Função e desenho na biologia contemporânea – CAPONI (SS)

CAPONI, Gustavo. Função e desenho na biologia contemporânea. São Paulo: Editora 34/Associação Filosófica Scientiae Studia, 2012. Resenha de: BRZOZOWSKI, Jerzy. Quando não ser pluralista é bom. Scientiæ Studia, São Paulo, v.12, n. 1, p. 169-78, 2014.

Longe de constituir um obstáculo epistemológico bachelardiano (cf. Bachelard, 1996 [1938]), o conceito de “função” é partícipe indissociável dos modos pelos quais a biologia contemporânea conhece os organismos e suas partes. A despeito disso, a elucidação filosófica desse conceito tem estado cercada por uma “confusa e emaranhada polêmica” (p. 13) entre a concepção sistêmica e a concepção etiológica de função, polêmica essa que o livro de Gustavo Caponi, Função e desenho na biologia contemporânea, pretende desenredar. A nosso ver, a beleza da solução apresentada por Caponi reside no fato de ela não cair em uma – nas palavras dele – “previsível saída pluralista” (p. 14) como tantas outras que estão em voga na filosofia da biologia.

A solução de Caponi também é atípica no sentido de que toma como mais fundamental uma concepção não hegemônica de função associada à sistêmica: a concepção consequencial. Porém, para entender esses detalhes, já se torna necessário incorrermos em uma apresentação mais pormenorizada das duas posições e do caminho argumentativo realizado por Caponi.

O livro é dividido em quatro capítulos, sendo que o primeiro deles busca caracterizar e imediatamente impugnar a concepção etiológica. Tal concepção remonta à análise do conceito de função proposta por Larry Wright em 1973. De acordo com essa concepção, dizer “a função de x (no processo z) é y” supõe que (1) x produz ou causa y e (2) x está ali (em z) pelo próprio fato de produzir ou causar y (p. 24). Essa visão é dita etiológica porque, nesse esquema, a função (y) de uma característica ou parte (x) de um processo (z) explica a origem e a presença dessa característica nesse processo. Para citar o exemplo mais célebre encontrado nos debates sobre função, do ponto de vista etiológico, dizer “a função do coração é bombear o sangue” significa dizer que o coração é parte do sistema circulatório porque bombeia o sangue.

Por sua vez, a concepção processual ou sistêmica tem origem em um artigo de 1975 de Robert Cummins. Para ele, a exigência de que a caracterização funcional de uma parte ou característica tenha de explicar a presença dessa parte ou característica é injustificada e até mesmo prejudicial. Por isso, a análise proposta por Cummins para o conceito de função é de certo modo agnóstica no que diz respeito à origem do objeto da caracterização funcional. Sob a análise de Cummins, dizer “a função de x (no processo z) é y” significa dizer que (1) x produz y e (2) y tem um papel causal na ocorrência, operação ou funcionamento de z (p. 38). Enquadrando o exemplo do coração nesse esquema, dizer “a função do coração (no sistema circulatório) é bombear o sangue” nada mais significa do que dizer que (1) o coração bombeia o sangue e (2) a circulação sanguínea tem um papel causal no funcionamento do sistema circulatório. À diferença da concepção etiológica, a análise processual não arrisca nenhuma conjectura sobre a história do surgimento do coração.

Para os defensores da concepção etiológica, uma consequência disso é que a concepção processual não é capaz de diferenciar a função própria da função acidental, isto é, essa concepção não tem força normativa. Para usar um exemplo de Caponi (p. 24), o cano superior (que une o guidão ao selim) de uma bicicleta pode ser usado para levar um passageiro extra. O problema, para o defensor da etiologia, é que se pode aplicar a análise processual nesse caso – sendo z o processo “transporte de um passageiro extra na bicicleta” –, ainda que essa parte da bicicleta não tenha sido projetada com esse fim. Suportar um passageiro extra, diriam os defensores da etiologia, é uma função acidental, e não a função própria do cano superior.

