La Représentation Excessive: Descartes, Leibniz, Locke, Pascal – VINCIGUERRA(CE)

VINCIGUERRA, Lucien. La Représentation Excessive: Descartes, Leibniz, Locke, Pascal. Lille: Presses Universitaires du Septentrion, 2013. Resenha de: KONTIC, Sacha Zilber Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.31, jul./dez., 2014.

O estudo do estatuto da representação nos filósofos seiscentistas é um ponto recorrente em toda a fortuna crítica que aborda a filosofia da época e, deste ponto de vista, a obra de Lucien Vinciguerra retoma um tema clássico. Entretanto, ao invés de se colocar de partida no interior do discurso filosófico, o autor se propõe a analisar o problema da representação nos filósofos em questão a partir de operações e dispositivos que não são ele s mesmo s filosófico s. É o caso da s equações cartesianas das curvas e de seu regime de diferenças, de metáforas, como a do cego da dióptrica de Descartes, do sonho de Teodoro na Teodiceia de Leibniz, do espelho e da anamorfose como modelo das ideias confusas em Locke, da figura do hexagrama místico e da interpretação da bíblia em Pascal.

Por este procedimento, Vinciguerra visa estabelecer um debate direto com As palavras e as coisas de Foucault. Enquanto Foucault se propunha a fazer uma história filosófica das transformações da cultura na era clássica buscando o fundamental destas transformações no exterior da própria filosofia, ou seja, uma arqueologia do pensamento e não uma história da filosofia, Vinciguerra busca na arqueologia foucaltiana um ponto de partida para se voltar à história da filosofia.Ao romper as continuidades aparentes entre as filosofias clássicas e as modernas a partir de conhecimentos estrangeiros à própria filosofia, Foucault demonstra haver entre elas familiaridades enganosas, levantando problemas que a história da filosofia não possuía métodos para trazer à superfície. Ao mesmo tempo, a importância das diferenças entre as diversas filosofias são minimizadas em favor de um elemento que resta implicitamente comum a elas. A arqueologia do saber dissolve assim o trabalho do historiador da filosofia em favor de uma história mais ampla do pensamento.

A mudança do regime representativo dos signos, que é a marca da episteme clássica, leva Foucault a privilegiar a análise da linguagem no discurso filosófico e na produção do saber, mas, observa Vinciguerra, deixa de lado a relação deste regime dos signos com a matemática. É partindo da relação entre a matemática e a linguagem que o autor vai interrogar os filósofos em questão para tentar elaborar como, apesar das diferenças radicais em suas concepções representação, os quatro filósofos podem compartilhar de uma mesma episteme. Ela mostrará que o regime dos signos no saber clássico aponta – talvez contra a intenção dos pensadores em questão – para uma concepção de representação na qual o signo se anula enquanto signo e traz em si a presença mesma daquilo que é representado. Em outras palavras, a representação excede – se a si mesma.

Ordem de exposição escolhida por Vinciguerra já evidencia o tipo de história da filosofia que é proposto neste livro: não se trata de um estudo cronológico ou genético de um conceito, mas sim a tentativa de encontrar dispositivos que evidenciem um elemento comum na concepção de representação entre os quatro filósofos. O exame se inicia com a descrição do sonho de Teodoro, alegoria narrada por Leibniz nas últimas páginas da Teodiceia na qual, guiado por Palas, Teodoro é levado à pirâmide de infinitas salas, cada uma representando um mundo possível, e nas quais se encontram os livros, cujas páginas contém o destino de cada pessoa de cada mundo possível. Basta que ele passe as mãos sobre as letras deste s livros para que lhe seja representado visivelmente, como que em uma olhadela, o que é dito pelas palavras escritas, assim como o destino destas pessoas, tudo aquilo que elas fazem, percebem, pensam, suas posteridades. O mundo representado pelas letras de desdobra em um mundo visível, em uma presença ilimitada que é representada por aqueles caracteres presentes no livro.

