Memoria y disciplinas: aproximaciones a la historia de las ciencias | Rafael Guevara Fefer e Miguel García Murcia

Detalhe de capa de Memoria y disciplinas aproximaciones a la historia de las ciencias 2021.
Detalhe de capa de Memoria y disciplinas: aproximaciones a la historia de las ciencias (2021).

Los estudios en historia de la ciencia se encuentran cada vez más consolidados mundialmente, aunque son escasas las reflexiones en torno a los problemas insertos en el binomio ciencia-historia, tanto en las disciplinas que estudiamos como en las narrativas que construimos al abordar el análisis del devenir científico. Ello, a pesar de que las memorias e historias de las comunidades científicas se encuentran entrelazadas con la construcción de sus saberes, plasmadas tanto en los órganos de publicación como en los nombres de las calles y los monumentos que embellecen los edificios públicos, así como en las salas de los museos y los libros especializados de toda índole. Los seis capítulos que integran el libro Memoria y disciplinas: aproximaciones a la historia de las ciencias (Guevara Fefer, García Murcia, 2021) develan y analizan estos procesos de construcción, su expresión en piedra, exhibición o papel, y sus variopintos usos y destinatarios.

Son procesos de larga data, porque la historiografía de las ciencias surge entre los siglos XVIII y XIX, y acompaña los procesos de institucionalización de estos nuevos saberes en ambos lados del océano, expresando la axiología e identidad epistémica que construyen y sostienen los científicos para erigir disciplinas universales que, al mismo tiempo, se encuentran arraigadas en la localidad. Bajo estos planteamientos iniciales, los coordinadores de este libro, Rafael Guevara Fefer y Miguel García Murcia, plantean en el estudio introductorio los principales ejes de análisis que guían los trabajos expuestos en la obra colectiva para mostrar cómo los científicos mexicanos, al tiempo que construían sus disciplinas y espacios de saber especializado, imaginaron e impusieron “un pasado al servicio de sus agendas políticas y epistémicas” (p.12), en un proceso constante de reiteración que se alimentó del olvido y la memoria (la personal y la colectiva) y, con ello, construyeron un patrimonio e identidad colectivos que dio sentido a su práctica presente y futura. Porque el control sobre la memoria – proponen – es un acto político, una herramienta de poder y un instrumento de legitimización de las ciencias. Leia Mais

Love, order, and progress: the science, philosophy, and politics of Auguste Comte. BOURDEAU et. al. (HCS-M)

COMTE Auguste

BOURDEAU M Warren Love order and progress 151BOURDEAU, Michel; PICKERING, Mary; SCHMAUS, Warren E. Love, order, and progress: the science, philosophy, and politics of Auguste Comte. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2018. 416p. Resenha de: SANDOVAL, Tonatiuh Useche. Una visión sinóptica de Auguste Comte en inglés. História Ciência Saúde-Manguinhos v.27 n.1 Rio de Janeiro Jan./Mar. 2020.

En el Capítulo 86 de Rayuela de Julio Cortázar (2008) se puede leer: “Quizá haya un lugar en el hombre desde donde pueda percibirse la realidad entera. Esta hipótesis parece delirante. Auguste Comte declaraba que jamás se conocería la composición química de una estrella. Al año siguiente, Bunsen inventaba el espectroscopio”. Nada se aleja tanto de la estructura fragmentada de la novela de Cortázar como la obra sistemática del fundador de la religión de la humanidad. El presente volumen reúne nueve artículos en inglés que, descartando una comprensión fragmentaria de la obra de Comte, tanto de sus aciertos como de sus insuficiencias, resaltan que sus vertientes científica, filosófica y política son solidarias. Leia Mais

João da Silva Feijó: um homem de ciência no Antigo Regime português – PEREIRA; SANTOS (HCS-M)

PEREIRA, Magnus Roberto de Mello; SANTOS, Rosângela Maria Ferreira dos. João da Silva Feijó: um homem de ciência no Antigo Regime português. Curitiba: Editora da UFPR, 2012 (Coleção Ciência e Império, v.1), Curitiba: 1046pp. Resenha de: MOSCATO, Daniela Casoni. A vida de um homem de ciência no Antigo Regime português. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 22 n.4 Rio de Janeiro Oct./Dec. 2015.

Como podemos, como historiadores, narrar a vida de um indivíduo? O que contaríamos, ou omitiríamos, nos caminhos e descaminhos de uma trajetória humana? Perguntas como essas perseguem os que decidem entrar nessa empreitada historiográfica. Reflexo disso pode ser percebido na contínua produção acadêmica dedicada ao estudo de indivíduos e em “pistas” que cada ensaio, em particular, aponta acerca desse tipo de análise. Essa produção biográfica, democrática e diversificada perpassa por personagens consagrados, como é o caso de Norbert Elias (1995), no estudo Mozart: sociologia de um gênio , e por indivíduos comuns, como o moleiro Domenico Scandella, o Menocchio, indivíduo construído belamente por Carlo Ginzburg (1998). Nessas relações e construções, os autores demonstram particularidades analíticas numa tentativa de apresentar caminhos possíveis, geralmente labirínticos, aos estudos biográficos.

A biografia encontra-se, assim, no centro das preocupações de historiadores, como aponta Giovanni Levi (1998) em seu clássico texto “Usos da biografia”. A própria ideia de biografia tornou-se variada e apresenta, atualmente, alguns gêneros que embasam as análises históricas, tais como “a prosopografia e a biografia modal”, que, com base em dados biográficos, objetivam uma prosopografia, descartando, muitas vezes, o interesse pela biografia particular, que, desse modo, apresenta-se como ilustração do comportamento de um determinado grupo, como é o caso da análise realizada em Intelectuais à brasileira , de Sergio Miceli (2001); a “biografia e o contexto”, em que o contexto – época, meio e ambiência – caracteriza uma “atmosfera que explicaria a singularidade das trajetórias” (Levi, 1998, p.175); a “biografia e a hermenêutica”, gênero mais utilizado pela antropologia interpretativa e pela história oral; e, finalizando, “biografia e casos extremos”, cujo exemplo principal é o já citado trabalho de Carlo Ginzburg. Esse gênero, geralmente, alcança o contexto histórico pelas “margens” do campo social, identificadas nas biografias de personagens singulares. Diante de tais variações biográficas e da leitura aprofundada da obra João da Silva Feijó: um homem de ciência no Antigo Regime português , pode-se afirmar que tal estudo não se define por uma dessas categorias. Ademais, não se atrela, meramente, à trajetória de João da Silva Feijó (1760-1824).

É importante esclarecer que a narrativa do naturalista João da Silva Feijó é o primeiro volume da Coleção Ciência e Império, um empreendimento nada modesto que tem como objetivo principal apresentar determinados personagens luso-brasileiros, bem como toda sua produção textual. Essa tarefa hercúlea é apoiada pelo Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses, alocado no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná. Essa incursão biográfica não se finda em João da Silva Feijó, e o segundo volume, dedicado a Francisco José de Lacerda Almeida, já foi publicado. Em seguida, virão outros nomes, como Luis Antônio de Oliveira Mendes, Elias Alexandre da Silva Correia, Joaquim José Pereira, Antonio Pires da Silva Pontes, Francisco José de Lacerda.

Esse primeiro volume tem 1.062 páginas, organizadas em duas partes. A primeira apresenta a longa trajetória do naturalista luso-brasileiro João da Silva Feijó; a segunda parte é uma compilação de sua produção científica e compreende 188 documentos – correspondências, remessas, memórias, textos científicos etc. – investigados em arquivos portugueses e brasileiros.

Pereira inicia sua narrativa respondendo, diretamente, à seguinte questão: “Quem foi João da Silva Feijó?”. Um dos raros luso-brasileiros que conseguiram viver, regularmente, da ciência, Feijó cursou filosofia pela Universidade de Coimbra, tal qual alguns brasileiros do Setecentos, e exerceu a profissão de naturalista na África, em Portugal e no Brasil, sempre a serviço do Império português.

Todavia, se nas primeiras páginas a resposta do autor se mostra um tanto didática, não se pode concluir que o mesmo constrói uma biografia clássica, que expressaria, com base na redução de escala focada no sujeito, as dimensões estruturais e a dinâmica social. Parte do texto, intitulada “Uma biografia nada exemplar”, é elaborada por meio de análise minuciosa de diferentes representações do naturalista, construídas por outros autores. Portanto, Pereira busca compreender como a figura de João da Silva Feijó se apresentou em outros estudos, entre eles, os da historiografia portuguesa e norte-americana.