Desse modo, conforme salienta Caponi, inspirado em Margarita Ponce (1987),1 a concepção processual reduz o conceito de “função” à ideia de ter um papel causal em um processo. Diante disso, a principal objeção que o defensor da etiologia poderia levantar é se a perda da capacidade de distinguir a função própria da função acidental não é um preço alto demais a pagar pela adoção do conceito processual. A resposta de Caponi a essa pergunta é um “não” qualificado: não somente o preço não é alto demais, como a noção de processo causal é anterior à própria distinção entre função própria e função acidental.

É hora de nos voltarmos sobre os detalhes dessa discussão no contexto específico das atribuições funcionais em biologia. Nesse contexto, a abordagem etiológica de Wright foi reformulada por Karen Neander (1991), Ruth Millikan (1989) e Sandra Mitchell (1995). Resumidamente, a versão biológica do esquema de Wright seria assim: dizer “a função de x (no processo z) é y” implica que “(1) x produz ou causa y e (2) x está ali (em z) porque a seleção natural premiou a realização de y nas formas ancestrais de z” (p. 25).

Caponi vê duas principais dificuldades com essa abordagem. A primeira delas é o fato de que estruturas não selecionadas podem vir a tornar-se funcionais; a segunda é o fato de que as imputações funcionais podem ser feitas independentemente da postulação de histórias adaptativas. No primeiro caso, Caponi cita o exemplo já bastante conhecido do clitóris hipertrofiado das fêmeas de hiena pintada (Crocuta crocuta) (cf. Gould & Vrba, 1982). Embora essa estrutura tenha uma importante função na chamada “cerimônia do encontro”, um ritual social praticado por esses animais, a hipótese mais plausível é que o órgão não deve sua atual configuração a um processo de seleção. O clitóris hipertrofiado das hienas é, com maior probabilidade, um subproduto da alta taxa de hormônios andrógenos secretados por esses animais. Por sua vez, a secreção de andrógenos constituiria, agora sim, uma adaptação relacionada aos comportamentos de agressividade e dominância das fêmeas dessa espécie (cf. Gould & Vrba, 1982).

Em relação à segunda dificuldade, Caponi utiliza um argumento histórico. Fazendo referência à distinção entre a biologia funcional e a biologia evolutiva proposta por Ernst Mayr (1998 [1982]), Caponi nota que o desenvolvimento da fisiologia, que é um ramo da biologia funcional, foi tanto independente quanto anterior ao desenvolvimento da biologia evolutiva (cf. Caponi, 2001). Isso não impediu que fisiologistas préevolucionistas, como William Harvey, fizessem atribuições funcionais. Aliás, conforme salienta Caponi, pode-se dizer que o principal imperativo metodológico do biólogo funcional – desde Harvey, mas melhor evidenciado em Claude Bernard – é algo como se segue: “para todo processo ou estrutura normalmente presente em um ser vivo, devese mostrar qual é o papel causal que este ou esta cumpre, ou tem, no funcionamento total do organismo” (p. 31).

Desse modo, o ponto central da impugnação da concepção etiológica feita por Caponi é o seguinte: a leitura etiológica exige que as atribuições funcionais dependam de explicações selecionistas; ademais, essas explicações só podem ser fornecidas depois que as imputações funcionais (no sentido próximo ao processual) já tiverem sido feitas (p. 34).

Faz-se necessária, portanto, uma concepção de “função biológica” que seja independente de explicações selecionistas, e que com isso seja capaz de distinguir entre as funções e as adaptações (conceitos que são confundidos pela concepção etiológica). A tarefa de diferenciar entre a função própria e a função acidental, conforme argumenta Caponi, não é uma atribuição do conceito de “função”, mas sim das explicações selecionistas (p. 37). Ainda assim, a concepção de função biológica que Caponi propõe como alternativa à etiológica tem um caráter fracamente normativo que permite comparar graus de eficácia do desempenho das funções e que, por isso, torna-se uma condição de possibilidade das explicações selecionais (p. 38). É sobre essas linhas que Caponi encaminha sua discussão no capítulo 2.

