A renovação da Antiguidade pagã – WARBURG (Topoi)

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WARBURG A A renovação da antiguidade pagã Antiguidade pagãAby Warburg. Retrato-montagem de “Let’s Talk about Aby Warburg / youtube.com

WARBURG, Aby. A renovação da Antiguidade pagã: contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu. Tradução de Markus Hediger, Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. Resenha de: FERNANDES, Cássio. O legado antigo entre transferências e migrações. Topoi v.15 n.28 Rio de Janeiro Jan./June 2014.

Fora do restrito círculo de estudiosos da arte e da cultura do Renascimento, Aby Warburg (1866-1929), ao longo do século XX, ficou mais conhecido como criador de uma biblioteca pessoal transformada em instituto de pesquisa do que propriamente pelo teor de seus escritos. Por certo, sua biblioteca, sediada originalmente em Hamburgo e transferida para Londres depois da ascensão nazista na Alemanha, simbolizou o interesse que percorreu seu inteiro trajeto de estudioso. O Instituto Warburg para a Ciência da Cultura, ligado à Universidade de Londres, reúne um vasto material sobre a vida póstuma da Antiguidade, ou seja, a influência da cultura antiga sobre os séculos posteriores e seu papel na formação da Europa moderna. O tema de sua biblioteca paraleliza-se com o tema de sua obra.

Porém, a obra de Warburg não se constituiu como um corpus organizado em forma de livros ou de conjuntos de textos sistematizados pelo próprio autor. Ao contrário, Warburg jamais escreveu um livro, jamais obteve uma cátedra acadêmica, jamais tratou de delimitar de próprio punho o que desejava fosse publicado do vasto material composto por escritos curtos, conferências, cartas ou cursos ministrados como convidado na Universidade de Hamburgo. Os livros que se constituíram dos escritos de Warburg foram produto do interesse e da sistematização de outrem. Ele próprio editou apenas de modo fragmentário parte de sua produção textual, em revistas científicas, em publicações da própria Biblioteca Warburg ou como pequenos volumes separados. Mesmo assim, grande parte de seus escritos permaneceu inédita até o final de sua vida.

Os escritos de Warburg conheceram uma primeira sistematização, produto de um projeto editorial, no início da década de 1930, pelo esforço de Gertrud Bing, que, ao lado de Fritz Saxl, dirigia a biblioteca ainda em Hamburgo. Ambos haviam trabalhado ao lado de Warburg e também durante o interregno de sua ausência, entre 1918 e 1923, em que passou em tratamento na clínica psiquiátrica de Kreuzlingen, na Suíça. Do trabalho de organização de Gertrud Bing surgiu em 1932, pela editora alemã Teubner, a Gesammelte Schriften, que deveria constituir apenas a primeira parte do projeto de edição do legado textual de Warburg. Esse projeto, porém, delineado brevemente por Fritz Saxl na edição original, jamais seria levado a cabo. O livro de 1932 tornou-se, ao longo do século XX, a edição canônica dos escritos de Aby Warburg, sendo desde então reimpresso em língua alemã ou traduzido para outros idiomas. Esse livro ganha, em 2013, sua primeira edição brasileira, pela Editora Contraponto, do Rio de Janeiro, sob o título A renovação da Antiguidade Pagã: contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu, com tradução de Markus Hediger. Antes disso, o que se conhecia de Warburg em língua portuguesa era apenas a sua tese de 1893, publicada em Portugal, em 2012, O nascimento de Vênus e a Primavera de Sandro Botticelli, pela Editora KKYM, de Lisboa.

A edição brasileira do livro canônico de Warburg tem o mérito de trazer, além do prefácio da edição de 1932, de autoria de Gertrud Bing, também o prefácio da edição de estudos de 1998, assinado em conjunto por Horst Bredekamp e Michael Diers. O prefácio de 1998 nos ajuda a compreender o contexto de surgimento do livro de 1932, numa perspectiva da história da fortuna da obra de Warburg, bem como aponta alguns aspectos que determinaram a interrupção do projeto editorial de sua obra.

