Velas ao mar: U.S. Exploring Expedition (1838-1842). A viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos – JUNQUEIRA (AN)

JUNQUEIRA, Mary Anne. Velas ao mar: U.S. Exploring Expedition (1838-1842). A viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos. São Paulo: Intermeios, 2015.  Resenha de: SANTOS JÚNIOR, Valdir Donizete dos. Anos 90, Porto Alegre, v. 25, n. 47, p. 369-375, jul. 2018.

Em tempos de globalização, quando, com raríssimas exceções, as mais diversas partes do mundo, das mais cosmopolitas às mais recônditas, se veem conectadas e interligadas pelas tecnologias de ponta nas comunicações e nos transportes, a primeira metade do século XIX apresenta-se como uma época ambígua: tão distante e, ao mesmo tempo, tão próxima de nós, de nossas vivências, do que somos e do que pensamos.

Distante, pois a correspondência epistolar, os diários manus­critos e as longas viagens a vapor parecem estar há anos-luz das comunicações informatizadas, dos aparelhos eletrônicos de última geração e das rápidas viagens aéreas que cortam os céus e mobilizam pessoas em todos os continentes. Próxima, uma vez que o período entre as últimas décadas do século XVIII e as primeiras do século XIX marca o advento de um momento histórico do qual ainda, de certa forma, fazemos parte. Durante esses anos, as então recentes inovações da indústria, especialmente o advento da energia a vapor, facilitaram o trânsito em águas até então desconhecidas pelo Oci­dente e encurtaram as distâncias entre as várias partes do planeta.

A tais transformações técnicas somava-se o racionalismo ilustrado tão exaltado pelo liberalismo do século XIX, que buscou esqua-drinhar, classificar e catalogar tudo o que de novo fosse encontrado pelas potências ocidentais, construindo um conjunto de saberes que ditava hierarquias e incitava desejos imperiais. Tratava-se de um novo capítulo – um dos mais importantes – do processo de interligação de toda a superfície do globo terrestre, que se iniciara com as navegações ibéricas do século XV e que no século XIX vivenciava seu auge.

É sobre esse contexto de intensas transformações econô-micas, sociais, culturais, políticas e tecnológicas que evidenciavam o avanço do capitalismo e da modernidade, ainda marcadamente ocidentais e, em grande medida europeus, que se debruça Velas ao mar: U.S. Exploring Expedition (1838-1842), a viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos, o instigante e fundamental trabalho da historiadora brasileira Mary Anne Junqueira. Resultado de sua Tese de Livre-Docência em História dos Estados Unidos, defendida em 2012, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, esse livro apresenta ao público brasileiro, alicerçando-se em sólida pesquisa acadêmica, a U.S. Exploring Expedition, primeira viagem científica de circum- -navegação do globo promovida pelos Estados Unidos. Executada pela Marinha norte-americana (U.S. Navy) entre 1838 e 1842, a missão foi comandada pelo genioso e polêmico capitão Charles Wilkes (1798-1877), autor dos cinco volumes da narrativa de viagem que serve como fio condutor do trabalho.

Trilhando as intersecções entre o mundo das viagens, a dis­cussão científica e os interesses geopolíticos em jogo na primeira metade do Oitocentos, Velas ao mar apresenta, de início, uma dupla importância ao pesquisador dedicado à História das Américas, espe­cialmente aos que se debruçam sobre o século XIX, qual seja, sua densa reflexão teórico-metodológica e sua originalidade temática.

Acerca do primeiro aspecto, Junqueira, estudiosa de temáticas e autores da chamada teoria pós-colonial, dialoga com referências importantes dessa seara, como Dipesh Chacrabarty, Mary Louise Pratt e o fundamental Edward Said. Discute com Chacrabarty, por exemplo, a necessidade de tirar a Europa do “centro” das análises   acadêmicas; com Pratt, a existência de trocas, mesmo que assimé­tricas, entre colonizadores e colonizados nas chamadas “zonas de contato”; e com Said, a construção de saberes e conhecimentos como fatores de afirmação e dominação imperial. Merece destaque especial sua leitura do historiador argentino radicado nos Estados Unidos, também interlocutor da teoria pós-colonial, Ricardo Salvatore, referência básica que se evidencia nas linhas e entrelinhas dos três primeiros capítulos de Velas ao mar. Discutindo a constituição de “lugares de saber”, Junqueira defende, acompanhando Salvatore, a existência de uma tensão latente entre a circulação transnacional de conhecimentos científicos, intelectuais ou técnicos e o processo de afirmação dos Estados nacionais no século XIX. Dito de outra maneira, a perspectiva transnacional, atualmente em voga na histo-riografia, nem sempre supera, mas frequentemente convive com o paradigma nacional.

