiavam-se nos conceitos de “restauração” e “regeneração” – o primeiro indicando a expectativa de restaurar o velho Portugal e, assim, “anular” a aceleração do tempo (p.36); enquanto o segundo já guardava em si uma maior abertura à temporalidade, ao movimento, apesar de manter-se ainda ligado a uma compreensão “cíclica e fechada do desenvolvimento das civilizações” (p. 59), vendo na emancipação do Brasil a possibilidade de um novo começo pautado por princípios imutáveis, em conformidade com a Razão iluminista. A análise dos textos de Bonifácio indica, assim, um movimento direcionado a uma crescente temporalização dos conceitos políticos, sociais e estéticos, mas cujas limitações, além de carregarem seus escritos com algumas ambiguidades, como afirma Valdei, seriam explicitadas pela própria marcha dos eventos. Para a geração que se ocuparia do processo de organização de um Estado Nacional, a continuidade de um mundo lusobrasileiro inscrita no sistema andradiano mostrar-se-ia cada vez mais problemática. Uma das contribuições mais valiosas da tese de Valdei Araújo está justamente em mostrar como esse processo levaria à elaboração de um sentido da história brasileira centrada nos termos “metrópole” e “colônia”, garantindo sua individualidade histórica.

Na segunda parte do livro, o autor nos apresenta o movimento de ruptura com a rede semântica herdada dessa geração de Bonifácio; uma ruptura que, como parece sugerir, também se expressaria numa oposição entre conceitos ilustrados e conceitos românticos. Enquanto para Bonifácio a história se vinculava ainda a um trabalho “fundamentalmente descritivo” e a diversidade dos fenômenos poderia ser organizada “com base nas leis gerais da natureza”, para a geração de Gonçalves de Magalhães e dos sócios do IHGB os conceitos centrais vão revestir-se de “uma espessura histórico-cultural” (p.104). Mesmo quando um autor como o Visconde de São Leopoldo vincula o IHGB às ideias da “ilustração”, para Valdei Araújo essa noção de ilustração se mostra distante do “quadro fechado e cíclico” da geração anterior (p.149). Assim, diferentemente de outras interpretações que vêem a tradição ilustrada presente nos trabalhos do IHGB, como também um de seus fundamentos (GUIMARÃES 2006), o autor associa a formação de uma consciência histórica moderna no Brasil mais diretamente ao romantismo e sua ruptura com os conceitos iluministas – daí o lugar central que destina ao texto de Gonçalves de Magalhães publicado na Revista Nitheroy, no qual a noção de literatura assumiria os atributos do conceito moderno de história (p. 121). Mais do que um processo de historicização, Valdei destaca assim o caráter de quebra e ruptura que caracteriza essa descontinuidade conceitual entre as duas gerações. Desse modo, como afirma, “o fundamental é perceber como conceitos centrais adquirem uma nova qualidade”, e, portanto, a “permanência de uma retórica da nação esconde o fato de já não se falar mais da mesma coisa” (p.104). De fato, como salienta com propriedade o autor, a continuidade de um mesmo vocabulário não pode ser tomada como índice de uma identidade conceitual entre períodos históricos distintos. As análises de Valdei Araújo, nesse sentido, são primorosas em detectar o caráter das mudanças na forma de experimentar o tempo abertas com o processo de emancipação, direcionando as expectativas daquela geração à necessidade de conceitualizar um sentido propriamente histórico para a nação brasileira em sua individualidade. Contudo, me parece igualmente que uma demarcação rígida, seja cronológica ou conceitual, entre o “antigo” e o “moderno” a partir de determinadas oposições pode gerar algumas dificuldades na compreensão das dinâmicas específicas que essa nova forma de experimentar o tempo assume nos textos desses autores.

