Pensar em não ver – escritos sobre as artes do visível (1979-2004) – DERRIDA (A-EN)

DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver – escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Organização de Ginette Michaud, Joana Masó e Javier Bassas. Tradução de Marcelo Jacques de Moraes. Revisão técnica de João Camillo Penna. Florianópolis: Editora UFSC, 2012. Resenha de PIMENTEL, Davi Andrade, Alea, Rio de Janeiro, v.17 n.1, jan./june, 2015.

Gostaria de começar esta resenha pelo tom dado por Derrida a seus textos que compõem o livro Pensar em não ver. O tom é o modo pelo qual o escritor convida o leitor a participar de seu texto. O tom, por assim dizer, é um chamado que, segundo Derrida, ganha o contorno da palavra vem – é preciso dizer que essa palavra está desconstruída pelo escritor, está violentada, retomada, reprisada, maltratada para que possa significar o além-dela-mesma. No momento em que esses textos dizem vem, eles nos chamam a participar de uma experiência de escrita que retoma ou nos direciona a uma experiência sobre a arte visual em parceria com o escritor; experiência que se configura como um chamado que não nos diz vem por aqui ou por ali, que não nos garante nada e que nem mesmo nos faz uma promessa. É por nada prometer que cada momento de leitura desses textos se transforma em um acontecimento – ele próprio, o livro, é o acontecimento: “trata-se da viagem não programável, da viagem cuja cartografia não é desenhável, de uma viagem sem design, de uma viagem sem desígnio, sem meta e sem horizonte. A experiência, a meu ver, seria exatamente isso” (DERRIDA, 2012: 80). O vem é o tom de um chamado, é a experiência – esta, por sua vez, nos chega através da árdua tarefa do tradutor Marcelo Jacques de Moraes, com suas perdas e ganhos, tensionada entre a dívida e a criação, entre a língua a traduzir e a língua traduzida. Tarefa que faz ressoar o tom derridiano, um tom também a traduzir, já traduzido.

Desde o primeiro texto, “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”, o escritor expõe a importância do tom antes mesmo do conteúdo de seus textos, pois o tom é o que se apresenta primeiro no jogo de apostas da escritura, como também é a base para que esse jogo possa ser efetivamente jogado. O tom mantém com o texto e com o leitor uma relação de risco, de incitação, de excitação e de gozo, por isso a iniciativa de Derrida em pluralizar o tom, em escrever em vários tons, para que o seu texto não fique restrito a um só interlocutor: “Pergunto-me com quem estou falando, como vou jogar com o tom, o tom sendo precisamente o que informa e estabelece a relação” (DERRIDA, 2012: 42). Se não podemos negligenciar os suportes, os “debaixos” de uma obra de arte, como bem lembra Derrida no texto “Os debaixos da pintura, da escrita e do desenho: suporte, substância, sujeito, sequaz e suplício”, por ser o debaixo o suporte necessário para que a obra de arte possa ser tomada enquanto tal, não podemos negligenciar também o tom que age como suporte do texto apresentado pelo escritor, por todo e qualquer escritor: “qualquer que seja sua matéria, o corpo do suporte é uma parte indissociável da obra” (DERRIDA, 2012: 287).

Da composição dos textos derridianos de Pensar em não ver, o tom que se sobressai é o de uma certa familiaridade, ou melhor, de uma certa informalidade, no que essas duas palavras têm de um certo deixar-se à vontade, não apenas pelas entrevistas que recortam magistralmente o todo do livro, como costuras que reafirmam a relação entre escritor e leitor, mas, sobretudo, pelos textos corridos. Quando Derrida reflete sobre a pintura, a fotografia, o desenho, o teatro, a videoinstalação e o cinema, o tom dado a esses textos é o tom de uma familiaridade que rompe com a formalidade mais precisa que encontramos em outros textos seus. Tudo se passa como se o próprio Derrida estivesse em face do leitor para compartilhar com ele o seu pensamento sobre as artes do visível, sobre a sua potência impotente que a todo instante se faz presente quando lhe é pedido para falar/escrever sobre uma arte que não é a da escritura: “Estou muito feliz e honrado por me encontrar aqui, intimidado também porque, como os senhores verão, minha incompetência é real, e não é de modo algum por uma fórmula de polidez ou de modéstia que começo declarando-a, essa incompetência” (DERRIDA, 2012: 163).

Em Pensar em não ver, do convite do tom se passa ao convite em forma de pensamento que Derrida faz tão bem: “O pensamento é também pensável em um movimento pelo qual ele chama a vir, ele chama, ele nos chama” (DERRIDA, 2012: 75). Pensamento que convida a pensar a arte visual enquanto produto de uma invisibilidade que lhe é essencial. Derrida defende ao longo de seus 20 textos que a visibilidade tem como contraponto seu suporte invisível. Na verdade, o que nos é dado a ver é o invisível, não o visível. No texto “O Sacrifício”, dedicado ao teatro, Derrida diz: “Mas se, desde sempre, o invisível trabalha o visível, se, por exemplo, a visibilidade do visível – o que torna visível a coisa visível – não é visível, então uma certa noite vem cavar um abismo na própria apresentação do visível” (DERRIDA, 2012: 399). A própria luz que nos ilumina é invisível, a própria palavra que nos constitui homens é invisível, logo, somos todos feitos, desenhados, pintados, modelados, filmados a partir de nossa nudez invisível.

