Al-Ma’mūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority – NAWAS (S-RH)

NAWAS, John Abdallah. Al-Ma’mūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority. Atlanta: Lockwood Press, 2015. Coleção “Resources in Arabic and Islamic studies”, n. 4. 212 p. ISBN-13: 9781937040550 (impresso) | 9781937040567 (e-book). Resenha de: CRUZ, Alfredo Bronzato da Costa. Religião e historicidade: a batalha pela ortodoxia islâmica no Califado Abássida SÆCULUM– Revista de História, João Pessoa, [38] jan./ jun. 2018.

Pode não ser muito evidente no ambiente acadêmico brasileiro, às vezes ensimesmado em questões muito particulares, mas o campo dos estudos sobre o Islã tem crescido de forma vertiginosa nas universidades europeias e norte-americanas desde o fim da Guerra Fria, vinculado a fatores geopolíticos claros, que determinam de modo mais ou menos indireto as tendências intelectuais e a distribuição dos recursos destinados à pesquisa. De fato, desde o fim da década de 1980, tem-se experimentado uma expansão da investigação ocidental sobre o Islã comparável em magnitude unicamente à que teve lugar cem anos antes disso, em paralelo com a expansão imperialista sobre os continentes africano e asiático, ou seja, também sobre as terras tradicionais da presença e hegemonia muçulmana. As analogias possíveis entre os dois momentos não são apenas formais, mas também discerníveis em certos elementos de conteúdo significativos. Apesar dos excelentes estudos sobre a história do Islã e do ecúmeno muçulmano atualmente disponíveis, ainda é parte do senso comum acadêmico a noção não só de que o movimento dos seguidores de Muḥammad é essencialmente igual a si mesmo desde o século VII até a contemporaneidade, mas de que ele surgiu na história consistente e beligerante, tal como Palas Atena saltando adulta e inteiramente armada da cabeça de Zeus.2 No suporte a esta ideia, vaga, mas poderosa, estão, de um lado, os orientalistas e neoorientalistas, que se arrogam o direito de falar aos ocidentais sobre o ser do Islã, projetando na história das coletividades uma ontologia tão estática quanto politicamente enviesada. Do outro, elemento novo, encontram-se os intelectuais muçulmanos ou filo-muçulmanos instalados nas universidades ocidentais, pesquisadores que em realidade pouco fazem além de transcrever em discurso acadêmico, de maneira muito pouco crítica, a narrativa dos próprios devotos a respeito do surgimento e desenvolvimento do Islã. Sob o emaranhado de enunciados que constitui a disputa pela fala legítima a respeito das questões pertinentes à história e religiosidade islâmicas, portanto, há certa concordância tácita sobre o que caracterizaria esse movimento político-religioso em sua essência; questões que são produto de processos sociais e conjunturas históricas bastante particulares são, dessa forma, cristalizados como se não mais do que realizações no tempo e no espaço de uma natureza do Islã. O principal problema desse tipo de abordagem, contudo, é que ele distorce em diferentes níveis a compreensão que se pode ter a respeito do passado islâmico, submetendo-o a juízos fundados precisamente na desconsideração da historicidade de todos os atos e ideias dos seres humanos.

Mencione-se um exemplo significativo, ou seja, o da mina, a dita inquisição islâmica. O vocábulo árabe ة􀑧􀑧 محن pode ser literalmente traduzido como julgamento ou como prova, no sentido de teste; foi tradicionalmente usado tanto pelos historiadores muçulmanos, medievais e modernos, como pelos especialistas ocidentais para designar o período de perseguição religiosa iniciado durante o governo do califa abássida al-Ma’mūn (813-833) e continuado sob seus dois sucessores, al-Mu’taṣim (833-842) e al-Wāthiq (842-847). Durante a mina, uma série de oficiais do governo, teólogos, juristas, cronistas, compiladores de aḥādīt, sábios e santos muçulmanos foram submetidos à prisão, aos castigos físicos e, eventualmente, à execução, por se recusarem a subscrever a doutrina, então sustentada pelos abássidas, de que o Corão havia sido criado por Alá e que, portanto, sendo acessível à inteligência em sua plenitude, poderia ser submetido a escrutínio racional. A confissão alternativa a essa, por outra parte, sustentava que o Corão era anterior a toda a criação, subsistindo desde sempre em Alá como arquétipo do Texto que foi, em determinado momento histórico, efetivamente revelado a Muḥammad. Essa divergência explodiu em conflito aberto quando, alguns meses antes de seu falecimento, al-Maʾmūn determinou que os especialistas religiosos de sua corte denunciassem como falsos todos os aḥādīt em que se guardavam tradições a respeito do caráter supostamente incriado do Corão; a recusa de alguns em fazê-lo desencadeou reações violentas da parte do soberano, assim como um exaltado sentimento popular a favor dos perseguidos. No califado de al- Mu’taṣim, a mina foi institucionalizada tanto em verificações regulares que eram feitas aos cortesãos e demais oficiais do governo quanto à sua opinião a respeito do caráter criado ou incriado do Corão, quanto em tribunais inquisitoriais estabelecidos em al-Fustât, Kūfa, Bagdá, Basra, Damasco, Meca e Medina, cortes cuja autoridade foi estendida a todos os funcionários, militares, magistrados, eruditos e líderes comunitários dessas cidades nevrálgicas do ecúmeno islâmico. Sob al-Wāthiq, a perseguição perdeu força e acabou por se extinguir. O complexo período que se seguiu, marcado por uma crescente ascendência dos ghilmān (escravos-soldados) turcos sobre todos os negócios do califado, fez com que essa discussão teológica fosse esvaziada e desmontado o aparato institucional que os abássidas construíram durante a década de 830 para lidar com ela. O califa al-Mutawakkil, por fim, reconheceu abertamente o fracasso da mina determinada por seus antecessores e estabeleceu que seus súditos seriam livres para decidir por si mesmos se acreditariam no caráter criado ou incriado do Corão.

Não raro a mina foi pensada pelos analistas ocidentais como mais uma das expressões da essência intolerante do Islã. Definido o caráter intolerante de uma religião, entretanto, efetivamente é possível encontrar provas desse por toda parte.

Poucas vezes se considerou a sério, de outra parte, que a perseguição e a resistência a ela foram assuntos que se deram entre homens que se consideravam todos muçulmanos fiéis. Todo o episódio mostrou com clareza os limites do poder dos califas em matéria do estabelecimento da ortodoxia islâmica; daí em diante ficou claro que os soberanos do império islâmico, que já então havia iniciado seu processo de desagregação político-territorial, haveriam de negociar cuidadosamente, a cada pronunciado estritamente religioso que se arvorassem a fazer, com a intelligentsia constituída pelos diferentes tipos de sábios e santos muçulmanos. O lugar da fala doutrinária legítima não era mais, de modo necessário, a corte califal, mas as madraças, as academias de jurisprudência, de belas letras e de teologia que eram os loci em que se elaboravam a autoconsciência daquilo que emergia então como a vertente sunita do Islã. Ao contrário do que muitos analistas menos informados continuam a sustentar, de fato, o sunismo não é idêntico ponto a ponto à ideologia não-álida ou anti-álida que se desenvolveu sob os omíadas e os abássidas; não é uma confissão por rejeição, mas uma identidade islâmica que se desenvolveu na história, tanto ao redor de uma oposição quietista aos próprios califas majoritariamente reconhecidos como legítimos, quando de uma crescente veneração aos ditos e feitos atribuídos a Muḥammad e seus Companheiros, tomados como interpretações e performances autorizadas da Revelação divina consignada no Corão. A junção entre religião e política que muitos sustentam necessária e mesmo natural na história islâmica foi agudamente colocada em questão durante todo o episódio da mina – inclusive, talvez principalmente, em seu encerramento. Aos califas abássidas foi então negado o direito de uma intervenção cesaropapista na teologia islâmica; e ainda que não se tenha esvaziado o seu papel estritamente religioso de chefe dos crentes e lugartenente de Deus à frente da Ummah, a comunidade dos muçulmanos, esboçou-se um conflito entre poder espiritual e poder secular que nos remete mais a certos episódios da história das sociedades cristãs de matriz euro-americana do que às ideias cristalizadas que temos a respeito do que foram e são as sociedades aderentes ao Islã, nas quais a vida política parece a não poucos ser indissociável da vida religiosa, ou vice-versa.3 Isto tudo considerado, a mina apresenta-se como um episódio muito bom para pensar o Islã na história, ou seja, para se refletir sobre os processos sociais, bem localizados no tempo e no espaço, pelos quais os muçulmanos – que a princípio não dispõem de uma estrutura análoga à da hierarquia eclesiástica do cristianismo – produziram a ortodoxia e a dissidência religiosa a partir das quais se definem enquanto muçulmanos. De fato, ela não é facilmente interpretável caso se considere o Islã como um movimento sempre igual a si mesmo; trata-se, portanto, de uma brecha, uma rasgadura que permite que consideremos com mais vagar a dialética entre o desejo de permanência e o advento de mudanças que está presente em toda e qualquer instituição ou complexo de ideias. Da mesma forma, não ajuda muito a analogia, comum nos autores ocidentais do século XIX e da primeira metade do século XX, entre a mina e as inquisições católica ou protestante dos séculos XV a XVIII. Em todos esses sentidos, para compreender este episódio em sua importância capital, ajuda-nos o livro aqui referido, de autoria de John Abdallah Nawas (n.1960), versão revista e expandida de sua tese de doutorado, Al-Maʾmūn: mina and Caliphate, defendida em 1993 na Universidade Católica de Nimegue (mais tarde renomeada como Universidade Radboud de Nimegue). Nawas é agora professor de Estudos Árabes e Islâmicos do Departamento de Estudos do Oriente Próximo da Universidade de Louvaina, na Bélgica, e diretor da Escola Europeia de Estudos Abássidas, com sede na mesma instituição. Nos quase vinte e cinco anos que se seguiram ao seu doutoramento, a tese de Nawas tornou-se uma referência para os estudos que de alguma forma se referem à mina, tanto pela clareza de sua argumentação, quanto por seu extraordinário domínio das fontes de época e da bibliografia pertinente à sua análise. Em 2014, o autor publicou um número da série Oxford Bibliographies Online com um extenso levantamento comentado dos trabalhos até então disponíveis sobre a mina, a maior parte estudos orientalistas em inglês e textos de autores árabes. Com base nessa pesquisa, Nawas atualizou as referências de sua tese, ainda que não tenha incorrido em mudança significativa em seu argumento. O volume assim revisado e expandido foi publicado no ano seguinte em versão impressa e online pela Lockwood Press, de Atlanta, EUA, tornando assim mais acessível um estudo fundamental aos interessados em questões de história sociopolítica, intelectual e religiosa do Islã medieval.