Para desenvolver seu conceito de “função biológica”, Caponi recorre à ideia de metas sistêmicas intrínsecas. Pode-se dizer que alguns sistemas estão orientados por metas codificadas em seu próprio desenho. Esse é o caso de termostatos e mísseis teleguiados, mas Caponi fornece um exemplo mais simples. Pensemos nas cisternas que mantêm o nível de água constante por meio da operação conjunta de uma boia e uma válvula que regula a entrada de água. O nível de água para o qual o sistema está regulado é uma espécie de meta intrínseca dele. De modo análogo, “a meta inerente, intrínseca e definidora de todo organismo é estabelecer e preservar sua autonomia organizacional perante as contingências e perturbações do entorno” (p. 46). Caponi traduz esse processo em termos de três outros conceitos clássicos: “autopoiese”, “autorreprodução” e “ciclo vital”. Podemos reunir os três em um único conceito de “função biológica”, de modo que, ao dizer “a função biológica de x é y”, supomos que (p. 46-7): (1) x faz parte do sistema autopoiético/sistema autorreprodutivo/ciclo vital z; (2) x produz ou causa y; (3) y tem um papel causal em z, ou é uma resposta a uma perturbação sofrida por z.

Para Caponi, essa formulação é suficientemente geral para incorporar as duas principais concepções de função biológica que, seguindo Garson (2008), poderíamos chamar de “consequenciais”.2 As concepções consequenciais são aquelas que associam a função de uma entidade à consequência ou efeito que essa entidade produz em um sistema do qual faz parte (cf. Garson, 2008, p. 527), sem entrar na discussão sobre a origem da entidade em questão. As duas teorias consequenciais que a definição de Caponi consegue abarcar são (utilizando a tradução proposta por ele próprio) as “teorias de efeito benéfico” (good-contribution theories) e as “darwinianas” (fitness contribution theories).

As concepções de efeito benéfico são aquelas que fazem referência à contribuição que determinada parte de um ser vivo tem para a realização de seu ciclo vital (o exemplo do coração pode ser caracterizado nesses termos). Por outro lado, algumas características dos seres vivos podem não contribuir diretamente na realização do ciclo vital, mas sim mediante o aumento da aptidão (fitness) darwiniana desses organismos, de modo que tais características são mais bem compreendidas sob a ótica das teorias consequenciais darwinianas.

É importante perceber que, embora façam referência a processos de seleção natural, as teorias consequenciais darwinianas têm um viés diferente das teorias etiológicas. Na visão consequencial, o aumento da aptidão é um efeito da presença da estrutura em questão; na visão etiológica, é a causa. Além disso, para Caponi, a concepção consequencial darwiniana é muito próxima à concepção de função baseada na noção de metas orgânicas intrínsecas: “se por aptidão se entende êxito reprodutivo, teremos que dizer que toda estrutura ou processo orgânico que contribui para a realização do ciclo vital de um ser vivo contribui também para sua fitness” (p. 52).

Em suma, Caponi termina esta primeira metade de seu livro defendendo que sua concepção de função biológica permite abarcar os principais modos de atribuição funcional realizados na biologia. Estão excluídos dessa categoria, conforme já salientado, as explicações selecionistas, pois “explicações selecionistas e análises funcionais são duas operações cognitivas diferentes, que apontam para objetivos cognitivos também diferentes” (p. 60). Porém, essas operações são, de certo modo, complementares; o próximo capítulo do livro explora o modo como essa complementaridade pode ocorrer e extrai dela algumas consequências.

O capítulo 3, “A noção de desenho biológico”, tem dois objetivos relacionados entre si. O primeiro é desemaranhar os conceitos de “parte” e “caráter”, frequentemente confundidos na literatura recente; o segundo é estabelecer a relação entre o conceito de “função” e as explicações selecionistas. Segundo Caponi, a distinção entre parte e caráter é fundamental para que possamos diferenciar as explicações selecionais das atribuições funcionais, essas duas modalidades de cognição que a concepção etiológica havia mesclado.

O ponto da primeira parte do capítulo é que, enquanto partes de organismos podem ser tocadas, dissecadas e, assim, receber atribuições funcionais, o mesmo não pode ser dito sobre os caracteres das linhagens. A distinção é exemplificada por Caponi através da figura do “sovaco da cobra”, na qual a ausência de membros nas cobras é um caráter desse grupo e pode, por exemplo, ser submetido a uma análise filogenética que permita determinar se esse caráter é primitivo ou derivado. Porém, obviamente, a ausência de membros não é uma parte, ou seja, o tipo de coisa que poderia ter um sovaco.