Ainda em termos teórico-metodológicos, a autora reserva o quarto capítulo de seu trabalho exclusivamente a uma reflexão sobre a utilização dos relatos de viagem como fonte para o historiador. Para além de um mero balanço historiográfico, Junqueira aponta para a variedade desses textos e alerta para os cuidados que o pesqui-sador deve ter ao trabalhar com esse material. De acordo com a estudiosa, é preciso estar atento ao local de onde fala o viajante, ao seu universo cultural, ao período em que escreveu seu texto em relação ao período em que o publicou, à forma que escolheu para elaborá-lo (narrativa, carta, memória, diário etc.) e ao público que buscou cativar. Além dessas indicações metodológicas, a autora trava diálogo com a crítica literária, concebendo uma instigante reflexão sobre os relatos de viagem como um “gênero híbrido”. Partindo dessa premissa, entende esse documento como sendo essencialmente múltiplo, capaz de ser lido de distintas maneiras por pessoas e em tempos diversos, e cujas vozes, estilos e formas evidenciam grande polissemia.

A respeito de sua originalidade temática, Velas ao mar des­taca-se em alguns aspectos. Primeiramente, a U.S. Exploring Expe­dition, curiosamente, não é, como destaca a autora, a despeito de sua importância na História dos Estados Unidos, uma expedição que tenha sido alvo de maciços estudos, especialmente de pesquisas acadêmicas de fôlego. Velas ao mar é, portanto, o primeiro trabalho sobre essa desconhecida empreitada nos marcos da investigação historiográfica brasileira1.

Em termos estruturais, o livro de Mary Anne Junqueira é composto por duas partes. Os três capítulos que formam a primeira seção do trabalho (“Em nome da ciência: para compreender a U.S. Exploring Expedition”) preparam o terreno para a análise propria­mente dita da fonte. Inicialmente, insere a expedição comandada por Charles Wilkes em um contexto mais amplo das viagens de circum-navegação levadas a cabo por diversos países entre as décadas finais do século XVIII e as iniciais do XIX. Com o aprimoramento das técnicas de navegação e a crescente importância do Oceano Pacífico e dos grandes contingentes populacionais asiáticos para o comércio internacional, conhecer e mapear os mares era de suma importância para a obtenção de vantagens econômicas e geopolíticas. Nesse sentido, os Estados Unidos colocavam-se, ao se lançarem nessa empresa, em compasso e, ao mesmo tempo, em competição com países como a Inglaterra, a França e a também emergente Rússia, como pretendentes ao poder que o conhecimento sobre o mundo poderia propiciar.  Junqueira discute ainda, nos dois capítulos seguintes, dialo­gando com a História das Ciências e dos saberes científicos, como a expedição se circunscreveu em um quadro mais geral de definição de padrões internacionais acerca da navegação no globo terrestre. Nesse sentido, a autora nos mostra, seguindo Salvatore, que, na ten­são entre a circulação transnacional e os interesses especificamente nacionais, uma vasta gama de conhecimentos, como as longitudes da Terra, as coordenadas geográficas e o mapeamento náutico, entendidos atualmente por muitos como dados puramente técnicos, foram fruto de intensa disputa geopolítica, da qual os norte-ameri­canos se mostravam bastante propensos a participar. Constituiu-se, dessa maneira, nos marcos da primeira metade do século XIX, um quadro em que os Estados Unidos – que buscavam seu lugar no mundo – estabeleceram uma relação ambígua em relação à Europa, oscilando entre a admiração e a concorrência.

A seção final do trabalho (Cultura imperial: as Américas na narrativa de viagem de U.S. Exploring Expedition), composta por quatro capítulos, debruça-se mais especificamente sobre o mundo dos relatos de viagem: refletindo teórica e metodologicamente sobre esse tipo de fonte (capítulo 4), analisando de maneira mais detida a narrativa escrita pelo capitão da U.S. Exploring Expedition, Charles Wilkes, (capítulos 5 e 6) e cotejando, ao lado deste, relatos deixados por dois outros membros da tripulação da expedição, o marinheiro Charles Erskine e o aspirante a oficial William Reynolds (capítulo 7).