Aby Warburg provinha de uma família judia de banqueiros de Hamburgo. Após uma incursão juvenil no estudo da medicina, voltou seus interesses aos temas estéticos e culturais, ingressando na Universidade de Bonn em 1886. Em Bonn, assistiu às aulas do historiador da cultura Carl Justi e do estudioso do mito e das religiões gregas antigas Hermann Usener, concentrando-se, já nos primeiros anos de estudo, na ideia de corrigir, sob um fundamento histórico-cultural, a concepção de Winckelmann a respeito da serenidade olímpica da Antiguidade. Esse ideal, formulado na juventude, transformar-se-ia numa espécie de obsessão, que, em certo modo, o acompanharia até o final de suas forças. Uma primeira viagem a Florença, em 1888, possibilita-lhe o encontro com o historiador da arte August Schmarsow, que, naquele momento, tentava formar, na cidade dos Medici, um instituto alemão de história da arte. Warburg permance em Florença por seis meses. Poucos anos depois, Schmarsow veria criado o Kunsthistorisches Institut in Florenz. De Florença, Warburg sairia com a ideia da futura tese, defendida não em Bonn, mas em Estrasburgo, sob orientação de Hubert Janitschek, estudioso do Renascimento, organizador da edição do De pictura de Leon Battista Alberti. A tese de Warburg, editada em 1893, trataria das pinturas mitológicas de Sandro Botticelli, na perspectiva da leitura, por parte do humanismo florentino do ambiente de Lorenzo de’ Medici, da tradição homérica pela via da transmutação latina realizada por Ovídio. Era uma compreensão do diálogo entre palavra e imagem no seio do humanismo florentino dos anos 1480, somada a uma perspectiva histórico-artística que perseguia a relação entre artista, comitente e conselheiro erudito. Warburg defendia, na tese, que as pinturas de Botticelli, O nascimento de Vênus e a Primavera, surgiram da encomenda de Lorenzo de’ Medici e sob a base iconográfica formulada pelo literato e professor de Ovídio na Academia Platônica de Florença, Angelo Poliziano. Poliziano, então, seria o mediador da relação entre Botticelli e Ovídio nas pinturas, que teriam sido executadas justamente para ornar o salão de debates da referida academia. A tese de Warburg aparece como primeiro capítulo em A renovação da Antiguidade pagã.

Na tese sobre Botticelli, Aby Warburg apresentava já o interesse pelo processo constitutivo das obras de arte e, ao mesmo tempo, sua disposição de seguir o caminho das transmissões do legado antigo no limiar da era moderna. E tudo isso é realizado num estudo de caso, analisando dois quadros para compreender, de modo individualizado, um problema histórico que certamente não se apresentava isoladamente, mas, ao contrário, indicava um edifício maior. Decerto, seu aprendizado em Bonn, com Carl Justi, teria contribuído para a elaboração de uma perspectiva microscópica. Justi havia aprendido com seu antecessor e mestre, Anton Springer (1825-1891), como abordar amplos problemas históricos focados em personagens individuais. Springer é o criador de um gênero historiográfico, muito empregado no âmbito dos estudos culturais e artísticos, que ficou conhecido como Monographie. Carl Justi transformou-se no mestre do gênero monográfico, autor de monografias sobre Michelangelo, Velazquez e Winckelmann.

Mas Warburg estivera também em Estrasburgo e, sob orientação de Janitschek, autor do livro Die Gesellschaft der Renaissance und die Kunst in Italien (A sociedade do Renascimento e a arte na Itália), aproximara-se da perspectiva da história social da arte. Esse aprendizado estava presente na tese de 1893, no movimento de ampliação da interpretação da arte florentina do Quattrocento do âmbito propriamente do artista em direção às etapas do processo criativo, que incluía, em primeira escala, as figuras do comitente e do idealizador erudito. Era um modo muito concreto de compreender a arte no âmbito da cultura do Renascimento.

O termo cultura do Renascimento, entretanto, remetia Warburg a um estudioso cujo nome é já uma referência ao tema e de quem Warburg afirmaria, logo depois, ser um seu continuador. Tratava-se de Jacob Burckhardt, a quem Warburg enviou a tese sobre Botticelli e recebeu de volta uma carta com as seguintes palavras: “com o seu escrito o senhor fez cumprir um passo adiante no conhecimento do medium social, poético e humanístico no qual Sandro [Botticelli] vivia e pintava”.

Burckhardt concedera a Warburg, de fato, o tema da cultura do Renascimento sob uma perspectiva de movimento e inter-relações culturais que o estudioso de Hamburgo aprofundará ao longo de seus estudos. O livro de Warburg é organizado em seções que, por sua vez, são compostas por textos de várias fases de sua vida, revelando que o autor lidou com alguns temas mais gerais, revisitando-os ao longo de sua trajetória. Algumas dessas seções temáticas são inteiramente ligadas a caminhos trilhados por Jacob Burckhardt. O mais claro exemplo é a primeira seção, “A Antiguidade na cultura burguesa florentina”, da qual faz parte a tese sobre Botticelli, seção facilmente referível ao centro do estudo de Burckhardt contido em seu livro mais conhecido, A cultura do Renascimento na Itália, de 1860. Além disso, é importante citar o texto warburguiano de 1902, “A Arte do retrato e a burguesia florentina”, que se anuncia, já na “Nota preliminar”, como continuação ao livro de Burckhardt sobre o tema, recentemente editado no Brasil: O retrato na pintura italiana do Renascimento. Warburg se utiliza de um único afresco, pintado por Domenico Ghirlandaio na Capela Sassetti, na igreja florentina de Santa Trinità, para compreender o problema da relação entre cristianismo medieval e paganismo antigo na Florença da segunda metade do século XV. A abordagem de Warburg colocava, de novo, no centro a relação entre comitente e artista, nesse caso, entre o retratista, Ghirlandaio, e o retratado, Francesco Sassetti, que representa o figura do burguês laico e culto do primeiro Renascimento florentino. Sassetti é o banqueiro, assolado cotidianamente pelo pecado da usura, que manda pintar sua capela fúnebre em homenagem a São Francisco, santo que simboliza o despojamento dos bens materiais e exalta a pobreza como redenção.