No primeiro capítulo de Al-Maʾmūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority (pp. 1-20), Nawas situa seu estudo ao apresentar os marcos cronológico e geográfico deste, juntamente com uma investigação preliminar do que já foi escrito a respeito das motivações dos abássidas para estabelecerem e suspenderam a mina. Aí também são elencados os documentos de época que o autor consultou a respeito, procurando situá-los como peças de combate dentro daquelas que se constituíam como as oposições fundamentais que tensionavam e davam forma ao debate político-religioso islâmico ao tempo de al-Maʾmūn, seus imediatos antecessores e sucessores – ou seja, as disputas entre o califa e seus cortesãos e os ulemás e seus alunos, entre os álidas, os xiitas e os conformistas que estavam em vias de se constituírem religiosamente como sunitas (mas colocando em questão, nesse processo, seu próprio conformismo político), e entre os que defendiam o caráter criado e os que sustentavam a preexistência e eternidade do Corão. No segundo capítulo (pp. 21-30), reconstitui-se a trajetória de al-Maʾmūn, tratando-se principalmente de sua controversa nomeação e do conflito que se seguiu a essa, uma disputa familiar e cortesã que eclodiu na chamada quarta fitna, guerra entre diferentes facções abássidas que se estendeu de 811 a 819, com prolongamentos regionais até 830, e que foi, entre outras coisas, uma tentativa dos partidos árabes e persas de definirem quem haveria de impor seus interesses e autoridade sobre o califado.

No terceiro capítulo (pp. 31-50), Nawas considera os diferentes discursos a respeito do papel do califa (abássida) que circulavam durante a quarta fitna e pouco depois, sistemas de ideias com os quais al-Ma’mūn foi forçado a dialogar em diferentes níveis para estabelecer sua própria autoridade como chefe (ao menos nominal) do mundo muçulmano. Esses discursos eram principalmente três: o da escola mu’tazilita, protocontratualista, que sustentava que a autoridade dos califas devia-se antes do mais a uma livre delegação do poder feita por seus súditos; o dos álidas, que sustentavam que o califa deveria ser um descendente em linha direta de Muḥammad; e o dos xiitas, que argumentavam que o verdadeiro governante da Ummah não era qualquer califa, mas o imān, o líder espiritual da comunidade, descendente direto do Profeta do Islã e capaz de dar aos fiéis a interpretação autorizada tanto do Corão quanto das aḥādīt, que infalivelmente estaria capacitado a separar entre verdadeiras e falsas.

Como mais ou menos evidente nesta recapitulação sumária, as ideias dos álidas e dos xiitas eram largamente coincidentes e, a princípio, idênticas; no correr dos séculos VIII e IX, entretanto, elas foram se partindo em corpos conceituais distintos, ainda que comunicantes e geneticamente vinculados. Surgiram então facções álidas que apoiavam as pretensões ao califado dos descentes de outros parentes de Muḥammad que não os da linhagem de ‘Ali e Fátima – como era o caso dos próprios abássidas, que inicialmente fundaram sua autoridade no fato de serem descendentes de Al- ‘Abbas ibn ‘Abd al-Muttalib, um dos mais jovens tios paternos do Profeta do Islã; ao passo que não poucos dos que seguiam defendendo a legitimidade unicamente do governo de ‘Ali e seus descendentes diretos, com a implacável perseguição destes, tanto pelos omíadas quanto pelos abássidas, acabou se refugiando em uma espécie de quietismo que postergava para um tempo escatológico, o do retorno de Muḥammad ibn Hasan al-Mahdī, o Imān Oculto, o restabelecimento do governo legítimo sobre a Ummah. Para constituir sua própria teoria do poder, al-Maʾmūn e seus ideólogos inicialmente dialogaram de modo dinâmico e complexo com essas três tendências, incluindo os xiitas – por exemplo, ao reivindicar uma autoridade espiritual próxima do imamato para este governante. Por fim, em 827, a teoria mu’tazilita do poder foi adotada na corte de al-Maʾmūn como oficial e ortodoxa. Isso, contudo, longe de atenuar os conflitos entre os califas e seus ideólogos e os mu’tazilitas, acabou por intensificá-los, pois não eram poucos os juristas e teólogos dessa escola que consideravam al-Maʾmūn em particular – pela forma como tomou o poder através da deposição e assassinato de seu irmão, Muḥammad al-Amīn ibn Harūn al-Rashīd –, ou os abássidas no geral – pelo modo como tomaram o poder aos omíadas pela violência –, como usurpadores que não detinham uma procuração legítima da parte dos fiéis para exercer sobre eles o poder absoluto. Além disso, os mu’tazilitas sustentavam que a autoridade religiosa encontrava-se inteiramente concentrada no Corão, que devia ser analisado de acordo com a razão, concebida segundo as categorias da filosofia greco-romana clássica, principalmente a lógica aristotélica; negavam, portanto, uma autoridade de princípio ao califa, qualquer que fosse, em matéria teológica.

No quarto capítulo (pp. 51-76), Nawas apresenta sua hipótese central, ou seja, de que a mina deve ser pensada não como uma intervenção caprichosa de al-Ma’mūn e seus imediatos sucessores em uma questiúncula teológica, mas como instrumento de uma teoria da prática, ou seja, como um dos meios, talvez o principal, pelo qual esses governantes pretenderam criar um discurso de legitimação do poder califal que sintetizasse as hipóteses a este respeito então mais populares no mundo islâmico, ao mesmo tempo em que se autorizavam, por motivo de zelo religioso, a agir direta e duramente contra seus opositores mais estridentes – tanto álidas e xiitas que sustentavam o caráter incriado do Corão e vinculavam isso às suas definições a respeito do poder dos califas, que supostamente lhes seria concedido não pela vontade dos homens, mas por um direito de nascimento determinado por uma procuração eterna da parte de Alá; quanto mu’tazilitas que veementemente negavam aos califas quaisquer funções no estabelecimento da ortodoxia islâmica. Para sustentar essa linha de argumentação, Nawas faz um levantamento dos autores modernos que a esboçaram, procurando ler os documentos que utilizaram para essa formulação – principalmente as cartas de al-Maʾmūn e al-Mu’taṣim aos cádis e emires a respeito da mina – dentro de seu contexto histórico particular, reconstituído através das narrativas dos cronistas árabes e não-árabes do período. O autor ainda considera o extraordinário timing da mina no esforço de estabelecer uma legitimação dos abássidas e os procedimentos pelos quais diferentes indivíduos tiveram suas crenças, e sua lealdade ao califa, devidamente testados. Ressalta-se ainda o valor estratégico da doutrina referente ao caráter criado ou incriado do Corão no espectro políticoteológico da época; para dimensioná-lo, pode-se ressaltar um exemplo citado por Nawas. Ora, alguns eventos históricos, como a Batalha de Badr (624) são citados no Corão; reconhecer que este Livro é incriado significa aderir à opinião de que a eclosão e desdobramento desse combate estavam predeterminados desde sempre, enquanto reconhecer que o Livro foi criado, em uma interação entre o conteúdo eterno da Revelação dada a Muḥammad e o contexto particular no qual esse se encontrava, significa corroborar que o resultado em Badr, antes do mais, deveu-se aos méritos e esforços das pessoas que aí se encontravam. Em suma, o debate de fundo era também entre predestinação e livre-arbítrio, e seu corolário político eram então evidentes; de fato, em 836, al-Ma’mūn fez com que se execrassem publicamente os nomes de todos os monarcas omíadas e seus apoiadores, a começar por Muʿāwiyah ibn Abī Sufyān (661-680), o primeiro dos califas dessa dinastia; como poderia, entretanto, não ter incorrido al-Maʾmūn em blasfêmia ao fazê-lo caso, mesmo tomando a ascensão dos omíadas como uma usurpação e uma injustiça do ponto de vista estritamente político, se viesse a considerá-la como pré-determinada por Alá desde infinitamente antes da criação do mundo? Depois de uma breve conclusão (pp. 77-82), na qual Nawas retoma e reitera os principais elementos que o levaram a pensar na mina como vetor de constituição da autoridade de al-Maʾmūn, são apresentados uma série de úteis apêndices, como uma listagem em ordem cronológica da documentação de época consultada (pp. 83-94), uma súmula das questões impostas aos interrogados pelos homens desse califa (pp.95-106), e uma linha do tempo com a indicação dos principais eventos que interferiram de alguma forma no governo de al-Maʾmūn (pp. 107-108). Segue a apresentação da bibliografia utilizada (pp. 109-124) e um índice onomástico, conceitual e topográfico do volume (pp. 125-130). Por fim (pp. 131-209), é reproduzido o texto Amed ibn anbal and the miḥna: a biography of the imān including and account of the Mohammedan Inquisition called the Miḥna, publicado em 1897 pelo orientalista Walter Meville Patton (1863-1928), professor do Colégio Teológico Wesleyano de Montreal, Canadá. Ibn Ḥanbal (780-855), venerado por muitos muçulmanos sunitas como Imān Amad, foi um dos teólogos, juristas e compiladores de aḥādīt que padeceu nas mãos dos agentes da mina por se recusar a obedecer aos mandatos de al-Ma’mūn, al-Mu’taṣim e al-Wāthiq em matéria doutrinária. Reconhecido como um dos confessores do tradicionalismo islâmico diante das intervenções dos califas abássidas, a Ibn Ḥanbal também se atrelou a fama de ser um dos amigos de Deus, ou seja, um dos muitos santos da tradição islâmica.

Esse texto de Patton tem um duplo mérito ao estudioso contemporâneo da mina: reunir e apresentar uma primeira tradução comentada ao inglês de praticamente todos os relatos dos cronistas árabes a respeito, e oferecer uma entrada para o entendimento tradicional dos comentadores ocidentais desse episódio da história islâmica.

O livro do Prof. Nawas é bem escrito, rico em informações e bons insights e fundado em uma pesquisa erudita irrepreensível. Ao mesmo tempo em que faz uma leitura cuidadosa das fontes islâmicas, não hesita em recuperar as opiniões dos especialistas ocidentais a respeito delas, estabelecendo um diálogo não só crítico, mas criativo com toda uma rica tradição intelectual que infelizmente passou a ser vedada em muitos meios, condenada como desprezível sem sequer ter sido analisada em seus muitos méritos, depois da publicação, em 1978, do Orientalismo de Edward W. Said (1935-2003). Os especialistas na história e nas discussões religiosas do Islã decerto farão um proveito mais imediato da leitura de Al-Maʾmūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority, mas qualquer interessado minimamente atento será capaz de ter um bom entendimento do livro. O maior mérito do volume reside no fato de ser uma contribuição fundamental no sentido de compreender o Islã como um movimento histórico, não só no acessório, mas em seu próprio conteúdo estritamente religioso, apesar das recusas obstinadas e cúmplices dos orientalistas e dos fiéis em reconhecer isso. Lendo este trabalho de Nawas, tem-se bem evidenciado que o Islã não foi sempre igual a si mesmo, não sendo em sua eminente historicidade fundamentalmente diverso de qualquer outro movimento religioso, político ou político-religioso conhecido da história da humanidade. Trata-se de uma abordagem importante de ser considerada em um cenário como o nosso, em que os estudos acadêmicos a respeito do Islã ainda são em boa medida empreendidos por seus devotos e por seus críticos. De modo efetivo, todo o debate sobre o caráter divinamente estabelecido ou não da autoridade califal, vinculado de modo intestino à querela sobre a natureza criada ou incriada do Corão, tem na história islâmica, mantidas, é claro, todas as proporções devidas, uma importância que é análoga à que os debates trinitários e cristológicos dos séculos IV e V tiveram na história cristã; ou seja, mostram que não há nada de tão sagrado e constante que esteja completamente intocado pelas variações, interesses, paixões e atritos que compõem a história dos indivíduos e das coletividades.