Esse caminho metodológico é instigante e permite ao leitor conhecer as várias representações desse sujeito. A primeira delas é um verbete elaborado pelo geógrafo veneziano Adriano Balbi, em 1822, que destaca os manuais organizados por Feijó para o ensino de botânica e zoologia. Nessa exposição, Pereira apresenta fatos distorcidos e dialoga com cada referência identificada, como as de Carl Friedrich Philipp von Martius, de 1837, e as de Miguel Colmeiro, de 1858. O ápice de tal explanação é o momento em que esclarece o leitor sobre como o desconhecimento de partes da documentação, hoje disponíveis, permitiu a elaboração da imagem de um indivíduo pouco exemplar e a identificação de informações básicas distorcidas. Erros acumulados, que se repetiram ao longo do século XIX, talvez expliquem como esse personagem foi, aos poucos, esquecido pela historiografia brasileira.

Com o intuito de aventar tais representações, o autor analisa, minuciosamente, uma rica documentação – memórias científicas, cartas, periódicos, documentação escolar etc. – para esclarecer possíveis erros e amparar outra narrativa da vida desse naturalista. Nessa perspectiva, constrói o indivíduo biografado. Em “Fazendo-se naturalista”, destaca o jovem Feijó e seu período como estudante de filosofia natural, na Universidade de Coimbra; o desenvolvimento de relações com outros luso-brasileiros no Jardim da Ajuda, em Lisboa; e os estreitos laços estabelecidos com dom Rodrigo de Souza Coutinho, o conde de Linhares. Esses elementos são o pano de fundo para a análise de sua formação em história natural e da posição ocupada nessa sociabilidade científica, que era composta por nomes como Domingos Vandelli e Alexandre Rodrigues Ferreira.

Em “Um naturalista num ninho de cobras”, descreve os anos vividos em Cabo Verde, onde Feijó permaneceu entre junho de 1776 e dezembro de 1795. Tal descrição é fundamentada, especialmente, em um relato de viagem composto por um conjunto de cartas destinadas ao então ministro Martinho de Mello e Castro. Em tal documento, intitulado “O itinerário filosófico que contém a relação das ilhas de Cabo Verde disposto pelo método epistolar”, Pereira destaca: a descrição da fauna, da flora e dos costumes locais; os problemas enfrentados por seu biografado – como o da falta de uma equipe de apoio em suas pesquisas; e as funções burocráticas que começou a acumular a partir da década de 1790.

“Un certain Feijào” é dedicada ao retorno a Lisboa. Nessa parte, Pereira ressalta os trabalhos acadêmicos referentes à produção de salitre, o trabalho na Ajuda – onde organizou um herbário com as espécies botânicas enviadas do arquipélago africano – e a aproximação de Feijó com a República das Letras, comprovada pela publicação de alguns de seus estudos. Essa condição de “homem de múltiplos instrumentos” gerou grandes críticas, como as do naturalista alemão Herinrich-Friedrich Link. A esse respeito, Pereira pontua elementos importantes para a compreensão dos discursos de exclusão e exaltação presentes na ciência moderna: “Link buscava afirmar a sua superioridade como intelectual fazendo pouco daqueles colegas que pertenciam a ambientes científicos considerados provincianos ou periféricos” (p.76). Por outro lado, por ser considerado “homem de múltiplos instrumentos”, Feijó retornou ao Brasil como sargento-mor das milícias da capitania do Ceará.

Em terras brasileiras, recebeu a incumbência de checar as notícias sobre os depósitos de salitre natural, questão que ocupava lugar importante na política científica portuguesa para o Nordeste brasileiro, debate analisado no subtítulo “Um naturalista no Ceará”. Por aproximadamente 15 anos, o naturalista permaneceu na capitania e, além da busca ao salitre, recolheu diversos espécimes que foram enviados ao Jardim Botânico, ao Museu da Ajuda e ao Real Jardim Botânico de Berlim. O autor ainda destaca, sempre amparado pela vasta documentação produzida por Feijó e sobre ele, as publicações de textos referentes à sua atuação no Nordeste e o seu uso por viajantes que estiveram no Brasil no século XIX, como Henry Koster, Johann Baptiste von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, e Wilhelm Ludwig von Eschewege.

Em toda a trajetória do naturalista Feijó, o autor esclarece seu envolvimento com as estruturas científicas, políticas e sociais presentes no Império português; e, sempre que possível e necessário, atenta para a atuação dessa elite naturalista, representada por seu eleito, em tais articulações. Para Pereira, Feijó tinha um “ar de modernidade” e circulava por espaços importantes, como o da maçonaria e o das Repúblicas das Letras. As últimas páginas são dedicadas à compreensão de como ocorreu a colaboração de Feijó no processo de Independência do Brasil, movimento ao qual ele aderiu, destacando-se no Manifesto do Povo do Rio de Janeiro, que pedia a permanência do príncipe dom Pedro I no país, e na reorganização da maçonaria em terras brasileiras.

João da Silva Feijó, como bem colocou o autor, foi um homem de seu tempo: participou do movimento português das Luzes, estudou os espécimes naturais de três continentes, vivenciou as construções e as mudanças de paradigmas científicos, acompanhou as rupturas do Império lusitano e, consequentemente, os primeiros embates políticos brasileiros. Contudo, apesar de sua presença em momentos importantes da história portuguesa e brasileira, o naturalista João da Silva Feijó foi esquecido, por um certo tempo, pelos estudos historiográficos. A esse respeito, o livro aqui resenhado não é somente uma tentativa de resgaste de sua vida e obra, mas uma importante ferramente para se “resgatar também um fragmento expressivo da memória científica do Grande Império Lusitano com o qual muitos dos ‘filósofos’ luso-brasileiros haviam sonhado” (p.119).

Referências

ELIAS, Norbert. Mozart : sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1995. [ Links ]

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes : o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras. 1998. [ Links ]

LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: Ferreira, Marieta de Moraes; Amado, Janaina (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV Editora. 1998. [ Links ]

MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras. 2001. [ Links ]

Daniela Casoni Moscato – Doutoranda, Departamento de História/Universidade Federal do Paraná. [email protected]

Ensaio de história das ciências no Brasil: das Luzes à nação independente – KURY; GESTEIRA (RHR)

KURY, L.; GESTEIRA, H. (orgs.) Ensaio de história das ciências no Brasil: das Luzes à nação independente. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2012. 328p. Resenha de: MOSCATO, Daniela Casoni. Revista de História Regional v.18, n.1, p. 262-266, 2013.

Em dezembro de 2012, a Revista História da Historiografia1 dedicou seu 10° número ao dossiê Diálogos Historiográficos: Brasil e Portugal. Com apresentação da brasileira Iris Kantor e do português Thiago C.P. Dos Reis Miranda, o dossiê confirmou novas reflexões históricas acerca da clássica relação Brasil/Portugal ou, nas palavras dos apresentadores, “novos espaços de interação acadêmica luso-brasileira”.2 O livro Ensaios de História das Ciências no Brasil: das Luzes à nação independente, da EdUERJ, publicado em 2012, ao trazer também essa característica, reafirma o avanço dos estudos dedicados às históricas relações luso-brasileiras. A cuidadosa edição é abundante em belas ilustrações/desenhos de naturalistas, mapas e pinturas, que dão início às cinco partes da obra. Alguns dos artigos trazem cartas geográficas, plantas baixas e imagens em perspectiva, em elegante impressão, o que, certamente, colabora para a apreciação da leitura.

A obra, que compreende vinte artigos, discorre sobre a época pombalina, de 1750 a 1777, período em que o Marquês de Pombal exerceu o cargo de primeiro ministro português, e sobre o reinado joanino, iniciado em 1808 e se estendeu até a Independência do Brasil. Desta forma, textos sobre o Iluminismo português, a transferência da corte para a América e as relações que envolveram a Independência estão permeados de reflexões acerca de temas caros à história das ciências no Brasil.