Entretanto, seria interessante nos voltarmos a outras duas seções do livro de Warburg, com o intuito de compreender o quanto foi-lhe importante o ensinamento de Burckhardt. A primeira delas intitulou-se “O intercâmbio entre as culturas florentina e flamenga”. Dois acontecimentos editoriais marcaram o encontro de Warburg com o tema das relações culturais entre Florença e Flandres no Quattrocento. O primeiro foi a edição póstuma de parte dos últimos escritos de Burckhardt sobre a arte italiana do Renascimento, em 1898, as Beiträg zur Kunstgeschichte von Italien (Contribuições à história da arte na Itália), que conteve três ensaios “O retrato na pintura”, “O retábulo de altar” e “Os colecionadores”. Uma das linhas interpretativas que atravessavam esses textos de Burckhardt era a importância da pintura flamenga para a formação do gosto artístico de uma classe de mercadores florentinos encomendantes das obras artes e, consequentemente, seu papel da execução da pintura em Florença. O outro acontecimento editorial importante para ­Warburg, nesse momento, foi o aparecimento, em 1888, do livro de Eugène Müntz sobre as coleções dos Medici no século XV, Les collections des Médicis au quinzième siècle, que também tinham sido de grande valia para os citados estudos de Burckhardt. O estudo do inventário dos Medici permitia compreender um progressivo interesse, em Florença, pela pintura de cavalete, sobre tela ou sobre madeira, em comparação com a tradicional pintura a fresco. Com esse processo, era possível perceber a importância da arte flamenga no ambiente dos Medici, e não apenas do ponto de vista da pintura, mas também da tapeçaria. A partir do livro de Müntz, era possível concluir que os flamengos tinham condicionado o desenvolvimento do primeiro colecionismo italiano, em especial, pela capacidade realística da pintura a óleo desenvolvida em Flandres, mas também pela facilidade de circulação dos tecidos, dos tapetes e dos quadros flamengos de pequenas dimensões, fato que antecede a circulação dos próprios artistas nórdicos na Itália. Desse modo, os inventários das coleções dos Medici confirmavam a importância da ligação entre a tarefa ditada pelo colecionador e o conteúdo de uma obra. Warburg, então, dedica-se a ampliar e aprofundar as indicações a esse respeito, presentes nos textos de Burckhardt, com estudos de casos entre os anos de 1899 e 1907. Toda a seção do livro trata desse tema, refletindo, uma vez mais, o interesse de Warburg em compreender as imagens como símbolos de circulações, de migrações de homens e de ideias, seu esforço em perfazer os caminhos das conexões, dos encontros entre elementos distintos, sua determinação em entender a fronteira como o próprio terreno da história. Além disso, encantava-lhe o fascínio do mundo refinado toscano pelos meios de expressar o vivo, trazidos à luz pela arte flamenga. Para Warburg, essa pintura é um exemplo emblemático da compreensão espontânea demonstrada pela burguesia toscana em direção à arte nórdica, resultado da mescla de elementos humanos que se atraem por seu contrário.

A outra seção que demonstra quão perene foi o influxo de Burckhardt sobre a obra de Warburg é aquela relativa ao tema da “Antiguidade e o presente na vida festiva do Renascimento”. Burckhardt tinha intitulado a parte 5 de A cultura do Renascimento na Itália de “A sociabilidade e as festividades”, entrelaçando o esplendor artístico nas cidades da Itália renascentista às festividades em sua formulação mais elevada, como um movimento superior da vida do povo, momento no qual seus ideais religiosos, morais e poéticos assumem uma forma visível. Warburg, por sua vez, buscou conceber a expressão humana na obra de arte figurativa como imagem da vida prática em movimento, tanto para o caso do culto religioso, quanto para aquele do drama da cultura por meio da festividade ou do palco cênico. A festa era, portanto, não apenas o momento de apresentação da expressividade artística, com todo o aparato que compõe a arquitetura decorada, mas sobretudo o palco da encenação da existência, quase uma transição da vida para a arte. Os cortejos e as encenações festivas eram, para Warburg, ocasiões para contemplar a vida social, bem como para interpretar o aparato artístico de que eram compostos. Esse aparato, em sua concretude, revelava-se, então, documento do significado histórico da Antiguidade clássica para os homens dos séculos XV e XVI na Itália, bem como no mundo nórdico, indicando ainda as ligações entre esses dois universos culturais.