Nota

2 Para facilitar a leitura, todas as datas constantes no presente textos são apresentadas de acordo com seu equivalente no calendário gregoriano.

3 Estou bem consciente de que o conceito de cesaropapismo é normalmente aplicado pelos historiadores ocidentais, tanto confessionais quanto seculares, para descrever o tipo de ingerência que os imperadores romanos do oriente (bizantinos) tinham ou pretendiam ter sobre a Igreja em seus domínios, e é justamente por isso que o utilizo aqui; afinal, reitero, o tipo de poder obtido ou pretendido por governantes como Justiniano (482-565), Heráclio (575-641) e Leão III Isáurico (675- 741) sobre a vida religiosa de seus súditos foi justamente o que foi negado aos califas abássidas na década de 830. Não se trata essa de uma aproximação arbitrária, na medida em que os abássidas mantiveram com os romanos do oriente relações que não foram nunca só de conflito, mas também de intercâmbio e de imitação, inclusive no plano das ideias políticas e religiosas. Sobre a intrincada evolução histórica do conceito de cesaropapismo, ver por primeiro: TAVEIRA, Celso. O modelo político da autocracia bizantina: fundamentos ideológicos e significado histórico. Tese de Doutorado em História apresentado ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2002, pp. 291-317.

Alfredo Bronzato da Costa Cruz –  Doutorando em História Política pelo PPGH/UERJ (2015- ). Bolsista CAPES (2015- ) e Nota 10/FAPERJ (2017- ). Membro do Núcleo de Estudos de Cristianismos no Oriente do GT de História das Religiões e das Religiosidades da ANPUH-Rio. Membro do Núcleo de Pesquisa Histórica do Instituto Pretos Novos. E-mail: <[email protected]>.

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When christians first met muslims: a sourcebook of the earliest syriac writings on Islam | Philip Michael Penn

Ao contrário do que sugeriram alguns analistas em momento anterior, a religião não desapareceu do horizonte nestas primeiras décadas do século XXI. Ao contrário, o revival da militância religiosa, que não cessa de se fazer presente de diversas formas nos projetos e preocupações contemporâneas, constitui-se em um importante desafio às análises sobre as crises contemporâneas que nos afligem. Esses fenômenos de efervescência religiosa de amplas consequências sociopolíticas e culturais, contudo, não são desconhecidos dos historiadores. Talvez um dos mais importantes deles tenha sido o que se alastrou pelo Oriente Médio do primeira metade do século VII, onde se verificou o embate entre o cristianismo bizantino e o zoroastrianismo sassânida, o recrudescimento das disputas cristológicas que já dividiam as comunidades cristãs há duzentos anos, e o surgimento do Islã, que se apresentou ao mundo a um só tempo como religião e como projeto imperial. O espetacular ressurgimento do islamismo político em nossos noticiários faz com que olhemos para esses eventos de modo assustadiço e anacrônico, como se sementes ou prefigurações. As realidades que nos são apresentadas pela documentação de época, porém, são bastante mais complexas.

Infelizmente, nosso olhar para esta realidade ainda é míope. De acordo com o Anonymi auctoris Chronicon ad annum Christi 1234 pertinens, importante texto siríaco medieval, em 636, depois de vencer os persas e assistir às primeiras vitórias árabes a expensas de seus domínios, o imperador bizantino Heráclio abandonou Antioquia aos apetites de seus soldados e à iminente conquista muçulmana. A partir deste ponto, o Império Romano do Oriente perderia suas possessões no Oriente Médio e na África, passando geralmente a um combate defensivo contra o jovem Califado. Trata-se, no entanto, de uma virada não só na história da região e da humanidade, mas igualmente da historiografia. A maior parte dos historiadores interessados na história do cristianismo, ao se deparar com a década de 630, faz o mesmo que Heráclio e diz “Sozou, Síria!” O mais comum é que, em suas reconstituições e análises, o cristianismo médio-oriental, que durante séculos constituiu o coração pulsante do ecúmeno cristão, desapareça subitamente a partir daí; seus objetos de reflexão passam a ser, preferencialmente, os documentos e questões dos cristianismos latino e (em proporção muito menor) bizantino. Por outro lado, em uma pragmática divisão do trabalho intelectual, historiadores interessados na ascensão do Islã e na formação do ecúmeno muçulmano fazem o caminho inverso e se dedicam ao estudo intensivo dos textos em árabe e em persa referentes a tais fenômenos. Ambas as abordagens sobre esse período de crise, contudo, são problemáticas e, como se afirmou antes, míopes. Se não mais, porque ignoram as condições e perspectivas da maior parte da população então submetida ao domínio islâmico: cristãos não bizantinos e não latinos, que permaneceram por séculos sob o domínio do Califado sem passarem de modo necessário pelo processo de islamização.

Os membros das antigas Igrejas apostólicas do Oriente, que compunham talvez três quartos do número total de cristãos da segunda metade do primeiro milênio da Era Comum, assim marginalizados pela historiografia, o são por razões diversas. Duas são particularmente notáveis: o fato de serem sistematicamente ignorados – quando não deliberadamente silenciados – pelos historiadores da Igreja de matriz latina (católicos ou protestantes) e bizantina (gregos, russos, entre outros) como heterodoxos, cismáticos e, por consequência, supostamente menores; e, a dificuldade de acesso aos documentos por eles produzidos, em função de barreiras linguísticas e editoriais. Tal cenário é bastante trágico ao se considerar de uma só vista o crescente interesse pela história do Islã inicial e a precariedade ainda vigente dos estudos referentes aos textos escritos no âmbito das Igrejas de matriz siríaca. Ora, os escritos produzidos por cristãos sírios nos séculos VII a IX são simplesmente fundamentais para se reconstituir o processo de estabelecimento do Islã no centro daquelas partes que hoje conhecemos como sendo o mundo muçulmano. É certo que os especialistas em história islâmica dispõem de centenas de milhares de páginas de documentos de época, escritos em árabe e em persa, referentes à vida de Muhammad, ao governo dos primeiros califas e da dinastia omíada, mas a maior parte delas remonta efetivamente ao período posterior à ascensão dos abássidas, em 750, quando houve um grande investimento da parte dos novos donos do poder para sistematizar o que se conhecia sobre o passado do Califado como uma forma de corroborar suas reivindicações do exercício de uma autoridade, não apenas de fato, mas legítima. Não é fácil separar, no âmbito deste amplo acervo documental, o material realmente antigo das interpolações posteriores. Uma exceção evidente a este quadro é, sem dúvida, o Corão, mas se deve recordar que ainda há uma enorme resistência da parte de muitos pesquisadores (e não apenas entre os que são muçulmanos devotos) em submetê-lo a uma exegese histórico-crítica conveniente. Lidar com os textos siríacos da segunda metade do século VII à primeira metade do século VIII que mencionam o Islã não é, portanto, apenas se deparar com mais uma das visões cristãs sobre o movimento dos seguidores de Muhammad, mas com uma perspectiva particularmente esclarecedora para a própria história islâmica. E isso: 1) Porque se tratam de textos, em sua maior parte, contemporâneos das realidades às quais se referem; 2) Porque, ainda que seja verdade que os cristãos siríacos também compreenderam e descreveram o Islã de acordo com suas próprias formações e interesses, contudo, de um modo geral, seus escritos não foram tão profundamente marcados por um viés agressivo quanto os de autores bizantinos e latinos que produziram imediatamente diante da linha de fratura entre os Estados que os abrigavam e o Califado. Vivendo no interior da Dar alIslam, os cristãos siríacos tinham contato cotidiano e um conhecimento direto do que escreviam a respeito do Islã; se a confiabilidade histórica e o índice de distorção ideológica da realidade constante em seus testemunhos é diversa, entretanto, não se deve esquecer que eles se vinculam diretamente a um cenário onde esses cristãos comiam e negociavam com muçulmanos, casavam e trabalhavam com muçulmanos, educavam seus filhos junto com os filhos dos muçulmanos, e serviam como burocratas, soldados e diversos tipos de colaboradores no Estado Islâmico.

É no sentido de ter um primeiro contato com essa literatura que nos ajuda o When christians met muslims, de Michael Philip Penn, professor de Estudos da Religião, especialista em história do cristianismo primitivo, da Universidade de Stanford, em Palo Alto, Califórnia, EUA. Depois de estudar as interações entre rito e identidade nos textos cristãos da Antiguidade Tardia (em Kissing christians: ritual and community in Late Ancient Church, de 2005), Penn dedicou-se a investigar a presença dos cristãos siríacos no jovem mundo islâmico, projeto que rendeu a publicação simultânea, em 2015, de dois livros premiados: Envisioning Islam: syriac christians in the Early Muslim World e When christians met muslims, que é uma coletânea comentada de fontes utilizadas neste estudo. No livro sobre o qual aqui nos detemos, depois de uma breve introdução, Penn apresenta ao leitor vinte e oito escritos produzidos por cristãos siríacos nos quais está de alguma maneira tematizada a sua relação com os muçulmanos. Os textos, provenientes de diferentes nichos confessionais – miafisitas (inapropriadamente conhecidos como jacobitas), dioprosoponitas (inapropriadamente conhecidos como nestorianos), monotelitas e calcedônicos –, são dispostos em ordem cronológica e precedidos por parágrafos introdutórios nos quais se sintetiza o contexto de produção de cada escrito e o histórico de sua transmissão, desde o momento da possível composição até sua redescoberta pelos historiadores contemporâneos. Tratam-se de textos de diferentes estilos e funcionalidades (crônicas, epístolas, apocalipses, hagiografias, cânones sinodais, tratados teológicos e diálogos), dos quais, com a exceção de dois (a Controvérsia de Bēt Ḥalē e a Vida de Teódoto de Amida), omitidos por motivos não esclarecidos, Penn oferece novas versões em inglês. O conjunto é seguido por bons levantamentos bibliográficos, que encaminham eventuais interessados a estudos mais aprofundados a respeito de cada um dos documentos.

É indiscutível que é desejável que um historiador leia os documentos com os quais se propõe a lidar no idioma em que foram originalmente redigidos, assim como é preferível que, tratando-se de escritos que possuem variantes ou uma transmissão problemática, consulte diferentes manuscritos. Isso, entretanto, é virtualmente impossível aos estudantes mais jovens, não apenas os brasileiros, e por diferentes motivos. O mais importante talvez seja o fato de que ninguém se dispõe a investir horas de estudo aprendendo, digamos, o siríaco, se já não possuir um vivo interesse pelo que irá encontrar neste idioma. Nesse sentido, When christians met muslims é um manual importante, que pode despertar o interesse dos pesquisadores em exercício ou em formação para horizontes ainda muito pouco explorados, contribuindo para que, de fato, comecemos a dar passos no sentido de um estudo menos eurocêntrico de nosso passado comum. O livro é igualmente útil aos especialistas por fornecer bons levantamentos bibliográficos, material para exercícios de comparação e subsídio para uso em aulas e outras atividades de divulgação científica. Além disso, pode interessar cientistas da religião e teólogos, que ao pensar o cristianismo tardo-antigo e medieval lidam com contingências e desafios similares aos dos historiadores, assim como interessados em geral no contato entre cristãos e muçulmanos no Oriente Médio, no passado, mas também hoje. De fato, estou certo de que, ao recuperar as diferentes visões dos cristãos siríacos a respeito do Islã recém-surgido, os textos reunidos por Penn não só fornecem elementos para que entendamos melhor o desenvolvimento sociopolítico e cultural posterior da região, mas também nos ajudam no exercício, proposto em um livro de Carlo Guinzburg publicado há poucos anos em português, de “aprender a olhar o presente à distância, como se o víssemos através de uma luneta invertida”.