Nos escritos de Bonifácio, como mencionado, já ocorria uma sensível temporalização dos conceitos (ainda que limitada), manifestada, por exemplo, no uso ambíguo da palavra “modernidade”(p. 82). Do mesmo modo, no trabalho de historicização da realidade levada a cabo pela geração seguinte não estariam ausentes, como nota o autor, elementos característicos de uma rede conceitual anterior, a exemplo da manutenção dos “antigos” enquanto clássicos e modelos de emulação, certas noções ligadas a uma concepção “cíclica” da história ou, ainda, ideias universais iluministas. É na constatação dessas permanências – e não no conjunto das transformações semânticas apresentadas no livro – que a interpretação de Valdei nos encaminha a uma reflexão teórica. Para o autor, a permanência das referências a autores da tradição clássica, por exemplo, não poderia ser confundida com algum tipo de continuidade conceitual com a geração de Bonifácio (p. 150). Essa aparente permanência se explicaria, antes, por uma “metaforização”. Ainda que o autor não explore o sentido desse termo, não podemos esquecer que as metáforas, como os conceitos e mesmo os lugarescomuns, também exercem um papel estruturante (BLUMENBERG 1995). Se, por um lado, Valdei mostra de maneira convincente a formação de um novo campo de experiência que se abre como “desenvolvimento progressivo de uma identidade”, logo, da historicidade; por outro lado, certas permanências como a do uso dos clássicos como figuras de autoridade, seja estética, seja moral, dentro da fórmula da historia magistra vitae, não deixam de colocar alguns problemas a esse quadro de análise. Entender essas presenças como “estratégia compensatória” (p. 97), “metaforização” (p. 150), “hesitações iniciais” (p. 147) ou como falta de uma “compreensão sintética” das forças que compunham um entendimento moderno da história (p. 144), talvez signifique desconsiderar a efetividade que elas realmente desempenhavam na representação histórica desses autores e, desse modo, erigir obstáculos para a compreensão da singularidade dos modos como a história foi conceitualizada e experimentada no Brasil oitocentista. Ao final do livro, o autor salienta essas ambiguidades expressas por permanências, vinculando-as à ausência do conceito de “evolução” – cujo aparecimento só se daria na década de 1870 e sem o qual os autores da geração romântica não poderiam “juntar passado, presente e futuro em um progresso linear e sem ruptura” (p. 184). O problema é que a explicação, nesse ponto específico, concentra-se em um “ainda não”, caracterizando essas permanências de modo negativo, como resquícios ou atavismos de uma outra época conceitual. O entendimento da positividade dessas permanências dentro de um processo de transformação da rede semântica, no entanto, só viria reforçar e enriquecer o dinâmico panorama de reformulação conceitual apresentado em a Experiência do tempo.

Nesse sentido, algumas das ambiguidades que se mostram nesses autores talvez possam ser esclarecidas num esforço constante de nós, historiadores, esclarecermos as perguntas que nos fazem ver tais ambiguidades. O próprio uso do modelo koselleckiano de Modernidade, universalizado a partir de certas oposições, pode acabar gerando distorções, arcaísmos e ambiguidades que, antes de serem inerentes aos próprios textos estudados, são projeções das lentes através das quais os enxergamos. Preocupação semelhante foi colocada por Elias Palti: “Na medida em que modernidade e tradição aparecem como blocos perfeitamente coerentes e opostos entre si, as contradições na história intelectual aparecerão necessariamente como resultado de uma espécie de assincronia conceitual, isto é, a superposição de duas épocas históricas diversas” (PALTI 2007a, p. 64; PALTI 2007b). O desafio para a realização de uma história dos conceitos em espaços culturais distintos daquele analisado por Koselleck, portanto, é manter sempre esse instrumento heurístico aberto, como algo que nos permite interrogar os textos, mas sem deixar, ao mesmo tempo, de fazer o movimento de retorno, revendo e refigurando os instrumentos de nossas indagações. Só assim, acredito, seria possível abrir uma dimensão verdadeiramente comparativa não apenas dos regimes de historicidade, mas também das diversas configurações do que o conceito de Modernidade pretende ou pode abarcar. A permanência dos antigos enquanto fonte de autoridade, para usar o exemplo já citado, não poderia ser entendido, talvez, como um índice do lugar fundamental que as concepções hierárquicas desempenhavam no Império do Brasil, levando ao reconhecimento e à valorização da assimetria implícita na noção mesma de autoridade (D’ALLONNES 2006)? Independente da validade dessa hipótese, o desafio, me parece, é reconstruir a efetividade desses elementos na estruturação da rede conceitual onde aparecem. Se o modelo nos permite ver certas semelhanças e diferenças, a questão, enfim, é entender como essas diferenças ganham sentido na forma como esses letrados e políticos experimentavam o tempo – naquilo que toda experiência tem de singular e geral, de continuidade e inovação. Com isso, outros momentos importantes desse processo de historicização poderiam ser articulados às valiosas descobertas de A experiência do tempo, seja em recuo, como a década de 1770, com o ambiente erudito ilustrado português, seja avançando, caso da década de 1870, cujas expectativas específicas levaram a um movimento forte de democratização, ideologização e secularização dos conceitos históricos e políticos. Somente futuras investigações, contudo, poderiam verificar a pertinência e validade dessas articulações.