Exatamente a busca de diálogo entre norte e sul dos Alpes havia movido Warburg a idealizar sua biblioteca particular. Sua intenção era reunir um acervo de livros e documentos que constituíssem as malhas de ligação entre o Sul e o Norte da Europa, concentrando num único lugar a livre consulta de publicações fundamentais sobre esse contato cultural. Ele, então, escolheu um tema que pudesse amalgamar sua proposta de seguir o diálogo e as relações transalpinas, sem deixá-los dispersar-se no infinito. Escolheu o tema da influência da Antiguidade, com o qual desenvolvia já à época seu trabalho de pesquisa.

Corria o ano de 1902 e, numa conversa em família, Aby Warburg adquiriu, por parte de seu pai, com o apoio de seu irmão mais velho, Max, a quantia de 1.700 marcos para instalar sua biblioteca no edifício onde permanecera até 1933, em Hamburgo. Era o início da Biblioteca Warburg para a Ciência da Cultura, transformada depois em instituto de pesquisa. A biblioteca nascia, assim, como fruto de um problema histórico de alta relevância, e talvez ainda hoje não explorado a contento: o problema das transposições históricas do mundo mediterrânico em direção è Europa nórdica, um tema que seguia, no início do século XX, a contrapelo dos caminhos políticos da Europa à beira dos conflitos nacionais. Enquanto Warburg buscava os contatos culturais, as transposições, as circulações de modelos literários e imagéticos da Antiguidade aos tempos modernos, do Sul em direção ao Norte, venciam, na Europa das primeiras décadas do Novecentos, as ideias de identidades nacionais, baseadas na noção de fronteiras naturais na formações dos povos europeus. Assim, ao final da Primeira Guerra, Warburg sucumbiu a uma forte crise psiquiátrica e foi internado numa clínica na Suíça, onde permaneceu até 1923.

No que se refere ao livro em questão, é importante salientar a intensificação dos estudos de Warburg em temas históricos que permitem um aprofundamento das inter-relações e transferências culturais entre o mundo mediterrânico e a Europa nórdica. As demais seções do livro apontam nessa direção, indo, nesse sentido, muito além da perspectiva de Burckhardt.

Em primeiro lugar, Warburg aborda o tema da Antiguidade italiana na Alemanha a partir da obra de Dürer, estudando, em 1905, a circulação de gravuras provenientes do ambiente de Andrea Mantegna no âmbito do artista de Nüremberg. Interessa a ­Warburg compreender, além propriamente da transposição da arte italiana ao mundo germânico, também a face bifrontal da influência da doutrina clássica no Renascimento, tanto ao norte, quanto ao sul dos Alpes. Warburg queria demonstrar que a Antiguidade chegou a Dürer, por intermédio da Itália, na forma de estímulos dionisíacos, mas também com a sobriedade apolínea.

Em 1908, estudando desenhos, gravuras e calendários dos séculos XV e XVI, provenientes da Itália e do mundo germânico, Warburg aponta para o momento em que ocorre uma mudança estilística nessas imagens pela entrada em cena das influências da escultura clássica sobre as representações tardo-medievais de imagens de deuses oriundos da Antiguidade tardia. Há, portanto, para o estudioso de Hamburgo, uma refiguração de ilustrações medievais provocada pela redescoberta renascentista da arte da Antiguidade. Para isso, ele realizava também, no estudo de 1908, as primeiras incursões no tema da astrologia.

De fato, Warburg dedica-se de modo sistemático aos estudos astrológicos a partir da leitura, realizada em 1907, do livro de Franz Boll (1867-1924). Filólogo clássico e professor na Universidade de Heidelberg, eminente especialista em história da astrologia, Franz Boll havia publicado, em 1903, Sphaera. Neue griechische Texte und ­untersuchungen zur geschichte der Sternbilder. Nesse livro, Boll, mediante fragmentos de textos e referências indiretas, conseguiu restituir um dos mais influentes tratados sobre o céu da Antiguidade Clássica, a Sphaera barbarica, do babilônico Teucro (séc. I a.C.). Partindo, então, do tratado de Teucro, Franz Boll empreende uma reconstrução detalhada da migração da astrologia e da astronomia grega por meio de suas transmissões no Oriente e na Idade Média latina. O texto de Teucro mostrava já, por sua vez, a contaminação e o enriquecimento da sphaera clássica com novos asterismos orientais, ou seja, o catálogo das estrelas fixas de Arato (séc. III a.C.). Na época helenística, esse céu de poucas constelações foi preenchido com novas figuras provenientes da tradição egípcia, aramaica e babilônica. Esse catálogo de constelações, mescla de elementos gregos e orientais, teve grande fortuna e, no curso do tempo, foi enriquecido com ornamentos astrológicos indianos e persas. Portanto, o tema do livro de Franz Boll é a história da compilação de Teucro, e de suas migrações na Antiguidade e na Idade Média, entre diversas culturas no Oriente e no Ocidente.