Do contorno invisível próprio a toda arte, Derrida elege a figura do cego como o modelo de sua concepção artística. No texto “Pensar em não ver”, o escritor compreende que, para existir o desenho, ou, de uma forma mais geral, para que a arte visual possa existir enquanto acontecimento singular e único, é preciso que metaforicamente o artista se cegue, é preciso que ele passe pelo processo do enceguecimento. Em uma das passagens mais brilhantes do livro, Derrida comenta que, por termos os olhos à frente de nossos rostos, temos o que chamamos de horizonte. Através do horizonte, vemos vir o que nos chega e, desse modo, podemos tanto afastar quanto acolher ou nos defender do que vem do fundo do horizonte. Se por um lado a visão nos protege, essa mesma visão faz com que o acontecimento, no sentido próprio do que surpreende, se neutralize, perca sua potencialidade enquanto violência, enquanto irrupção artística. Por essa razão, o acontecimento somente pode surgir quando não é mais possível ter o horizonte como perspectiva: “o movimento em que o desenho inventa, em que ele se inventa, é um momento em que o desenhista é de algum modo cego, em que ele não vê, ele não vê vir, ele é surpreendido pelo próprio traço que ele trilha, pela trilha do traço, ele está cego” (DERRIDA, 2012: 71).

É preciso estar cego, é preciso se entregar ao movimento estabelecido pelo lápis, pelo pincel ou pela câmera para que a arte possa surgir enquanto acontecimento. O gozo artístico provém dessa entrega, dessa suspensão da visão, dessa cegueira que aflora os demais sentidos, que aflora a sensibilidade do artista, que deixa por instantes os conceitos ou pré-conceitos que formulam o mundo visível para se entregar ao abismo de uma certa noite – entregar, palavra libidinosa que expõe o artista e nos expõe à arte desse artista. Em uma entrevista com Derrida, o artista Valerio Adami, no texto “Êxtase, crise. Entrevista com Roger Lesgards e Valerio Adami”, comenta o passo inicial de seu processo criador, que se assemelha em muitos aspectos ao processo de enceguecimento proposto por Derrida:

Apoio, então, o lápis no papel, faço um ponto e a mão se move: esse ponto se torna, portanto, linha, essa linha se torna o perfil de uma montanha… É um caminho para o maravilhamento, a descoberta, em relação direta com o instinto e a memória – a memória instintiva. A mão se move porque consigo realmente me esvaziar de tudo, deixando a ela a liberdade (DERRIDA, 2012: 239).

Poderíamos supor que, ao falar do desenho, Adami tocaria na questão da visão, mas o que lemos é exatamente a não-visão, a mão que se deixa livre, liberdade daqueles que somente têm a mão como suporte no mundo; nada mais intrínseco ao cego do que as mãos. Responde Adami a Derrida e Lesgards: “A mão sempre foi uma das minhas obsessões” (DERRIDA, 2012: 240). Da imagem dos cegos, somos direcionados por Derrida à imagem das palavras que constituem os textos de Pensar em não ver. As palavras, como disse acima, seguem um tom, elas próprias dão um tom particular aos textos presentes no livro.

As palavras deixam de ser meros transmissores para, elas também, se configurarem em objetos de arte. O modo como Derrida tece seu texto, o modo como ele trabalha a palavra, maltratando-a, violentando-a, faz dela um acontecimento: “O que faço com as palavras é fazê-las explodir para que o não verbal apareça no verbal” (DERRIDA, 2012: 39). Em muitos momentos, a relação que as palavras mantêm entre si faz delas imagem, elas produzem uma imagem, mas não no sentido corrente da relação do signo linguístico – a palavra derridiana vai além da reunião de morfemas para se desenhar em imagem, em palavra-imagem. Ao lermos determinadas passagens de Pensar em não ver, é como se estivéssemos diante de uma tela. Estamos, a bem da verdade, visualizando e não lendo, como nesta bela passagem do texto “Com o desígnio, o desenho”: “o desenhista, quando desenha um cego, quaisquer que sejam a variedade ou a complexidade da cena, está sempre desenhando a si mesmo, desenhando o que pode lhe acontecer, e, portanto, já está na dimensão alucinada do autorretrato” (DERRIDA, 2012: 174). Visualizo, antes de tudo, o autorretrato de um desenhista cego.

As palavras-imagens são retomadas por Derrida ao conversar sobre o filme em que participou, segundo ele, como ator: D’ailleurs, Derrida. No texto em que se discute sobre o filme, “Rastro e arquivo, imagem e arte. Diálogo”, o escritor comenta da participação da palavra, agora não mais a palavra escrita, mas sim a falada: “As falas estavam ali como imagens, feitas para serem, de algum modo, levadas pela necessidade do ritmo, do encadeamento, da consequência icônica […] Icônico quer dizer estruturado segundo a necessidade e a lei da imagem” (DERRIDA, 2012: 101). Semelhante com o que ocorre no filme, a palavra no texto derridiano destacado acima é tornada elemento icônico. Desse modo, ao refletir sobre o desenho, sobre o movimento do artista ao desenhar, Derrida comenta o desenho de Valerio Adami ou de François Loubrieu com um outro desenho – desenho provindo de sua escrita atravessada por palavras-imagens. Logo, o movimento que adquire o texto derridiano é de uma profusão de reflexos, de pinturas distendidas em palavras-imagens, desenhos que se assemelham a seus próprios desenhos de escrita, fotografias que recontam o negativo de sua escrita de imagem. Imagens e mais imagens, profusão de imagens en abyme.

O leitor provavelmente se demorará na leitura sobre as fotografias de Frédéric Brenner, não por ser o texto longo ou de difícil compreensão, não, não se trata disso. A dificuldade está na delicadeza a qual se expõe Derrida ao analisá-las. Fotografias de judeus, fotografias da memória. Diferente dos outros textos, o tom familiar, quase prosaico com o qual o escritor vai tecendo o seu pensamento sobre as questões da comunidade judaica, sobre suas próprias questões recalcadas ou veladas, produz um sentimento de falta, de perda, no leitor. Ao lermos o texto “[Revelações, e outros textos. Leituras das fotografias de Frédéric Brenner]”, quase que imediatamente nos colocamos no lugar do outro, do outro sem pátria, sem terra, do outro-sem, por assim dizer, quase esquecido e, por isso mesmo, afeito à memória, a velar a memória de um passado que ainda assombra, mas que, continuamente, se transforma em um passado esquecível, esquecido: “A melancolia do homem é visível. Será legível? Ela pode assinar a memória enlutada com aquilo que ele recorda e que ele ainda vela, mas ela pode também chorar a amnésia, o esquecimento daquilo mesmo que teria sido preciso velar para que se velasse – e que ameaça apagar-se no próximo sopro da história” (DERRIDA, 2012: 332).

