Measuring the New World – SAAFIER (VH)

SAFIER, Neil. Medindo o Novo Mundo: Ciência do Iluminismo e América do Sul. Chicago: University of Chicago Press, 2008, 387p. Resenha de: COLACIOS, Roger Domenech. Varia História . Belo Horizonte. v. 27, n. 46, jul / dez. 2011.

Qual o formato do mundo? Seria achatado ou inchado nos polos? Este questionamento provocou um debate científico entre inglês e francês no século XVIII, os primeiros a entender a posição de Isaac Newton de um planeta achatado em suas extremidades, os últimos favoráveis ​​à argumentação de René Descartes dos polos inchados. Como resolver este problema? Um fim de realizar medições que comprovaram uma outra teoria, expedições científicas foram enviadas, em 1737, para duas partes do mundo: uma para Quito, na América Espanhola, com Louis Godin, Pierre Bouguer e Charles-Marie La Condamine, e outra para a Lapônia, liderada por Pierre-Louis Moreau de Maupertuits. Ao final, segundo os savants envolvidos na controvérsia, Isaac Newton estava correto.

Este é o pano de fundo do histórico Neil Safe em  Medindo o Novo Mundo: Ciência do Iluminismo e América do Sul , publicado em 2008 e ainda sem edição no Brasil. Uma disputa entre academias que levou seus membros a partir de uma pesquisa de comprovação de teorias e hipóteses com respeito à circunferência do mundo. Mas este não é o foco principal da obra: sua análise está voltada para os resultados desta expedição científica para o Novo Mundo, com os desdobramentos do trabalho e a apropriação do conhecimento adquirido junto aos “nativos” (indígenas, mestiços e espanhóis), que, assimilados e transformado pelos europeus, ganhou novo sentido, perdendo a identificação de suas origens mistas.

A problemática de Safier está direcionada para duas questões: o que foi alterado na prática das ciências empíricas quando esta mudou de local de atuação – no caso da Europa para o Novo Mundo? E também o que foi alterado nos locais por onde estes cientistas passaram? Esses questionamentos são respondidos por Safier tendo como ferramenta de análise o que chamou de intercâmbios e plataformas transnacionais na construção do conhecimento científico a partir de dois vieses: 1) transformação do conhecimento obtido, adaptando-o aos padrões europeus em seu sentido estético, seja textualmente ou cartograficamente; 2) apropriação do conhecimento obtido e sua incorporação (devidamente transformado) no corpus científico europeu, pelo valor (commodities) na economia do saber, uma forma de apagar o que foi feito anteriormente e controlar desta forma os discursos acumulados.

O autor monta um palco onde diversos atores promovem a interação e o intercâmbio de conhecimentos científicos entre áreas transnacionais com a intenção de compreender a trajetória do conhecimento adquirido na viagem extraeuropeia de La Condamine. A estratégia narrativa segue a mesma lógica em todo o texto: inicia os capítulos e a introdução utilizando um recurso teatral, no qual monta um cenário onde insere os protagonistas que irá analisar na sequência. A partir da cena enquadrada, faz a contextualização dos fatos centrais ou das trajetórias dos objetos científicos gerados com as expedições (como mapas e livros), associando essa estratégia às negociações entre os atores principais; neste caso, trabalha com os elementos não-normativos, mais voltados para questões políticas e de interesses pessoais.

Essa estratégia faz o autor beirar a ficção literária em sua escrita, mas logo na continuação do texto aparece o problema que pretende responder e/ou a chave-interpretativa – o trabalho de transformação estética e textual, nas modificações e seus sentidos, e demais assuntos internos da apropriação de um saber ou de um objeto pelos cientistas europeus -colocando, assim, a análise histórica em primeiro plano. Um jogo de cena, onde os atores envolvidos, sejam eles cientistas ou não, desempenham papéis na trama que está sendo montada: a obtenção de conhecimento a partir de métodos científicos europeus e com a associação da experiência nativa. As práticas científicas são colocadas num espaço socialmente ocupado, embora com características diferentes das encontradas na Europa, mostrando as ciências como circunscritas pela sociedade e como uma encenação material.

As fontes do autor são variadas: livros, mapas e cartas. Não somente de La Condamine, mas de muitos outros atores que estiveram envolvidos na trama de Safier, ou participaram indiretamente, como Humboldt e suas impressões, mais de cinquenta anos depois, do local onde foram realizadas as medições da circunferência terrestre. Suas fontes são o material produzido por vários atores nativos ou europeus e suas consequentes modificações no terreno da Europa.