Warburg, por seu turno, havia começado a estudar intensamente a história da mitografia e da astrologia, focalizando a descrição das divindades pagãs nos textos medievais e a continuidade do imaginário astrológico da antiguidade nos tempos modernos. O livro de Boll despertou-lhe o interesse pelo estudo dos textos astrológicos indianos, o que seria fundamental para sua interpretação da iconografia das pinturas do Palácio Schifanoia de Ferrara. Em 1909, imerso no estudo sobre astrologia, Warburg entra em contato epistolar com Franz Boll. Em 1912, Aby Warburg apresenta, no X Congresso Internazionale di Storia dell’Arte di Roma, uma conferência em que decifra os afrescos do Palácio Schifanoia a partir da história da tradição astrológica. A conferência de 1912 representaria também o momento de apresentação para um público internacional de sua metodologia histórico-artística, onde a abordagem iconológica figurava em gênese. Na conferência, que na edição brasileira apresenta o título “A arte italiana e a astrologia internacional no Palazzo Schifanoia de Ferrara”, Aby Warburg encontrava nos afrescos a confirmação de sua hipótese de trabalho, qual seja, a transmissão ao Renascimento italiano de uma tradição iconográfica grega antiga, através da mediação indiana e árabe. Era essa uma forma de sobrevivência dos deuses pagãos que passava por um grande percurso migratório até tocar o território da Península Itálica, marcando a importância da tradição antiga para a formação da Europa moderna.

Com a conferência de 1912, Warburg observava o quanto o classicismo grego estava perpassado por elementos orientais, oriundos do Egito, da Pérsia, da Mesopotâmia. Portanto, sua noção de “antigo” tinha uma forte dose do primitivismo a minar o equilíbrio olímpico das divindades gregas. Paralelamente, sua noção de Renascimento ampliava-se ainda mais, ultrapassando em muito as relações entre arte nórdica e primeiro Renascimento na Itália, que até 1907 tinha dado um sentido a seus estudos histórico-artísticos. Com a conferência de 1912, Warburg distanciava-se de Burckhardt, tanto na concepção da Antiguidade grega, quanto na noção de Renascimento. Com o estudo sobre os afrescos astrológicos do Palácio Schifanoia de Ferrara, o Renascimento de Warburg absorve o vasto universo das interpretações árabes e indianas do mundo grego antigo, compreendendo, assim, um caminho migratório muito amplo a conectar o Renascimento italiano à Antiguidade grega.

O texto de 1912 é, então, emblemático na obra de Warburg por indicar um rompimento com todas as fronteiras que os estudiosos da arte e da cultura do Renascimento tinham até então estabelecido, dando um caráter internacionalista a sua interpretação. Nem mesmo as históricas fronteiras entre Ocidente e Oriente permaneceriam de pé depois de seu estudo apresentado em Roma. É curioso que essa abordagem tenha permanecido fora do centro nefrálgico dos estudos histórico-artísticos durante o século XX.

Assim, o livro canônico de Warburg, agora editado em língua portuguesa, cumpria em parte a tarefa de apresentar às gerações futuras o autor formado em ambientes intelectuais que, no final do Oitocentos, comunicavam a história social da arte com a história da cultura, a história das religiões e a nascente antropologia. Um autor que, de fato, jamais teve a intenção de dar vida a uma disciplina específica, mas, ao contrário, percorreu, movendo-se por resultados que a psicologia, a antropologia, a linguística da época lhe ofereciam, a evolução dos mecanismos fundamentais da expressão humana, que tinham conduzido determinadas culturas do antropomorfismo ao pensamento simbólico. Warburg, na verdade, procura demonstrar que o comportamento humano é sempre mediado pelo uso de símbolos. Com base nisso, sua busca não foi a de mover os símbolos para captar uma presumível verdade histórica neles submersa. Ao contrário, o movimento intelectual presente na obra de Warburg consiste em interrogar os símbolos sobre o que eles comunicam, localizando sua indagação no intervalo entre o páthos e o símbolo propriamente. Assim, Aby Warburg concentrou-se no intervalo pré-linguístico da experiência humana, situado entre a comoção causada pelos fundamentais sentimentos do homem, tais como a dor, a morte, o amor, e o impulso de representá-los com imagens, transformando-os em símbolos.

Desse modo, seu estudo direcionou-se ao mundo das formas simbólicas (então o mito, a arte, a linguagem, a ciência), como as tinha definido seu amigo e colaborador dos anos finais em Hamburgo, Ernst ­Cassirer, autor do livro dedicado a Warburg, A filosofia das formas simbólicas. No livro, Cassirer compreende as formas simbólicas não como imitações do real, e sim como órgãos da realidade, ou seja, como modo de converter o real em objeto de captação intelectual, tornando-o visível para nós.