O que interessa o autor nesta alegoria é menos a sua importância como parte da teoria leibniziana dos mundos possíveis ou de sua noção d e representação como expressão do que o caráter “exemplar” que o signo toma no seu interior. Ao ser lido, ele nos leva a uma presença que está além dele mesmo, uma presença que é em si ilimitada. É esse mote de um “signo excessivo” que guia a sua busca por uma episteme comum entre a filosofia da representação destes quatro filósofos. Mas aquilo que pode ser facilmente identificado em Leibniz como uma consequência de seu sistema filosófico, e principalmente de sua concepção de expressão, é visivelmente mais difícil encontrar nos demais, e principalmente no caso de Descartes.

Não é, portanto, por acaso que a análise da questão da representação em Descartes ocupe a maior parte do livro.

Ao mesmo tempo em que ela é fundamental para sua tese, considerando o papel evidentemente fundamental que Descartes possui na filosofia seiscentista, essa noção de uma representação excessiva não pode ser encontrada no local onde a questão da representação aparece de forma mais clara, a saber, na sua teoria da ideia. A ideia para Descartes é representativa justamente por ser como a coisa mesma no intelecto. Ela não é um signo, mas sim a realidade objetiva da coisa tal como se encontra em nossa mente.

Consciente desta limitação, Vinci guerra busca inicialmente na equação das curvas da Geometria e, em seguida, na descrição da linguagem e d a percepção sensível no Mundo, na Dióptrica e na regra XII das Regulae o mesmo princípio que regra a concepção de signo e de representação que encontra no sonho de Teodoro de Leibniz. Na equação da curva, a sua decomposição em curvas cada vez mais simples permite com que, no final da série, a curva mais complexa seja reencontrada e descrita de um modo claro e distinto. A série em sua totalidade de curvas mais simples representa a curva mais complexa sem, entretanto, contê – la em sua totalidade. É por este mesmo paradigma que o autor passa à interpretação do papel das diferenças nas impressões sensíveis tal como descritas por Descartes, para quem toda a representação sensível não é a representação de uma diversidade, mas que em si não possui relação com o objeto percebido.

É assim que na regra XII das Regulae as diversidades das cores podem ser comparadas às diversidades das figuras. O que percebemos é apenas a codificação desta diversidade, tal como ela se relaciona com nós, e não as coisas mesmas. O mesmo princípio é explorado pelo autor a partir da metáfora cartesiana do cego com sua bengala, presente no primeiro e quarto discurso da Dióptrica . O cego, ao tocar o solo com sua bengala, reconhece pela vibração transmitida pela bengala até a sua mão a diferença entre o solo duro, a terra e a areia. É de forma análoga, diz Descartes, que recebemos a diversidade de coisas que afetam nossos olhos, como simples vibrações que em nada de assemelham à coisa percebida. Para considerar as sensações na filosofia cartesiana como signos legíveis tais como as letras dos livros do sonho de Teodoro, Vinciguerra centra a sua análise na possibilidade de encontrar n essa diversidade a leitura de um signo que, decifrado, nos remeta à verdade das coisas, mesmo que confusamente. De fato, Descartes afirma que há uma instituição da natureza – que diz respeito sobretudo à vida prática – pela qual nos guiamos pelo mundo sensivelmente percebido. Face, nas palavras do autor, a essa “metalinguagem desconhecida”, cabe descobrir se há um espaço na filosofia cartesiana pelo qual possamos dizer que é possível reencontrar essa metalinguagem e descobrir na diversidade presente na impressão sensível uma transparência tal como no sonho de Teodoro. Segundo o autor, podemos afirmar isso partindo da descrição de Descartes, feita no início do Mundo, entre as sensações e as palavras, cuja relação com as coisas significadas se dá unicamente pela instituição humana. Por mais que não haja semelhança, ao ouvir uma frase ou ler um texto podemos compreender o seu sentido por mais que não haja semelhança alguma entre o discurso percebido sensivelmente (seja pelo som, seja pela vista) e o seu significado. É claro que no caso de Descartes não se pode falar de uma interpretação – dado que para ele o entendimento é sempre passivo – mas, sim, defende Vinciguerra, de um apagamento do signo que desaparece enquanto coisa ao nos representar seu objeto . Diversos comentadores já notaram o caráter contraditório desta comparação entre a linguagem e a sensação em relação ao restante da filosofia cartesiana, em geral explicado pelo caráter mais físico do que metafísico do tratado. Vinciguerra assume ser, ao lado de Pierre Guénancia, um dos únicos a atribuir uma relação estreita tão entre a linguagem e a sensação. Isto permite com que o autor considere tanto as diferenças entre as sensações da regra XII quanto a metáfora da bengala do cego ao mesmo nível da linguagem no interior da filosofia cartesiana. O seu método de história da filosofia parece desobrigá – lo de analisar a coerência desta tese com o restante da filosofia cartesiana, o que certamente o levaria a considerar obra de Descartes contraditória ou, ao menos, defender uma posição bastante heterodoxa sobre o problema do conhecimento sensível .