Resenhar vinte artigos de vinte e dois autores é um trabalho laborioso. No caso dessa obra, cada autor, com suas particularidades, ofereceu uma leitura prazerosa de textos fundamentados em diversas fontes históricas, mas com o propósito de produzir uma obra comum. Assim, apresentar cada parte deste livro foi a solução encontrada para ser fi el ao objetivo de um Ensaio: reunir estudiosos e suas reflexões acerca das ciências e suas técnicas no Brasil oitocentista.

A primeira parte, intitulada A arte de curar no Brasil: entre novos e velhos saberes, de autoria de Cristina Deckmann Fleck, expõe as práticas curativas jesuíticas nos séculos XVII-XVIII. A análise destaca as proibições médicas na ordem jesuítica, o largo emprego de uma terapêutica mágica de cunho cristão e outras situações de cura baseadas em tradições guaranis, um misto de mística e razão que acabaria “por conferir incontestável originalidade __ pela inegável capacidade de síntese entre a tradição e inovação __ à Companhia de Jesus nos séculos XVII e XVIII” (p.29). Este estudo prepara o leitor para o artigo seguinte: Rumo ao Brasil: a transferência da corte e as novas trilhas do pensamento médico. Nele, Márcia Moisés Ribeiro, ao apontar os avanços médicos nos séculos XVII e XVIII, mostra como a modernização do Império português possibilitou “o fomento de atividades práticas de indivíduos ligados ao mundo das ciências por meio de estímulos às viagens exploratórias, como também a publicação de obras de autores luso-brasileiros e a tradução de estrangeiros” (p. 34). A transferência da corte para a colônia americana intensificou a circulação de conhecimentos médicos e trouxe teorias em voga na Europa, como algumas modificações nas práticas curativas. As mudanças nas práticas de cura e as especificidades de um estudo histórico dedicado às ciências podem ser identificadas na análise da própria concepção de História das ciências apresentada no artigo Os dilemas da História social das ciências no Brasil: as artes de curar no início do século XIX, de Betânia Gonçalves Figueiredo e Graciela de Souza Oliver.

A parte A ciência e a arte no Rio de Janeiro traz temas ambientados na cidade brasileira da corte portuguesa e, posteriormente, capital do Império. O primeiro artigo traça um panorama da medicina nas primeiras décadas do século XIX, e Tânia Salgado Pimenta discorre acerca dos caminhos percorridos para a oficialização das artes de curar, no texto As artes de curar e a Fiscatura-Mor na época de D. João VI. Os dois textos seguintes demonstram, em suas particularidades, como as modifi cações da paisagem, no Rio de Janeiro, estavam estritamente relacionadas aos discursos médicos vigentes na época. O Jardim Botânico do Rio de Janeiro e as paisagens da Corte, de Ana Rosa de Oliveira, analisa essa premissa com base no Jardim Botânico e as representações que o envolveram. Lorelay Kury, em Rio de Janeiro Joanino: entre o mar e o mangue, aborda os debates acerca da organização urbana da cidade e as modificações realizadas e, desse modo, alcança o que se propôs nos primeiros parágrafos do texto: “Minha abordagem aqui pretende ser diferente. Acredito que a noção de ‘necessidade’ deve ser historicamente pensada[…]. Ou seja, as soluções para os problemas só aparecem quando os problemas são colocados como tal” (p. 86).

A terceira parte da obra, Inventários e utilização da natureza, apresenta, nos três primeiros textos, aspectos que envolveram as viagens científi cas portuguesas nos séculos XVIII e XIX. Em Instructio Peregrinatoris. Algumas questões referentes aos manuais portugueses sobre métodos de observação filosófica e preparação de produtos naturais da segunda metade do século XVIII, Maguns Roberto de Mello Pereira e Ana Lúcia Rocha Barbalho Cruz exploram como eram idealizados e realizados os manuais de instrução para viagens científi – cas destinadas a naturalistas do império português, inclusive, luso-brasileiros.

A elaboração e o uso desses manuais confi rmam o entusiasmo científico pelo qual passava o setecentos, basta lembrarmos o papel que a Universidade de Coimbra desempenhou no crescimento das ciências no reino luso.

Um dos refl exos dessa ebulição da ciência foi a internacionalização das relações científicas. João Carlos Brigola, em O colecionismo científico em Portugal nos fi nais do Antigo Regime (1768-1808), atesta como as instituições portuguesas mantinham um imenso intercâmbio científico com instituições como: Real Jardim Botânico de Madri; Jardim Real de Kew e Royal Society, em Londres; Universidade de Amsterdã; Universidade e Jardim Botânico de Copenhague e tantas outras (p.137). A fabricação da pólvora e trabalhos sobre o salitre: Portugal e Brasil de fi nais do século XVIII às primeiras décadas do século XIX é o título do estudo apresentado por Márcia Helena Mendes Ferraz, que, valendo-se de documentação impressa e de manuscritos, analisa o debate acerca dos métodos utilizados para a obtenção e purificação do salitre, assim como, o avanço e a circulação das práticas e das análises científi cas. Neil Safi er, com o texto Instruções e impressões transimperiais: Hipólito da Costa, Conceição Veloso e a ciência joanina, demonstra como a circulação de ideias científi cas se deu por “(…) canais menos institucionais de circulação do conhecimento em relação ao mundo natural” (p. 169). Igualmente, em Naturalista e homem público: a trajetória do ilustrado Martim Francisco Ribeiro de Andrada (1796-1823), Alex Gonçalves Varela apresenta um lado pouco estudado desse político que também foi grande naturalista.

Os quatro primeiros textos agrupados na parte seguinte, As ciências e a construção do território do Brasil, concentram-se em apresentar, minuciosamente, como se deu a elaboração dos espaços científicos brasileiros. Os artigos de Beatriz Piccoloto Siqueira Bueno, Heloisa Gesteira, Nelson Sanjad e Iris Kantor demonstram como a construção do território português, na América, se fez, também, pela relação entre ciência e política. Nessa perspectiva, os autores identificam elementos importantes: a herança iluminista portuguesa, a necessidade de construção do território ultramarino, a circulação de diferentes profissionais da ciência e a americanização do Império português. Já, Ângela Domingues, em Viagens e viajantes europeus e descrição do Brasil: correspondência de Leopoldina e o paradisíaco Brasil, atesta, pelo olhar da jovem Imperatriz, algumas representações acerca do processo de construção territorial que permeavam o XIX: Tal como outros viajantes anteriores a ela, como Spix e Martius, John Luccock ou Johann Emanuel Pohl, Leopoldina desenvolveu, logo após sua chegada ao Brasil, uma admiração genuína e sincera pelas belezas naturais e pelas potencialidades econômicas contidas na natureza de seu Brasil (p. 257).

A última parte, Instituições e Letras, apresenta artigos dedicados à circulação dos saberes científicos entre Portugal e no Brasil. Portugal- Brasil, 1808. Trânsito de saberes, de Maria de Fátima Nunes, aborda a relação transimperial dos saberes científicos acumulados até 1808 e sua continuidade após a mudança da família real portuguesa: […] a ida da corte para o Rio de Janeiro com o embarque de um patrimônio científico e cultural extremamente valioso: bibliotecas (individuais, institucionais e públicas) e instrumentos científicos para a colônia Brasil (…) Desse embarque nasceram os (futuros) espaço de ciências e das bibliotecas coloniais emergiram as bibliotecas da (futura) nação do Império brasileiro (p. 268).

No artigo, Natureza, ciência e política no mundo luso-brasileiro de inícios do século XIX, Guilherme Pereira das Neves argumenta como o Iluminismo português engessou-se pela forte tradição social e cultural do mundo luso- -brasileiro: […] parece-me muito difícil deixar de considerar o lugar limitado ocupado pelas Luzes no mundo luso-brasileiro (…). No entanto, se elas, as Luzes, não deixaram de desempenhar um papel instrumental no que diz respeito ao conhecimento da natureza, em termos de política, em seu sentido mais amplo, o fi zeram no ‘interior das estruturas mentais que [as] dominam e enquadram’, em vez de se mostrarem […] (p. 289) A institucionalização das práticas científi cas na corte do Rio de Janeiro, de Maria Rachel Fróes da Fonseca, apresenta como os espaços institucionais, em especial, no Rio de Janeiro, expressavam os interesses pelas diversas áreas científicas, como a medicina. Finalizando o livro, o artigo, A gênese moderna do artigo de fundo e da campanha de imprensa: o Correio Braziliense ou Armazem, de José Augusto de Santos Alves, evidencia a importância desse periódico para o nascimento da imprensa moderna em Portugal e no Brasil.