O livro de Valdei Lopes de Araújo, enfim, é decisivo justamente em nos encaminhar esses e outros problemas fundamentais para a compreensão do processo de formação de um conceito moderno de história no Brasil, nos mostrando a importância da década de 1830 enquanto momento chave do processo de historicização da realidade e como esse processo esteve fortemente vinculado, no Brasil, à organização do Estado Nacional. A cirúrgica escolha do material, a maturidade da reflexão teórica e o vigor de sua interpretação estendem-se por todo o livro, garantindo uma exposição clara e segura, colocando-se de maneira franca ao leitor e ao mesmo tempo instigando-o a reagir ao texto. Como mencionei, A experiência do tempo abre inúmeras outras questões a serem desenvolvidas, firmando-se como uma referência central aos estudiosos de historiografia brasileira. E o melhor que se pode esperar de uma obra dessa natureza é justamente que suscite sempre novas indagações, gerando, com o prazer da pesquisa, novas intersecções entre presente, passado e futuro.

Referências

BLUMENBERG, Hans. Naufragio con espectador. Madrid: Visor, 1995.

D’ALLONNES, Myriam Revault. Le pouvoir des commencements. Essai sur l’autorité. Paris : Seuil, 2006.

FERES JÚNIOR, João; JASMIN, Marcelo (orgs). História dos conceitos.

Diálogos transatlânticos. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio/Loyola/IUPERJ, 2007.

FERES JÚNIOR, João (org). Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009.

GUIMARÃES, Manoel L. Salgado. “Entre as luzes e o romantismo: as tensões da escrita da história no Brasil oitocentista”, in: Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006a.

PADILLA, Guillermo Zermeño. “História, experiência e Modernidade na América Ibérica, 1750-1850”, Almanack Braziliense, n. 7, maio de 2008.

PADILLA, Guillermo Zermeño. La cultura moderna de la historia. Una aproximación teórica e historiográfica. México: El Colegio del México, 2002.

PALTI, Elias. “Temporalidade e refutabilidade dos conceitos políticos”, in: FERES JÚNIOR, João; JASMIN, Marcelo (orgs). História dos conceitos. Diálogos transatlânticos. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio/Loyola/IUPERJ, 2007a.

PALTI, Elias. El tiempo de la política. El siglo XIX reconsiderado. Buenos Aires: Siglo Veiuntuno, 2007b.

SEBASTIÁN, Javier Fernández, FUENTES, Juan Francisco (Eds). Diccionario Político y Social del Siglo XIX Español. Madrid: Alianza Editorial, 2002.

Rodrigo Turin – Pós-doutorando Universidade de São Paulo (USP) [email protected] Av. Prof. Lineu Prestes, 338 São Paulo – SP 05508-000 Brasil.

acetas do Império na História: conceitos e métodos – DORÉ et. al (H-Unesp)

DORÉ, A.; LIMA, L. F. S.; SILVA, L. G. Facetas do Império na História: conceitos e métodos. São Paulo: HUCITEC, 2008, 314 p. Resenha de: LUZ, Guilherme Amaral. Lugares do Império e o Império Portugues. História [Unesp] v.28 no.1 Franca  2009.