O recorte histórico de Safier não é preciso. Navegando por meados da metade do XVIII, apresenta apenas o momento inicial, especificamente a partir de 1739, quando uma peça teatral (que dá o mote ao trabalho de Neil Safier) foi encenada na Vila de Tarqui, local dos trabalhos dos cientistas europeus no Novo Mundo. Uma montagem na qual os nativos representam os cientistas, com seus instrumentos e toda a estrutura gestual particular do trabalho científico. Esta pantomima, como entende Safier, teria enchido os olhos de La Condamine, tanto por ter sido homenageado pelos nativos, quanto pela reprodução exata de suas atitudes e gestos. Mas a pergunta do autor que segue a esta descrição do teatro é o ponto principal para a compreensão de seus objetivos no livro: Qual o sentido desta representação, tanto para os europeus quanto para os nativos?

Para responder a esta questão, o movimento narrativo feito por Safier passa por três estágios de interação e apropriação do saber: material, visual e textual. Procurando descrever e analisar a transformação do conhecimento, o primeiro movimento parte da construção de um marco: as Pirâmides de Yaruqui, um monumento para a perpetuação do saber. Essas esculturas, erguidas pelos nativos a partir da ideia de La Condamine, representaram quando finalizadas apenas o papel dos europeus na empreitada. Quando os cientistas as descreveram na Europa foram apagados os laços com os seus construtores braçais, diluindo a interação no campo material entre dois espaços: as pedras e braços do Novo Mundo e a realização intelectual dos savants europeus. As pirâmides erguidas nos dois locais de medição da circunferência do mundo seriam, numa primeira análise e justificativa de La Condamine, a demarcação dos pontos utilizados como referências geodésicas para quando fosse necessária a verificação dos resultados ou a realização de novos trabalhos.

O segundo movimento vem da transformação visual desta interação entre dois espaços distintos, mediante a construção de mapas do Novo Mundo. O capítulo quatro, Correcting Quito, representa este movimento, trazendo a análise do processo de constituição de mapas (Carta de La Província de Quito – 1750) produzidos nos ateliers de artistas e gravadores na França, sob a tutela de D’Anville. Essas representações cartográficas foram baseadas nas anotações de Pedro Maldonado, que participou de expedições com La Condamine, com a consequente adaptação aos requisitos estéticos da Europa e a perda da identidade autoral, com a inclusão de vários autores, mas terminando com La Condamine como o principal.

O último movimento, a apropriação textual, tem como exemplo o capítulo seis, “Incas in the King’s Garden“, no qual Neil Safier trabalha com uma das diversas traduções da obra de Garcilaso de La Vega sobre a cultura e história Inca. A análise do autor utiliza a versão francesa, reorganizada como um livro de História Natural e, principalmente, apropriada pelo Jardin du Roi para promover a “instituição” e a sua importância na introdução de novas espécies alimentícias na França.

A obra de Neil Safier apresenta uma assimetria. Apesar de sua intenção, ele não promove plenamente a interação do conhecimento entre os espaços transnacionais, pois toda a análise é baseada em textos e representações gráficas europeias. É pela narração de La Condamine que o autor descreve a encenação indígena, pelas cartas trocadas entre D’Anville e La Condamine que irá compreender as manipulações cartográficas. A obra de Garcilaso é modificada apenas por europeus, por exemplo. O olhar do autor é assimétrico, tendo em vista que o filtro é proveniente apenas de um lado da balança, o de cima, europeu. Não temos a palavra direta do outro lado. Em alguns momentos aparece um contexto híbrido, com a presença das correções (muitas não efetuadas) de Maldonado, ou a descrição (embora breve) do livro de Garcilaso. O seu foco de fato é a obra e a figura de La Condamine, as táticas e estratégias deste na própria modelação como um renomado membro da Academia de Ciências da França e, consequentemente, como um savant de sua época. Portanto, são as apropriações deste ator das transformações, das interações e do “esquecimento” que proporcionam, na utilização dos saberes de outro contexto social, outro espaço de criação de conhecimento, o Novo Mundo.

Essa assimetria, entretanto, não tira o mérito do livro. A obra deve ser colocada junto às demais da historiografia sobre esta transposição de saberes entre espaços, antes entendidos na clivagem entre centro e periferias, e agora como núcleos diversos de produção de conhecimentos e ciências. Neste sentido, a obra de Neil Safier, somada aos trabalhos de Kapil Raj sobre as trocas entre ingleses e indianos e também Jorge Cañizares-Esguerra quanto ao papel “esquecido” dos países ibéricos na constituição das ciências modernas na Europa, traz novos aspectos das colonizações europeias, as suas interações com os nativos, sejam autóctones ou colonos.

Roger Domenech Colacios – Doutorando em História Social – FFLCH / USP. Av. Luciano Gualberto, 315, CEP: 05508-900. Cidade Universitária, São Paulo-SP / Brasil. [email protected] .