Essa omissão o permite passar facilmente da comparação da linguagem com o sensível no Mundo para a consideração da sensibilidade em toda a obra cartesiana como o decifrar de um signo, cujo conteúdo representativo reconduziria a coisa representada. É também no conhecimento confuso que o autor encontra esta noção de signo e de representação em Locke, mas agora na metáfora da anamorfose e do espelho contida no capítulo 29 do livro II do Ensaio sobre o entendimento humano . Nela, as figuras deformadas que dependem de um espelho especial para serem vistas correspondem às ideias que, ao serem relacionadas com uma linguagem inadequada a elas, são confusas até que essas palavras sejam corrigidas. Aqui Vinciguerra encontra novamente a figura da representação que excede o signo na imagem anamórfica que Locke compara à ideia confusa e a possibilidade de encontrar nela a imagem realmente representativa.

No caso de Pascal, apesar de não possuir propriamente um questionamento filosófico sobre a representação, é o mesmo dispositivo matemático da anamorfose que o autor encontra em jogo na análise das secções do cone, a saber, a geometria projetiva inspirada por Desargues. Ela permite com que Pascal postule uma identidade entre figuras diferentes (por exemplo, entre o círculo e a parábola) através das relações que se conservam a partir de sua produção como secção do mesmo cone. Assim, uma mesma figura pode conter representativamente, a partir das relações invariantes, uma infinidade de figuras relacionadas. É o mesmo regime de representação que, segundo o autor, se encontra na concepção de Pascal da exegese bíblica, pela qual o movimento interpretativo permite encontrar o sentido imanente no interior das escrituras. Ao se propor a pensar o problema da representação na filosofia seiscentista a partir de uma reflexão foucaultiana, Vinciguerra faz um louvável exercíc io de repensar o papel e os métodos da história da filosofia. Entretanto, suas análises, ao buscarem em cada um dos autores tratados apenas o suficiente para encontrar a episteme que propõe para a época, não fornecem um aprofundamento da questão, assim com o não pensam o seu papel no interior do pensamento de cada filósofo. Também, ao deixar de lado a influência que cada um dos filósofos teve sobre o demais, assim como as críticas aos seus antecessores, Vinciguerra perde a oportunidade de analisar as por vez es singelas continuidades e rupturas presentes nas teorias da representação em questão. Para as quais Leibniz, mais do que fornecedor de uma “fantasia exemplar”, seria pela natureza dialógica de sua filosofia um campo de análise privilegiado.

Referência

VINCIGUERRA, Lucien. La Représentation Excessive: Descartes, Leibniz, Locke, Pascal. Lille: Presses Universitaires du Septentrion, 2013. Resenha de: KONTIC, Sacha Zilber Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.31, Jul – dez 2014.

Sacha Zilber Kontic – Doutorando, Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Measuring the New World – SAAFIER (VH)

SAFIER, Neil. Medindo o Novo Mundo: Ciência do Iluminismo e América do Sul. Chicago: University of Chicago Press, 2008, 387p. Resenha de: COLACIOS, Roger Domenech. Varia História . Belo Horizonte. v. 27, n. 46, jul / dez. 2011.

Qual o formato do mundo? Seria achatado ou inchado nos polos? Este questionamento provocou um debate científico entre inglês e francês no século XVIII, os primeiros a entender a posição de Isaac Newton de um planeta achatado em suas extremidades, os últimos favoráveis ​​à argumentação de René Descartes dos polos inchados. Como resolver este problema? Um fim de realizar medições que comprovaram uma outra teoria, expedições científicas foram enviadas, em 1737, para duas partes do mundo: uma para Quito, na América Espanhola, com Louis Godin, Pierre Bouguer e Charles-Marie La Condamine, e outra para a Lapônia, liderada por Pierre-Louis Moreau de Maupertuits. Ao final, segundo os savants envolvidos na controvérsia, Isaac Newton estava correto.