No caleidoscópio dos textos siríacos rememorados em When christians met muslims é inevitável que nos surja de novo a atualidade, “porém num contexto diferente, inesperado”; assim como não é possível encontrar hoje nem uma existência sempre harmoniosa entre cristãos e muçulmanos, nem um conflito permanente, necessário e inapelável entre essas partes, da mesma forma não se pode surpreender uma coisa ou outra da segunda metade do século VII à primeira metade do século VIII. A convivência entre cristãos e muçulmanos, que a tantos aflige, continua, portanto, como uma questão histórica e política reiteradamente em aberto.

Alfredo Bronzato da Costa Cruz – Doutorando em História Política pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Mestre em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); Bacharel e licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).  E-mail: [email protected]

PENN, Michael Philip. When christians first met muslims: a sourcebook of the earliest syriac writings on Islam. Oakland: University of California Press, 2015. Resenha de: CRUZ, Alfredo Bronzato da Costa. Testemunhos de um mundo partilhado. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 18, p. 277-280, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]

 

Guerras santas: como quatro patriarcas, três rainhas e dois imperadores decidiram em que os cristãos acreditariam pelos próximos mil e quinhentos anos – JENKINS (S-RH)

JENKINS, Philip. Guerras santas: como quatro patriarcas, três rainhas e dois imperadores decidiram em que os cristãos acreditariam pelos próximos mil e quinhentos anos. Tradução de Carlos Szlak. Rio de Janeiro: LeYa, 2013, 352 p. Resenha de: CRUZ, Alfredo Bronzato da Costa. Cinzas que queimam. sÆculum Revista de História, João Pessoa, v.30, jan./jun. 2014.

Philip Jenkins nasceu no País de Gales em 1952 e estudou no Clare College da Universidade de Cambridge, onde se formou como historiador especialista em estudos anglo-saxões, nórdicos e célticos. Ele realizou seu doutorado nesta mesma instituição, sob a orientação de John Plumb, pesquisador da história social das elites políticas inglesas do fim do século XVII e início do século XVIII. No período de 1977 a 1980, Jenkins trabalhou como auxiliar de pesquisa de Leon Radzionowicz, que foi o pioneiro dos estudos de Criminologia em Cambridge. Em 1980, foi admitido como Professor Assistente de Direito Penal na Universidade Estadual da Pensilvânia, nos EUA, e durante algum tempo dedicou-se aos estudos da história sociopolítica deste país. No avançar da década de 1980, contudo, seus interesses de investigação inclinaram-se cada vez mais para os estudos sobre a trajetória histórica do cristianismo. Jenkins tornou-se Professor (1993) e Catedrático (1997) de História e Estudos da Religião na mesma Universidade Estadual da Pensilvânia, e começou a produzir uma série de trabalhos nesta área.

Em 2002, Jenkins envolveu-se pessoalmente no campo da controvérsia religiosa quando anunciou sua conversão à Igreja Episcopal desde o catolicismo, e proferiu uma crítica aberta ao celibato normativo do clero católico romano.

Em 2007, ele tornou-se Livre Docente do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Estadual da Pensilvânia, e recebeu em 2011 a Emerência desta mesma instituição. Atualmente Jenkins é Professor do Departamento de História e Codiretor do Programa de Estudos Históricos da Religião do Instituto para Estudos da Religião da Universidade de Baylor – uma instituição confessional de ensino e pesquisa vinculada à Igreja Batista, que, estabelecida em 1845, foi a primeira universidade norte-americana fundada a oeste do Rio Mississipi e a mais antiga em funcionamento contínuo no Estado do Texas. Também é um dos editores do The American Conservative, escreve uma coluna mensal para o The Christian Century e artigos regulares para pelo menos outros três periódicos de grande público nos EUA.

Em 2013, a Editora LeYa publicou, sob o título de Guerras Santas, a tradução de Carlos Szlak para o Jesus Wars, dado a público por Jenkins três anos antes.

A transcrição de um comentário feito em Christianity Today sobre o Jesus Wars na orelha da capa frontal da edição brasileira pode ser bastante instrutiva para esclarecer a questão de porque uma empresa com tal perfil e público alvo investiu na publicação deste volume: “[…] Você gosta de contos incríveis de intrigas religiosas, cheios de conspirações, casos bizantinos, assassinatos e confusão? Ou prefere um relato acurado, sólido e informativo sobre o surgimento do cristianismo ortodoxo? Se a sua resposta foi ‘sim’ para ambas as perguntas, este livro é para você”. De um ponto de vista do mercado editorial, portanto, parece que o Guerras santas foi recebido como uma espécie de Código da Vinci baseado em fatos reais, ou como um guia politicamente incorreto da antiguidade cristã. O texto de Jenkins de fato, se presta parcialmente a isto: o modelo narrativo de sua prosa empolgante parece ter sido o irônico Declínio e queda do Império Romano de Edward Gibbon, citado já na introdução do volume, autor que, com Voltaire e Hume, é um dos pais de toda discussão politicamente incorreta travada no mundo contemporâneo a respeito dos primeiros séculos de existência do movimento cristão. Tal apropriação, contudo, tende a diminuir, ou mesmo ofuscar, a relevância deste volume para uma área tão carente de bons trabalhos entre nós como é a dos estudos sobre o cristianismo de tradição não ocidental.

De um modo geral, Jesus War é um desenvolvimento lógico do interesse de Jenkins pelas mudanças que marcaram o mundo cristão no século XX. Em trabalhos anteriores, este autor tratou da emergência de um cristianismo latinoamericano, asiático e africano que contrasta tanto com as formas majoritárias de cristianismo existentes há um século atrás que é como se estivéssemos lidando com uma religião completamente nova. Jenkins argumenta, entretanto, que o cristianismo que floresce nestas regiões que são periferias do sistema sociopolítico e econômico global não só não é uma adesão ingênua a uma ideologia imperialista, imposta de cima para baixo, mas está bastante próximo do horizonte mental do mundo bíblico e das antigas igrejas cristãs que outrora prosperaram (com exceção da América Latina) nestas mesmas regiões. O cristianismo não é um enxerto exótico na África e na Ásia, como parecem assumir tanto o senso comum ocidental quanto o islamismo militante, mas, no século XX, com a expansão missionária, começou a fazer um certo caminho de volta para casa.

Em termos culturais e demográficos, a compreensão de que a Europa é desde sempre e por excelência a terra dos cristãos é um equívoco politicamente orientado, já que mesmo no auge da civilização cristã medieval possivelmente havia mais fiéis cristãos no continente asiático do que no mundo europeu, e ainda subsistiam comunidades cristãs populosas no continente africano, grupos que foram simplesmente esquecidos pelos analistas ocidentais. Tal equívoco ocasiona tanto uma miopia na descrição da trajetória histórica do cristianismo quanto uma exasperação indevida nas análises de sua atual conjuntura. O avanço simultâneo do islamismo e do secularismo anticristão na Europa ocidental não significa um recuo geral do movimento cristão; não apenas porque ele continua em processo de expansão e reinvenção em outras regiões do globo, mas porque ele nunca foi exatamente coextensivo ao mundo europeu, mas sempre algo maior e diverso dele.

De fato, não parece adequada a ênfase na suposta natureza euroamericana do cristianismo quanto se procura ver este movimento no contexto mais amplo de sua de sua história bimilenar. A forma particular de cristianismo com que o ocidente se acostumou no último meio milênio, e que a maior parte dos interessados ocidentais e ocidentalizados, cristãos ou anticristãos, passou a considerar como o estado natural deste movimento religioso é um desenvolvimento relativamente acidental.

Durante a maior parte de sua história, o cristianismo foi uma religião tricontinental, com forte presença na Ásia, na África e na Europa – e isso foi válido para o tempo dos Carolíngios tanto quanto para as vésperas da expansão ibérica. “[…] Feitas as contas”, escreveu Jenkins, “na época da Magna Carta ou das Cruzadas, se quisermos imaginar um cristão típico, ainda deveremos pensar não num artesão francês, mas num camponês sírio ou num morador urbano da Mesopotâmia”2.

O cristianismo tornou-se predominantemente europeu nos quinhentos e poucos anos mais recentes de nossa história, não por causa de alguma afinidade óbvia entre este continente e a fé, mas pelo fato de que as igrejas europeias conseguiram escapar da pressão do Islã militante de uma forma que não foi possível às antigas igrejas apostólicas asiáticas e africanas, outrora culturalmente dinâmicas e muito numerosas. Foi pouco depois de o cristianismo africano e asiático passar a enfrentar novos e mortíferos desafios políticos, dos quais não viria a se recuperar, e de o movimento cristão entrar em colapso na China (décadas de 1360-1370) e na Núbia (década de 1450), que, “por volta de 1500, podemos ter o primeiro vislumbre doo padrão de expansão cristã que ficou conhecido nos estereótipos populares, ou seja, uma religião transportada por navios de guerra e mosquetes europeus para os nativos vulneráveis da África ou da América do Sul”3.

Fundamentando tanto a vulnerabilidade de tão vastas comunidades cristãs ao avanço de um poder político religiosamente diverso, quanto o afastamento e o esquecimento destas pelos ocidentais, encontra-se uma querela teológica que eclodiu com especial violência em meados do século V. Neste período, o mundo cristão se partiu em três blocos que definiam de diferentes formas a natureza de Jesus Cristo, selando com a divergência religiosa as poderosas forças centrífugas da disputa política e da diferença cultural. Os cristianismos asiático, africano e europeu enveredaram por trajetórias históricas gradativamente mais distintas e distantes umas das outras, enquanto aquilo que era o centro político do ecúmeno cristão – o Império Romano do Oriente, sediado em Constantinopla – oscilava entre uma e outra posição teológica. O que acabou por fim consagrado como a ortodoxia cristã, cunhada por oposição aos monofisitas africanos e aos nestorianos asiáticos – classificações que não são apenas nomes, mas rótulos prenhes de juízos de valor negativo, cunhados por seus inimigos no complicado combate publicitário que marcou o tabuleiro político-teológico do Mediterrâneo oriental do primeiro milênio de nossa era – foi o resultado de um processo gradativo, lento e, não raro, sangrento.

Na origem destas categorias e atuando como seu lastro, encontram-se lutas, golpes e guerras abertas ao longo dos séculos, confrontos cujo resultado, de forma alguma já estava dado a priori. Isto bem considerado se pode imaginar um desenvolvimento histórico alternativo, no qual os agora chamados ortodoxos tivessem sido desdenhados como heréticos; um universo contrafatual em que o cisma entre Roma e o Oriente ocorreu no século V, e não no século XI, nunca se recuperando o papado da sujeição a sucessivas ondas de ocupantes bárbaros, e em que um Império Romano Monofisita, fundado num âmbito oriental unido fielmente, que se estendia do Egito ao Cáucaso, da Síria aos Balcãs, teria lutado com unhas e dentes contra os recém-chegados muçulmanos e, de modo concebível, mantido as fronteiras do tempo de Justiniano. Nesta realidade paralela, os estudiosos posteriores do cristianismo se dedicariam a estudar preferencialmente o grego, o copta e o siríaco, e apenas os pesquisadores mais ousados, dispostos a investigar uma língua marginal de alfabeto enigmático, se lembrariam de figuras como Agostinho de Hipona, Patrício da Irlanda e Leão de Roma4.