Sobre os cinco volumes da narrativa de Wilkes, a historiadora destaca sua inserção em um conjunto maior de textos que formam o relato oficial da viagem, composto originalmente por vinte e três tomos que versam sobre assuntos diversos, como etnologia, filologia, meteorologia, botânica, hidrografia, os aspectos mais diversos da zoologia e a temática das “raças do homem”. Junqueira ressalta os embates e as tensões expostas no processo de escrita desse docu­mento oficial, já que por seu caráter polêmico e por ter sido acusado de cometer diversos excessos ao longo da viagem, Charles Wilkes não era considerado por muitos a pessoa mais indicada para esse encargo. Como se evidencia pela leitura do trabalho, não somente o capitão foi o autor da descrição da viagem, como também a usou para se defender de seus críticos.

Velas ao mar reserva um de seus capítulos para uma análise sobre como Wilkes descreveu as Américas. Para tanto, a autora realiza um instigante debate sobre a questão da raça no relato e principalmente sobre a maneira como o capitão norte-americano concebia a ideia de “raça anglo-saxônica”. Inserida em uma reflexão alicerçada em uma bibliografia em língua inglesa especializada no tema, Junqueira discute a construção de uma retórica que concebe a superioridade civilizacional desse grupo formado por britânicos e norte-americanos em relação aos demais povos do planeta. Balizado por esse discurso, Wilkes afirmava a inferioridade dos povos que na América haviam sido colonizados por espanhóis e portugueses. O capitão não se utilizava para se referir a estes últimos, como era de se esperar, de expressões relacionadas à ideia de “latinidade”, como América Latina ou raças latinas, pois se o “anglo-saxonismo” da América do Norte já estava consolidado na época da expedição, o mesmo não se pode dizer da reinvindicação da “latinidade” por parte dos ibero-americanos, que somente iria se estabelecer de fato na retórica do continente a partir da década de 1850.  Mary Anne Junqueira encerra seu trabalho analisando, ao lado das narrativas de Wilkes, outros dois relatos produzidos por membros da expedição do U.S. Exploring Expedition: o marinheiro Charles Erskine e o aspirante a oficial William Reynolds. Para além de considerações sobre as relações pessoais e hierárquicas, bem como os costumes e as práticas cotidianas de tais viagens, é possível afirmar que a principal contribuição desse capítulo para o conjunto do trabalho seja a constatação de que a cultura imperial presente nas ideias norte-americanas já na primeira metade do século XIX não era privilégio de suas elites, mas era compartilhada pelas diversas classes sociais. A despeito das desavenças que esses dois outros personagens pudessem ter tido com Wilkes durante a viagem, não divergiam de seu capitão em um aspecto: a concepção da superioridade dos anglo-saxões em relação aos demais povos do continente americano.

Finalmente, é preciso mais uma vez destacar que Velas ao mar representa uma importante contribuição não somente para aqueles que estudam os relatos de viagem e a história das Américas no século XIX, mas para todos que desejam ter acesso a um trabalho de pesquisa sólida e reflexão acadêmica densa. Enfim, Mary Anne Junqueira oferece novamente elementos para o conhecimento da História dos Estados Unidos no Brasil, demonstrando que, já em seu processo de formação nacional na primeira metade do Oitocentos, os norte-americanos ambicionavam um lugar de destaque entre as nações mais poderosas do mundo e enunciavam precocemente uma retórica imperial que, como se sabe, tem justificado, desde meados do século XIX, a presença dos Estados Unidos em diversas regiões do globo, não necessariamente de modo cordial e pacífico.374  Valdir Donizete dos Santos Junior .

Valdir Donizete dos Santos Junior  – Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de São Paulo (Campus Jacareí) e Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. E-mail: [email protected].

Measuring the New World – SAAFIER (VH)

SAFIER, Neil. Medindo o Novo Mundo: Ciência do Iluminismo e América do Sul. Chicago: University of Chicago Press, 2008, 387p. Resenha de: COLACIOS, Roger Domenech. Varia História . Belo Horizonte. v. 27, n. 46, jul / dez. 2011.

Qual o formato do mundo? Seria achatado ou inchado nos polos? Este questionamento provocou um debate científico entre inglês e francês no século XVIII, os primeiros a entender a posição de Isaac Newton de um planeta achatado em suas extremidades, os últimos favoráveis ​​à argumentação de René Descartes dos polos inchados. Como resolver este problema? Um fim de realizar medições que comprovaram uma outra teoria, expedições científicas foram enviadas, em 1737, para duas partes do mundo: uma para Quito, na América Espanhola, com Louis Godin, Pierre Bouguer e Charles-Marie La Condamine, e outra para a Lapônia, liderada por Pierre-Louis Moreau de Maupertuits. Ao final, segundo os savants envolvidos na controvérsia, Isaac Newton estava correto.