Este é o pano de fundo do histórico Neil Safe em  Medindo o Novo Mundo: Ciência do Iluminismo e América do Sul , publicado em 2008 e ainda sem edição no Brasil. Uma disputa entre academias que levou seus membros a partir de uma pesquisa de comprovação de teorias e hipóteses com respeito à circunferência do mundo. Mas este não é o foco principal da obra: sua análise está voltada para os resultados desta expedição científica para o Novo Mundo, com os desdobramentos do trabalho e a apropriação do conhecimento adquirido junto aos “nativos” (indígenas, mestiços e espanhóis), que, assimilados e transformado pelos europeus, ganhou novo sentido, perdendo a identificação de suas origens mistas.

A problemática de Safier está direcionada para duas questões: o que foi alterado na prática das ciências empíricas quando esta mudou de local de atuação – no caso da Europa para o Novo Mundo? E também o que foi alterado nos locais por onde estes cientistas passaram? Esses questionamentos são respondidos por Safier tendo como ferramenta de análise o que chamou de intercâmbios e plataformas transnacionais na construção do conhecimento científico a partir de dois vieses: 1) transformação do conhecimento obtido, adaptando-o aos padrões europeus em seu sentido estético, seja textualmente ou cartograficamente; 2) apropriação do conhecimento obtido e sua incorporação (devidamente transformado) no corpus científico europeu, pelo valor (commodities) na economia do saber, uma forma de apagar o que foi feito anteriormente e controlar desta forma os discursos acumulados.

O autor monta um palco onde diversos atores promovem a interação e o intercâmbio de conhecimentos científicos entre áreas transnacionais com a intenção de compreender a trajetória do conhecimento adquirido na viagem extraeuropeia de La Condamine. A estratégia narrativa segue a mesma lógica em todo o texto: inicia os capítulos e a introdução utilizando um recurso teatral, no qual monta um cenário onde insere os protagonistas que irá analisar na sequência. A partir da cena enquadrada, faz a contextualização dos fatos centrais ou das trajetórias dos objetos científicos gerados com as expedições (como mapas e livros), associando essa estratégia às negociações entre os atores principais; neste caso, trabalha com os elementos não-normativos, mais voltados para questões políticas e de interesses pessoais.

Essa estratégia faz o autor beirar a ficção literária em sua escrita, mas logo na continuação do texto aparece o problema que pretende responder e/ou a chave-interpretativa – o trabalho de transformação estética e textual, nas modificações e seus sentidos, e demais assuntos internos da apropriação de um saber ou de um objeto pelos cientistas europeus -colocando, assim, a análise histórica em primeiro plano. Um jogo de cena, onde os atores envolvidos, sejam eles cientistas ou não, desempenham papéis na trama que está sendo montada: a obtenção de conhecimento a partir de métodos científicos europeus e com a associação da experiência nativa. As práticas científicas são colocadas num espaço socialmente ocupado, embora com características diferentes das encontradas na Europa, mostrando as ciências como circunscritas pela sociedade e como uma encenação material.

As fontes do autor são variadas: livros, mapas e cartas. Não somente de La Condamine, mas de muitos outros atores que estiveram envolvidos na trama de Safier, ou participaram indiretamente, como Humboldt e suas impressões, mais de cinquenta anos depois, do local onde foram realizadas as medições da circunferência terrestre. Suas fontes são o material produzido por vários atores nativos ou europeus e suas consequentes modificações no terreno da Europa.

O recorte histórico de Safier não é preciso. Navegando por meados da metade do XVIII, apresenta apenas o momento inicial, especificamente a partir de 1739, quando uma peça teatral (que dá o mote ao trabalho de Neil Safier) foi encenada na Vila de Tarqui, local dos trabalhos dos cientistas europeus no Novo Mundo. Uma montagem na qual os nativos representam os cientistas, com seus instrumentos e toda a estrutura gestual particular do trabalho científico. Esta pantomima, como entende Safier, teria enchido os olhos de La Condamine, tanto por ter sido homenageado pelos nativos, quanto pela reprodução exata de suas atitudes e gestos. Mas a pergunta do autor que segue a esta descrição do teatro é o ponto principal para a compreensão de seus objetivos no livro: Qual o sentido desta representação, tanto para os europeus quanto para os nativos?