Os artigos aqui resenhados apresentam a história luso-brasleira pautada na relação transimperial que se estabeleceu a partir do momento que os navegantes lusos aqui atracaram. Entretanto, os textos orientam que tal relação não se limita à comparação entre locais de um mesmo Império, mas abrange o compartilhamento de elementos comuns, ou seja, os aspectos das ciências e suas práticas não foram somente apropriados e reproduzidos, mas se tornaram parte de saberes contínuos do Império Português. Ao aprofundar essas questões, alguns textos trazem a história de intelectuais e de instituições, num debate necessário e urgente para a apreensão da história das ciências e da história de Portugal e do Brasil. Esse “retorno” a estudos acerca de intelectuais e instituições é também a indicação de que as reflexões sobre determinadas práticas são importantes para a construção do saber científico e das ciências, entre elas, da própria História.

Notas

1 Diálogos Historiográfi cos: Brasil e Portugal. In: Revista de História e Historiografi a vol. 10. Disponível em<http://www.ichs.ufop.br/rhh/index.php/revista/issue/current>. Acesso em:15 mar. 2013

2 KANTOR, I.; MIRANDA, C.P.D.C.R. Apresentação. In: Revista de História e Historiografia vol. 10. Disponível em<http://www.ichs.ufop.br/rhh/index.php/revista/issue/current>. Acesso em:15 mar. 2013.

Daniela Casoni Moscato – Doutoranda em História pela Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected].

A estrutura das revoluções científica – KUHN (EPEC)

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 1997. Resenha de: BARTELMES, Roberta Chiesa. Resenhando as estruturas das revoluções científicas de Thomas Kuhn. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.14, n. 03, p. 351-358, set./dez., 2012.

PORQUE AINDA THOMAS KUHN

Apesar de já se passarem mais de 30 anos da publicação da obra A estrutura das revoluções científicas, ela permanece atual em termos de discussões epistemoló­gicas e estruturais da constituição das ciências. A importância de qualquer cientista conhecer tal obra se deve ao fato de que ela descaracteriza o mito que se criou em torno das ciências e dos cientistas com o advento da era científica e tecnológica. Kuhn demonstra que, além de serem construções humanas, as ciências são também, e consequentemente, construções sociais e históricas. Disso resulta uma nova compreensão acerca dos processos científicos, e por que não dizer, de alfabetização científica. A atualidade da obra é justificada também por seu caráter inovador. Sem pretensões de ser uma obra de referência mundial, Kuhn apenas fez de seu rela­tório de pesquisas e das suas inquietações um objeto de estudo que cada vez mais cresceu diante de suas pesquisas. Eis um modelo de compreensão da prática da fi­losofia das ciências: a pesquisa em busca de saberes que desvelem as verdades que se estabelecem sem questionamento. Isso vale para qualquer campo de estudos, seja nas ciências sociais, humanas, naturais ou exatas.

SOBRE THOMAS KUHN

Kuhn é um físico que, durante seu engajamento no processo de pós­-graduação, intrigou-se com algumas afirmações à respeito da ciência e da história da ciência. Como ele mesmo refere-se no prefácio de sua obra, foi durante o envolvimento com o ensino de Física experimental para não cientistas que ele teve contato com a história da ciência. Foi nessa oportunidade que Kuhn percebeu di­ferenças entre o que dizia a história da ciência e o que ocorria durante as atividades experimentais para o público leigo.

Foi desse interesse incomum que surgiram os estudos “arqueológicos” na história da ciência de Kuhn. Na maioria das vezes, quando realizamos atividades experimentais para públicos de não cientistas, não nos questionamos sobre a vali­dade de nossos argumentos ou sobre a forma como a ciência é apresentada. Para Kuhn, o contato com diferentes áreas do conhecimento, como a epistemologia, a psicologia e as ciências naturais e sociais, permitiu um olhar mais atento e mais complexo sobre a história da ciência. E não apenas isto, mas esse contato lhe permitiu compreender como se dá a construção e a validação de uma ciência, bem como sua manutenção e superação. Assim, como o próprio autor defende, sua inserção na história da ciência está mais interessada em processos epistemológicos do que contextuais ou sociais, o que não significa que estes nãos estejam presentes em seus estudos, pois, como veremos adiante, em cada época há um conjunto de saberes que permitem fazer esta ou aquela leitura da realidade à qual estamos submetidos.

A HISTÓRIA DA CIÊNCIA

Um dos objetos de estudos dessa obra de Kuhn é a história da ciência. Para ele, é nessa disciplina que se encontram os detalhes da produção científica de uma determinada comunidade:

(…) a História da Ciência torna-se a disciplina que registra tanto esses aumentos sucessivos como os obstáculos que inibiram sua acumulação. Preocupados com o desenvolvimento cientifico, o historiador parece então ter duas tarefas principais. De um lado deve deter­minar quando e por quem cada fato, teoria ou lei cientifica contemporânea foi descoberta ou inventada. De outro lado, deve descrever e explicar os amontoados de erros, mitos e superstições que inibiram a acumulação mais rápida dos elementos constituintes do mo­derno texto científico. (p.20)

Essas tarefas do historiador, no entanto, são complexas e remetem a dife­rentes entendimentos do que seja ciência. Kuhn argumenta que: “Talvez a ciência não se desenvolva pela acumulação de descobertas e invenções individuais …” (p.21). Assim, quando os historiadores dedicam-se ao estudo de uma concepção ou teoria científica percebem que para a época eram tão científicas quanto as teo­rias e concepções que temos hoje:

Quanto mais cuidadosamente estudam, digamos, a dinâmica aristotélica, a química flogís­tica ou a termodinâmica calórica, tanto mais certos tornam-se de que, como um todo, as concepções de natureza outrora correntes não eram nem menos cientificas, nem menos o produto de idiossincrasias do que as atualmente em voga. (p.21)

É nesse sentido que podemos perceber o entendimento de ciência para Kuhn. Ao contrário do que sempre vimos nos manuais científicos, a ciência não é o acúmulo gradual de conhecimentos, mas é a complexa relação entre teorias, dados e paradigmas. Tampouco a Ciência é neutra. Mesmo em seus métodos, como a observação e a experimentação, ela define de antemão o que é ou não possível de ser realizado: “A observação e a experiência podem e devem restringir drasticamente a extensão das crenças admissíveis, porque de outro modo não haveria ciência. Mas não podem, por si só, determinar um conjunto específico de semelhantes crenças.” (p. 23) Ou seja, a observação é feita sobre aquilo que é possível “ver” dentro de um paradigma. Se tomarmos como exemplo a astronomia, veremos que, para Ptolomeu, em seu Almagesto2, a Terra tinha de ser o centro do universo. Isso por­que toda a conformação teórica tinha de derivar da perfeição geométrica, produto dos sólidos de Platão. Além disso, a representação do universo estava baseada na teoria de Aristóteles de que o mundo supra lunar era perfeito e imutável e o mundo sub lunar era imperfeito e mutável. Se nos remetermos a essas concepções teóricas, veremos que de fato o mundo supra lunar aparentemente é perfeito e imutável, uma vez que as estrelas “fixas” não mudam suas posições no céu. Elas surgem e ressurgem periodicamente “no mesmo lugar”. Quando surge alguma anomalia, como o movimento de Marte, que parece retrógrado em determinado momento de sua translação, o que vai contra os pressupostos do movimento circular perfeito, adequações são feitas, e o uso de epiciclos retoma a ideia da perfeição e da harmonia do mundo supra lunar. É nesse sentido também que a ciência normal e o paradigma delimitam aquilo que pode ou não ser “visto” na natureza ou nos fenômenos que submetemos à pesquisa dentro de uma comunidade cientifica.