O visível da fotografia dá a ver o invisível que se esconde por trás da figura conhecida de Jacques Derrida. Nesse texto, sabemos um pouco de sua infância, de seu prenome judeu, de sua mãe, de seu avô… estamos íntimos de Derrida, o que confere a familiaridade do tom. Do mesmo modo como nos identificamos com a falta judaica – “todos nós nos identificamos, universalmente, com uma minoria” (DERRIDA, 2012: 343) -, o escritor, sendo judeu, não poderia deixar de se identificar com as fotografias de Brenner: “Tento identificar, mas também me identificar, ao mesmo tempo em que persigo o limite de uma tentação tão irresistível, de uma compulsão como essa” (DERRIDA, 2012: 327). Identificação acordada com uma reflexão constante sobre a falta/perda que acomete(u) o povo judeu. Diáspora? Não significa somente a dispersão dos judeus pelo mundo – significa algo ainda mais profundo. Segundo Derrida, a diáspora afeta a partir do interior, “ela divide o corpo e a alma e a memória de cada comunidade” (DERRIDA, 2012: 323). É o sentimento de estar deslocado que afeta os judeus, nada lhes é mais autêntico. Mas não nos esqueçamos, como também os judeus não se esquecem, que nada nos é próprio, nem mesmo a nossa língua nos é própria:

Nós, nós todos, todos os seres vivos presentes, os seres vivos do passado e os espectros do futuro, nós todos, homens ou animais, não temos lugar próprio e terra bem-amada a não ser prometida, e prometida desde uma expropriação sem idade, mais velha do que todas as nossas memórias (DERRIDA, 2012: 341).

O visível fotográfico, ao trazer à tona o obscuro da memória de Derrida, dialoga com as perspectivas da invisibilidade com as quais o escritor trabalhou ao longo de seus textos de Pensar em não ver, não por acaso o título do livro carrega a marca da invisibilidade, ou, se quisermos, a marca da cegueira: não ver. A partir dos tons dos vários textos derridianos presentes neste livro, sobressai o pensamento de que a arte da visibilidade tem como suporte, base de sua contra-assinatura, a invisibilidade ou, como sugere Derrida, em “Aletheia“, a noite, o obscuro: “Nada é mais escuro do que a visibilidade da luz, nada é mais claro do que essa noite sem sol” (DERRIDA, 2012: 305). O que presenciamos ao ver uma obra é sua inscrição invisível. Em um desenho, em uma pintura, o que vemos é o traço diferencial que não mais existe, mas que persiste no rastro que se torna o desenho ou a pintura que observamos em um museu, em um livro, em qualquer lugar em que a arte esteja exposta. A arte visual é produzida a partir dos debaixos, de traços já inexistentes, do flash noturno que ilumina o invisível diante da máquina fotográfica. É nos debaixos que o efeito da arte é produzido – é lá, no debaixo, que se produz o desejo, a interdição, o gozo, a incitação, a excitação, a obra: “Quando se fica sem ar diante de um desenho ou de uma pintura, é porque não se vê nada; o que se vê essencialmente não é o que se vê, mas, imediatamente, a visibilidade. E, portanto, o invisível” (DERRIDA, 2012: 82).

Da leitura desses textos, o que resta para além da ideia da arte visual é o pensamento de que nós, seres humanos, somos constituídos de uma invisibilidade atordoante; não por menos, a arte, as artes do visível, tem como suporte a invisibilidade. A reflexão sobre as artes do visível é o grande mérito dos textos derridianos organizados com extrema precisão por Ginette Michaud, Joana Masó e Javier Bassas na elaboração do livro Pensar em não ver – mérito que a Editora UFSC considerou ao publicá-lo, oferecendo, assim, ao leitor brasileiro, a oportunidade de ter em mãos textos de Derrida raros sobre essas artes e somente agora traduzidos para o português.

Davi Andrade Pimentel – Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atua como pesquisador da obra do escritor francês Maurice Blanchot. É autor dos artigos: “Thomas – o primeiro blanchotiano” (Revista Letras Hoje, n. 48/ 2013), “O espectro de Kafka na narrativa Pena de Morte, de Maurice Blanchot” (Revista Gragoatá, n. 31/2011), “Rascunhos de um pensamento arrebatador: Maurice Blanchot” (Revista Todas as Letras, n. 12/2010), dentre outros. E-mail: [email protected]. Endereço: Rua Leopoldo Miguez, n. 129, apto. 706, CEP.: 22060-020, Copacabana – Rio de Janeiro – RJ.

Acessar publicação original

[IF]

 

Barcelona 1714. Jacques Rigaud: crònica de tinta i pólvora – HERNÀNDEZ; RIART (I-DCSGH)

HERNÀNDEZ, F.X.; RIART, F. Barcelona 1714. Jacques Rigaud: crònica de tinta i pólvora. Barcelona: Librooks, 2014. Resenha de: H. PONGILUPP, Mar. Íber – Didáctica de las Ciencias Sociales, Geografía e Historia, n.78, oct., 2014.

