Al-Ma’mūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority – NAWAS (S-RH)

NAWAS, John Abdallah. Al-Ma’mūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority. Atlanta: Lockwood Press, 2015. Coleção “Resources in Arabic and Islamic studies”, n. 4. 212 p. ISBN-13: 9781937040550 (impresso) | 9781937040567 (e-book). Resenha de: CRUZ, Alfredo Bronzato da Costa. Religião e historicidade: a batalha pela ortodoxia islâmica no Califado Abássida SÆCULUM– Revista de História, João Pessoa, [38] jan./ jun. 2018.

Pode não ser muito evidente no ambiente acadêmico brasileiro, às vezes ensimesmado em questões muito particulares, mas o campo dos estudos sobre o Islã tem crescido de forma vertiginosa nas universidades europeias e norte-americanas desde o fim da Guerra Fria, vinculado a fatores geopolíticos claros, que determinam de modo mais ou menos indireto as tendências intelectuais e a distribuição dos recursos destinados à pesquisa. De fato, desde o fim da década de 1980, tem-se experimentado uma expansão da investigação ocidental sobre o Islã comparável em magnitude unicamente à que teve lugar cem anos antes disso, em paralelo com a expansão imperialista sobre os continentes africano e asiático, ou seja, também sobre as terras tradicionais da presença e hegemonia muçulmana. As analogias possíveis entre os dois momentos não são apenas formais, mas também discerníveis em certos elementos de conteúdo significativos. Apesar dos excelentes estudos sobre a história do Islã e do ecúmeno muçulmano atualmente disponíveis, ainda é parte do senso comum acadêmico a noção não só de que o movimento dos seguidores de Muḥammad é essencialmente igual a si mesmo desde o século VII até a contemporaneidade, mas de que ele surgiu na história consistente e beligerante, tal como Palas Atena saltando adulta e inteiramente armada da cabeça de Zeus.2 No suporte a esta ideia, vaga, mas poderosa, estão, de um lado, os orientalistas e neoorientalistas, que se arrogam o direito de falar aos ocidentais sobre o ser do Islã, projetando na história das coletividades uma ontologia tão estática quanto politicamente enviesada. Do outro, elemento novo, encontram-se os intelectuais muçulmanos ou filo-muçulmanos instalados nas universidades ocidentais, pesquisadores que em realidade pouco fazem além de transcrever em discurso acadêmico, de maneira muito pouco crítica, a narrativa dos próprios devotos a respeito do surgimento e desenvolvimento do Islã. Sob o emaranhado de enunciados que constitui a disputa pela fala legítima a respeito das questões pertinentes à história e religiosidade islâmicas, portanto, há certa concordância tácita sobre o que caracterizaria esse movimento político-religioso em sua essência; questões que são produto de processos sociais e conjunturas históricas bastante particulares são, dessa forma, cristalizados como se não mais do que realizações no tempo e no espaço de uma natureza do Islã. O principal problema desse tipo de abordagem, contudo, é que ele distorce em diferentes níveis a compreensão que se pode ter a respeito do passado islâmico, submetendo-o a juízos fundados precisamente na desconsideração da historicidade de todos os atos e ideias dos seres humanos.