O CONCEITO DE PARADIGMA

O conceito de paradigma vai atravessar toda essa obra de Kuhn com um sentido muito específico. Já na introdução, Kuhn apresenta a seguinte definição: “Considero “paradigmas” as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. (p. 13). Ou seja, o paradigma é um conjunto de saberes e fazeres que garantam a realização de uma pesquisa científica por uma comunidade. O paradigma determina até onde se pode pensar, uma vez que dados e teorias, sempre que aplicados a uma pesquisa, irão confirmar a existência desse paradigma. Extrapolando a leitura para o campo da educação, podemos pensar que estamos submetidos também a um paradigma, isto é, a uma forma de entender e fazer ciência na educação que leva em consideração um aspecto dos fenômenos de ensino e de aprendizagem. Nosso paradigma atual na educação é o ensino. Todas as pesquisas, todas as dissertações e teses têm alguma relação com esse paradigma. Todos querem melhorar o ensino. Toda a preocupação de nossas últimas produ­ções tem sido a tarefa de ensinar mais e melhor. Mesmo quando estudamos o outro pólo da relação, a aprendizagem, é para garantirmos um melhor ensino. A formação dos profissionais em educação está muito mais interessada na qualidade do ensino do que na aprendizagem. Mui­to embora também possamos defender que esses processos não sejam separáveis, há uma nítida diferença entre formar para ensinar e formar para possibilitar aprendizagens. No entanto, no campo da educação, percebemos que existem rupturas e alianças com outras áreas que movem novos entendimentos dessa ciência. Perguntas e dados que não podem mais ser respondidos ou compreendidos pelo paradigma do ensino passam agora a desafiar os cientistas da educação. A isto, Kuhn chama de crise de paradigmas. Essa crise de paradigmas é a responsável pelas mudanças conceituais e procedimentais dentro de um campo do saber. Ela surge dentro da chamada ciên­cia normal, por meio de anomalias que não se conformam as formas tradicionais de conceber o processo e o produto científico. Conforme Kuhn:

E quando isto ocorre – isto é, quando os membros da profissão não podem mais esquivar­-se das anomalias que subvertem a tradição existente da prática científica – então come­çam as investigações extraordinárias que finalmente conduzem a profissão a um novo conjunto de compromissos, a uma nova base para a prática da ciência. (p. 25)

Ou seja, quando as formas tradicionais de pesquisa já não respondem às necessidades que novos dados ou novos fatos impõem, as investigações extraordi­nárias permitem o surgimento de novidades na pesquisa e na ciência. Isso conduz a comunidade científica a novas formas de praticar sua ciência.

A CIÊNCIA NORMAL

Outro conceito específico da obra de Kuhn é o de ciência normal. Para ele, ela se desenvolve junto com a ideia de paradigma, ou seja, podemos com­preender que a ciência normal é produto e produtor de um paradigma. Isso fica evidenciado no seguinte trecho: Invenções de novas teorias não são os únicos acontecimentos científicos que tem um im­pacto revolucionário sobre os especialistas do setor em que ocorrem. Os compromissos que governam a ciência normal especificam não apenas as espécies de entidades que o universo contém, mas também, implicitamente, aquelas que não contém. (p. 26) A ciência normal é o estado de uma ciência na qual suas pesquisas e seus resultados são previsíveis, isto é, ela acontece adequando a realidade às teorias e esquemas conceituais que os cientistas aprendem na sua formação profissional. Diante disso, podemos dizer que a comunidade científica sabe como é o mundo, e as pesquisas servem para comprovar ou aperfeiçoar esses saberes. Para Kuhn:

Neste ensaio, “ciência normal” significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realiza­ções passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica específica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior. (p.29)

Uma metáfora que Kuhn utiliza para a ciência normal é a montagem de quebra-cabeças. Ou seja, a realidade seria uma porção de peças que, ao serem corretamente unidas, nos daria uma visão real de como a natureza ou os fenôme­nos estudados funcionam. Além disso, quando montamos um quebra-cabeça, em geral já sabemos aonde vamos chegar, isto é, já sabemos qual o produto final que o encaixe das peças vai nos proporcionar ver. Nisto não há espaço para a novidade. Na ciência normal, não há espaço para o inusitado ou para o inesperado. Assim como na montagem do quebra­-cabeça, já se sabe aonde se quer chegar. Se houver um encaixe de peças errado, o que se deverá fazer não é questionar o motivo pelo qual isso ocorreu, mas sim retirá-la e colocá-la no seu devido lugar. À ciência, e ao cientista, caberia a função de encaixar a peça certa no local correto com base nas evidências que as demais peças lhe dão, ou seja, aquilo que já foi feito por outros cientistas ante­riormente e que funcionou. A ciência normal não está preocupada em criar novidades, mas em se especializar naquilo que já está posto pelo paradigma vigente. As experiências não criam novidades (intencionalmente), mas desejam especificar melhor o que já se sabe: “O resultado já é sabido de antemão, o fascínio está em como se vai chegar até ele”. (p. 60).

DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS: POR QUE COPÉRNICO REVOLUCIONOU?

Com o avanço da ciência normal, vemos surgir novos problemas e novas questões. Conforme Kuhn: “Mas os problemas extraordinários não surgem gratui­tamente. Emergem apenas em ocasiões especiais, geradas pelo avanço da ciência normal”. (p 55). Quando uma anomalia perturba o andamento da pesquisa na ciência normal, surgem novos e reforçados movimentos de adequação dos dados às teorias exis­tentes. Como no já citado caso da astronomia grega, as anomalias eram condicio­nadas àquilo que se dispunha de conceitos e teorias da época. Quando uma novidade surgiu no céu, logo se tratou de adequá-la à teoria existente. No entanto, essas anomalias nem sempre são percebidas, uma vez que a ciência normal (como vimos anteriormente) não está preocupada em criar no­vidades, mas em se especializar naquilo que já está posto pelo paradigma vigente. As experiências não criam novidades (intencionalmente), mas desejam especificar melhor o que já se sabe. No entanto, as anomalias persistem. Elas podem gerar o que Kuhn chama de crise de paradigma:

De forma muito semelhante (ao que ocorre nas revoluções políticas), as revoluções cien­tíficas iniciam-se com um sentimento crescente, também seguidamente restrito a uma pequena subdivisão da comunidade científica, de que o paradigma existente deixou de funcionar adequadamente na exploração de um aspecto da natureza, cuja exploração fora anteriormente dirigida pelo paradigma. […] o sentimento de funcionamento defeituoso, que pode levar à crise, é um pré-requisito para a revolução. (p. 126).

Portanto, as anomalias provocam desajustes nas teorias vigentes, o que leva a um sentimento de “funcionamento defeituoso” da teoria que promove uma crise no paradigma vigente e serve de pré-requisito à revolução. Retomando o caso da astronomia, quando Galileu aponta a luneta para a Lua, percebe que esta não se parece nem um pouco com uma esfera perfeita, con­forme julgaram os aristotélicos. Das suas observações criteriosamente anotadas em Sidereus Nuncius3, Galileu descreve que:

Do seu exame (da Lua) muitas vezes repetidos, deduzimos que podemos discernir com certeza que a superfície da Lua não é perfeitamente polida, uniforme e exatamente esfé­rica, como um exército de filósofos acreditou, acerca dela e de outros corpos celestes […] (2010, p.156)

Nesse momento, Galileu anuncia uma anomalia a qual não pode se en­caixar nas teorias vigentes e no paradigma da época. O fato de haver montanhas, crateras e irregularidades na superfície da Lua contrariava e muito as ideias aristo­télicas acerca da natureza dos corpos celestes. No entanto, conforme assegura Kuhn, “A transição de um paradigma em crise para um novo, do qual pode surgir uma nova tradição e ciência normal, está longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma” (p. 116) Aqui é preciso fazer um esclarecimento. Antes de Galileu utilizar a luneta para observar a Lua e os objetos celestes com maior precisão, houve outro astrô­nomo que possibilitou essa “abertura” ao inusitado e à novidade. Podemos dizer mesmo que através da resistência de um grupo de astrônomos foi possível causar crise no paradigma vigente e permitir que se instalasse uma revolução. Esse astrônomo é Nicolau Copérnico. Ele é tido como o responsável por colocar a Terra em movimento. Para a época, e para o paradigma vigente, era impossível conceber que a Terra se movia, uma vez que isso não era “observável” no cotidiano. Caso a Terra se movesse, pássaros, pessoas, objetos deveriam “sair” da Terra, ou seja, seriam deixados para trás. Esses eram os entendimentos permitidos pelo paradigma vigente. E como os dados empíricos, da natureza das observações e experimentos feitos até então, não contradiziam essa teoria, ela era tida como verdadeira e científica. No entanto, Copérnico, em sua obra De revolutionibus orbium coelestium4, coloca a Terra em movimento e a retira do centro do universo. No entanto, esse feito não é apenas um simples deslocamento de posições em mapas ilustrativos do universo. Muito além disso, trata-se de conceber novas concepções para as ideias até então desenvolvidas sobre todo o universo, conforme afirma Kuhn:

[…] a inovação de Copérnico não consistiu simplesmente em movimentar a Terra. Era an­tes uma maneira completamente nova de encarar os problemas da Física e da Astronomia, que necessariamente modificava o sentido das expressões “Terra” e “movimento”. Sem tais modificações, o conceito de Terra em movimento era uma loucura. (p. 190)

Portanto, Copérnico é, de fato, responsável por uma revolução tanto na Física quanto na Astronomia. No entanto, é ilusão pensar que essa revolução instalou-se e foi bem sucedida em pouco tempo. Copérnico não foi aceito du­rante quase um século, haja vista que alguns adeptos de suas teorias foram colo­cados à duras provas pelos “cientistas” da época da Inquisição. Giordano Bruno e Galileu são exemplos claros da morosidade e da complexidade que compõem mudanças de paradigmas.

PARA ENTENDER A NATUREZA DA CIÊNCIA, ENTÃO!

Chama atenção, logo no prefácio desse texto de Kuhn, a seguinte colocação:

A pesquisa eficaz raramente começa antes que uma comunidade cientifica pense ter adqui­rido respostas seguras para perguntas como: quais são as entidades fundamentais que compõem o universo? Como interagem essas entidades umas com as outras e com os sentidos? Que questões podem ser legitimamente feitas a respeito de tais entidades e que técnicas podem ser empregadas na busca de soluções? (p.23)

Percebemos que teorias sempre sustentam as buscas científicas de uma comunidade de pesquisadores. Nunca os dados serão analisados de forma neutra e isenta de teorias. Na tentativa de explicar este ou aquele fenômeno, estamos sempre propensos a fazer uso das teorias que nos constituem. Nosso olhar nunca é isento de julgamentos. Somos constituídos do para­digma vigente. Embora isso limite nossa visão para o novo (conforme vimos na ciência normal), é possível que anomalias surjam em nossas pesquisas. Nosso pri­meiro movimento certamente será o de adequá-las o mais rápido possível àquilo que temos como verdade científica. Caso isso não se dê, ou seja, caso as anomalias persistam, o caminho certamente será o da mudança. Só que esse caminho não se dá de forma isolada, nem se dará de maneira imediata. Isso pode ser visto claramente no campo da educação. Diversos peque­nos grupos à margem do paradigma vigente buscam soluções para problemas nas teorias atuais. Como falamos anteriormente, irregularidades estão ocorrendo. Por melhor que sejam os métodos de ensino aplicados pelas melhores didáticas, as aprendizagens não ocorrem sempre, tampouco da maneira esperada. É possível que dessas anomalias os pequenos grupos de cientistas da edu­cação consigam mobilizar novas possibilidades, que o inusitado e o criativo surjam e demonstrem novas possibilidades de compreensão para fazer pesquisas e desen­volver estudos na área da educação.

Notas

1 O Almagesto (que significa O grande livro) é a publicação magna de Cláudio Ptolomeu. Nela, o autor pretendeu reunir todo o conhecimento da humanidade sobre a astronomia.

2 Sidereus Nuncius, ou O mensageiro das estrelas, é a publicação na qual Galileu inicialmente apresenta as observações feitas com o auxílio do telescópio, instrumento por ele aperfeiçoado. Nessa obra, Galileu dedica-se a relatar suas observações acerca da Lua, de Júpiter e de suas luas.

3 De revolutionibus orbium coelestium, ou Da revolução das esferas celestes, foi publicado no ano da morte de Copérnico. Nessa obra, o autor faz uma série de apontamentos sobre a Terra, retirando-a do centro do universo e colocando-a em movimento com os demais planetas. Além disso, ele faz referências às estações do ano e aos equinócios, desenvolvendo explicações para tais fenômenos baseado nas evidências empíricas e matemáticas de que dispunha.

Referências

GALILEI, Galileu. Sidereus Nuncius: O mensageiro das estrelas. 2ª Ed. Fundação Calouste Gul­benkian: Lisboa, 2010. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 1997.

Roberta Chiesa Bartelmebs – Mestre em Educação em Ciências pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Professora do Núcleo de Estudos em Epistemologia e Educação em Ciências (NUEPEC/FURG). Colaboradora do Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre o Bebê e a Infância (NUPEBI).

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[MLPDB]

Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico – FLECK (HP)

FLECK, Ludwik. Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010 (Tradução de Georg Otte e Mariana Camilo de Oliveira), 201 p.  Resenha de: CURI, Luciano Marcos; SANTOS, Roberto Carlos dos. Fleck e a(s) ciência(s): por um olhar crítico, histórico e social. História & Perspectivas, Uberlândia, v. 25, n. 46, 21 jul. 2012.

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A estrutura das revoluções científicas – KUHN (ARF)

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2009. Resenha deFAGHERAZZI, Onorato Jonas. Argumentos – Revista de Filosofia, n.7, p.141-146, 2012.

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Measuring the New World – SAAFIER (VH)

SAFIER, Neil. Medindo o Novo Mundo: Ciência do Iluminismo e América do Sul. Chicago: University of Chicago Press, 2008, 387p. Resenha de: COLACIOS, Roger Domenech. Varia História . Belo Horizonte. v. 27, n. 46, jul / dez. 2011.

Qual o formato do mundo? Seria achatado ou inchado nos polos? Este questionamento provocou um debate científico entre inglês e francês no século XVIII, os primeiros a entender a posição de Isaac Newton de um planeta achatado em suas extremidades, os últimos favoráveis ​​à argumentação de René Descartes dos polos inchados. Como resolver este problema? Um fim de realizar medições que comprovaram uma outra teoria, expedições científicas foram enviadas, em 1737, para duas partes do mundo: uma para Quito, na América Espanhola, com Louis Godin, Pierre Bouguer e Charles-Marie La Condamine, e outra para a Lapônia, liderada por Pierre-Louis Moreau de Maupertuits. Ao final, segundo os savants envolvidos na controvérsia, Isaac Newton estava correto.

Este é o pano de fundo do histórico Neil Safe em  Medindo o Novo Mundo: Ciência do Iluminismo e América do Sul , publicado em 2008 e ainda sem edição no Brasil. Uma disputa entre academias que levou seus membros a partir de uma pesquisa de comprovação de teorias e hipóteses com respeito à circunferência do mundo. Mas este não é o foco principal da obra: sua análise está voltada para os resultados desta expedição científica para o Novo Mundo, com os desdobramentos do trabalho e a apropriação do conhecimento adquirido junto aos “nativos” (indígenas, mestiços e espanhóis), que, assimilados e transformado pelos europeus, ganhou novo sentido, perdendo a identificação de suas origens mistas.

A problemática de Safier está direcionada para duas questões: o que foi alterado na prática das ciências empíricas quando esta mudou de local de atuação – no caso da Europa para o Novo Mundo? E também o que foi alterado nos locais por onde estes cientistas passaram? Esses questionamentos são respondidos por Safier tendo como ferramenta de análise o que chamou de intercâmbios e plataformas transnacionais na construção do conhecimento científico a partir de dois vieses: 1) transformação do conhecimento obtido, adaptando-o aos padrões europeus em seu sentido estético, seja textualmente ou cartograficamente; 2) apropriação do conhecimento obtido e sua incorporação (devidamente transformado) no corpus científico europeu, pelo valor (commodities) na economia do saber, uma forma de apagar o que foi feito anteriormente e controlar desta forma os discursos acumulados.

O autor monta um palco onde diversos atores promovem a interação e o intercâmbio de conhecimentos científicos entre áreas transnacionais com a intenção de compreender a trajetória do conhecimento adquirido na viagem extraeuropeia de La Condamine. A estratégia narrativa segue a mesma lógica em todo o texto: inicia os capítulos e a introdução utilizando um recurso teatral, no qual monta um cenário onde insere os protagonistas que irá analisar na sequência. A partir da cena enquadrada, faz a contextualização dos fatos centrais ou das trajetórias dos objetos científicos gerados com as expedições (como mapas e livros), associando essa estratégia às negociações entre os atores principais; neste caso, trabalha com os elementos não-normativos, mais voltados para questões políticas e de interesses pessoais.