El libro que presentamos se centra en los seis grabados que dibujó el artista provenzal Jacques Rigaud en 1732 para dar a conocer cómo se asediaba y asaltaba una ciudad según las técnicas y pautas militares determinadas por el célebre ingeniero francés Sébastien Le Prestre de Vauban. Rigaud se inspiró en uno de los episodios más cruentos de la Guerra de Sucesión española: el asedio de Barcelona, que era el último gran cerco que había conocido la Europa del xviii. Dado que la expugnación de la ciudad fue meticulosamente cartografiada por los ingenieros franceses, pudo disponer de unas fuentes fiables y precisas para desarrollar su proyecto.

Sin embargo, su objetivo no era mostrar el asalto concreto de Barcelona, sino exponer, de manera didáctica, qué pasos debían seguirse para expugnar y rendir una plaza. Este hecho explica por qué los grabados no son del todo fieles a la Barcelona de 1714, pues contienen errores en lo que respecta a su representación histórica. Rigaud dedicó su obra al joven marqués de Montmirail, que, a pesar de su juventud, ejercía como coronel de la guardia suiza del rey de Francia, y se esforzó en plasmar detalladamente la tecnología y los pormenores de los asedios con la intención de que Montmirail pudiera entender qué era lo que debía hacerse para atacar una ciudad fortificada.

Hernàndez y Riart retoman el espíritu pedagógico de Rigaud y nos ofrecen una relectura de los grabados que permite comprender la poliorcética -el arte de atacar y defender una plaza fuerte- del siglo xviii en clave educativa. Uno a uno, los seis grabados son diseccionados por los autores, que, a partir de recuadros y dibujos ampliados, describen qué es lo que está sucediendo, cuáles son los personajes y qué objetivos persiguen las diversas acciones militares. El resultado es un impresionante documento didáctico que, a través del análisis de una fuente casi primaria, nos aproxima a las aplicaciones bélicas de la ingeniería del siglo xviii. Así, Hernàndez y Riart se sirven de los dibujos de Rigaud para ilustrar las distintas fases y dinámicas del asedio: la excavación de las trincheras, los preparativos de los bombardeos, los contraataques, la apertura de las brechas, los problemas del asalto y las medidas de represión.

Pero Rigaud, un grabador extraordinario, también estaba interesado en reflejar los más pequeños detalles de la vida cotidiana alrededor del cerco, de modo que, en sus iconografías, las figuras humanas, que aparecen realizando las más diversas ocupaciones, cobran un especial protagonismo. En este sentido, los autores resaltan cómo Rigaud presenta a los soldados (los vivos y los muertos) y de qué manera evoca la miseria de los hospitales de campaña, la frialdad de los oficiales, el cansancio de los soldados o el terror de los civiles caídos. Como valor añadido cabe destacar que el conjunto de los grabados constituye una fuente de primer orden para documentar las fortificaciones y el asedio que sufrió Barcelona durante el periodo de 1713-1714. De modo que tanto los grabados como los comentarios conforman una herramienta pedagógica de gran utilidad para implementar múltiples actividades en el aula.

Mar H. Pongiluppi

Acessar publicação original

[IF]

Função e desenho na biologia contemporânea – CAPONI (SS)

CAPONI, Gustavo. Função e desenho na biologia contemporânea. São Paulo: Editora 34/Associação Filosófica Scientiae Studia, 2012. Resenha de: BRZOZOWSKI, Jerzy. Quando não ser pluralista é bom. Scientiæ Studia, São Paulo, v.12, n. 1, p. 169-78, 2014.

Longe de constituir um obstáculo epistemológico bachelardiano (cf. Bachelard, 1996 [1938]), o conceito de “função” é partícipe indissociável dos modos pelos quais a biologia contemporânea conhece os organismos e suas partes. A despeito disso, a elucidação filosófica desse conceito tem estado cercada por uma “confusa e emaranhada polêmica” (p. 13) entre a concepção sistêmica e a concepção etiológica de função, polêmica essa que o livro de Gustavo Caponi, Função e desenho na biologia contemporânea, pretende desenredar. A nosso ver, a beleza da solução apresentada por Caponi reside no fato de ela não cair em uma – nas palavras dele – “previsível saída pluralista” (p. 14) como tantas outras que estão em voga na filosofia da biologia.

A solução de Caponi também é atípica no sentido de que toma como mais fundamental uma concepção não hegemônica de função associada à sistêmica: a concepção consequencial. Porém, para entender esses detalhes, já se torna necessário incorrermos em uma apresentação mais pormenorizada das duas posições e do caminho argumentativo realizado por Caponi.

O livro é dividido em quatro capítulos, sendo que o primeiro deles busca caracterizar e imediatamente impugnar a concepção etiológica. Tal concepção remonta à análise do conceito de função proposta por Larry Wright em 1973. De acordo com essa concepção, dizer “a função de x (no processo z) é y” supõe que (1) x produz ou causa y e (2) x está ali (em z) pelo próprio fato de produzir ou causar y (p. 24). Essa visão é dita etiológica porque, nesse esquema, a função (y) de uma característica ou parte (x) de um processo (z) explica a origem e a presença dessa característica nesse processo. Para citar o exemplo mais célebre encontrado nos debates sobre função, do ponto de vista etiológico, dizer “a função do coração é bombear o sangue” significa dizer que o coração é parte do sistema circulatório porque bombeia o sangue.

Por sua vez, a concepção processual ou sistêmica tem origem em um artigo de 1975 de Robert Cummins. Para ele, a exigência de que a caracterização funcional de uma parte ou característica tenha de explicar a presença dessa parte ou característica é injustificada e até mesmo prejudicial. Por isso, a análise proposta por Cummins para o conceito de função é de certo modo agnóstica no que diz respeito à origem do objeto da caracterização funcional. Sob a análise de Cummins, dizer “a função de x (no processo z) é y” significa dizer que (1) x produz y e (2) y tem um papel causal na ocorrência, operação ou funcionamento de z (p. 38). Enquadrando o exemplo do coração nesse esquema, dizer “a função do coração (no sistema circulatório) é bombear o sangue” nada mais significa do que dizer que (1) o coração bombeia o sangue e (2) a circulação sanguínea tem um papel causal no funcionamento do sistema circulatório. À diferença da concepção etiológica, a análise processual não arrisca nenhuma conjectura sobre a história do surgimento do coração.

