Atmosfera, ambiência, stimmung – GUMBRECHT (Topoi)

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência, stimmung: sobre o potencial oculto da literatura. Tradução Ana Isabel Soares, Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC Rio, 2014. Resenha de: VIEIRA, Thaís Leão. Para além do paradigma da representação: o passado-feito-presente por meio de obras literárias. Topoi v.16 n.30 Rio de Janeiro Jan./June 2015.

Desconstrutivismo e estudos culturais são duas perspectivas teóricas e metodológicas bastante conhecidas para quem trabalha com linguagens. De um lado, a presença de um campo que defende a inexistência de qualquer contato entre a linguagem e a realidade e, por outro lado, os estudos culturais, tributários do marxismo, que por sua vez, ao creditarem maior ênfase na dimensão empírica das obras, se despreocupariam com a questão epistemológica. A saída para essas duplas abordagens é proposta por Hans Ulrich Gumbrecht, para quem a leitura das obras literárias deve retomar a vivacidade da literatura. Para que essas leituras se deem para além das representações, o autor propõe encontrar a atmosfera e o ambiente e posteriormente devolvê-las em um novo presente.

“É correto que o ensaísta busque a verdade”, escreveu [Lukács], “mas deve fazê-lo à maneira de Saul. Saul partiu em busca dos burros de seu pai e descobriu um reino; assim será com o ensaísta – aquele que é de fato capaz de procurar a verdade -; encontrar, no final de sua busca, aquilo que não procurava: a própria vida” (p. 29). Dessa forma, Gumbrecht apresenta sua perspectiva que não intenta o alcance da verdade, mas sugere que, ao se concentrar nas atmosferas e ambientes, os estudos literários se dirigem às obras “como parte da vida no presente”. A questão das atmosferas e ambientes, entretanto, deve aparecer mais do que os níveis de representação das obras, no sentido de Gumbrecht. A leitura do stimmung, que não distingue a experiência estética da experiência histórica, permitirá reter a vitalidade da literatura. Ao fazê-lo, o foco incide não apenas na experiência histórica vivenciada pela obra literária no momento de sua produção, ou seja, a obra não torna presente apenas um momento do passado, porém, na perspectiva de Gumbrecht, a análise da obra revela muito da nossa imediatez histórica. Em outras palavras, por que em determinados momentos os ecos de determinadas obras são maiores do que em outros períodos?

A relação entre o olhar voltado ao stimmung e o efeito de presença como um objeto de pesquisa é nítida em Atmosfera, ambiência, stimmung, lançado em 2014 no Brasil. Grumbrecht recupera os sentidos de stimmung em quatro momentos fundamentais: a era moderna, o romantismo, o século XIX na pintura histórica e na arquitetura historicizante e pós-segunda Guerra Mundial. Mais importante para Gumbrecht é a virada na história do conceito, quando stimmung deixa de exercer o papel de harmonia e mediação, pois é justamente aí que se transforma em uma categoria universal – essa dimensão permite ao autor buscar a atmosfera e o ambiente “característico de cada situação, obra ou texto”.

A questão do observador e da “crise da representação”, identificada por Michel de Foucault em As palavras e as coisas, interessa especialmente em dois momentos do livro, ambos no contexto do século XIX. O ato de observar o mundo e se colocar nesse processo de observação coloca o artista ­Caspar ­David Friedrich e o escritor ­Machado de Assis em posição de suma importância para Gumbrecht. Os observadores que se apresentam nas obras de Friedrich, em sua maioria ocupando lugar central no espaço pictórico, são partícipes de certa atmosfera, colocada pelo autor alemão radicado nos Estados Unidos por meio de dois problemas. O primeiro é a relação entre a experiência e a percepção. Contrariamente à tradição herdada dos séculos XVII e XVIII do pensamento racionalista, o observador de segunda ordem deu forma à epistemologia do século XIX ao redescobrir “como a sua relação com as coisas-do-mundo é determinada não só pelas funções conceptualizantes da consciência, mas implica também os sentidos” (p. 86). Outra consequência da função do observador é a referência ao ângulo específico da observação – para cada objeto potencial de referência, uma infinidade de descrições, o que resulta na perda da estabilidade dos objetos de referência. Pelas leituras das obras pictóricas, algo se produz de forma disseminada no final do século XVIII, quando grandes pensadores citados por Gumbrecht, como Goethe e Kant, buscavam a harmonia entre a existência e as coisas do mundo. As imagens que os quadros apresentam remetem ao sublime incompatível com a harmonia, dando ao observador uma sensação de desprazer.