Jenkins argumenta que o fato de que outros caminhos, de incomensuráveis consequências, poderiam ter sido facilmente tomados pelo cristianismo dá boas razões para que se eleja o meado do século V como o período mais formativo de toda a história do movimento cristão. Outros autores têm enfatizado o período imediatamente circunvizinho ao Concílio de Niceia como este ponto de cristalização, de mudança fundamental entre as definições e práticas do cristianismo primitivo e medieval, mas eles não têm considerado de forma adequada como a luta para definir as crenças básicas do movimento cristão se arrastou para além dos primeiros séculos de sua existência e assumiu formas institucionalizadas bastante coerentes.

Alguns ainda têm retratado a história da Igreja como um movimento firme rumo a uma clarificação crescente da fé em sentido ortodoxo, seja para elogiá-lo (o desenvolvimento do dogma faz a Igreja ser mais consciente e mais fiel ao que já acreditava desde o princípio) ou para criticá-lo (o movimento espiritualmente igualitário de Jesus atrofiou-se até dar origem à estrutura burocrática e repressiva do cristianismo bizantino e medieval). Dada a evidente origem teológica destas posições, elas devem ser postas entre parênteses pelo historiador, que tem o dever de chamar a atenção para o quanto, em diversos momentos, a própria definição do que é a fé cristã poderia ter sido radicalmente modificada. As lutas do século V a respeito do significado da ortodoxia cristã deram-se no quadro de uma guerra de domínio entre as Sés de Alexandria, Antioquia, Constantinopla e Roma, e essa disputa teve como claras vencedoras as duas últimos, enquanto as duas primeiras tiveram de se haver com os crescentes problemas políticos associados à perda global de prestígio no âmbito do cristianismo mediterrânico. O fato destas se encontrarem desde cedo em território muçulmano, e hoje manterem minorias cristãs fisicamente ameaçadas de extinção em meio a populações majoritariamente islâmicas em número e tradição, é significativo para apreendermos o quanto todas as cartas foram postas na mesa no conflito do século V, e quais foram as consequências deste para o cristianismo ter vindo a adquirir o seu desenho atual.

Tudo isto posto, o objetivo de Guerras Santas é reconstituir a disputa política e teológica entre as diversas facções cristãs do século V, extraindo-lhe as consequências históricas e os aportes que este enredo pode ter para se compreender a atual conjuntura do cristianismo como religião mundial. Na introdução do volume (Quem vocês dizem que Eu Sou?), Jenkins levanta a questão básica, de origem bíblica, que levou às disputas cristológicas do primeiro milênio, ressaltando que as Escrituras Sagradas dos cristãos não são nada claras a respeito de um assunto tão hermético quanto a discussão sobre a natureza de Jesus Cristo, e que pelos padrões rigorosos dos primeiros concílios eclesiásticos, a maioria dos não especialistas modernos – incluindo numerosos clérigos – não saberiam explicar a fé que professam, ou seriam condenados como professando algum tipo de heresia. A compreensão da maioria das igrejas atualmente subsistentes sobre a identidade de Cristo é que ele é simultaneamente Deus e homem, sem divisão e sem separação, compreensão fundada nas posições tornadas canônicas pelo Concílio de Calcedônia (451). A resposta dada por esta assembleia de eclesiásticos a tal questão, contudo, não era a única solução possível – nem a solução obvia, ou, talvez, a mais lógica. As disputas que acompanharam esta definição e a tentativa dos imperadores ortodoxos de impô-la às antigas e recalcitrantes igrejas africanas e asiáticas enfraqueceram e dividiram a Igreja e o Império, e, no longo prazo, levaram diretamente ao colapso do poder romano no Mediterrâneo oriental, à ascensão política do islamismo e ao eclipse do cristianismo no mundo não europeu. Para Jenkins, de fato, o conflito a respeito de qual seria a definição hegemônica a respeito da natureza de Jesus Cristo resolveu-se por uma questão objetiva: as igrejas que aceitaram a definição calcedônica livraram-se da pressão islâmica por um milênio pelo acaso geográfico e sucesso militar, e tornaram-se certas basicamente porque sobreviveram mais viçosas e tiveram a oportunidade de contar a história cristã a seu próprio modo.

No primeiro capítulo (O xis da questão), Jenkins parte do violento caso do assassinato do Patriarca Flaviano de Constantinopla para cartografar algumas das semelhanças e diferenças existentes entre o universo sociocultural do mundo dos primeiros concílios que definiram a fé cristã e o nosso. Se ainda na década de 1980 a imagem de um Jesus casado e com uma família presente no filme A última tentação de Cristo incitou clamores mundiais de blasfêmia, a questão sobre quem era Jesus Cristo suscitava ainda maiores paixões nos séculos IV a VI. De um modo geral, as diversas respostas a esta questão se dispunham no espectro de duas tendências conflitantes. De um lado, havia aquelas “forças muito poderosas que atraíam Cristo na direção de Deus e do céu”, imaginando-o como “um juiz celestial temível ou um soberano cósmico, o pantokrator (…) que lançava um olhar furioso da cúpula de uma basílica imensa, e cujo status humano era difícil de aceitar”. Do outro, aqueles que “lutaram para preservar a face humana de Jesus, estabelecendo-o firmemente em solo terreno e na sociedade”, “uma figura que compartilha nossa experiência e pode ouvir nossas preces”, “que sofreu agonia física, que conheceu a dúvida e a tentação, que foi o irmão e o modelo dos homens em sofrimento”5.

Durante a história bimilenar do movimento cristão, estas tendências estiveram em interação, na maior parte das vezes conflituosa, mas em nenhum momento o debate foi tão aceso e visceral do que durante o século V. Então, por algumas décadas, pareceu que o consenso dos fiéis abandonaria a crença na natureza humana de Cristo, passando em definitivo a descrevê-lo apenas como um ser divino – o que, afinal, oficialmente não ocorreu. Subjacentes a estes intrincados debates teológicos agitavam-se as rivalidades profundas entre os grandes núcleos eclesiásticos do cristianismo do primeiro milênio: Antioquia enfatizava a natureza humana de Cristo; Alexandria combatia de forma veemente toda fórmula teológica que separasse o elemento humano do divino em Jesus Cristo; e Constantinopla, sede do Império Romano Cristão, servia como campo de batalha para as facções destes elementos poderosos, do Primeiro Concílio de Éfeso ao Concílio de Calcedônia (ou seja, de 431-451), cristalizou-se o ensinamento de que nenhuma declaração a respeito de Jesus Cristo poderia omitir os aspectos divino ou humano de sua pessoa. Esta posição, que encontrou oposição ferrenha em três quartos dos antigos centros da fé cristã, estabelecendo-se firmemente nas igrejas reunidas em torno das sés de Constantinopla e de Roma, veio a ser a base da teologia cristã ocidental, hoje hegemônica.

Jenkins observa que a batalha a respeito das naturezas de Jesus Cristo colocou em choque visões de mundo muito diferentes, surgidas de ênfases interpretativas diversas aplicadas a um mesmo substrato bíblico. Estavam em jogo noções acerca do significado do nascimento e da morte de Cristo, do papel de sua mãe, da bondade ou maldade relativa da materialidade e da visualidade, do papel do ser humano na redenção do mundo, e da atuação política das comunidades cristãs. O autor ressalta que, neste debate, punham-se de forma dramática os recorrentes – na verdade, estruturais – dilemas do conflito e da cooperação interdenominacional, dilemas que remontam, literalmente, à fundação do movimento cristão, e que o seu desenrolar revela muito acerca de como o cristianismo se desenvolveu ao longo do tempo, de como “a Igreja engendra sua própria mente humana”6. Ele pondera que, se, para o público moderno, “acostumado a séculos de diversidade e tolerância religiosa”, o investimento de criar e manter a todo custo um consenso teológico parece desnecessário para quaisquer indivíduos mentalmente saudáveis – pois “parece óbvio que, quando lados opostos estão completamente apartados, devem concordar com uma separação amigável” – para os diversos partidos cristãos da Antiguidade Tardia, contudo, “essa opção não estava disponível, e não porque os cristãos de então eram, em algum sentido moralmente inferiores em relação aos seus descendentes”. O caso é que o pensamento cristão – fosse católico, monofisita ou nestoriano – não podia então prescindir do conceito da Igreja como corpo unificado de Cristo concretizado em uma unidade institucional. “Se o corpo não era unido, então era deformado, mutilado e imperfeito, e esses termos, sem dúvida, não podiam ser aplicados ao corpo de Cristo”7. A necessidade psicológica, pastoral e – a partir do século IV – política de estabelecer uma unidade institucional marcada pela conformidade teológica diante uma grande diversidade de formas de se compreender, celebrar e viver a fé cristã, somada ao fato de que nenhum indivíduo ou grupo tinha real autoridade para impor sua versão do cristianismo aos demais de maneira simples e direta, de que os debates teológicos tornaram-se rapidamente questões de Estado para as autoridades romanas, e de que havia a convicção de que os conflitos deveriam ser solucionados por declarações gerais de todo o corpo eclesial na forma de concílios, fez abrir uma verdadeira Caixa de Pandora.

“Ao estudar os concílios eclesiásticos daquela era”, registra Jenkins, “certos temas vêm à mente, incluindo a caridade cristã, a contenção, a decência humana comum, a disposição de perdoar ofensas antigas, de dar a outra face. Nenhum deles se apresentou em qualquer um dos debates principais. Em vez disso, os concílios foram marcados por xingamentos e traições (tanto figurativas quanto literais), por conspirações implacáveis e intrigas secretas, e por ameaças generalizadas de intimidação”. Para este autor, de fato, os concílios, palcos de ardentes embates intelectuais, atravessados por rivalidades e redes de influência que ligavam as diferentes sedes eclesiásticas não apenas à sala do trono dos herdeiros dos Césares, mas também aos aposentos das imperatrizes e princesas, aos quartéis das legiões e aos covis das torcidas do grande hipódromo constantinopolitano, raramente se assemelhavam a reuniões de santos empenhados em definir a fé. O debate teológico era atravessado por questões que hoje consideraríamos como absolutamente extrínsecas ao campo religioso, mas se deve ter em mente que a forma específica assumida pela disputa política era, então, de ordem teológica. Daí o fato de todas as grandes controvérsias cristológicas terem implicado em sérias consequências políticas; tratava-se tanto de batalhas a respeito do futuro do Império, como um todo e em cada uma de suas partes, quanto de tentativas de estabelecer definições inequívocas da verdade eterna8.