Essa distinção é importante, pois uma explicação selecionista, segundo Caponi, é sempre uma explicação sobre por que um caráter (e não uma parte) apresenta-se no estado derivado e não primitivo em determinada linhagem (p. 72). De acordo com um estudo filogenético recente, a “perda” de membros nos atuais grupos de serpentes é algo que ocorreu cerca de 25 vezes na história evolutiva da ordem Squamata (lagartos e cobras) (Sites, Reeder, & Wiens, 2011). Desse modo, há 25 episódios na história evolutiva dos Squamata em que “ausência” é um estado derivado do caráter “membros”, e cada um desses episódios demanda sua própria explicação selecionista.

Dito isso, Caponi ainda tem de demonstrar que o conceito de “função” participa das explicações selecionistas. A etapa inicial nessa fase da argumentação é definir o conceito de “objeto desenhado”. Caponi apresenta uma definição que pretende contemplar tanto ferramentas quanto seres vivos: “X é um objeto desenhado na medida em que algum de seus perfis seja o resultado de um processo de mudança, pautado por incrementos na eficácia com que as configurações, que exibem esse perfil, cumprem uma função dentro desse objeto” (p. 73). Aqui, “função” deve ser entendida como “papel causal que algo cumpre em um processo”, e “perfil”, no sentido mais amplo e abstrato possível, de modo a aproximar-se do significado de “característica”.

Dois exemplos simples fornecidos por Caponi permitem mostrar que é possível haver funções sem que os objetos que as cumprem tenham sido desenhados para fazêlo, já que “ter uma função” não é o mesmo que estar desenhado ou “ter uma razão de ser” (p. 74). A Lua, por exemplo, tem uma função (papel causal) no movimento das marés, mas não diríamos que essa é sua razão de ser, ou que ela foi desenhada para isso. Da mesma maneira, pedras achatadas são melhores para o jogo de quicar na água que as pedras esféricas, mas isso não quer dizer que o perfil achatado tenha sido expressamente desenhado para cumprir essa função.

Agora, é possível utilizar esse conceito de objeto desenhado para definir sob quais circunstâncias um estado de caráter pode ser considerado um perfil naturalmente desenhado, isto é, resultado de um processo de desenho sem que tenha havido um desenhista. O (estado de) caráter X está naturalmente desenhado para desempenhar a função y se e somente se:

(1) y é uma função biológica das configurações orgânicas x que exibem X;

(2) o estado X é produto da seleção natural, o que significa que as configurações orgânicas que exibiam X foram mais eficientes na realização de y do que aquelas que exibiam outros estados de caráter alternativos a X (p. 76).

Por não confundir parte com caráter, essa formulação apresenta uma clara vantagem em relação a algumas variantes da concepção etiológica que tentam apresentar definições semelhantes (cf. p. 78). Caponi defende que há uma lacuna ontológica entre as configurações orgânicas – designadas como x na definição acima, às quais faz sentido atribuir funções – e os caracteres X, os quais podem ser objetos de explicações selecionistas. Por isso, dizer de determinada parte de um organismo que ela é uma adaptação é, na melhor das hipóteses, um abuso de linguagem. A seleção natural, na visão de Caponi, “não modifica partes de organismos, modifica caracteres de linhagens” (p. 85).

A relação que se pode estabelecer entre os caracteres e as configurações orgânicas concretas é de instanciação, e só pode ser identificada a partir da perspectiva populacional. Determinada configuração orgânica pode até instanciar um caráter, mas isso jamais poderá ser constatado através de um estudo puramente fisiológico:

Por muito que se analise um organismo, se distingam as suas partes e se tente identificar a possível contribuição destas no seu ciclo vital, nem por isso estarão sendo identificadas adaptações. Para que isso seja possível, é necessário que essas partes sejam consideradas como exibindo estados de caracteres. Mas isso só se consegue assumindo uma perspectiva histórica, evolutiva (p. 85-6).