Essa estratégia faz o autor beirar a ficção literária em sua escrita, mas logo na continuação do texto aparece o problema que pretende responder e/ou a chave-interpretativa – o trabalho de transformação estética e textual, nas modificações e seus sentidos, e demais assuntos internos da apropriação de um saber ou de um objeto pelos cientistas europeus -colocando, assim, a análise histórica em primeiro plano. Um jogo de cena, onde os atores envolvidos, sejam eles cientistas ou não, desempenham papéis na trama que está sendo montada: a obtenção de conhecimento a partir de métodos científicos europeus e com a associação da experiência nativa. As práticas científicas são colocadas num espaço socialmente ocupado, embora com características diferentes das encontradas na Europa, mostrando as ciências como circunscritas pela sociedade e como uma encenação material.

As fontes do autor são variadas: livros, mapas e cartas. Não somente de La Condamine, mas de muitos outros atores que estiveram envolvidos na trama de Safier, ou participaram indiretamente, como Humboldt e suas impressões, mais de cinquenta anos depois, do local onde foram realizadas as medições da circunferência terrestre. Suas fontes são o material produzido por vários atores nativos ou europeus e suas consequentes modificações no terreno da Europa.

O recorte histórico de Safier não é preciso. Navegando por meados da metade do XVIII, apresenta apenas o momento inicial, especificamente a partir de 1739, quando uma peça teatral (que dá o mote ao trabalho de Neil Safier) foi encenada na Vila de Tarqui, local dos trabalhos dos cientistas europeus no Novo Mundo. Uma montagem na qual os nativos representam os cientistas, com seus instrumentos e toda a estrutura gestual particular do trabalho científico. Esta pantomima, como entende Safier, teria enchido os olhos de La Condamine, tanto por ter sido homenageado pelos nativos, quanto pela reprodução exata de suas atitudes e gestos. Mas a pergunta do autor que segue a esta descrição do teatro é o ponto principal para a compreensão de seus objetivos no livro: Qual o sentido desta representação, tanto para os europeus quanto para os nativos?

Para responder a esta questão, o movimento narrativo feito por Safier passa por três estágios de interação e apropriação do saber: material, visual e textual. Procurando descrever e analisar a transformação do conhecimento, o primeiro movimento parte da construção de um marco: as Pirâmides de Yaruqui, um monumento para a perpetuação do saber. Essas esculturas, erguidas pelos nativos a partir da ideia de La Condamine, representaram quando finalizadas apenas o papel dos europeus na empreitada. Quando os cientistas as descreveram na Europa foram apagados os laços com os seus construtores braçais, diluindo a interação no campo material entre dois espaços: as pedras e braços do Novo Mundo e a realização intelectual dos savants europeus. As pirâmides erguidas nos dois locais de medição da circunferência do mundo seriam, numa primeira análise e justificativa de La Condamine, a demarcação dos pontos utilizados como referências geodésicas para quando fosse necessária a verificação dos resultados ou a realização de novos trabalhos.

O segundo movimento vem da transformação visual desta interação entre dois espaços distintos, mediante a construção de mapas do Novo Mundo. O capítulo quatro, Correcting Quito, representa este movimento, trazendo a análise do processo de constituição de mapas (Carta de La Província de Quito – 1750) produzidos nos ateliers de artistas e gravadores na França, sob a tutela de D’Anville. Essas representações cartográficas foram baseadas nas anotações de Pedro Maldonado, que participou de expedições com La Condamine, com a consequente adaptação aos requisitos estéticos da Europa e a perda da identidade autoral, com a inclusão de vários autores, mas terminando com La Condamine como o principal.

O último movimento, a apropriação textual, tem como exemplo o capítulo seis, “Incas in the King’s Garden“, no qual Neil Safier trabalha com uma das diversas traduções da obra de Garcilaso de La Vega sobre a cultura e história Inca. A análise do autor utiliza a versão francesa, reorganizada como um livro de História Natural e, principalmente, apropriada pelo Jardin du Roi para promover a “instituição” e a sua importância na introdução de novas espécies alimentícias na França.

A obra de Neil Safier apresenta uma assimetria. Apesar de sua intenção, ele não promove plenamente a interação do conhecimento entre os espaços transnacionais, pois toda a análise é baseada em textos e representações gráficas europeias. É pela narração de La Condamine que o autor descreve a encenação indígena, pelas cartas trocadas entre D’Anville e La Condamine que irá compreender as manipulações cartográficas. A obra de Garcilaso é modificada apenas por europeus, por exemplo. O olhar do autor é assimétrico, tendo em vista que o filtro é proveniente apenas de um lado da balança, o de cima, europeu. Não temos a palavra direta do outro lado. Em alguns momentos aparece um contexto híbrido, com a presença das correções (muitas não efetuadas) de Maldonado, ou a descrição (embora breve) do livro de Garcilaso. O seu foco de fato é a obra e a figura de La Condamine, as táticas e estratégias deste na própria modelação como um renomado membro da Academia de Ciências da França e, consequentemente, como um savant de sua época. Portanto, são as apropriações deste ator das transformações, das interações e do “esquecimento” que proporcionam, na utilização dos saberes de outro contexto social, outro espaço de criação de conhecimento, o Novo Mundo.

Essa assimetria, entretanto, não tira o mérito do livro. A obra deve ser colocada junto às demais da historiografia sobre esta transposição de saberes entre espaços, antes entendidos na clivagem entre centro e periferias, e agora como núcleos diversos de produção de conhecimentos e ciências. Neste sentido, a obra de Neil Safier, somada aos trabalhos de Kapil Raj sobre as trocas entre ingleses e indianos e também Jorge Cañizares-Esguerra quanto ao papel “esquecido” dos países ibéricos na constituição das ciências modernas na Europa, traz novos aspectos das colonizações europeias, as suas interações com os nativos, sejam autóctones ou colonos.

Roger Domenech Colacios – Doutorando em História Social – FFLCH / USP. Av. Luciano Gualberto, 315, CEP: 05508-900. Cidade Universitária, São Paulo-SP / Brasil. [email protected] .

Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica – MAYR (VH)

MAYR, Ernst. Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Prefácio de Drauzio Varella. Tradução de Marcelo Leite. Resenha de: FONSECA, Alexandre Torres. Varia História, Belo Horizonte, v.22, n.36, p. 574-576, jul./dez., 2006.

As contribuições feitas por Ernst Mayr à biologia evolucionária o colocariam certamente em qualquer lista dos maiores biólogos evolucionários do século XX. Edward Wilson e Stephen Jay Gould, colegas de Mayr em Harward, chegam a colocá-lo como o maior biólogo de todos os tempos. Mas as realizações de Mayr se estenderam para além da biologia. Além de seus trabalhos de divulgação da história natural e da evolução, ele também escreveu sobre a história e a filosofia da ciência, especialmente da biologia.

Se levarmos em consideração o volume, a abrangência e a profundidade do trabalho de Ernst Mayr, ele ocupa um lugar único no desenvolvimento da biologia evolucionária no século XX. E, para entendermos adequadamente este desenvolvimento, nós precisamos entender seu trabalho. E é exatamente isso que Biologia, ciência única nos permite. A cuidadosa edição da Companhia das Letras, com tradução de Marcelo Leite, transforma Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica (2005) em um livro indispensável tanto para historiadores da ciência quanto para os historiadores ambientais, e, naturalmente, também para os biólogos.

Mayr, que morreu em fevereiro de 2005 com cem anos, começou seus estudos em medicina, mudando depois para a biologia. Publicou seu primeiro paper aos dezenove anos, em 1923; tornou-se Ph.D. com 22 anos pela Universidade Humboldt em Berlim. Publicou quase 700 papers e 25 livros, dos quais o último é Biologia, ciência única, que é, segundo ele, uma versão revisada e mais madura de seus pensamentos.