Deve-se considerar, mais ainda que, enquanto os bispos debatiam questões teológicas em meio a ícones dourados e nuvens de incenso, as decisões tomadas nestas assembleias tinham um real impacto real nas vidas das pessoas comuns, convencidas como estas estavam de que o núcleo essencial da crença cristã estava em risco. Jenkins faz uma análise bastante sensível de como as sutilezas teológicas angustiavam as pessoas dos campos, vilas e cidades, até o ponto de elas se disporem a espancar, torturar ou assassinar seus vizinhos por uma palavra ou expressão proferida de maneira reconhecida como incorreta. Em primeiro lugar, o autor destaca que não faz sentido distinguir as motivações religiosas das não religiosas em tais explosões de violência popular. Isso seria violentar a sua especificidade histórica com um anacronismo inoportuno, atribuindo-lhe um fanatismo ou cinismo que só são possíveis a partir de uma situação em que se pode distinguir, de forma mais ou menos clara, uma esfera temporal de uma esfera espiritual; e tal distinção é um fenômeno relativamente recente e, em larga medida, restrita ao ocidente moderno. Em segundo, a maioria das pessoas da Antiguidade Tardia, ignorantes e letradas, parece ter acreditado firmemente em visões de mundo providencialistas, dentro das quais as práticas religiosas e as formulações teológicas possuem implicações sociais e cosmológicas – a dissidência e a heresia enraiveceriam a Deus, maculando a realidade, propiciando males como distúrbios civis, perda das colheitas, terremotos, invasões de bárbaros, golpes de estado, peste, infertilidade na família imperial, sinais nos céus, entre muitos outros.

Era o senso comum que “[…] A menos que os malfeitores ou crentes equivocados fossem suprimidos, a sociedade poderia perecer por completo”9. Em terceiro, a violência pôde ocorrer porque o Estado não tinha nem a vontade, nem a capacidade de reprimir o uso da força por grupos privados muito motivados; menos porque as instituições públicas estavam em situação de fraqueza extrema ou à beira de um colapso, e mais porque as autoridades constituídas decidiram favorecer e se aliar a alguns destes grupos contra outros, que consideravam danosos. Em quarto, entrava em jogo o fundamental conceito de honra, o grande “elemento subestimado do conflito religioso, e não só no cristianismo”; honra que clérigos, monges e simples fiéis transferiram de seus círculos familiares e das relações de clientelismo tão características das sociedades mediterrânicas para suas circunscrições e facções eclesiásticas, e que, em certas circunstâncias, precisava ser defendida pela força; honra que deveria ser protegida a todo custo de desafios reais e imaginários, além de reforçada pela consequente humilhação dos rivais. Para Jenkins, tudo isto precisa ser levado em consideração, pois, de fato, “[…] Quase não conseguimos compreender a malignidade espantosa que marcou a longa batalha entre as grandes Igrejas de Antioquia e Alexandria, a menos se entendermos que estamos lidando nesse caso com uma disputa sanguinária literal, que se estendeu por um século ou mais”10.

Findo o primeiro capítulo do livro, que é dos seus mais interessantes, começa a primeira parte do volume (Deus e César), onde Jenkins monta o cenário e apresenta os atores do drama que se dispôs a contar. No segundo capítulo (A guerra das duas naturezas), explora os elementos propriamente teológicos do grande conflito que precede e segue o Concílio de Calcedônia, apresentando as grandes correntes da interpretação cristológica da antiguidade cristã e demonstrando de que forma as ênfases da teologia antioquena e da teologia alexandrina tornaram-se cada vez mais divergentes. Também reconstitui como as lacunas existentes entre a alta especulação teológica e as compreensões populares do cristianismo não impediram que o debate se alastrasse pelos espaços públicos e assumisse em certos momentos a intensidade explosiva de um confronto civil, incendiado pela oratória sacra de clérigos carismáticos, pelas lealdades regionais dos contentores e por um sistema de classificação e atribuição de culpa por associação que se assemelhava a um autômato publicitário.

No terceiro capítulo (Quatro cavaleiros: os patriarcas da Igreja), descreve as trincheiras, alianças, traições, compromissos e ressentimentos que regiam as relações mútuas das mais altas instâncias de prestígio eclesiástico da antiguidade cristã – os patriarcados de Alexandria e Antioquia, de Constantinopla e de Roma (e também os ambiciosos, mas menos poderosos, bispados de Éfeso e de Jerusalém) – e como a disputa por prestígio e elementos que hoje consideraríamos ainda mais mundanos influíram, ou, melhor, foram partes constitutivas das batalhas para definir que era a ortodoxia e que era a heresia nos primeiros séculos do movimento cristão. Esses patriarcados foram governados por verdadeiras linhagens de prelados, unidos não por laços de parentesco, mas por relações de mestre e discípulo muito firmes, e eles eram ciosos daquilo que os tornava diversos de seus concorrentes eclesiásticos, “não apenas devido à sucessão apostólica, mas também à busca de autoridade real”11. Uma posição que nos parece particularmente curiosa é a do Patriarcado de Roma, pois, embora saibamos, em retrospecto, que ele seria o grande sobrevivente das guerras teológicas do primeiro milênio, a ponto de sua história – e as histórias dele derivadas – serem constituídos no teleos de toda a história do movimento cristão pela maior parte dos historiadores eclesiásticos, então, tratava-se ele de uma a natureza de Jesus, vulnerável por razões que eram a um só tempo políticas, culturais e linguísticas.

No quarto capítulo (Rainhas, generais e imperadores), expõe-se até que ponto, nos grandes debates teológicos da Antiguidade Tardia, as autoridades do império cristão, investidos de um poder que não era de forma alguma puramente secular, atuaram “como uma força no interior da Igreja, mais intensa do que a de um honesto inspetor tentando impor o jogo limpo entre as partes contentoras”12. No processo de constituição da ortodoxia cristã, intervieram não apenas o cálculo político de membros das famílias imperiais, mas suas devoções, expectativas, simpatias e ressentimentos particulares, sua abertura ou rejeição de determinado lobby eclesiástico, suas próprias ideias teológicas. Deste jogo, que não estava de forma alguma restrito às igrejas e à sala do trono, participava também um dinâmico e complexo, bizantino, universo formado pela corte, pela burocracia, pelos administradores regionais, pelos mosteiros constantinopolitanos, pelos generais e pelos senhores da guerra quase independentes que, nominalmente empenhados na defesa das fronteiras do império, naturalmente, mantinham uma agenda de interesses próprios. Aos olhos de um espectador moderno, causa algum escândalo o fato de, de forma tão ampla, as igrejas pensarem e atuarem como império e o império pensar e atuar como uma igreja, mas Jenkins recorda-nos que essas eram as regras que então eram normativas dos processos político-teológicos do ecúmeno cristão. Em função disto, da mesma forma que as intrigas cortesãs ajudaram a dar sua forma específica ao debate teológico, esse foi alçado ao nível de problema de interesse e de segurança pública. Uma nova, radical intolerância religiosa voltouse contra as minorias religiosas na medida em que penosamente se definia uma ortodoxia de Estado. Tratou-se de uma crucial mudança nas disputas dogmáticas, “em escalada rumo ao centro da questão, no sentido de que a força total do governo e da lei se voltaria contra o lado perdedor. A discussão teológica tornou-se um jogo de soma zero, com implicações de longo alcance no mundo material”13.

Na segunda parte do volume (Concílios do Caos), Jenkins narra o drama que é o cerne de seu livro, abrangendo aquele período do século V e do início do século VI no qual o conflito entre Alexandria e Antioquia chegou a um clímax especialmente violento e no qual as ideias teológicas longamente cultivadas nestas regiões cristãs assumiram formas tais que foram consideradas heréticas pelo eixo formado por Constantinopla e por Roma, ensejando uma fissura cataclísmica no seio do império romano cristão. No quinto capítulo (Não é a mãe de Deus?), trata-se da figura de Nestório, que ficou associada a episódios impressionantes da história cristã e que, ainda hoje, é lembrado por alguns fiéis como um arqui-herege e por outros como um brilhante pensador e um líder santo que sofreu uma injustiça da parte dos imperadores bizantinos. Jenkins busca apresentar uma imagem equilibrada deste personagem, reinserindo-o no contexto onde se desdobrou o drama passional de que fez parte, reiterando que, neste, ele “marcou presença como um líder ora maior e ora menor do que a lenda proclama”14. Além de Nestório, traça-se um perfil de dois de seus principais opositores – a princesa Pulquéria e o patriarca Cirilo de Alexandria – e investiga-se a importância e o funcionamento das redes de influência alexandrina e antioquena na capital imperial, dos ressentimentos eclesiásticos, das facções monásticas e da devoção popular à Virgem Maria, incidental, mas crucialmente engolfada no debate sobre a natureza de seu filho.

Findo o drama de Nestório, o capítulo sexto (A morte de Deus) trata da tragédia de Flaviano de Constantinopla, ferido de morte no Segundo Concílio de Éfeso (449), que foi um dos cumes da influência do Patriarcado de Alexandria, rejeitado pela Igreja de Roma e, posteriormente, pela de Constantinopla, como um Sínodo dos Ladrões, um Concílio que Nunca Houve, ou, mais popularmente, como o Latrocínio de Éfeso. No sinuoso caminho para esta controversa assembleia, encontram-se a ruína do limes imperial diante do assédio germânico e persa; o desaparecimento formal do Império Romano do Ocidente; a ameaça dos hunos; as ideias teológicas e os dotes de orador do monge Eutiques de Constantinopla; a influência de seu apadrinhado, o eunuco Crisáfio, que veio a se tornar uma figura importante na corte bizantina; as formulações dos teólogos de Alexandria, Antioquia e Edessa; a violenta ofensiva dos partidários da Natureza Única de Jesus Cristo contra aqueles que defendiam que Ele subsistia em Duas Naturezas; e o intolerante e intolerável zelo de Dióscoro de Alexandria. A definição de ortodoxia cristã então respaldada pela autoridade imperial, encabeçada por Teodósio II, inclinou-se para uma fórmula mais favorável à teologia egípcia; enquanto Roma, sujeita às falhas estruturais que marcavam já de mais de um século os elos de comunicação subsistentes entre os cristãos de língua grega e os de língua latina, colocava-se ainda mais à margem da principal disputa teológica do momento ao condenar abertamente as ideias de Eutiques e assumir os altos riscos de afirmar que Jesus Cristo era a um só tempo Um e Dois, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Retrospectivamente, sabemos que esta viria a ser a definição cristológica majoritária no cristianismo europeu, latino e bizantino, mas, então, tal possibilidade sequer parecia se assomar no horizonte de expectativas.

O seguimento do Segundo Concílio de Éfeso foi marcado por uma ofensiva ainda maior dos partidários da Natureza Única contra seus rivais, na Síria, na Palestina e em Edessa; por uma série de intervenções imperiais nos bispados do Mediterrâneo oriental; pela fuga de teólogos de formação antioquena rumo aos domínios do Xá da Pérsia, para além do braço daquilo que consideravam um governo herético; pela emergência de um furor inquisitorial e de um espírito de caça às bruxas, no escopo do qual todos os defeitos morais imagináveis, incluindo o conluio consciente com o Diabo, passaram a ser atribuídos aos que se considerava hereges, aos seus alunos, discípulos ou mesmo simpatizantes. Para um analista que vivesse este momento histórico, não era absurdo imaginar Roma como o último refúgio de uma minoria herética em um mundo cristão em que os monofisitas se tornaram a maioria e a ortodoxia cristã. Nesta conjuntura, o centro de poder no interior da Igreja teria se deslocado em definitivo para Alexandria, e pouco poderia ser feito para deter o estabelecimento de uma hierarquia fiel à Natureza Única nas refratárias regiões da Itália ou da Síria enquanto o imperador comandasse o território e esta facção predominasse em sua corte15.