Esse ponto está alinhado a uma tese de Caponi segundo a qual há dois modos fundamentais de individualidade na biologia – os sistemas e as linhagens –, sendo que cada um deles implica uma relação mereológica diferente (cf. Caponi, 2012). Grosso modo, a biologia funcional e a ecologia tratam de sistemas, enquanto a biologia evolutiva trata de linhagens. Os sistemas são marcados por interações causais sincrônicas entre suas partes, coisa que não precisa ocorrer no caso das linhagens (cf. Caponi, 2012).

Ora, se tanto a biologia funcional quanto a ecologia tratam de sistemas, o que nos impede de incorrer em um organicismo em ecologia e conceber os ecossistemas como organismos? É aí que Caponi, uma vez mais e ainda que indiretamente, argumenta contra a concepção etiológica de função. Se admitíssemos que a concepção etiológica de função é a única válida e, ao mesmo tempo, sustentássemos que a ecologia realiza análises funcionais legítimas, seríamos obrigados a aceitar a conclusão de que os ecossistemas resultam de processos de desenho natural. Caponi, ao longo do último capítulo de seu livro, procura desvincular a legitimidade do discurso funcional em ecologia da ideia de que os ecossistemas são objetos naturalmente desenhados.

A ecologia, defende Caponi, faz atribuições funcionais em um sentido que é muito parecido com aquelas efetuadas pela biologia funcional, ou seja, que podem ser diretamente traduzidas em termos dos papéis causais que certas partes cumprem em certos sistemas. Porém, o que justifica a afinidade entre as duas disciplinas, segundo Caponi, não é uma perspectiva organicista sobre seus respectivos objetos de estudo, mas sim algo sobre seus ideais de ordem natural (cf. Toulmin, 1961). Brevemente, um ideal de ordem natural é um princípio, enunciado desde o ponto de vista de uma teoria ou domínio de investigação, que determina quais são os fenômenos que fazem parte de uma “ordem esperada” e que, portanto, não precisam ser explicados. Os fenômenos que, por outro lado, emergem por sobre esse horizonte ideal de regularidade são os que devem ser analisados e explicados por essa teoria.

Caponi explica a proximidade entre a biologia funcional e a ecologia como uma proximidade de ideais de ordem natural. Os ideais de ordem natural dessas duas disciplinas, segundo Caponi, envolvem a pressuposição de que os estados organizados dos sistemas são configurações improváveis, que merecem ser explicadas; a desordem, o aumento da entropia, por sua vez, é o estado esperado ao qual tendem todos os sistemas. Que um sistema mantenha, por homeostasia, um arranjo organizado frente às contingências do entorno é algo que supõe “uma articulação, uma sintonia afinada, de uma multiplicidade de fatores cuja condição de possibilidade e cuja ocorrência é necessário explicar” (p. 108).

Fazendo um trocadilho, Caponi afirma que a sustentabilidade é a questão-chave da ecologia. Os ecossistemas são arranjos frágeis de processos e partes que parecem passíveis de serem desarticulados ao menor desajuste. Assim, os ecólogos estão interessados em saber como esses estados de equilíbrio delicado se sustentam, isto é, como suas diferentes partes e processos contribuem para a manutenção desses arranjos. Desse modo, enquanto o componente maior (z) era, no caso da análise funcional, um sistema autopoiético, nas análises ecológicas ele corresponde à persistência de um ecossistema, de uma comunidade ou população (p. 109).

Julgamos que uma pequena objeção pode ser levantada contra a argumentação de Caponi, mas, ainda assim, essa objeção pode ser resolvida por meio de um esclarecimento. A objeção é a de que pode haver uma circularidade no argumento, pois, se os organismos são sistemas orientados por metas intrínsecas, não seria lícito supor que elas derivam de algum processo de desenho (ainda que natural)? Se sim, há circularidade no argumento, pois um processo natural de desenho precisa, em primeiro lugar, de um sistema orientado por metas intrínsecas para poder ocorrer. Por isso, pensamos que a resposta tenha de ser negativa. A origem dessas metas deve estar em algum processo de auto-organização anterior e complementar à ação da seleção natural. Certamente, podemos dizer que a imensa variedade de modos pelos quais os organismos perseguem essas metas seja resultante de processos de seleção natural; porém, basta que o pontapé inicial, o primeiro sistema autopoiético, tenha surgido por outro processo natural e espontâneo, para que a aparente circularidade da argumentação seja dissolvida.