Mencione-se um exemplo significativo, ou seja, o da mina, a dita inquisição islâmica. O vocábulo árabe ة􀑧􀑧 محن pode ser literalmente traduzido como julgamento ou como prova, no sentido de teste; foi tradicionalmente usado tanto pelos historiadores muçulmanos, medievais e modernos, como pelos especialistas ocidentais para designar o período de perseguição religiosa iniciado durante o governo do califa abássida al-Ma’mūn (813-833) e continuado sob seus dois sucessores, al-Mu’taṣim (833-842) e al-Wāthiq (842-847). Durante a mina, uma série de oficiais do governo, teólogos, juristas, cronistas, compiladores de aḥādīt, sábios e santos muçulmanos foram submetidos à prisão, aos castigos físicos e, eventualmente, à execução, por se recusarem a subscrever a doutrina, então sustentada pelos abássidas, de que o Corão havia sido criado por Alá e que, portanto, sendo acessível à inteligência em sua plenitude, poderia ser submetido a escrutínio racional. A confissão alternativa a essa, por outra parte, sustentava que o Corão era anterior a toda a criação, subsistindo desde sempre em Alá como arquétipo do Texto que foi, em determinado momento histórico, efetivamente revelado a Muḥammad. Essa divergência explodiu em conflito aberto quando, alguns meses antes de seu falecimento, al-Maʾmūn determinou que os especialistas religiosos de sua corte denunciassem como falsos todos os aḥādīt em que se guardavam tradições a respeito do caráter supostamente incriado do Corão; a recusa de alguns em fazê-lo desencadeou reações violentas da parte do soberano, assim como um exaltado sentimento popular a favor dos perseguidos. No califado de al- Mu’taṣim, a mina foi institucionalizada tanto em verificações regulares que eram feitas aos cortesãos e demais oficiais do governo quanto à sua opinião a respeito do caráter criado ou incriado do Corão, quanto em tribunais inquisitoriais estabelecidos em al-Fustât, Kūfa, Bagdá, Basra, Damasco, Meca e Medina, cortes cuja autoridade foi estendida a todos os funcionários, militares, magistrados, eruditos e líderes comunitários dessas cidades nevrálgicas do ecúmeno islâmico. Sob al-Wāthiq, a perseguição perdeu força e acabou por se extinguir. O complexo período que se seguiu, marcado por uma crescente ascendência dos ghilmān (escravos-soldados) turcos sobre todos os negócios do califado, fez com que essa discussão teológica fosse esvaziada e desmontado o aparato institucional que os abássidas construíram durante a década de 830 para lidar com ela. O califa al-Mutawakkil, por fim, reconheceu abertamente o fracasso da mina determinada por seus antecessores e estabeleceu que seus súditos seriam livres para decidir por si mesmos se acreditariam no caráter criado ou incriado do Corão.

Não raro a mina foi pensada pelos analistas ocidentais como mais uma das expressões da essência intolerante do Islã. Definido o caráter intolerante de uma religião, entretanto, efetivamente é possível encontrar provas desse por toda parte.