Então, contudo, interveio o acaso, o hálito do inferno ou a providência divina: em 28 de julho de 450, Teodósio II morreu em consequência de uma queda de cavalo e, com isso, o cenário político-teológico se modificou bruscamente. No sétimo capítulo (Calcedônia), Jenkins relata como esta mudança aturdiu o mundo cristão e possibilitou que a formulação do verdadeiro Deus e verdadeiro homem suplantasse a da Natureza Única e se tornasse de modo duradouro – e, no último meio milênio de nossa história, decisivamente hegemônico – a definição cristológica formal daquilo que se reconhece a ortodoxia cristã institucionalizada. A pressão dos hunos sobre as fronteiras imperiais faz parecer incrível que, ao invés de organizar algum tipo de iniciativa militar mais consistente, o imperador Marciano, sucessor de Teodósio II, estivesse disposto a dedicar tanto tempo a uma tal reorientação da política religiosa bizantina, “mas, de fato, essa era sua prioridade”. Prioridade em parte prática, já que cidades indóceis e tumultuosas em função de querelas teológicas generalizadas “eram muito mais difíceis de defender e impossíveis de se mobilizar em termos de homens e impostos”; mas que se devia mais à “sensação de que o império só sobreviveria com a ajuda divina, por ser o reino cristão ortodoxo, e que as recentes derrotas e desastres demonstraram, fora de qualquer dúvida, que a relação divina estava sob grave estresse” e que “[…] Somente a restauração da ortodoxia poderia salvar o mundo cristão”16. Foi por essa porta estreita que a corte imperial voltou-se para as concepções cristológicas da Sé Romana, condensadas no Tomo de Leão I, e do falecido patriarca Flaviano, cujos restos mortais, antes execrados como se os de um herege, foram levados para Constantinopla e sepultados com honras de mártir – isso ao mesmo tempo em que Crisáfio encontrou uma morte violenta e Eutiques seguiu Nestório no exílio. Embora não houvesse espaço para dúvidas quanto à nova coloração religiosa da ortodoxia, a lógica e o costume demandava uma declaração oficial de crença atestada por um novo concílio. Este, inicialmente convocado para Niceia, local prenhe de simbolismo por ter sediado o primeiro dos concílios ecumênicos, foi deslocado para Calcedônia, próxima aos subúrbios de Constantinopla, devido ao temor de um ataque bárbaro ou da irrupção de hordas de monges contrários à política religiosa de Marciano – eventos que possivelmente teriam um desenrolar igualmente violento.

O Concílio teve como seus objetivos revogar as decisões do Segundo Concílio de Éfeso, revertendo seus efeitos na política eclesiástica, e rejeitar de modo decisivo as versões menos transigentes da doutrina da Natureza Única (pregada por Eutiques) e das Duas Naturezas (atribuída a Nestório). Dióscoro de Alexandria foi considerado o grande culpado pelas violências intestinas que atingiram as igrejas do Mediterrâneo oriental na década anterior, e a grande Sé egípcia foi decisivamente desprestigiada. Alguns de seus seguidores conseguiram se adequar no devido tempo à nova ordem – como o bispo Juvenal de Jerusalém que, depois de vinte anos conspirando com os alexandrinos, decidiu que não mais mantinha a teologia que havia reconhecido antes como ortodoxa e conseguiu manter o estatuto patriarcal de sua Sé. O concílio também elevou o status e os privilégios de Constantinopla, que, por ser a capital subsistente do Império Romano, foi alçada à paridade com a velha – e então materialmente arruinada – Roma. A Sé constantinopolitana foi declarada como o segundo dos patriarcados em autoridade – de jurisdição superior às igrejas mais antigas de Alexandria e Antioquia –, tribunal de recurso dos sínodos provinciais do Oriente e superiora imediata das metrópoles eclesiásticas do Ponto, da Ásia, da Trácia e daquelas dioceses que estavam entre os bárbaros – expressão ambígua, mas que anunciava glórias vindouras naquele momento em que havia um notável incremento do esforço missionário na Europa oriental e na Ásia ocidental.

Evidentemente, o Patriarcado de Roma não se dispôs a aceitar de bom grado esta diminuição relativa de sua autoridade, e uma nova linha de trincheiras, vertical, não mais horizontal, começou a ser escavada no centro do Mediterrâneo cristão.

Depois de Calcedônia, Marciano foi saudado como sendo o segundo Constantino, mas, naquele momento, a assembleia não pareceu o fim, mas um estágio de um processo. A corte imperial ainda estava dividida em suas lealdades e regiões cruciais do império estavam firmemente comprometidas com opiniões consideradas heréticas pelos padres conciliares reunidos em Calcedônia.

Protestos furiosos e verdadeiras insurreições se alastraram por todo o crescente de territórios que vai do Alto Egito à Mesopotâmia, passando por Jerusalém e pelo sul da Anatólia. Os crentes da Natureza Única ficaram muito decepcionados, pois pouquíssimo tempo antes da reunião convocada por Marciano, “tiveram todos os motivos para acreditar que dominavam absolutamente a Igreja e o império”17.

Muitos consideravam o Concílio de Calcedônia tão repugnante quanto os romanos e bizantinos passaram a considerar o Segundo Concílio de Éfeso, e no Egito e em boa parte do Oriente Próximo os termos calcedônico e nestoriano começaram a ser utilizados como sinônimos. Jenkins observa que “[…] O grau de reação pode parecer estranho quando consideramos o quão expressivamente o concílio se inspirou no pensamento de Cirilo, mas aquele era um mundo mental em que mesmo a menor concessão ao erro em questões tão essenciais era uma traição contra a substância total da verdade cristã” 18. Nesta senda, Alexandria mergulhou na desordem política e religiosa, e a história de seu patriarcado foi durante uma centena de anos uma conturbada história de deposições e insurgências, exílios e restaurações. Os habitantes de mosteiros e eremitérios comprometidos com a posição teológica da Natureza Única constituíram-se em centros de formidável resistência à autoridade bizantina, seus carismáticos pregadores, aos quais se atribuíam costumeiramente dons taumatúrgicos, encabeçando verdadeiros levantes populares contra os representantes do governo constantinopolitano. O prolongado desgaste associado a este atrito haveria de cobrar seu preço em não muito tempo.

Na terceira parte do volume (Um mundo a perder), Jenkins faz um balanço do impacto global do Concílio de Calcedônia na história do movimento cristão.

No oitavo capítulo (Como a Igreja perdeu metade do mundo), ele narra como a condução da crise teológica catalisada por Calcedônia teve um encaminhamento dramático. Dois séculos depois do fim deste Concílio as facções beligerantes de de Constantinopla buscavam de forma cada vez mais desesperada algum tipo de entendimento que reconciliasse os partidários de Calcedônia com os diversos matizes de defensores da Natureza Única e das Duas Naturezas. Na década de 630, essa necessidade era tão premente que ensejou de forma serena a violência imperial contra o Patriarcado de Roma, que não se dispunha a aceitar de maneira dócil a definição, então apoiada por Constantinopla, de que importava em Jesus Cristo menos o fato de ele possuir uma natureza ou duas do que o de Ele atuar com uma vontade única19. De meados do século V ao final do século VII, houve períodos em que a ortodoxia calcedônia reinou na corte bizantina, períodos em que os regimes toleravam os partidários da Natureza Única, e períodos em que os imperadores simpatizavam com eles e buscavam uma conciliação de maneira ativa. Mesmo depois do credo calcedônico alcançar uma vitória política formal, as mesmas questões voltavam à pauta, irrompendo em novas formas. Os cismas entre jurisdições eclesiásticas importantes tornaram-se corriqueiros, mesmo entre Roma e Constantinopla, e partes rivais chegaram a estabelecer igrejas paralelas alternativas nas mesmas regiões. As deposições e os expurgos foram incorporados à vida eclesiástica corrente, enquanto tumultos dividiam cidades e províncias por divergências teológicas20.

Ainda que as autoridades imperiais nunca admitissem a divergência formal da ortodoxia que sustentavam, no começo do século VI, o mundo cristão estava, de fato, cindido em diversas igrejas transnacionais, cada uma com suas reivindicações de verdade absoluta e, progressivamente, mais e mais afastadas em suas formas de espiritualidade, disciplina eclesiástica, teologia e liturgia. O exemplo do estabelecimento de hierarquias pró-bizantinas (melquitas) no Delta do Nilo e no Oriente Próximo, estrutura que gradativamente constituiu uma espécie de enxerto de experiências eclesiais similares àquelas diretamente dependentes de Constantinopla nessas regiões mais antigas do cristianismo, promovendo uma releitura do patrimônio religioso da antiguidade cristã à luz da ortodoxia calcedônica, é o mais conhecido no ocidente, mas não o único. Uma importante facção da Igreja do Oriente manteve sua lealdade a Nestório e a partir primeiro de Edessa, uma região fronteiriça entre os domínios romanos e os persas, e depois de Nisibis, já em território governado pelo Xá, promoveu a expansão da teologia das Duas Naturezas desde as franjas orientais do território bizantino até o sul da Península Arábica, a Ásia Central, o Tibete, a China, a Índia e o Sri Lanka. Por sua vez os partidários da Natureza Única, associados de modo indelével à experiência do cristianismo egípcio, afirmaram-se como a ortodoxia cristã na Etiópia e na Núbia e estabeleceram uma presença permanente na Palestina, na Síria, em Edessa, na Mesopotâmia e na Índia, mantendo simultaneamente focos de atividades na Anatólia e na própria Constantinopla. No Egito, a rejeição de um patriarca de Alexandria nomeado pelo imperador bizantino em 516, e a crescente identificação deste governante, supostamente herético, com as forças infernais equivaleu a uma declaração aberta de independência da Igreja local.