A ideia de temporalidade como elemento constitutivo das atmosferas e ambientes surge no texto sobre Memorial de Aires, de Machado de Assis, que Gumbrecht associa com a dimensão do tempo posta na obra Ser e tempo, de Martin Heidegger. Para ­Gumbrecht, Memorial de Aires não é um livro apenas sobre tristeza, mas a obra nos diz de que modo a tristeza pode adquirir substância no tempo “entre um futuro existencial sem ‘conteúdo’, um presente vazio e um passado que não desaparece, o tempo tem necessariamente de se mover com lentidão – como que se aproximando do ponto de imobilidade absoluta” (p. 120). Se, no presente, o autor (o conselheiro Aires) encontra um vazio, há algo dessa escrita que ­Gumbrecht nos revela: que ao dizer sobre nada, ela dá forma a determinada existência, talvez a do mundo colonial e das ilusões perdidas. O diário do autor ficcional Aires é, nesse sentido, um livro sobre nada, que Flaubert objetava como projeto estético. Aires escreve quando não há nada que mereça registro em sua vida. Assim como seus amigos, os Aguiar, são sozinhos, Aires também o é, e ambos possuíam no passado uma felicidade perdida para sempre, combinada com a consciência da perda do presente e do futuro. Outro aspecto trazido por Gumbrecht da obra de Machado é que o autor do memorial, o conselheiro Aires, é um observador de segunda ordem, aquilo que Foucault considerou como a crise da representação, uma vez que o sujeito do conhecimento se torna ele mesmo objeto. E ao serem colocadas dessa forma, “as conquistas do observador de segunda ordem incluem a descoberta de que cada representação do mundo depende da perspectiva” (p. 118), ou seja, da tomada de consciência do observador de que o ponto de onde ele observa define a representação de determinado objeto, no caso específico, o reconhecimento de Aires sobre “a saudade de si mesmos” dos Aguiar, que implica um vazio no presente e uma falta de projeção para o futuro.

Morte em Veneza, de Thomas Mann, marca o encontro da morte em vida do personagem Aschenbach. O clima atmosférico e as condições meteorológicas na narrativa, bem como as mudanças de tempo verbal, apresentam as transições, a impressão do “tempo parado” e o peso da vida à medida que Tadzio não corresponde ao amor de Aschenbach até a partida desse amor idealizado. O alerta de Gumbrecht no começo do livro, na referência à Lukács, faz com que o autor se preocupe mais em encontrar a vivacidade da obra do que suas possíveis verdades. Nesse ponto, “a morte dentro da vida de Aschenbach revela a intensidade da vida, mais do que sua verdade” (p. 105). A presença dessa atmosfera e desse ambiente teria preparado as possibili­dades da filosofia existencial.

A atmosfera dos anos 1960 é discutida no capítulo dedicado à Janis Joplin, especialmente à canção Me and Bobby McGee. Com grande eloquência, talvez esse seja o texto de todos os demais na obra em que o sentido do presente esteja mais forte em Gumbrecht: “só hoje, quando nos tornamos uma geração de velhos tantas vezes infantis {…} conseguimos, de fato, perceber quais eram as promessas daqueles meses {…} na voz de Janis Joplin, recordamos uma liberdade que não sentimos no presente do passado” (p. 127). Ao discutir a narrativa da canção, Gumbrecht encontra no casal Joplin e Bobby a ambiência de sua geração, a metáfora para sua juventude. Ao som do verso “liberdade é só outra palavra para ‘não ter nada a perder'”, Gumbrecht exemplifica que, ao conhecer Bobby, Joplin perde para sempre a liberdade de quem nada tem a perder, pois ela trocaria todos os dias do seu futuro por um único de seu passado, numa perspectiva de que a felicidade é oposta à liberdade. Porém, não é só o conhecimento dos versos da canção que faz dela pertencente à substância e torna possível recuperarmos o stimmung dessa juventude de outrora, mas nas variações e modulações da voz de Joplin, no registro e nas gravações de canções que mantêm vivo o stimmung daquela geração que pode ser condensada pela voz delicada, sedutora, desesperada de Joplin de Me and Bobby McGee, que não precisa unicamente dos sentidos das palavras para recuperar as atmosferas e estados de espírito que a voz de Joplin evoca.