Quase não parecem fortuitas algumas das coincidências impressas nesta resenha: um professor de universidade do interior de Minas Gerais, com formação na UNICAMP, apresentando, em revista da UNESP, um livro de professores da Federal do Paraná sobre o tema do Império, que tem como foco inegável o caso português entre fins do século XV e início do XIX. A coincidência básica aqui expressa está na aparente ausência de lugares institucionais brasileiros que, ao longo das últimas décadas, assumiram centralidade na proposição do problema: USP, UFF e UFRJ. O acaso, aqui, parece sintoma de um fenômeno duplo: primeiro, da dimensão ampliada que a problemática do Império vem ganhando no interior das preocupações de historiadores da “colônia” ou da “América portuguesa” em todo Brasil; segundo, para não deixarmos de fora um pouco de pimenta (especiaria tão apreciada pelos “nossos” antigos navegadores), do próprio “imperialismo” que alguns programas de pós-graduação na área exercem sobre todo o país, espalhando seus “rebentos” para todo canto… O primeiro fenômeno é o que me importa comentar, o segundo é fabulação irônica, com vistas a atrair a atenção do leitor, ainda que a custo de não conquistar a sua benevolência.

Mas não é só brasileira a preocupação com os Impérios e, nem tampouco, é exclusivamente do Império português que trata o livro Facetas do Império na História. Seu próprio título indica a hipótese de que a história, nas mais diversas áreas espaciais e recortes temporais, apresentou várias formas de um fenômeno capaz de ser abarcado pela noção de Império. O subtítulo do livro – conceitos e métodos – sugere, por sua vez, o objetivo mais específico visado: pensar a própria conceituação deste fenômeno, propondo formas de lê-lo historicamente sem riscos de uniformizações sociologizantes ou, por outro lado, de atomizações nominalistas. É nesta perspectiva que se entende a escolha do texto de Maurice Douverger (“O Conceito de Império”) como abertura para o livro. Escrito na década de 1970, esse texto visava apresentar um outro livro que publicava conferências apresentadas em um colóquio na França sobre a temática e no qual o conceito de Império era buscado por meio do cruzamento de realidades históricas variadas e distantes entre si no espaço e no tempo, sem, contudo, reduzi-las a uma essência idêntica. Com esta proposta, o livro organizado por Doré, Lima e Silva identifica-se, buscando abranger espaços-tempos que começam na paradigmática experiência imperial romana, passando pela sua translatio medieval e moderna, chegam aos Estados Ibéricos do século XVI (com sua renovatio), detêm-se em Portugal entre os séculos XV e XIX e terminam nas definições mais contemporâneas de Imperialismo. O livro não se furta, ainda, de reservar espaços para a consideração de dimensões historiográficas do conceito, mapeando suas tradições nas historiografias alemã (com os casos de Ranke e de Burkhardt) e francesa (nas Ciências Humanas).

O evidente foco no Império português é praticamente confessado, entretanto, no livro. Um dos seus índices mais claros está na escolha do segundo texto “clássico” a abrir a obra: “A idéia imperial manuelina”, de Luís Filipe Thomaz. Neste texto, o historiador português praticamente oferece ocasião ou insights para análises da sociogênese (para usarmos um termo dos preferidos de Norbert Elias) do Império português. No seu texto, Thomaz realiza um belo ensaio de explicação histórica, articulando as estratégias da expansão ultramarina portuguesa no reinado de D. Manuel com noções explícitas ou implícitas relativas ao poder imperial que circulavam em fins da Idade Média. Para o autor, a articulação dessas noções, na política manuelina, gerou uma concepção própria de Império que, sendo medieval em sua base cultural e teológico-política, tornou-se moderna em sua estratégia, desdobrada “em escala quase planetária”. Na sua base, segundo Thomaz, articulam-se três componentes básicos: a aparência de guerra santa, o ecletismo cultural na tradição da Reconquista e o messianismo. No seu interior, os objetivos espirituais e materiais da expansão não se separariam. Pensando-se como providencialmente eleito por Deus para a recuperação de Jerusalém, o estabelecimento da paz perpétua e para a reforma da Igreja, o “imperador” português buscava realizar seus intuitos por meio da conquista dos mares e das rotas de comércio. Ou seja, pela via “de uma cruzada pela pimenta e não mais pelo Santo Sepulcro” (THOMAZ, 2008: 101-102).

Com o ensaio de Thomaz, dialoga de maneira interessante o capítulo de Ana Paula Vosne Martins, sobre o tema imperial em Carlos V. Vejamos como conclui a autora sobre o herdeiro espanhol dos Habsburgos:

Como um cavaleiro de Cristo ele procurou por meio da ação política renovar o império e fundar a República Cristã, ideário cavalheiresco, medieval e também humanista. Por outro lado, não podemos esquecer que para atingir estes objetivos nobres e cristãos Carlos foi um príncipe moderno, sustentando suas ações no racionalismo político (MARTINS, 2008: 223).