De acordo com Jenkins, grosso modo, o credo calcedônico sobreviveu porque desenvolveu raízes profundas em centros fundamentais e organizados do cristianismo que ascenderam em prestígio e poder político ativo na segunda metade do primeiro milênio de nossa era: a Ásia Menor e os Balcãs, territórios cada vez mais centrais do Império Romano do Oriente, e em Constantinopla, sua capital. Roma permaneceu como um sólido bastião de apoio, mas manteve-se à margem das principais ondas de confronto teológico que abalavam e cindiam o mundo cristão, a não ser naqueles períodos, relativamente curtos, nos quais esteve diretamente sob o domínio político do imperador de Constantinopla. A manutenção da ortodoxia calcedônica, entretanto, fez-se ao custo de um prolongado e profundo desgaste do domínio sobre as áreas mais orientais do império. As divisões religiosas em grande escala, concentradas em áreas fronteiriças especialmente importantes do ponto de vista da geoestratégia e da sua produção de recursos materiais e humanos, abriram enormes fissuras no tecido imperial romano. Por primeiro, vieram os persas, que então baseavam suas reivindicações de expansão na fé zoroastrista, religião oficial do império dos Xás. Seu avanço significou o brusco direcionamento da Palestina e da Síria para o oriente, o virtual colapso de largas áreas da economia bizantina, o despovoamento de cidades e campos e o decisivo afastamento de muitas igrejas desta área da cristologia calcedônica – afinal, supunha-se que Deus não permitiria que tal derrota fosse infringida a um governo que estivesse praticando sua religião da forma correta. Em seguida, vieram os árabes muçulmanos. Enquanto o Egito e o oriente bizantino se afundavam em feudos religiosos, e o conflito com os persas chegava a um fim de jogo caracterizado pela exaustão mútua, novas forças religiosas se agitavam na Península Arábica. A história da ascensão do Islã é bem conhecida, mas, de fato, é difícil de compreender se não se leva em conta o estado das divisões cristãs posteriores ao Concílio de Calcedônia. Não por acaso, o colapso das posições bizantinas diante do avanço islâmico deu-se por primeiro naquelas regiões onde o sentimento popular se inclinava mais fortemente em direção das igrejas monofisita e nestoriana. Autores destas tradições chegaram a saudar os conquistadores árabes como libertadores da opressão causada por um regime herético e, ao menos nas primeiras décadas, de domínio islâmico, eles não viram maiores razões para mudarem de opinião; de fato, os muçulmanos pouco se importavam com as divisões dos cristãos, desde que todos eles respeitassem sua autoridade, pagassem seus impostos no prazo e, de um modo geral, estivessem dispostos a colaborar com os governantes adventícios.

No entanto, observa Jenkins, o livramento dos calcedônicos veio a um preço exorbitante. Por séculos, os cristãos monofisitas e nestorianos sobreviveram e até prosperaram nas sociedades dominadas por muçulmanos, mas, protegida pela autoridade constituída de uma civilização florescente, a parcela da população que professava a fé de Maomé cresceu mais e mais. Naquelas terras nas quais o cristianismo havia se estabelecido por primeiro, as comunidades cristãs gradativamente se tornaram minorias cada vez menores, sujeitas a leis mais duras, a medidas discriminatórias e, eventualmente, a campanhas de conversão forçada. “A Alexandria cristã virou progressivamente a Alexandria muçulmana, até que o Cairo, completamente muçulmano, se apropriou da maior parte de sua glória e riqueza”21. A partir do século XIII, uma série de desastres políticos e militares combinados com mudanças econômicas e climáticas decisivas criaram um ambiente intolerável para as minorias, algumas das quais foram totalmente eliminadas. De acordo com Jenkins, portanto, foi basicamente por falta de outra opção que o futuro do cristianismo esteve, primeiro, naquelas regiões minguantes ainda sujeitas ao Império Romano, que não tinham mais necessidade de conciliar as opiniões do Egito ou da Síria, e, depois, naquelas partes da Europa ocidental que nunca desafiaram o credo calcedônico22.

O nono e último capítulo do volume (O que foi salvo), é de morfologia e, pareceme, de intenção bastante diversa dos demais. Jenkins assinala sua crença de que “o processo de estabelecer a ortodoxia [cristã] envolveu muito mais do que podemos chamar de acidente político”; lembra que “[…] A experiência cristã inclui uma grande variedade de tendências diferentes, interpretações diferentes, e a maioria acha ao menos alguma justificativa nas Escrituras Sagradas ou na tradição”; e destaca que, afinal, “não é evidente por que uma corrente triunfou sobre a outra”23.

Daí a conveniência dos cristãos serem tolerantes “a respeito da diversidade das expressões não essenciais da fé”: “[…] Visto historicamente, sabemos que outras versões poderiam ter tido sucesso, e podem conseguir isso em tempos vindouros”24.

Após esta asserção, o autor passa a considerar alguns exemplos que mostram que, depois das batalhas de Éfeso e Calcedônia, seus temas continuaram a agitar cristãos de diferentes latitudes, que sabiam pouco ou nada a respeito desses acontecimentos originais. Para ele, é algo típico da história cristã que ideias e crenças continuem a ressurgir muito tempo depois que supostamente foram derrotadas ou exterminadas – seja porque sobreviveram enquanto tradições subterrâneas, clandestinas e contra hegemônicas; porque foram redescobertas mediante a pesquisa erudita e a leitura de textos antigos; ou porque constituem respostas mais ou menos necessárias a certas variáveis encadeadas pela combinação de determinadas ênfases ao se ler a Bíblia com uma constelação particular de estímulos e de sentimentos religiosos vinculados ao cristianismo.

Mais do que apenas constatar que “[…] A história da crença cristã é a história de ressurreições sem fim” de uma série vasta, mas não infinita, de temas e dramas teológicos, Jenkins conclui seu volume argumentando que as ideias alternativas que foram vencidas eram e são partes tão estruturais da fé tanto quanto a ortodoxia ainda subsistente, de modo que sempre precisam ser envolvidas, compreendidas e confrontadas pelos cristãos. “Num mundo ideal, livre das disputas de poder da Antiguidade”, destaca o autor, “esse diálogo pode em si ser uma coisa positiva, uma maneira pela qual o pensamento cristão desenvolve sua própria compreensão.

Uma religião que não está constantemente gerando alternativas e heresias parou de pensar e alcançou apenas a paz dos cemitérios”25.

Tal leitura humanista das guerras santas da Antiguidade Tardia, que é um corretivo necessário ao novo triunfalismo cristão que tem assumido, entre nós, a perigosa faceta de um movimento intolerante e potencialmente violento, é apenas um dos méritos do livro de Jenkins. Gostaria de apontar mais três deles.

O primeiro é sua escrita ao mesmo tempo fluida e segura, que torna acessível a qualquer leitor culto um tema tão complexo, normalmente reservado de um modo hermético apenas aos mais intrépidos teólogos e especialistas em história da religião. Por infeliz acaso, o encanto do texto é prejudicado na edição brasileira por uma tradução de qualidade muito desigual e por uma revisão especialmente mal realizada. São numerosos os anglicismos, os erros de pontuação e de concordância e até as confusões nominais, que tornam o entendimento do escrito muito mais difícil do que aquilo que o tema naturalmente já exige. Tais falhas se acumulam página a página – em certa parte, Tertuliano é confundido com Mani; em outra, Pôncio Pilatos é promovido de governador a imperador; e assim por diante –, causando sobressaltos e sinuosidades inexistentes na publicação original e bastante prejudiciais ao leitor. O simples concurso de um especialista no tema poderia ter melhorado muitíssimo a publicação e espera-se que, em uma possível segunda edição do volume, ao menos os erros mais gritantes sejam suprimidos. (Por exemplo, aquele, risível, que se verifica na p. 141, onde o esquema da árvore genealógica da dinastia de Teodósio é substituído pela observação “Entra figura da árvore”). Não obstante este sério problema, o estilo de Jenkins, que denuncia, sob seu professo cristianismo tolerante e conciliador, escandalizado com a violência das disputas religiosas do primeiro milênio, o impacto da verve irônica de Edward Gibbon, é por si só um atrativo do volume. Outro mérito é o fato de o pantanoso e espinhento terreno dos debates cristológicos ser destrinchado com a ajuda de imagens extraídas da atualidade, da cultura contemporânea, analogias que, sem cair em anacronismo simplista, ajudam o leitor a estabelecer parâmetros de comparação e a desnaturalizar as concepções mais difusas da história cristã. A paleta de referências mobilizadas nesta tarefa é notável: a Família Soprano, o Gangues de Nova Iorque de Scorcese, as batalhas de hooligans, o ativismo xiita, Osama bin Laden, as convenções anuais do Partido Republicano, o macarthismo e os esquetes de Monty Python são todos referidos para que o leitor seja introduzido no debate acerca de como os conflitos que precederam, marcaram e seguiram as assembleias eclesiásticas de Éfeso e Calcedônia reinventaram o cristianismo, de como “um mundo [foi] moldado pelo resultado daquelas lutas quase esquecidas do século V, que aconteceram num mundo de impérios e Estados que acabaram todos na ruína”26.

O terceiro e talvez maior dos méritos do livro de Jenkins, especialmente no mercado editorial brasileiro, é o fato de ele basear seu trabalho não apenas nos textos tradicionalmente utilizados pelos historiadores ocidentais do cristianismo, mas investir na consideração das fontes que consideram a própria versão do cristianismo que veio a se tornar a hegemônica no mundo ocidental como herética. O autor não se guiou apenas pelos manuais, nem mesmo pela bibliografia específica, mas foi ler e apresentar aquilo que foi registrado nas eventualmente confusas atas conciliares e nos historiadores eclesiásticos dissidentes bizantinos, siríacos e coptas; ao lado dos conhecidos volumes de Sozômeno, Evágrio. Sócrates e Procópio de Cesareia, Jenkins arrola a crônica do Pseudo-Dioniso de Tell-Mahre, a História dos Patriarcas de Alexandria, as hagiografias de Pedro Ibérico e de Severo de Antioquia, a crônica de João, bispo de Nikiu, as cartas de Filoxeno de Mabbôgh, entre outros escritos.

Ele faz especial referência ao Bazar de Heráclides, longa e interessante memória escrita pelo deposto e condenado Nestório durante seu exílio, que teve uma edição siríaca redescoberta por estudiosos europeus em um mosteiro no Curdistão no começo do século XX. Para o desconhecimento destas fontes, cujas consequências são a aceitação de certas valorações teológicas (como ortodoxo) como se simples descrições históricas e a acentuação da parcialidade que sua exclusão implica, contribuem – é bom que se tenha claro – não apenas dificuldades de ordem linguística ou o fragilíssimo estado da pesquisa em língua portuguesa neste campo de investigação, mas também preconceitos residuais de ordem especificamente religiosa. Utilizando um leque mais amplo de versões acerca dos acontecimentos eclesiásticos do século V e de seus desdobramentos, Jenkins consegue devolvê-los à sua historicidade particular e desnaturalizar as narrativas oficiais mais difundidas no ocidente sobre a história do cristianismo. Graças a este redirecionamento, todo um novo campo se abre à investigação histórica e teológica sobre a constituição da ortodoxia cristã conforme agora nós a conhecemos.

Notas

2 JENKINS, Philip. A próxima cristandade: a chegada do cristianismo global. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 44.

3 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 48.

4 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 43-44.

5 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 27-28.

6 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 45.

7 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 46.

10 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 55.

11 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 109.

12 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 128.

13 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 149.

14 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 159.

15 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 223.

16 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 226.

17 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 244.

18 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 244.

19 Rejeitada não apenas por Roma, mas também pelos egípcios e pelos sírios – as partes contentoras que pretendia contemplar – e abandonada posteriormente pela Igreja Bizantina, esta fórmula de fé continua a subsistir como a cristologia oficial da Igreja Apostólica Armênia. Cf. DALE, Irvin T. & SUNQUIST, Scott W. História do movimento cristão mundial – Vol . 1: do cristianismo primitivo a 1453. Tradução de José Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, 2004, p. 262-263.

20 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 259 21 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 295.

22 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 295.

23 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 297-298.

24 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 298.

25 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 308.

26 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 60.

Alfredo Bronzato da Costa Cruz –  Mestre em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel e Licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-Mail: bccruz.alfredo@ gmail.com.

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