Para os defensores da concepção etiológica, uma consequência disso é que a concepção processual não é capaz de diferenciar a função própria da função acidental, isto é, essa concepção não tem força normativa. Para usar um exemplo de Caponi (p. 24), o cano superior (que une o guidão ao selim) de uma bicicleta pode ser usado para levar um passageiro extra. O problema, para o defensor da etiologia, é que se pode aplicar a análise processual nesse caso – sendo z o processo “transporte de um passageiro extra na bicicleta” –, ainda que essa parte da bicicleta não tenha sido projetada com esse fim. Suportar um passageiro extra, diriam os defensores da etiologia, é uma função acidental, e não a função própria do cano superior.

Desse modo, conforme salienta Caponi, inspirado em Margarita Ponce (1987),1 a concepção processual reduz o conceito de “função” à ideia de ter um papel causal em um processo. Diante disso, a principal objeção que o defensor da etiologia poderia levantar é se a perda da capacidade de distinguir a função própria da função acidental não é um preço alto demais a pagar pela adoção do conceito processual. A resposta de Caponi a essa pergunta é um “não” qualificado: não somente o preço não é alto demais, como a noção de processo causal é anterior à própria distinção entre função própria e função acidental.

É hora de nos voltarmos sobre os detalhes dessa discussão no contexto específico das atribuições funcionais em biologia. Nesse contexto, a abordagem etiológica de Wright foi reformulada por Karen Neander (1991), Ruth Millikan (1989) e Sandra Mitchell (1995). Resumidamente, a versão biológica do esquema de Wright seria assim: dizer “a função de x (no processo z) é y” implica que “(1) x produz ou causa y e (2) x está ali (em z) porque a seleção natural premiou a realização de y nas formas ancestrais de z” (p. 25).

Caponi vê duas principais dificuldades com essa abordagem. A primeira delas é o fato de que estruturas não selecionadas podem vir a tornar-se funcionais; a segunda é o fato de que as imputações funcionais podem ser feitas independentemente da postulação de histórias adaptativas. No primeiro caso, Caponi cita o exemplo já bastante conhecido do clitóris hipertrofiado das fêmeas de hiena pintada (Crocuta crocuta) (cf. Gould & Vrba, 1982). Embora essa estrutura tenha uma importante função na chamada “cerimônia do encontro”, um ritual social praticado por esses animais, a hipótese mais plausível é que o órgão não deve sua atual configuração a um processo de seleção. O clitóris hipertrofiado das hienas é, com maior probabilidade, um subproduto da alta taxa de hormônios andrógenos secretados por esses animais. Por sua vez, a secreção de andrógenos constituiria, agora sim, uma adaptação relacionada aos comportamentos de agressividade e dominância das fêmeas dessa espécie (cf. Gould & Vrba, 1982).

Em relação à segunda dificuldade, Caponi utiliza um argumento histórico. Fazendo referência à distinção entre a biologia funcional e a biologia evolutiva proposta por Ernst Mayr (1998 [1982]), Caponi nota que o desenvolvimento da fisiologia, que é um ramo da biologia funcional, foi tanto independente quanto anterior ao desenvolvimento da biologia evolutiva (cf. Caponi, 2001). Isso não impediu que fisiologistas préevolucionistas, como William Harvey, fizessem atribuições funcionais. Aliás, conforme salienta Caponi, pode-se dizer que o principal imperativo metodológico do biólogo funcional – desde Harvey, mas melhor evidenciado em Claude Bernard – é algo como se segue: “para todo processo ou estrutura normalmente presente em um ser vivo, devese mostrar qual é o papel causal que este ou esta cumpre, ou tem, no funcionamento total do organismo” (p. 31).

Desse modo, o ponto central da impugnação da concepção etiológica feita por Caponi é o seguinte: a leitura etiológica exige que as atribuições funcionais dependam de explicações selecionistas; ademais, essas explicações só podem ser fornecidas depois que as imputações funcionais (no sentido próximo ao processual) já tiverem sido feitas (p. 34).

Faz-se necessária, portanto, uma concepção de “função biológica” que seja independente de explicações selecionistas, e que com isso seja capaz de distinguir entre as funções e as adaptações (conceitos que são confundidos pela concepção etiológica). A tarefa de diferenciar entre a função própria e a função acidental, conforme argumenta Caponi, não é uma atribuição do conceito de “função”, mas sim das explicações selecionistas (p. 37). Ainda assim, a concepção de função biológica que Caponi propõe como alternativa à etiológica tem um caráter fracamente normativo que permite comparar graus de eficácia do desempenho das funções e que, por isso, torna-se uma condição de possibilidade das explicações selecionais (p. 38). É sobre essas linhas que Caponi encaminha sua discussão no capítulo 2.

Para desenvolver seu conceito de “função biológica”, Caponi recorre à ideia de metas sistêmicas intrínsecas. Pode-se dizer que alguns sistemas estão orientados por metas codificadas em seu próprio desenho. Esse é o caso de termostatos e mísseis teleguiados, mas Caponi fornece um exemplo mais simples. Pensemos nas cisternas que mantêm o nível de água constante por meio da operação conjunta de uma boia e uma válvula que regula a entrada de água. O nível de água para o qual o sistema está regulado é uma espécie de meta intrínseca dele. De modo análogo, “a meta inerente, intrínseca e definidora de todo organismo é estabelecer e preservar sua autonomia organizacional perante as contingências e perturbações do entorno” (p. 46). Caponi traduz esse processo em termos de três outros conceitos clássicos: “autopoiese”, “autorreprodução” e “ciclo vital”. Podemos reunir os três em um único conceito de “função biológica”, de modo que, ao dizer “a função biológica de x é y”, supomos que (p. 46-7): (1) x faz parte do sistema autopoiético/sistema autorreprodutivo/ciclo vital z; (2) x produz ou causa y; (3) y tem um papel causal em z, ou é uma resposta a uma perturbação sofrida por z.