Este é o pano de fundo do histórico Neil Safe em  Medindo o Novo Mundo: Ciência do Iluminismo e América do Sul , publicado em 2008 e ainda sem edição no Brasil. Uma disputa entre academias que levou seus membros a partir de uma pesquisa de comprovação de teorias e hipóteses com respeito à circunferência do mundo. Mas este não é o foco principal da obra: sua análise está voltada para os resultados desta expedição científica para o Novo Mundo, com os desdobramentos do trabalho e a apropriação do conhecimento adquirido junto aos “nativos” (indígenas, mestiços e espanhóis), que, assimilados e transformado pelos europeus, ganhou novo sentido, perdendo a identificação de suas origens mistas.

A problemática de Safier está direcionada para duas questões: o que foi alterado na prática das ciências empíricas quando esta mudou de local de atuação – no caso da Europa para o Novo Mundo? E também o que foi alterado nos locais por onde estes cientistas passaram? Esses questionamentos são respondidos por Safier tendo como ferramenta de análise o que chamou de intercâmbios e plataformas transnacionais na construção do conhecimento científico a partir de dois vieses: 1) transformação do conhecimento obtido, adaptando-o aos padrões europeus em seu sentido estético, seja textualmente ou cartograficamente; 2) apropriação do conhecimento obtido e sua incorporação (devidamente transformado) no corpus científico europeu, pelo valor (commodities) na economia do saber, uma forma de apagar o que foi feito anteriormente e controlar desta forma os discursos acumulados.

O autor monta um palco onde diversos atores promovem a interação e o intercâmbio de conhecimentos científicos entre áreas transnacionais com a intenção de compreender a trajetória do conhecimento adquirido na viagem extraeuropeia de La Condamine. A estratégia narrativa segue a mesma lógica em todo o texto: inicia os capítulos e a introdução utilizando um recurso teatral, no qual monta um cenário onde insere os protagonistas que irá analisar na sequência. A partir da cena enquadrada, faz a contextualização dos fatos centrais ou das trajetórias dos objetos científicos gerados com as expedições (como mapas e livros), associando essa estratégia às negociações entre os atores principais; neste caso, trabalha com os elementos não-normativos, mais voltados para questões políticas e de interesses pessoais.

Essa estratégia faz o autor beirar a ficção literária em sua escrita, mas logo na continuação do texto aparece o problema que pretende responder e/ou a chave-interpretativa – o trabalho de transformação estética e textual, nas modificações e seus sentidos, e demais assuntos internos da apropriação de um saber ou de um objeto pelos cientistas europeus -colocando, assim, a análise histórica em primeiro plano. Um jogo de cena, onde os atores envolvidos, sejam eles cientistas ou não, desempenham papéis na trama que está sendo montada: a obtenção de conhecimento a partir de métodos científicos europeus e com a associação da experiência nativa. As práticas científicas são colocadas num espaço socialmente ocupado, embora com características diferentes das encontradas na Europa, mostrando as ciências como circunscritas pela sociedade e como uma encenação material.

As fontes do autor são variadas: livros, mapas e cartas. Não somente de La Condamine, mas de muitos outros atores que estiveram envolvidos na trama de Safier, ou participaram indiretamente, como Humboldt e suas impressões, mais de cinquenta anos depois, do local onde foram realizadas as medições da circunferência terrestre. Suas fontes são o material produzido por vários atores nativos ou europeus e suas consequentes modificações no terreno da Europa.

O recorte histórico de Safier não é preciso. Navegando por meados da metade do XVIII, apresenta apenas o momento inicial, especificamente a partir de 1739, quando uma peça teatral (que dá o mote ao trabalho de Neil Safier) foi encenada na Vila de Tarqui, local dos trabalhos dos cientistas europeus no Novo Mundo. Uma montagem na qual os nativos representam os cientistas, com seus instrumentos e toda a estrutura gestual particular do trabalho científico. Esta pantomima, como entende Safier, teria enchido os olhos de La Condamine, tanto por ter sido homenageado pelos nativos, quanto pela reprodução exata de suas atitudes e gestos. Mas a pergunta do autor que segue a esta descrição do teatro é o ponto principal para a compreensão de seus objetivos no livro: Qual o sentido desta representação, tanto para os europeus quanto para os nativos?

Para responder a esta questão, o movimento narrativo feito por Safier passa por três estágios de interação e apropriação do saber: material, visual e textual. Procurando descrever e analisar a transformação do conhecimento, o primeiro movimento parte da construção de um marco: as Pirâmides de Yaruqui, um monumento para a perpetuação do saber. Essas esculturas, erguidas pelos nativos a partir da ideia de La Condamine, representaram quando finalizadas apenas o papel dos europeus na empreitada. Quando os cientistas as descreveram na Europa foram apagados os laços com os seus construtores braçais, diluindo a interação no campo material entre dois espaços: as pedras e braços do Novo Mundo e a realização intelectual dos savants europeus. As pirâmides erguidas nos dois locais de medição da circunferência do mundo seriam, numa primeira análise e justificativa de La Condamine, a demarcação dos pontos utilizados como referências geodésicas para quando fosse necessária a verificação dos resultados ou a realização de novos trabalhos.