Poucas vezes se considerou a sério, de outra parte, que a perseguição e a resistência a ela foram assuntos que se deram entre homens que se consideravam todos muçulmanos fiéis. Todo o episódio mostrou com clareza os limites do poder dos califas em matéria do estabelecimento da ortodoxia islâmica; daí em diante ficou claro que os soberanos do império islâmico, que já então havia iniciado seu processo de desagregação político-territorial, haveriam de negociar cuidadosamente, a cada pronunciado estritamente religioso que se arvorassem a fazer, com a intelligentsia constituída pelos diferentes tipos de sábios e santos muçulmanos. O lugar da fala doutrinária legítima não era mais, de modo necessário, a corte califal, mas as madraças, as academias de jurisprudência, de belas letras e de teologia que eram os loci em que se elaboravam a autoconsciência daquilo que emergia então como a vertente sunita do Islã. Ao contrário do que muitos analistas menos informados continuam a sustentar, de fato, o sunismo não é idêntico ponto a ponto à ideologia não-álida ou anti-álida que se desenvolveu sob os omíadas e os abássidas; não é uma confissão por rejeição, mas uma identidade islâmica que se desenvolveu na história, tanto ao redor de uma oposição quietista aos próprios califas majoritariamente reconhecidos como legítimos, quando de uma crescente veneração aos ditos e feitos atribuídos a Muḥammad e seus Companheiros, tomados como interpretações e performances autorizadas da Revelação divina consignada no Corão. A junção entre religião e política que muitos sustentam necessária e mesmo natural na história islâmica foi agudamente colocada em questão durante todo o episódio da mina – inclusive, talvez principalmente, em seu encerramento. Aos califas abássidas foi então negado o direito de uma intervenção cesaropapista na teologia islâmica; e ainda que não se tenha esvaziado o seu papel estritamente religioso de chefe dos crentes e lugartenente de Deus à frente da Ummah, a comunidade dos muçulmanos, esboçou-se um conflito entre poder espiritual e poder secular que nos remete mais a certos episódios da história das sociedades cristãs de matriz euro-americana do que às ideias cristalizadas que temos a respeito do que foram e são as sociedades aderentes ao Islã, nas quais a vida política parece a não poucos ser indissociável da vida religiosa, ou vice-versa.3 Isto tudo considerado, a mina apresenta-se como um episódio muito bom para pensar o Islã na história, ou seja, para se refletir sobre os processos sociais, bem localizados no tempo e no espaço, pelos quais os muçulmanos – que a princípio não dispõem de uma estrutura análoga à da hierarquia eclesiástica do cristianismo – produziram a ortodoxia e a dissidência religiosa a partir das quais se definem enquanto muçulmanos. De fato, ela não é facilmente interpretável caso se considere o Islã como um movimento sempre igual a si mesmo; trata-se, portanto, de uma brecha, uma rasgadura que permite que consideremos com mais vagar a dialética entre o desejo de permanência e o advento de mudanças que está presente em toda e qualquer instituição ou complexo de ideias. Da mesma forma, não ajuda muito a analogia, comum nos autores ocidentais do século XIX e da primeira metade do século XX, entre a mina e as inquisições católica ou protestante dos séculos XV a XVIII. Em todos esses sentidos, para compreender este episódio em sua importância capital, ajuda-nos o livro aqui referido, de autoria de John Abdallah Nawas (n.1960), versão revista e expandida de sua tese de doutorado, Al-Maʾmūn: mina and Caliphate, defendida em 1993 na Universidade Católica de Nimegue (mais tarde renomeada como Universidade Radboud de Nimegue). Nawas é agora professor de Estudos Árabes e Islâmicos do Departamento de Estudos do Oriente Próximo da Universidade de Louvaina, na Bélgica, e diretor da Escola Europeia de Estudos Abássidas, com sede na mesma instituição. Nos quase vinte e cinco anos que se seguiram ao seu doutoramento, a tese de Nawas tornou-se uma referência para os estudos que de alguma forma se referem à mina, tanto pela clareza de sua argumentação, quanto por seu extraordinário domínio das fontes de época e da bibliografia pertinente à sua análise. Em 2014, o autor publicou um número da série Oxford Bibliographies Online com um extenso levantamento comentado dos trabalhos até então disponíveis sobre a mina, a maior parte estudos orientalistas em inglês e textos de autores árabes. Com base nessa pesquisa, Nawas atualizou as referências de sua tese, ainda que não tenha incorrido em mudança significativa em seu argumento. O volume assim revisado e expandido foi publicado no ano seguinte em versão impressa e online pela Lockwood Press, de Atlanta, EUA, tornando assim mais acessível um estudo fundamental aos interessados em questões de história sociopolítica, intelectual e religiosa do Islã medieval.

No primeiro capítulo de Al-Maʾmūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority (pp. 1-20), Nawas situa seu estudo ao apresentar os marcos cronológico e geográfico deste, juntamente com uma investigação preliminar do que já foi escrito a respeito das motivações dos abássidas para estabelecerem e suspenderam a mina. Aí também são elencados os documentos de época que o autor consultou a respeito, procurando situá-los como peças de combate dentro daquelas que se constituíam como as oposições fundamentais que tensionavam e davam forma ao debate político-religioso islâmico ao tempo de al-Maʾmūn, seus imediatos antecessores e sucessores – ou seja, as disputas entre o califa e seus cortesãos e os ulemás e seus alunos, entre os álidas, os xiitas e os conformistas que estavam em vias de se constituírem religiosamente como sunitas (mas colocando em questão, nesse processo, seu próprio conformismo político), e entre os que defendiam o caráter criado e os que sustentavam a preexistência e eternidade do Corão. No segundo capítulo (pp. 21-30), reconstitui-se a trajetória de al-Maʾmūn, tratando-se principalmente de sua controversa nomeação e do conflito que se seguiu a essa, uma disputa familiar e cortesã que eclodiu na chamada quarta fitna, guerra entre diferentes facções abássidas que se estendeu de 811 a 819, com prolongamentos regionais até 830, e que foi, entre outras coisas, uma tentativa dos partidos árabes e persas de definirem quem haveria de impor seus interesses e autoridade sobre o califado.