Percebe-se, tanto no D. Manuel, de Thomaz, quanto no Carlos V, de Martins, que a questão central relativa aos impérios ibéricos está colocada na combinação de objetivos fundados na tradição teológico-política cristã “medieval” com meios “modernos” de buscar sua consecução. Colocado desta maneira, o problema revela-se bem mais opaco do que se poderia supor. Isso porque, ao se tratar de império, o que se combina aqui são conteúdos por vezes bastante opostos tais como o universalismo cristão de uma imperatoria potestas e a soberania absoluta de uma monarquia moderna. Nisso não deixa de tocar o texto de Luís Filipe Silvério Lima que lembra que, no século XVII português, as formulações de Vieira sobre o Quinto Império se davam no interior de

monarquias definidas (e não de uma idéia geral de império), de um espaço de conquistas e expansão (e não de uma noção hipotética de orbe como espaço da comunidade cristã ou de reconquista de uma Jerusalém perdida), e mais importante, se afirmavam como execução (consumação) completa da soberania, ou seja, o ideal imperial (e o ‘horizonte de perspectiva’ que tinham a partir de suas esperanças) estava ligado ao exercício absoluto e soberano do poder” (LIMA, 2008: 254-255).

Ora, se é verdade, como já fora postulado, que a chave do império permitiria uma abordagem menos insuficiente do que a bipolaridade metrópole/colônia na consideração da história da América portuguesa, a partir da complexidade que o conceito de império assume na “modernidade ibérica”, torna-se necessário refinar conceitualmente o que se entendia naquela época pelo termo império e o que podemos disso tomar, por extensão. A ele, não se pode simplesmente associar concepções romanas, tardo-antigas e carolíngias como necessariamente válidas em longa duração, bem como não se pode projetar pré-concepções derivadas do imperialismo de épocas mais recentes do capitalismo industrial. Há que se reconhecer, nele, as particularidades e as transformações que passa a assumir em cada espaço datado. Assim, mesmo ao longo da história da América portuguesa, o conceito de império pode não significar a mesma coisa do início ao fim, como de certo não significou.

É bem esse tipo de alerta que Facetas do Império na História traz ao público. Conceitos e métodos, mobilizados no plural, supõem exatamente a necessidade de reflexão sobre a diversidade de fenômenos que se recobrem pela noção aparente e enganosamente auto-explicativa de “império”. O livro não busca cercar todo o campo que a noção abrange e confessa sua própria limitação neste sentido. O que faz é ensaiar maneiras de olhar para impérios, sejam aqueles que assim se autodenominaram ou que foram denominados por outros. No caso português, entre os séculos XV e XVIII, a autodenominação e a conceituação a posteriori de “império” nem sempre coincidem em sentidos. Talvez aqui, muito sutilmente, resida o sabor especial do livro, instigando novas abordagens menos viciadas sobre a questão.

Referências

THOMAZ, L. F. A idéia imperial manuelina. In: DORÉ, A.; LIMA, L. F. S. & SILVA, L. G. Facetas do Império na História: conceitos e métodos. São Paulo: Editora HUCITEC, 2008, pp. 39-104.         [ Links ]

MARTINS, A. P. V. Milles Christianus: Carlos V e o tema imperial. In: DORÉ, A.; LIMA, L. F. S. & SILVA, L. G. Facetas do Império na História: conceitos e métodos. São Paulo: Editora HUCITEC, 2008, pp. 212-223.         [ Links ]

LIMA, L. F. S. Os nomes do império no século XVII: reflexão historiográfica e aproximações para uma história do conceito. In: DORÉ, A.; LIMA, L. F. S. & SILVA, L. G. Facetas do Império na História: conceitos e métodos. São Paulo: Editora HUCITEC, 2008, pp. 244-256.         [ Links ]

Guilherme Amaral Luz – Professor Doutor – Instituto de História – Universidade Federal de Uberlândia – UFU – 38.400-902 – Uberlândia – MG – Brasil. E-mail: [email protected].