O segundo movimento vem da transformação visual desta interação entre dois espaços distintos, mediante a construção de mapas do Novo Mundo. O capítulo quatro, Correcting Quito, representa este movimento, trazendo a análise do processo de constituição de mapas (Carta de La Província de Quito – 1750) produzidos nos ateliers de artistas e gravadores na França, sob a tutela de D’Anville. Essas representações cartográficas foram baseadas nas anotações de Pedro Maldonado, que participou de expedições com La Condamine, com a consequente adaptação aos requisitos estéticos da Europa e a perda da identidade autoral, com a inclusão de vários autores, mas terminando com La Condamine como o principal.

O último movimento, a apropriação textual, tem como exemplo o capítulo seis, “Incas in the King’s Garden“, no qual Neil Safier trabalha com uma das diversas traduções da obra de Garcilaso de La Vega sobre a cultura e história Inca. A análise do autor utiliza a versão francesa, reorganizada como um livro de História Natural e, principalmente, apropriada pelo Jardin du Roi para promover a “instituição” e a sua importância na introdução de novas espécies alimentícias na França.

A obra de Neil Safier apresenta uma assimetria. Apesar de sua intenção, ele não promove plenamente a interação do conhecimento entre os espaços transnacionais, pois toda a análise é baseada em textos e representações gráficas europeias. É pela narração de La Condamine que o autor descreve a encenação indígena, pelas cartas trocadas entre D’Anville e La Condamine que irá compreender as manipulações cartográficas. A obra de Garcilaso é modificada apenas por europeus, por exemplo. O olhar do autor é assimétrico, tendo em vista que o filtro é proveniente apenas de um lado da balança, o de cima, europeu. Não temos a palavra direta do outro lado. Em alguns momentos aparece um contexto híbrido, com a presença das correções (muitas não efetuadas) de Maldonado, ou a descrição (embora breve) do livro de Garcilaso. O seu foco de fato é a obra e a figura de La Condamine, as táticas e estratégias deste na própria modelação como um renomado membro da Academia de Ciências da França e, consequentemente, como um savant de sua época. Portanto, são as apropriações deste ator das transformações, das interações e do “esquecimento” que proporcionam, na utilização dos saberes de outro contexto social, outro espaço de criação de conhecimento, o Novo Mundo.

Essa assimetria, entretanto, não tira o mérito do livro. A obra deve ser colocada junto às demais da historiografia sobre esta transposição de saberes entre espaços, antes entendidos na clivagem entre centro e periferias, e agora como núcleos diversos de produção de conhecimentos e ciências. Neste sentido, a obra de Neil Safier, somada aos trabalhos de Kapil Raj sobre as trocas entre ingleses e indianos e também Jorge Cañizares-Esguerra quanto ao papel “esquecido” dos países ibéricos na constituição das ciências modernas na Europa, traz novos aspectos das colonizações europeias, as suas interações com os nativos, sejam autóctones ou colonos.

Roger Domenech Colacios – Doutorando em História Social – FFLCH / USP. Av. Luciano Gualberto, 315, CEP: 05508-900. Cidade Universitária, São Paulo-SP / Brasil. [email protected] .

Histoire naturelle et voyages scientifiques (1780-1830) | Lorelai B. Kury

Conduzir os leitores no “sentido inverso” ao das viagens francesas aos países exotiques na época da transição do século XVIII para o século XIX é a proposta de Histoire naturelle et voyages scientifiques (1780-1830), publicado na França em 2001 e que apresenta a tese de doutoramento apresentada na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris pela historiadora Lorelai Kury, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Um dos primeiros méritos a se destacar nessa obra, embora as viagens sejam um dos aspectos mais recorrentes na literatura internacional relacionada à história natural, é exatamente a originalidade com que o tema é abordado. Não se trata de questionar ‘olhares europeus sobre países exóticos’. Pelo contrário, interessa compreender as razões que levaram os franceses a viajar, as instituições que organizaram e lucraram com esses empreendimentos, o destino dado às coletas que chegavam em profusão à França na virada do século XVIII para o XIX, para servir à agricultura e à indústria e favorecer as pesquisas dos naturalistas em seus gabinetes. Leia Mais