Porém, a fase de maior colaboração intelectual entre os dois infelizmente não ficara registrado em A renovação da Antiguidade pagã. Exatamente a fase final de seu trabalho, após a recuperação da crise psicológica e o retorno, em 1923, às atividades na biblioteca de Hamburgo. Cassirer tinha chegado à cidade, para ensinar na recém-fundada universidade, em 1920, ao lado de Erwin ­Panofsky e do jovem Edgar Wind, este último estudante de doutorado. Essa fase da atividade de Warburg diz respeito a sua conferência sobre “O ritual da serpente”, ao projeto inacabado do “Atlas Mnemosyne”, à conferência autobiográfica “De arsenal a laboratório”, ao texto sobre Burckhardt e Nietzsche, aos cursos ministrados como convidado na Universidade de Hamburgo sobre Burckhardt e sobre “O método da ciência da cultura”. Também esteve fora do livro de 1932, traduzido no Brasil em 2013, uma série de textos de ­Warburg anteriores ao internamento na Suíça. A maior parte desse volumoso ­corpus permanece inédita em português, e, na verdade, só se tornou pública no início dos anos 2000, sobretudo na Itália e na Alemanha. Vale citar aqui o fundamental trabalho a partir dos manuscritos realizado pelo estudioso italiano, Maurizio Ghelardi, que traduziu diretamente ao italiano e publicou em dois volumes, em 2004 e 2008, as Opere de Aby Warburg. O trabalho de Maurizio Ghelardi traz ainda o mérito de editar a inédita correspondência entre Warburg e Cassirer, além da publicação em conjunto na Alemanha (traduzida na França) dos últimos escritos de Warburg, de algumas de suas cartas e da introdução ao Atlas Mnemosyne. Ghelardi é responsável, ainda, pela edição italiana dos estudos de Warburg sobre os índios pueblos do Novo México, bem como do próprio Atlas ­Mnemosyne. Este último, organizado a partir da edição alemã, que, sob os cuidados de Martin Warnke, é uma nova seleção dos escritos do estudioso de Hamburgo. É importante citar, ainda, a edição alemã de 2010, que mescla textos presentes no livro de 1932 com outros até então inéditos em alemão. Não citaremos aqui as edições de comentadores da obra de Warburg, surgidas sobretudo desde os anos 2000, trazendo importantes releituras de sua produção.

Tudo isso decerto não tira o mérito da edição recentemente traduzida no Brasil. Porém, revela a importância da obra de Warburg para o estudo das imagens, seja no âmbito da história da arte e da cultura, seja no campo da pesquisa antropológica ou da teoria da imagem. Oxalá a edição brasileira de 2013 sirva de incentivo para novas traduções e edições de escritos de Aby Warburg no Brasil.

Cássio Fernandes – Professor adjunto do Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo. E-mail: [email protected].

Atmosfera, ambiência, stimmung – GUMBRECHT (Topoi)

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência, stimmung: sobre o potencial oculto da literatura. Tradução Ana Isabel Soares, Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC Rio, 2014. Resenha de: VIEIRA, Thaís Leão. Para além do paradigma da representação: o passado-feito-presente por meio de obras literárias. Topoi v.16 n.30 Rio de Janeiro Jan./June 2015.

Desconstrutivismo e estudos culturais são duas perspectivas teóricas e metodológicas bastante conhecidas para quem trabalha com linguagens. De um lado, a presença de um campo que defende a inexistência de qualquer contato entre a linguagem e a realidade e, por outro lado, os estudos culturais, tributários do marxismo, que por sua vez, ao creditarem maior ênfase na dimensão empírica das obras, se despreocupariam com a questão epistemológica. A saída para essas duplas abordagens é proposta por Hans Ulrich Gumbrecht, para quem a leitura das obras literárias deve retomar a vivacidade da literatura. Para que essas leituras se deem para além das representações, o autor propõe encontrar a atmosfera e o ambiente e posteriormente devolvê-las em um novo presente.

“É correto que o ensaísta busque a verdade”, escreveu [Lukács], “mas deve fazê-lo à maneira de Saul. Saul partiu em busca dos burros de seu pai e descobriu um reino; assim será com o ensaísta – aquele que é de fato capaz de procurar a verdade -; encontrar, no final de sua busca, aquilo que não procurava: a própria vida” (p. 29). Dessa forma, Gumbrecht apresenta sua perspectiva que não intenta o alcance da verdade, mas sugere que, ao se concentrar nas atmosferas e ambientes, os estudos literários se dirigem às obras “como parte da vida no presente”. A questão das atmosferas e ambientes, entretanto, deve aparecer mais do que os níveis de representação das obras, no sentido de Gumbrecht. A leitura do stimmung, que não distingue a experiência estética da experiência histórica, permitirá reter a vitalidade da literatura. Ao fazê-lo, o foco incide não apenas na experiência histórica vivenciada pela obra literária no momento de sua produção, ou seja, a obra não torna presente apenas um momento do passado, porém, na perspectiva de Gumbrecht, a análise da obra revela muito da nossa imediatez histórica. Em outras palavras, por que em determinados momentos os ecos de determinadas obras são maiores do que em outros períodos?