Para responder a esta questão, o movimento narrativo feito por Safier passa por três estágios de interação e apropriação do saber: material, visual e textual. Procurando descrever e analisar a transformação do conhecimento, o primeiro movimento parte da construção de um marco: as Pirâmides de Yaruqui, um monumento para a perpetuação do saber. Essas esculturas, erguidas pelos nativos a partir da ideia de La Condamine, representaram quando finalizadas apenas o papel dos europeus na empreitada. Quando os cientistas as descreveram na Europa foram apagados os laços com os seus construtores braçais, diluindo a interação no campo material entre dois espaços: as pedras e braços do Novo Mundo e a realização intelectual dos savants europeus. As pirâmides erguidas nos dois locais de medição da circunferência do mundo seriam, numa primeira análise e justificativa de La Condamine, a demarcação dos pontos utilizados como referências geodésicas para quando fosse necessária a verificação dos resultados ou a realização de novos trabalhos.

O segundo movimento vem da transformação visual desta interação entre dois espaços distintos, mediante a construção de mapas do Novo Mundo. O capítulo quatro, Correcting Quito, representa este movimento, trazendo a análise do processo de constituição de mapas (Carta de La Província de Quito – 1750) produzidos nos ateliers de artistas e gravadores na França, sob a tutela de D’Anville. Essas representações cartográficas foram baseadas nas anotações de Pedro Maldonado, que participou de expedições com La Condamine, com a consequente adaptação aos requisitos estéticos da Europa e a perda da identidade autoral, com a inclusão de vários autores, mas terminando com La Condamine como o principal.

O último movimento, a apropriação textual, tem como exemplo o capítulo seis, “Incas in the King’s Garden“, no qual Neil Safier trabalha com uma das diversas traduções da obra de Garcilaso de La Vega sobre a cultura e história Inca. A análise do autor utiliza a versão francesa, reorganizada como um livro de História Natural e, principalmente, apropriada pelo Jardin du Roi para promover a “instituição” e a sua importância na introdução de novas espécies alimentícias na França.

A obra de Neil Safier apresenta uma assimetria. Apesar de sua intenção, ele não promove plenamente a interação do conhecimento entre os espaços transnacionais, pois toda a análise é baseada em textos e representações gráficas europeias. É pela narração de La Condamine que o autor descreve a encenação indígena, pelas cartas trocadas entre D’Anville e La Condamine que irá compreender as manipulações cartográficas. A obra de Garcilaso é modificada apenas por europeus, por exemplo. O olhar do autor é assimétrico, tendo em vista que o filtro é proveniente apenas de um lado da balança, o de cima, europeu. Não temos a palavra direta do outro lado. Em alguns momentos aparece um contexto híbrido, com a presença das correções (muitas não efetuadas) de Maldonado, ou a descrição (embora breve) do livro de Garcilaso. O seu foco de fato é a obra e a figura de La Condamine, as táticas e estratégias deste na própria modelação como um renomado membro da Academia de Ciências da França e, consequentemente, como um savant de sua época. Portanto, são as apropriações deste ator das transformações, das interações e do “esquecimento” que proporcionam, na utilização dos saberes de outro contexto social, outro espaço de criação de conhecimento, o Novo Mundo.

Essa assimetria, entretanto, não tira o mérito do livro. A obra deve ser colocada junto às demais da historiografia sobre esta transposição de saberes entre espaços, antes entendidos na clivagem entre centro e periferias, e agora como núcleos diversos de produção de conhecimentos e ciências. Neste sentido, a obra de Neil Safier, somada aos trabalhos de Kapil Raj sobre as trocas entre ingleses e indianos e também Jorge Cañizares-Esguerra quanto ao papel “esquecido” dos países ibéricos na constituição das ciências modernas na Europa, traz novos aspectos das colonizações europeias, as suas interações com os nativos, sejam autóctones ou colonos.

Roger Domenech Colacios – Doutorando em História Social – FFLCH / USP. Av. Luciano Gualberto, 315, CEP: 05508-900. Cidade Universitária, São Paulo-SP / Brasil. [email protected] .