Na última parte do livro, com referência à filosofia, especialmente à situação após a Primeira Guerra Mundial, Gumbrecht se volta para o que foi considerado como os “loucos anos 20” e o clima posterior à Grande Guerra. Nesse contexto, o autor indica que esses foram os anos que levaram à morte do sujeito moderno e ao fim do papel do herói, que deveria ter dado leveza ao peso da existência humana, porém, não o fez. O clima desse período foi retratado numa metáfora que deduz, dessa atmosfera de incertezas e profunda desorientação, que “o chão fugira sob nossos pés”. Gumbrecht reconhece na filosofia de Martin Heidegger uma experiência que dá sentido àquela situação histórica, devolvendo à “existência individual humana o ‘chão que havia desaparecido sob os pés'” (p. 151). Identificar a dinâmica que constitui a existência poderia, para Gumbrecht, naquele contexto, apontar o que impedia tais dinâmicas; em outras palavras, poderia indicar o que levaria à incompletude das vidas individuais.

Claramente, Grumbrecht observa uma tensão entre vitalismo e razão nos anos 1920 e o exílio de felicidade como um emblema e sintoma desse tempo. Assim como na filosofia existencial de Heidegger, na obra de Unamuno sobre o sentimento trágico da vida, as possibilidades positivas eram vistas como ilhas dentro do sentido trágico da vida. É nesse ponto que Gumbrecht dá aos leitores a expressão daquilo que ele considera como uma estetização da vida, como parte dessa visão trágica, a partir da tensão entre o que ele chama de “sobriedade” e “êxtase”. Um dos gestos de sobriedade era a busca por experienciar as coisas do mundo na sua coisidade pré-conceitual, que está presente em Heidgger, em artistas da Bauhaus, Paul Klee, em registros do surrealismo e em designers do período. Essa visão busca a sensação pela dimensão corpórea e espacial da nossa existência, voltando-se para posições mais modestas e menos monumentais. Isso justificaria a suposta excitação pela arte primitiva. De outro modo, a década de 1920 também comportou, nas possibilidades de se alcançar a felicidade pela intensidade, perigo e excitação e a alegria de viver poderia ser encontrada nos “topos das montanhas ou dos arranha-céus” (p. 155).

A sensibilidade-chave de Gumbrecht demonstra, aos nossos olhos, uma abordagem interpretativa do passado em que, nesse complexo contexto de exílio da felicidade, experiências históricas como o socialismo, que adiava para o futuro um tempo melhor, e o cristianismo, que deixara para a vida no além a esperança da felicidade, não tiveram o êxito do fascismo, que, com a promessa de satisfação imediata, pode ter se constituído em uma atmosfera e ambiência da busca pela felicidade, no aqui e agora, como a atração fatal dos anos 1920.

Atmosfera, ambiência, stimmung sobre o potencial oculto da literatura é um livro edificante, no sentido de que constrói, por meio do sensível, várias presenças. Erige em nós temporalidades que se transformam continuamente, lendo em busca de stimmung, revelando seu potencial dinâmico. O conceito diz, para além da leitura das obras feitas por Gumbrecht, da própria leitura de Atmosfera… pois esta afeta a nós leitores, dadas a disposição, a sensibilidade e a acuracidade com as quais o autor nos revela múltiplas ambiências e vivifica a literatura em/para nós.

Thaís Leão Vieira – Doutora em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e professora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Rondonópolis, MT, Brasil. E-mail: [email protected].