Para Caponi, essa formulação é suficientemente geral para incorporar as duas principais concepções de função biológica que, seguindo Garson (2008), poderíamos chamar de “consequenciais”.2 As concepções consequenciais são aquelas que associam a função de uma entidade à consequência ou efeito que essa entidade produz em um sistema do qual faz parte (cf. Garson, 2008, p. 527), sem entrar na discussão sobre a origem da entidade em questão. As duas teorias consequenciais que a definição de Caponi consegue abarcar são (utilizando a tradução proposta por ele próprio) as “teorias de efeito benéfico” (good-contribution theories) e as “darwinianas” (fitness contribution theories).

As concepções de efeito benéfico são aquelas que fazem referência à contribuição que determinada parte de um ser vivo tem para a realização de seu ciclo vital (o exemplo do coração pode ser caracterizado nesses termos). Por outro lado, algumas características dos seres vivos podem não contribuir diretamente na realização do ciclo vital, mas sim mediante o aumento da aptidão (fitness) darwiniana desses organismos, de modo que tais características são mais bem compreendidas sob a ótica das teorias consequenciais darwinianas.

É importante perceber que, embora façam referência a processos de seleção natural, as teorias consequenciais darwinianas têm um viés diferente das teorias etiológicas. Na visão consequencial, o aumento da aptidão é um efeito da presença da estrutura em questão; na visão etiológica, é a causa. Além disso, para Caponi, a concepção consequencial darwiniana é muito próxima à concepção de função baseada na noção de metas orgânicas intrínsecas: “se por aptidão se entende êxito reprodutivo, teremos que dizer que toda estrutura ou processo orgânico que contribui para a realização do ciclo vital de um ser vivo contribui também para sua fitness” (p. 52).

Em suma, Caponi termina esta primeira metade de seu livro defendendo que sua concepção de função biológica permite abarcar os principais modos de atribuição funcional realizados na biologia. Estão excluídos dessa categoria, conforme já salientado, as explicações selecionistas, pois “explicações selecionistas e análises funcionais são duas operações cognitivas diferentes, que apontam para objetivos cognitivos também diferentes” (p. 60). Porém, essas operações são, de certo modo, complementares; o próximo capítulo do livro explora o modo como essa complementaridade pode ocorrer e extrai dela algumas consequências.

O capítulo 3, “A noção de desenho biológico”, tem dois objetivos relacionados entre si. O primeiro é desemaranhar os conceitos de “parte” e “caráter”, frequentemente confundidos na literatura recente; o segundo é estabelecer a relação entre o conceito de “função” e as explicações selecionistas. Segundo Caponi, a distinção entre parte e caráter é fundamental para que possamos diferenciar as explicações selecionais das atribuições funcionais, essas duas modalidades de cognição que a concepção etiológica havia mesclado.

O ponto da primeira parte do capítulo é que, enquanto partes de organismos podem ser tocadas, dissecadas e, assim, receber atribuições funcionais, o mesmo não pode ser dito sobre os caracteres das linhagens. A distinção é exemplificada por Caponi através da figura do “sovaco da cobra”, na qual a ausência de membros nas cobras é um caráter desse grupo e pode, por exemplo, ser submetido a uma análise filogenética que permita determinar se esse caráter é primitivo ou derivado. Porém, obviamente, a ausência de membros não é uma parte, ou seja, o tipo de coisa que poderia ter um sovaco.

Essa distinção é importante, pois uma explicação selecionista, segundo Caponi, é sempre uma explicação sobre por que um caráter (e não uma parte) apresenta-se no estado derivado e não primitivo em determinada linhagem (p. 72). De acordo com um estudo filogenético recente, a “perda” de membros nos atuais grupos de serpentes é algo que ocorreu cerca de 25 vezes na história evolutiva da ordem Squamata (lagartos e cobras) (Sites, Reeder, & Wiens, 2011). Desse modo, há 25 episódios na história evolutiva dos Squamata em que “ausência” é um estado derivado do caráter “membros”, e cada um desses episódios demanda sua própria explicação selecionista.

Dito isso, Caponi ainda tem de demonstrar que o conceito de “função” participa das explicações selecionistas. A etapa inicial nessa fase da argumentação é definir o conceito de “objeto desenhado”. Caponi apresenta uma definição que pretende contemplar tanto ferramentas quanto seres vivos: “X é um objeto desenhado na medida em que algum de seus perfis seja o resultado de um processo de mudança, pautado por incrementos na eficácia com que as configurações, que exibem esse perfil, cumprem uma função dentro desse objeto” (p. 73). Aqui, “função” deve ser entendida como “papel causal que algo cumpre em um processo”, e “perfil”, no sentido mais amplo e abstrato possível, de modo a aproximar-se do significado de “característica”.

Dois exemplos simples fornecidos por Caponi permitem mostrar que é possível haver funções sem que os objetos que as cumprem tenham sido desenhados para fazêlo, já que “ter uma função” não é o mesmo que estar desenhado ou “ter uma razão de ser” (p. 74). A Lua, por exemplo, tem uma função (papel causal) no movimento das marés, mas não diríamos que essa é sua razão de ser, ou que ela foi desenhada para isso. Da mesma maneira, pedras achatadas são melhores para o jogo de quicar na água que as pedras esféricas, mas isso não quer dizer que o perfil achatado tenha sido expressamente desenhado para cumprir essa função.