No terceiro capítulo (pp. 31-50), Nawas considera os diferentes discursos a respeito do papel do califa (abássida) que circulavam durante a quarta fitna e pouco depois, sistemas de ideias com os quais al-Ma’mūn foi forçado a dialogar em diferentes níveis para estabelecer sua própria autoridade como chefe (ao menos nominal) do mundo muçulmano. Esses discursos eram principalmente três: o da escola mu’tazilita, protocontratualista, que sustentava que a autoridade dos califas devia-se antes do mais a uma livre delegação do poder feita por seus súditos; o dos álidas, que sustentavam que o califa deveria ser um descendente em linha direta de Muḥammad; e o dos xiitas, que argumentavam que o verdadeiro governante da Ummah não era qualquer califa, mas o imān, o líder espiritual da comunidade, descendente direto do Profeta do Islã e capaz de dar aos fiéis a interpretação autorizada tanto do Corão quanto das aḥādīt, que infalivelmente estaria capacitado a separar entre verdadeiras e falsas.

Como mais ou menos evidente nesta recapitulação sumária, as ideias dos álidas e dos xiitas eram largamente coincidentes e, a princípio, idênticas; no correr dos séculos VIII e IX, entretanto, elas foram se partindo em corpos conceituais distintos, ainda que comunicantes e geneticamente vinculados. Surgiram então facções álidas que apoiavam as pretensões ao califado dos descentes de outros parentes de Muḥammad que não os da linhagem de ‘Ali e Fátima – como era o caso dos próprios abássidas, que inicialmente fundaram sua autoridade no fato de serem descendentes de Al- ‘Abbas ibn ‘Abd al-Muttalib, um dos mais jovens tios paternos do Profeta do Islã; ao passo que não poucos dos que seguiam defendendo a legitimidade unicamente do governo de ‘Ali e seus descendentes diretos, com a implacável perseguição destes, tanto pelos omíadas quanto pelos abássidas, acabou se refugiando em uma espécie de quietismo que postergava para um tempo escatológico, o do retorno de Muḥammad ibn Hasan al-Mahdī, o Imān Oculto, o restabelecimento do governo legítimo sobre a Ummah. Para constituir sua própria teoria do poder, al-Maʾmūn e seus ideólogos inicialmente dialogaram de modo dinâmico e complexo com essas três tendências, incluindo os xiitas – por exemplo, ao reivindicar uma autoridade espiritual próxima do imamato para este governante. Por fim, em 827, a teoria mu’tazilita do poder foi adotada na corte de al-Maʾmūn como oficial e ortodoxa. Isso, contudo, longe de atenuar os conflitos entre os califas e seus ideólogos e os mu’tazilitas, acabou por intensificá-los, pois não eram poucos os juristas e teólogos dessa escola que consideravam al-Maʾmūn em particular – pela forma como tomou o poder através da deposição e assassinato de seu irmão, Muḥammad al-Amīn ibn Harūn al-Rashīd –, ou os abássidas no geral – pelo modo como tomaram o poder aos omíadas pela violência –, como usurpadores que não detinham uma procuração legítima da parte dos fiéis para exercer sobre eles o poder absoluto. Além disso, os mu’tazilitas sustentavam que a autoridade religiosa encontrava-se inteiramente concentrada no Corão, que devia ser analisado de acordo com a razão, concebida segundo as categorias da filosofia greco-romana clássica, principalmente a lógica aristotélica; negavam, portanto, uma autoridade de princípio ao califa, qualquer que fosse, em matéria teológica.