Ora, talvez pela própria natureza heterogênea e anômala dos fenômenos biológicos, as posições pluralistas são altamente atraentes na filosofia da biologia. É claro que não é possível julgar a legitimidade dessas soluções em abstrato, independentemente dos debates particulares. As soluções pluralistas têm sido consideradas atraentes nos debates sobre os conceitos de “espécie” (cf. Ereshefsky, 2001) e de “gene” (cf. Waters, 2004), para citar dois dos muitos exemplos que podem ser encontrados na literatura. Conforme já mencionamos, o livro de Caponi contraria essa tendência ao mostrar que é possível fazer, com um único conceito de “função”, aquilo que se pensava que só era possível fazer com dois.

Aliás, outra tendência recente da argumentação na filosofia da biologia é que ela tende a ser meramente destrutiva e cética, sem apontar alternativas às posições que pretende derrubar. Nesse ponto, a argumentação de Caponi também é exemplar, pois vai além de uma simples refutação da posição etiológica e constrói efetivamente todo um arcabouço teórico que permite explicar uma série de fenômenos da prática da biologia. Esperamos que parte desse arcabouço possa ter sido vislumbrado aqui com os conceitos de “função biológica” e de “objeto (naturalmente) desenhado”, bem como as distinções parte/caráter e sistema/linhagem. Entretanto, esta resenha não teve a pretensão de substituir a leitura do livro, a qual recomendamos mesmo aos biólogos e filósofos da biologia que não estejam diretamente trabalhando com conceitos afins a seu conteúdo. A forma de argumentar de Caponi já é suficientemente inspiradora a ponto de recompensar a leitura.

Notas

1 Cabe ressaltar que, embora não tenhamos espaço para detalhar esse ponto aqui, em diversos pontos-chave do livro Caponi estabelece discussões com autores brasileiros e latino-americanos. As referências principais nesse sentido são Chediak (2011), El-Hani & Nunes (2009) e Ginnobili (2009).

2 Até aqui, nesta resenha, opusemos a concepção etiológica à processual. Isto é um tanto impreciso e injusto em relação ao livro de Caponi, que sugere desde o início (p. 19) que a distinção proposta por Garson é mais geral e precisa.

Referências

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Jerzy Brzozowski – Departamento de Filosofia. Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Erechim, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:  [email protected]

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[DR]

 

Out of our heads: why you are not your brain, and other lessons from the biology of consciousness – NOË (D)

NOË, A. Out of our heads: why you are not your brain, and other lessons from the biology of consciousness. Nova York: Hill and Wang, 2010.Resenha de: HOLLANDA, Gabriel Jucá de. Dissertatio, Pelotas, v.37, 2013.

Cognitive neuroscience is the discipline that merges two influential ideas: 1) The mind is an information-processing engine that builds representations of the world and 2) The brain is the locus of all mental activity. Scientists in this field expect to obtain a comprehensive account of our cognitive capacities through the use of imaging techniques such as PET (positron emission tomography) and fMRI (functional magnetic resonance imaging). The idea is to take advantage of such resources in order to understand how the brain implements mental functions. It is thought that each cognitive ability, understood abstractly or psychologically, has a correlate in neurophysiology. Philosophers of mind tend to be especially interested in the so-called NCCs (neural correlates of consciousness) and their potential to shed light on the nature of conscious phenomena, such as sensory perception and voluntary action. Fortunately for its proponents, among whom one finds many scientifically-minded philosophers, the search for NCCs has led to testable and predictive theories of phenomena such as visual perception, and this seems to vindicate the framework within which the issues are defined and dealt with.

Philosopher Alva Noë, a professor at UC Berkeley, says the whole conception described above is, despite all its apparent success, overhyped. Indeed, he says it is overhyped to the point of being presented to audiences worldwide as a stunning novelty, when it has in fact held educated people in thrall for decades.