Agora, é possível utilizar esse conceito de objeto desenhado para definir sob quais circunstâncias um estado de caráter pode ser considerado um perfil naturalmente desenhado, isto é, resultado de um processo de desenho sem que tenha havido um desenhista. O (estado de) caráter X está naturalmente desenhado para desempenhar a função y se e somente se:

(1) y é uma função biológica das configurações orgânicas x que exibem X;

(2) o estado X é produto da seleção natural, o que significa que as configurações orgânicas que exibiam X foram mais eficientes na realização de y do que aquelas que exibiam outros estados de caráter alternativos a X (p. 76).

Por não confundir parte com caráter, essa formulação apresenta uma clara vantagem em relação a algumas variantes da concepção etiológica que tentam apresentar definições semelhantes (cf. p. 78). Caponi defende que há uma lacuna ontológica entre as configurações orgânicas – designadas como x na definição acima, às quais faz sentido atribuir funções – e os caracteres X, os quais podem ser objetos de explicações selecionistas. Por isso, dizer de determinada parte de um organismo que ela é uma adaptação é, na melhor das hipóteses, um abuso de linguagem. A seleção natural, na visão de Caponi, “não modifica partes de organismos, modifica caracteres de linhagens” (p. 85).

A relação que se pode estabelecer entre os caracteres e as configurações orgânicas concretas é de instanciação, e só pode ser identificada a partir da perspectiva populacional. Determinada configuração orgânica pode até instanciar um caráter, mas isso jamais poderá ser constatado através de um estudo puramente fisiológico:

Por muito que se analise um organismo, se distingam as suas partes e se tente identificar a possível contribuição destas no seu ciclo vital, nem por isso estarão sendo identificadas adaptações. Para que isso seja possível, é necessário que essas partes sejam consideradas como exibindo estados de caracteres. Mas isso só se consegue assumindo uma perspectiva histórica, evolutiva (p. 85-6).

Esse ponto está alinhado a uma tese de Caponi segundo a qual há dois modos fundamentais de individualidade na biologia – os sistemas e as linhagens –, sendo que cada um deles implica uma relação mereológica diferente (cf. Caponi, 2012). Grosso modo, a biologia funcional e a ecologia tratam de sistemas, enquanto a biologia evolutiva trata de linhagens. Os sistemas são marcados por interações causais sincrônicas entre suas partes, coisa que não precisa ocorrer no caso das linhagens (cf. Caponi, 2012).

Ora, se tanto a biologia funcional quanto a ecologia tratam de sistemas, o que nos impede de incorrer em um organicismo em ecologia e conceber os ecossistemas como organismos? É aí que Caponi, uma vez mais e ainda que indiretamente, argumenta contra a concepção etiológica de função. Se admitíssemos que a concepção etiológica de função é a única válida e, ao mesmo tempo, sustentássemos que a ecologia realiza análises funcionais legítimas, seríamos obrigados a aceitar a conclusão de que os ecossistemas resultam de processos de desenho natural. Caponi, ao longo do último capítulo de seu livro, procura desvincular a legitimidade do discurso funcional em ecologia da ideia de que os ecossistemas são objetos naturalmente desenhados.

A ecologia, defende Caponi, faz atribuições funcionais em um sentido que é muito parecido com aquelas efetuadas pela biologia funcional, ou seja, que podem ser diretamente traduzidas em termos dos papéis causais que certas partes cumprem em certos sistemas. Porém, o que justifica a afinidade entre as duas disciplinas, segundo Caponi, não é uma perspectiva organicista sobre seus respectivos objetos de estudo, mas sim algo sobre seus ideais de ordem natural (cf. Toulmin, 1961). Brevemente, um ideal de ordem natural é um princípio, enunciado desde o ponto de vista de uma teoria ou domínio de investigação, que determina quais são os fenômenos que fazem parte de uma “ordem esperada” e que, portanto, não precisam ser explicados. Os fenômenos que, por outro lado, emergem por sobre esse horizonte ideal de regularidade são os que devem ser analisados e explicados por essa teoria.

Caponi explica a proximidade entre a biologia funcional e a ecologia como uma proximidade de ideais de ordem natural. Os ideais de ordem natural dessas duas disciplinas, segundo Caponi, envolvem a pressuposição de que os estados organizados dos sistemas são configurações improváveis, que merecem ser explicadas; a desordem, o aumento da entropia, por sua vez, é o estado esperado ao qual tendem todos os sistemas. Que um sistema mantenha, por homeostasia, um arranjo organizado frente às contingências do entorno é algo que supõe “uma articulação, uma sintonia afinada, de uma multiplicidade de fatores cuja condição de possibilidade e cuja ocorrência é necessário explicar” (p. 108).

Fazendo um trocadilho, Caponi afirma que a sustentabilidade é a questão-chave da ecologia. Os ecossistemas são arranjos frágeis de processos e partes que parecem passíveis de serem desarticulados ao menor desajuste. Assim, os ecólogos estão interessados em saber como esses estados de equilíbrio delicado se sustentam, isto é, como suas diferentes partes e processos contribuem para a manutenção desses arranjos. Desse modo, enquanto o componente maior (z) era, no caso da análise funcional, um sistema autopoiético, nas análises ecológicas ele corresponde à persistência de um ecossistema, de uma comunidade ou população (p. 109).