Mayr, ao mudar-se para os Estados Unidos em 1931, considerava-se um ornitologista. Durante sua vida deu nome a 26 espécies e a 473 subespécies novas de pássaros, publicou cerca de 300 artigos discutindo e descrevendo a variação geográfica e a distribuição dos pássaros. Como muitos de seus contemporâneos acreditava na herança lamarkiana até se tornar amigo e interlocutor de Theodosius Dobzhansky, o qual vai exercer grande influência no pensamento de Mayr. Desse encontro surgirá a Moderna Síntese evolucionária.

A teoria evolutiva moderna surgiu entre 1936 e 1947, com a Síntese Evolucionária ou Síntese moderna. Este termo foi introduzido por Julian Huxley no livro Evolution: The Modern Synthesis, em 1942. Esta síntese é reunião da teoria de Darwin com a genética e as contribuições da sistemática e da paleontologia. Este processo começou com R. A. Fisher, J. B. S. Haldane e Sewall Wright. Alguns anos mais tarde, o paleontólogo George Gaylord Simpson, o biólogo Ernst Mayr e o geneticista Theodosius Dobzhansky irão alargar o paradigma neodarwinista. E da união entre o darwinismo e a genética nascerá o neodarwinismo.

O termo neodarwinismo ou teoria neodarwinista é usado correntemente como sinônimo de Síntese Moderna por quase todos os biólogos evolucionários, como por exemplo, Dennett, Gould, Futuyma e Dawkins. É neste sentido que este termo é usado neste artigo. Ernst Mayr, embora tenha usado neodarwinismo com esse sentido, mudou de idéia em Biologia, ciência única (2005). Por isso, a importância deste livro. Fica claro que a promessa feita na introdução do livro, de apresentar uma versão revisada e mais madura de seu pensamento, é realizada.

Neste livro (capítulo 7, Maturação do darwinsimo), ele diz que é um equívoco chamar de neodarwinismo à versão do darwinismo desenvolvida nos anos 1940, porque Romanes já havia usado este termo, em 1894, para qualificar o “paradigma darwiniano sem a hereditariedade leve [soft inheritance] (isto é, sem a crença na herança de características adquiridas)” (2005, p. 147). Na sua nova maneira de pensar, a teoria sintética da evolução, o “produto da síntese das teorias dos estudiosos da anagênese e da cladogênese” (p. 147), deveria ser chamada simplesmente de darwinismo, pois se trata

em essência, da teoria original de Darwin com uma teoria válida de especiação e sem a hereditariedade leve. Como essa forma de hereditariedade foi refutada mais de cem anos atrás, não pode haver equívoco na retomada do simples termo “darwinismo”, porque ele engloba os aspectos essenciais do conceito original de Darwin. Em particular, refere-se à inter-relação entre variação e seleção, o cerne do paradigma de Darwin, e confirma que é melhor referir-se ao paradigma evolucionista, após um longo período de maturação, simplesmente como darwinismo (p. 147).

Outro exemplo é a discussão sobre o que constitui uma espécie (capítulo 10, Um outro olhar sobre o problema da espécie). O conceito de espécie defendido por Mayr é ao mesmo tempo sua mais conhecida contribuição para o estudo da biologia, e o motivo pelo qual a maioria dos biólogos, hoje em dia, discordam da visão de espécie de Darwin. Neste capítulo ele critica o conceito de espécie dos “taxonomistas de poltrona”.

Mayr também descreve as causas que o levam a considerar a biologia uma ciência única, autônoma, com vários conceitos ou princípios específicos, necessitando, por isso, de uma filosofia da biologia específica, que difere de filosofia da ciência, segundo ele, mais ligada à física. No capítulo 9, As revoluções científicas de Thomas Kuhn acontecem mesmo?, discute as idéias de Kuhn sobre revolução científica e paradigma, chegando à conclusão que esta não é uma boa teoria para a biologia. Mayr considera que “as descrições da epistemologia evolucionista darwiniana parecem captar melhor a mudança em teoria em biologia” (p. 184), fazendo uma clara opção por esta última.

Ernst Mayr é importante para a história da biologia e para o pensamento biológico por ter sido tanto um participante ativo da história na criação da Moderna Síntese quanto por sua significativa obra reflexiva sobre a filosofia da biologia. Nos últimos vinte anos de sua vida, ele se dedicou mais à história e à filosofia da biologia. Seu grande trabalho nesta área é The growth of Biological thought, de 1982, um tour de force de 974 páginas, que demorou dez anos para ser concluído. Havia a promessa de um segundo volume que não se realizou. Além disso, ele influenciou consideravelmente três ou quatro gerações de biólogos. Mayr diz que “por toda a biologia há numerosas controvérsias não resolvidas, e que ele não era otimista a ponto de acreditar que [ele tivesse] resolvido todas (ou mesmo a maioria)” (p. 13-14) delas. E o desafio que ele propõe aos jovens pesquisadores evolucionistas é ir em busca tanto das questões não respondidas quanto, e isso é o mais importante, de questões não formuladas. Com certeza, Biologia, ciência única é um bom começo.

Alexandre Torres Fonseca – Doutorando em Ciência e Cultura na História. UFMG. E-mail: [email protected]

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Da revolução científica à Big (bussiness) Science | Luiz Carlos Soares

Tradicionalmente, a história das ciências era um domínio de filósofos e epistemólogos ou de cientistas dedicados a registrar a memória de suas disciplinas. Canguilhem (1970, p. 10) conta-nos que Bernhard Sticker, diretor do Instituto de História da Ciência de Hamburgo, via uma contradição entre a destinação e o método desta disciplina, pois, segundo sua finalidade, ela deveria se localizar na Faculdade de Ciências, mas, se utilizado o critério metodológico, na Faculdade de Filosofia. Na prática, a maior parte dos historiadores cuidava de seus assuntos, ignorando o papel da ciência nos processos históricos. Numa perspectiva que procura romper com este estado de coisas, o livro organizado por Luiz Carlos Soares apresenta ao público brasileiro recentes pesquisas no campo da história social da ciência e da tecnologia. Nesta abordagem, representativa de um novo capítulo historiográfico da história da ciência, esta passa a ser vista como uma instituição social (Pestre, 1998, pp. 53-68), perdendo seu caráter de saber “desinteressado” acima do bem e do mal. Dessa forma, um diálogo mais intenso com as outras ciências sociais tornou-se premente para analisar as práticas sociais e discursivas presentes na atividade científica. Daí contar a coletânea com a presença não só de trabalhos de história social, mas também de filosofia e de história econômica. Leia Mais

Filosofia, história e sociologia das ciências: abordagens contemporâneas | Vera Portocarrero

O conjunto de textos que compõem Filosofia, história e sociologia das ciências constitui, na verdade, uma ‘abordagem contemporânea’ da ciência em sua história. Trata-se de uma coletânea de trabalhos altamente informativos e formativos nos campos da história, da filosofia, da epistemologia e da sociologia da ciência. Os autores interrogam as relações das ciências, das técnicas e das sociedades não de um ponto de vista estritamente ‘positivista’ ou ‘dogmático’, mas de um ponto de vista histórico-crítico. Porque, para eles, a ciência pensa, com um pensamento que engaja a vida. Tais interrogações, por vezes apaixonantes e controversas, abrindo para várias opções, compõem uma verdadeira e oportuna história das ciências escrita de modo coerente e vivo, revestindo-se de uma importância que torna sua leitura preciosa não somente para o especialista, mas para todo aquele que pretende se iniciar na pesquisa e se interrogar sobre a natureza da ciência, seus desafios e seus problemas fundamentais. Ademais, trata-se de uma história que não separa aquilo que a realidade da história unifica: o saber e as culturas.

Temos aí uma história crítico-sociológica tentando, entre outras opções bem-sucedidas, questionar os velhos dogmatismos e a problemática cientificista, e procurando mostrar que, longe de poder fundar a sociedade, a ciência constitui um produto das sociedades, que ela não pertence, como os heróis civilizadores dos mitos, a uma ordem transcendente, escapando às vicissitudes do tempo e do espaço; porque ela é obra dos homens, elaborada por uma cultura e por sociedades particulares: é histórica e geograficamente situada, mas também social, histórica, filosófica, econômica e eticamente condicionada. É portadora das marcas do contexto no qual se constrói e se desenvolve, assumindo esta ‘relatividade’ que a impede de propor ‘conhecimentos absolutos’. Leia Mais