No quarto capítulo (pp. 51-76), Nawas apresenta sua hipótese central, ou seja, de que a mina deve ser pensada não como uma intervenção caprichosa de al-Ma’mūn e seus imediatos sucessores em uma questiúncula teológica, mas como instrumento de uma teoria da prática, ou seja, como um dos meios, talvez o principal, pelo qual esses governantes pretenderam criar um discurso de legitimação do poder califal que sintetizasse as hipóteses a este respeito então mais populares no mundo islâmico, ao mesmo tempo em que se autorizavam, por motivo de zelo religioso, a agir direta e duramente contra seus opositores mais estridentes – tanto álidas e xiitas que sustentavam o caráter incriado do Corão e vinculavam isso às suas definições a respeito do poder dos califas, que supostamente lhes seria concedido não pela vontade dos homens, mas por um direito de nascimento determinado por uma procuração eterna da parte de Alá; quanto mu’tazilitas que veementemente negavam aos califas quaisquer funções no estabelecimento da ortodoxia islâmica. Para sustentar essa linha de argumentação, Nawas faz um levantamento dos autores modernos que a esboçaram, procurando ler os documentos que utilizaram para essa formulação – principalmente as cartas de al-Maʾmūn e al-Mu’taṣim aos cádis e emires a respeito da mina – dentro de seu contexto histórico particular, reconstituído através das narrativas dos cronistas árabes e não-árabes do período. O autor ainda considera o extraordinário timing da mina no esforço de estabelecer uma legitimação dos abássidas e os procedimentos pelos quais diferentes indivíduos tiveram suas crenças, e sua lealdade ao califa, devidamente testados. Ressalta-se ainda o valor estratégico da doutrina referente ao caráter criado ou incriado do Corão no espectro políticoteológico da época; para dimensioná-lo, pode-se ressaltar um exemplo citado por Nawas. Ora, alguns eventos históricos, como a Batalha de Badr (624) são citados no Corão; reconhecer que este Livro é incriado significa aderir à opinião de que a eclosão e desdobramento desse combate estavam predeterminados desde sempre, enquanto reconhecer que o Livro foi criado, em uma interação entre o conteúdo eterno da Revelação dada a Muḥammad e o contexto particular no qual esse se encontrava, significa corroborar que o resultado em Badr, antes do mais, deveu-se aos méritos e esforços das pessoas que aí se encontravam. Em suma, o debate de fundo era também entre predestinação e livre-arbítrio, e seu corolário político eram então evidentes; de fato, em 836, al-Ma’mūn fez com que se execrassem publicamente os nomes de todos os monarcas omíadas e seus apoiadores, a começar por Muʿāwiyah ibn Abī Sufyān (661-680), o primeiro dos califas dessa dinastia; como poderia, entretanto, não ter incorrido al-Maʾmūn em blasfêmia ao fazê-lo caso, mesmo tomando a ascensão dos omíadas como uma usurpação e uma injustiça do ponto de vista estritamente político, se viesse a considerá-la como pré-determinada por Alá desde infinitamente antes da criação do mundo? Depois de uma breve conclusão (pp. 77-82), na qual Nawas retoma e reitera os principais elementos que o levaram a pensar na mina como vetor de constituição da autoridade de al-Maʾmūn, são apresentados uma série de úteis apêndices, como uma listagem em ordem cronológica da documentação de época consultada (pp. 83-94), uma súmula das questões impostas aos interrogados pelos homens desse califa (pp.95-106), e uma linha do tempo com a indicação dos principais eventos que interferiram de alguma forma no governo de al-Maʾmūn (pp. 107-108). Segue a apresentação da bibliografia utilizada (pp. 109-124) e um índice onomástico, conceitual e topográfico do volume (pp. 125-130). Por fim (pp. 131-209), é reproduzido o texto Amed ibn anbal and the miḥna: a biography of the imān including and account of the Mohammedan Inquisition called the Miḥna, publicado em 1897 pelo orientalista Walter Meville Patton (1863-1928), professor do Colégio Teológico Wesleyano de Montreal, Canadá. Ibn Ḥanbal (780-855), venerado por muitos muçulmanos sunitas como Imān Amad, foi um dos teólogos, juristas e compiladores de aḥādīt que padeceu nas mãos dos agentes da mina por se recusar a obedecer aos mandatos de al-Ma’mūn, al-Mu’taṣim e al-Wāthiq em matéria doutrinária. Reconhecido como um dos confessores do tradicionalismo islâmico diante das intervenções dos califas abássidas, a Ibn Ḥanbal também se atrelou a fama de ser um dos amigos de Deus, ou seja, um dos muitos santos da tradição islâmica.