A relação entre o olhar voltado ao stimmung e o efeito de presença como um objeto de pesquisa é nítida em Atmosfera, ambiência, stimmung, lançado em 2014 no Brasil. Grumbrecht recupera os sentidos de stimmung em quatro momentos fundamentais: a era moderna, o romantismo, o século XIX na pintura histórica e na arquitetura historicizante e pós-segunda Guerra Mundial. Mais importante para Gumbrecht é a virada na história do conceito, quando stimmung deixa de exercer o papel de harmonia e mediação, pois é justamente aí que se transforma em uma categoria universal – essa dimensão permite ao autor buscar a atmosfera e o ambiente “característico de cada situação, obra ou texto”.

A questão do observador e da “crise da representação”, identificada por Michel de Foucault em As palavras e as coisas, interessa especialmente em dois momentos do livro, ambos no contexto do século XIX. O ato de observar o mundo e se colocar nesse processo de observação coloca o artista ­Caspar ­David Friedrich e o escritor ­Machado de Assis em posição de suma importância para Gumbrecht. Os observadores que se apresentam nas obras de Friedrich, em sua maioria ocupando lugar central no espaço pictórico, são partícipes de certa atmosfera, colocada pelo autor alemão radicado nos Estados Unidos por meio de dois problemas. O primeiro é a relação entre a experiência e a percepção. Contrariamente à tradição herdada dos séculos XVII e XVIII do pensamento racionalista, o observador de segunda ordem deu forma à epistemologia do século XIX ao redescobrir “como a sua relação com as coisas-do-mundo é determinada não só pelas funções conceptualizantes da consciência, mas implica também os sentidos” (p. 86). Outra consequência da função do observador é a referência ao ângulo específico da observação – para cada objeto potencial de referência, uma infinidade de descrições, o que resulta na perda da estabilidade dos objetos de referência. Pelas leituras das obras pictóricas, algo se produz de forma disseminada no final do século XVIII, quando grandes pensadores citados por Gumbrecht, como Goethe e Kant, buscavam a harmonia entre a existência e as coisas do mundo. As imagens que os quadros apresentam remetem ao sublime incompatível com a harmonia, dando ao observador uma sensação de desprazer.

A ideia de temporalidade como elemento constitutivo das atmosferas e ambientes surge no texto sobre Memorial de Aires, de Machado de Assis, que Gumbrecht associa com a dimensão do tempo posta na obra Ser e tempo, de Martin Heidegger. Para ­Gumbrecht, Memorial de Aires não é um livro apenas sobre tristeza, mas a obra nos diz de que modo a tristeza pode adquirir substância no tempo “entre um futuro existencial sem ‘conteúdo’, um presente vazio e um passado que não desaparece, o tempo tem necessariamente de se mover com lentidão – como que se aproximando do ponto de imobilidade absoluta” (p. 120). Se, no presente, o autor (o conselheiro Aires) encontra um vazio, há algo dessa escrita que ­Gumbrecht nos revela: que ao dizer sobre nada, ela dá forma a determinada existência, talvez a do mundo colonial e das ilusões perdidas. O diário do autor ficcional Aires é, nesse sentido, um livro sobre nada, que Flaubert objetava como projeto estético. Aires escreve quando não há nada que mereça registro em sua vida. Assim como seus amigos, os Aguiar, são sozinhos, Aires também o é, e ambos possuíam no passado uma felicidade perdida para sempre, combinada com a consciência da perda do presente e do futuro. Outro aspecto trazido por Gumbrecht da obra de Machado é que o autor do memorial, o conselheiro Aires, é um observador de segunda ordem, aquilo que Foucault considerou como a crise da representação, uma vez que o sujeito do conhecimento se torna ele mesmo objeto. E ao serem colocadas dessa forma, “as conquistas do observador de segunda ordem incluem a descoberta de que cada representação do mundo depende da perspectiva” (p. 118), ou seja, da tomada de consciência do observador de que o ponto de onde ele observa define a representação de determinado objeto, no caso específico, o reconhecimento de Aires sobre “a saudade de si mesmos” dos Aguiar, que implica um vazio no presente e uma falta de projeção para o futuro.

Morte em Veneza, de Thomas Mann, marca o encontro da morte em vida do personagem Aschenbach. O clima atmosférico e as condições meteorológicas na narrativa, bem como as mudanças de tempo verbal, apresentam as transições, a impressão do “tempo parado” e o peso da vida à medida que Tadzio não corresponde ao amor de Aschenbach até a partida desse amor idealizado. O alerta de Gumbrecht no começo do livro, na referência à Lukács, faz com que o autor se preocupe mais em encontrar a vivacidade da obra do que suas possíveis verdades. Nesse ponto, “a morte dentro da vida de Aschenbach revela a intensidade da vida, mais do que sua verdade” (p. 105). A presença dessa atmosfera e desse ambiente teria preparado as possibili­dades da filosofia existencial.