Julgamos que uma pequena objeção pode ser levantada contra a argumentação de Caponi, mas, ainda assim, essa objeção pode ser resolvida por meio de um esclarecimento. A objeção é a de que pode haver uma circularidade no argumento, pois, se os organismos são sistemas orientados por metas intrínsecas, não seria lícito supor que elas derivam de algum processo de desenho (ainda que natural)? Se sim, há circularidade no argumento, pois um processo natural de desenho precisa, em primeiro lugar, de um sistema orientado por metas intrínsecas para poder ocorrer. Por isso, pensamos que a resposta tenha de ser negativa. A origem dessas metas deve estar em algum processo de auto-organização anterior e complementar à ação da seleção natural. Certamente, podemos dizer que a imensa variedade de modos pelos quais os organismos perseguem essas metas seja resultante de processos de seleção natural; porém, basta que o pontapé inicial, o primeiro sistema autopoiético, tenha surgido por outro processo natural e espontâneo, para que a aparente circularidade da argumentação seja dissolvida.

Ora, talvez pela própria natureza heterogênea e anômala dos fenômenos biológicos, as posições pluralistas são altamente atraentes na filosofia da biologia. É claro que não é possível julgar a legitimidade dessas soluções em abstrato, independentemente dos debates particulares. As soluções pluralistas têm sido consideradas atraentes nos debates sobre os conceitos de “espécie” (cf. Ereshefsky, 2001) e de “gene” (cf. Waters, 2004), para citar dois dos muitos exemplos que podem ser encontrados na literatura. Conforme já mencionamos, o livro de Caponi contraria essa tendência ao mostrar que é possível fazer, com um único conceito de “função”, aquilo que se pensava que só era possível fazer com dois.

Aliás, outra tendência recente da argumentação na filosofia da biologia é que ela tende a ser meramente destrutiva e cética, sem apontar alternativas às posições que pretende derrubar. Nesse ponto, a argumentação de Caponi também é exemplar, pois vai além de uma simples refutação da posição etiológica e constrói efetivamente todo um arcabouço teórico que permite explicar uma série de fenômenos da prática da biologia. Esperamos que parte desse arcabouço possa ter sido vislumbrado aqui com os conceitos de “função biológica” e de “objeto (naturalmente) desenhado”, bem como as distinções parte/caráter e sistema/linhagem. Entretanto, esta resenha não teve a pretensão de substituir a leitura do livro, a qual recomendamos mesmo aos biólogos e filósofos da biologia que não estejam diretamente trabalhando com conceitos afins a seu conteúdo. A forma de argumentar de Caponi já é suficientemente inspiradora a ponto de recompensar a leitura.

Notas

1 Cabe ressaltar que, embora não tenhamos espaço para detalhar esse ponto aqui, em diversos pontos-chave do livro Caponi estabelece discussões com autores brasileiros e latino-americanos. As referências principais nesse sentido são Chediak (2011), El-Hani & Nunes (2009) e Ginnobili (2009).

2 Até aqui, nesta resenha, opusemos a concepção etiológica à processual. Isto é um tanto impreciso e injusto em relação ao livro de Caponi, que sugere desde o início (p. 19) que a distinção proposta por Garson é mais geral e precisa.

Referências

ABRANTES, P. (Ed.) Filosofia da biologia. Porto Alegre: Artmed, 2011.

BACHELAr, G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996 [1938].

CAPONI, G. Biología funcional vs biologia evolutiva. Episteme, 12, p. 23-46, 2001.

_____. Linajes y sistemas: dos tipos de individuos biológicos. Scientiae Studia, 10, 2, p. 243-68, 2012.

CHEDIAK, K. Função e explicações funcionais em biologia. In: Abrantes, P. (Ed.) Filosofia da biologia. Porto Alegre: Artmed, 2011. p. 83-96.

CUMMINS, R. Functional analysis. The Journal of Philosophy, 20, p. 741-65, 1975.

EL-HANNI, C. & Nunes, N. O que é função? Debates na filosofia da biologia contemporânea. Scientiae Studia, 7, 3, p. 353-402, 2009.

ERESHEFSKY, M. The poverty of the linnaean hierarchy. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.

GARSON, J. Function and teleology. In: Sarkar, S. & Plutynsski, A. (Ed.). A companion to the philosophy of biology. Oxford: Blackwell, 2008. p. 525-49.

GINNOBILI, S. Adaptación y función: el papel de los conceptos funcionales en la teoría de la selección natural darwiniana. Ludus Vitalis, 31, p. 3-24, 2009.

GOULD, S. J. & Vrba, E. S. Exaptation: a missing term in the science of form. Paleobiology, 8, 1, p. 4-15, 1982.

KELLERT, S.; Longino, H. & Waters, K. (Ed.). Scientific pluralism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2004.

MAYR, E. O desenvolvimento do pensamento biológico. Brasília: Editora da UnB, 1998 [1982].

MILLIKAN, R. In defense of proper functions. Philosophy of Science, 56, 2, p. 188-302, 1989.

MITCHELL, S. Function, fitness and disposition. Biology and Philosophy, 10, p. 39-54, 1995.

NEANDER, K. Functions as selected effects: the conceptual analyst’s defense. Philosophy of Science, 58, 2, p. 168-84, 1991.

PONCE, M. La explicación teleológica. México: Unam, 1987.

SARKAR, S. & Plutynsski, A. (Ed.). A companion to the philosophy of biology. Oxford: Blackwell, 2008.

SITES, J.; Reeder, T. & Wiens, J. Phylogenetic insights on evolutionary novelties in lizards and snakes: sex, birth, bodies, niches, and venom. Annual Review of Ecology and Systematics, 42, p. 227-44, 2011.

TOULMIN, S. Foresight and understanding. Indianapolis: Indiana University Press, 1961.

WATERS, K. A pluralist interpretation of gene-centered biology. In: Kellert, S.; Longino, H. & Waters, K. (Ed.). Scientific pluralism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2004. p. 190-214.

WRIGHT, L. Functions. The Philosophical Review, 82, p. 139-68, 1973.

Jerzy Brzozowski – Departamento de Filosofia. Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Erechim, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:  [email protected]

Acessar publicação original

[DR]