Esse texto de Patton tem um duplo mérito ao estudioso contemporâneo da mina: reunir e apresentar uma primeira tradução comentada ao inglês de praticamente todos os relatos dos cronistas árabes a respeito, e oferecer uma entrada para o entendimento tradicional dos comentadores ocidentais desse episódio da história islâmica.

O livro do Prof. Nawas é bem escrito, rico em informações e bons insights e fundado em uma pesquisa erudita irrepreensível. Ao mesmo tempo em que faz uma leitura cuidadosa das fontes islâmicas, não hesita em recuperar as opiniões dos especialistas ocidentais a respeito delas, estabelecendo um diálogo não só crítico, mas criativo com toda uma rica tradição intelectual que infelizmente passou a ser vedada em muitos meios, condenada como desprezível sem sequer ter sido analisada em seus muitos méritos, depois da publicação, em 1978, do Orientalismo de Edward W. Said (1935-2003). Os especialistas na história e nas discussões religiosas do Islã decerto farão um proveito mais imediato da leitura de Al-Maʾmūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority, mas qualquer interessado minimamente atento será capaz de ter um bom entendimento do livro. O maior mérito do volume reside no fato de ser uma contribuição fundamental no sentido de compreender o Islã como um movimento histórico, não só no acessório, mas em seu próprio conteúdo estritamente religioso, apesar das recusas obstinadas e cúmplices dos orientalistas e dos fiéis em reconhecer isso. Lendo este trabalho de Nawas, tem-se bem evidenciado que o Islã não foi sempre igual a si mesmo, não sendo em sua eminente historicidade fundamentalmente diverso de qualquer outro movimento religioso, político ou político-religioso conhecido da história da humanidade. Trata-se de uma abordagem importante de ser considerada em um cenário como o nosso, em que os estudos acadêmicos a respeito do Islã ainda são em boa medida empreendidos por seus devotos e por seus críticos. De modo efetivo, todo o debate sobre o caráter divinamente estabelecido ou não da autoridade califal, vinculado de modo intestino à querela sobre a natureza criada ou incriada do Corão, tem na história islâmica, mantidas, é claro, todas as proporções devidas, uma importância que é análoga à que os debates trinitários e cristológicos dos séculos IV e V tiveram na história cristã; ou seja, mostram que não há nada de tão sagrado e constante que esteja completamente intocado pelas variações, interesses, paixões e atritos que compõem a história dos indivíduos e das coletividades.

Nota

2 Para facilitar a leitura, todas as datas constantes no presente textos são apresentadas de acordo com seu equivalente no calendário gregoriano.

3 Estou bem consciente de que o conceito de cesaropapismo é normalmente aplicado pelos historiadores ocidentais, tanto confessionais quanto seculares, para descrever o tipo de ingerência que os imperadores romanos do oriente (bizantinos) tinham ou pretendiam ter sobre a Igreja em seus domínios, e é justamente por isso que o utilizo aqui; afinal, reitero, o tipo de poder obtido ou pretendido por governantes como Justiniano (482-565), Heráclio (575-641) e Leão III Isáurico (675- 741) sobre a vida religiosa de seus súditos foi justamente o que foi negado aos califas abássidas na década de 830. Não se trata essa de uma aproximação arbitrária, na medida em que os abássidas mantiveram com os romanos do oriente relações que não foram nunca só de conflito, mas também de intercâmbio e de imitação, inclusive no plano das ideias políticas e religiosas. Sobre a intrincada evolução histórica do conceito de cesaropapismo, ver por primeiro: TAVEIRA, Celso. O modelo político da autocracia bizantina: fundamentos ideológicos e significado histórico. Tese de Doutorado em História apresentado ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2002, pp. 291-317.

Alfredo Bronzato da Costa Cruz –  Doutorando em História Política pelo PPGH/UERJ (2015- ). Bolsista CAPES (2015- ) e Nota 10/FAPERJ (2017- ). Membro do Núcleo de Estudos de Cristianismos no Oriente do GT de História das Religiões e das Religiosidades da ANPUH-Rio. Membro do Núcleo de Pesquisa Histórica do Instituto Pretos Novos. E-mail: <[email protected]>.

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