A atmosfera dos anos 1960 é discutida no capítulo dedicado à Janis Joplin, especialmente à canção Me and Bobby McGee. Com grande eloquência, talvez esse seja o texto de todos os demais na obra em que o sentido do presente esteja mais forte em Gumbrecht: “só hoje, quando nos tornamos uma geração de velhos tantas vezes infantis {…} conseguimos, de fato, perceber quais eram as promessas daqueles meses {…} na voz de Janis Joplin, recordamos uma liberdade que não sentimos no presente do passado” (p. 127). Ao discutir a narrativa da canção, Gumbrecht encontra no casal Joplin e Bobby a ambiência de sua geração, a metáfora para sua juventude. Ao som do verso “liberdade é só outra palavra para ‘não ter nada a perder'”, Gumbrecht exemplifica que, ao conhecer Bobby, Joplin perde para sempre a liberdade de quem nada tem a perder, pois ela trocaria todos os dias do seu futuro por um único de seu passado, numa perspectiva de que a felicidade é oposta à liberdade. Porém, não é só o conhecimento dos versos da canção que faz dela pertencente à substância e torna possível recuperarmos o stimmung dessa juventude de outrora, mas nas variações e modulações da voz de Joplin, no registro e nas gravações de canções que mantêm vivo o stimmung daquela geração que pode ser condensada pela voz delicada, sedutora, desesperada de Joplin de Me and Bobby McGee, que não precisa unicamente dos sentidos das palavras para recuperar as atmosferas e estados de espírito que a voz de Joplin evoca.

Na última parte do livro, com referência à filosofia, especialmente à situação após a Primeira Guerra Mundial, Gumbrecht se volta para o que foi considerado como os “loucos anos 20” e o clima posterior à Grande Guerra. Nesse contexto, o autor indica que esses foram os anos que levaram à morte do sujeito moderno e ao fim do papel do herói, que deveria ter dado leveza ao peso da existência humana, porém, não o fez. O clima desse período foi retratado numa metáfora que deduz, dessa atmosfera de incertezas e profunda desorientação, que “o chão fugira sob nossos pés”. Gumbrecht reconhece na filosofia de Martin Heidegger uma experiência que dá sentido àquela situação histórica, devolvendo à “existência individual humana o ‘chão que havia desaparecido sob os pés'” (p. 151). Identificar a dinâmica que constitui a existência poderia, para Gumbrecht, naquele contexto, apontar o que impedia tais dinâmicas; em outras palavras, poderia indicar o que levaria à incompletude das vidas individuais.

Claramente, Grumbrecht observa uma tensão entre vitalismo e razão nos anos 1920 e o exílio de felicidade como um emblema e sintoma desse tempo. Assim como na filosofia existencial de Heidegger, na obra de Unamuno sobre o sentimento trágico da vida, as possibilidades positivas eram vistas como ilhas dentro do sentido trágico da vida. É nesse ponto que Gumbrecht dá aos leitores a expressão daquilo que ele considera como uma estetização da vida, como parte dessa visão trágica, a partir da tensão entre o que ele chama de “sobriedade” e “êxtase”. Um dos gestos de sobriedade era a busca por experienciar as coisas do mundo na sua coisidade pré-conceitual, que está presente em Heidgger, em artistas da Bauhaus, Paul Klee, em registros do surrealismo e em designers do período. Essa visão busca a sensação pela dimensão corpórea e espacial da nossa existência, voltando-se para posições mais modestas e menos monumentais. Isso justificaria a suposta excitação pela arte primitiva. De outro modo, a década de 1920 também comportou, nas possibilidades de se alcançar a felicidade pela intensidade, perigo e excitação e a alegria de viver poderia ser encontrada nos “topos das montanhas ou dos arranha-céus” (p. 155).

A sensibilidade-chave de Gumbrecht demonstra, aos nossos olhos, uma abordagem interpretativa do passado em que, nesse complexo contexto de exílio da felicidade, experiências históricas como o socialismo, que adiava para o futuro um tempo melhor, e o cristianismo, que deixara para a vida no além a esperança da felicidade, não tiveram o êxito do fascismo, que, com a promessa de satisfação imediata, pode ter se constituído em uma atmosfera e ambiência da busca pela felicidade, no aqui e agora, como a atração fatal dos anos 1920.

Atmosfera, ambiência, stimmung sobre o potencial oculto da literatura é um livro edificante, no sentido de que constrói, por meio do sensível, várias presenças. Erige em nós temporalidades que se transformam continuamente, lendo em busca de stimmung, revelando seu potencial dinâmico. O conceito diz, para além da leitura das obras feitas por Gumbrecht, da própria leitura de Atmosfera… pois esta afeta a nós leitores, dadas a disposição, a sensibilidade e a acuracidade com as quais o autor nos revela múltiplas ambiências e vivifica a literatura em/para nós.

Thaís Leão Vieira – Doutora em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e professora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Rondonópolis, MT, Brasil. E-mail: [email protected].