In his latest book, Out of our heads: why you are not your brain, and other lessons from the biology of consciousness, Noë claims mainstream cognitive neuroscience has not and cannot achieve its goals, for it rests on false assumptions, some of which are philosophical in nature (p. 5-7; 98-99). He argues firstly that it is misleading to see biological minds as information processors; secondly (and most importantly), that our minds are not located within our bodies, as the search for NCCs implies. Mental activity is rather a holistic process that extends to the organism’s environment. Higher animals are not intelligent due to the possession of a map that passively and intellectually represents the world. Their consciousness, like most of their mental faculties, interacts dynamically with the world. This brings us to Noë’s main point: People cannot be identified with their brains (p. 24). Brain activity can only give rise to a mind when situated in a biological and cultural context of action and skills. It is high time we gave up the idea that neurological activity per se is sufficient for consciousness, which seems to imply the absurdity of consciousness in a petri dish (p. 12).

So let us look first at the negative arguments Noë advances. Those whose sympathies lie with mainstream cognitive neuroscience might think brain scan technology gives us a clear-cut picture of cognitive activities in the brain. Not quite, says Noë. The definition of a baseline relative to which one can detect neural correlates of cognition is problematic. For starters, the brain is never at rest, and comparing the baseline with the target activity involves the assumption that there are no feedback mechanisms from the latter to the former. Given the fact that there are indeed such loops in certain brain systems, one must not jump to conclusions about brain imaging data (p. 20-22). Furthermore, brain scans cannot at present tell us how metabolic activity relates to the mental goings-on of patients in persistent vegetative state. One might think that reduced brain metabolism explains impaired mental functions in vegetative patients; astonishingly, though, “it would appear that global metabolic levels remain low even after full recovery” (p.18). The upshot is that we ought not to get carried away with alleged discoveries of NCCs by cognitive neuroscientists. It is just not about looking and observing what is going on.

Another point against the identification of conscious phenomena with NCCs has to do with neural plasticity. The view that the mind is a set of dedicated information-processing modules predicts the existence of specialized systems for each sensory modality, and is supported by the apparent discovery of an area that represents faces specifically (p. 110-117).

Nonetheless, Noë mentions (p. 53-56) experiments with ferrets where the animals’ eyes are wired up to brain structures normally used in hearing. If there were something in the visual cortex that made experiences visual, and something else in the auditory parts making experiences auditory, the ferrets would “hear with their eyes” (p. 55). But this is not the case. The ferrets see with their supposed auditory brains. This implies a malleable connection between brain structures and the qualitative character of experiences. For this reason, it is ill-advised to equate a given conscious phenomenon with activity in this or that part of the brain. The structure of the “auditory brain” is not the key here; what explains its role in the experience is its connection to a certain source of information. Moreover, it has been shown that depriving cats of sight during a given period in their infancy destroys their ability to see. Experimental data strongly suggests, then, that “sensory stimulation produces the very connectedness and function that in turn make normal consciousness possible” (p. 49). Here is a good reason for considering the possibility that the visual character of experience is determined by interaction with the environment, and not just by activity in this or that brain structure.

So how does Noë convert the insights above into a theory that actually explains the data? In a nutshell, he claims that perceptual experience happens when organisms apply their mastery of the laws of sensorimotor contingencies (p.47-65). Put another way, conscious beings have subjectivity in virtue of their use of special skills which constitute a kind of non-propositional knowledge. They can skillfully exploit certain potentialities to get information from the environment. Creatures that are capable of seeing, for example, have mastered the lawful dependence relation between their actions and visual input, a relation determined by the character of their visual apparatus. As Noë says, “how things look depends, in subtle and fine-grained ways, on what you do. Approach an object and it looms in your visual field. Now turn away: it leaves your field of view” (p. 60). Furthermore, conscious animals tacitly understand the sensorimotor contingencies determined by visible objects and attributes such as shape, color and size. The visual character of a shape, for example, is the set of all potential distortions that occur when a given object is moved relative to the subject, and vice-versa. Similarly, the sensation of color is determined by the way a surface changes the light when it moves relative to the observer or light sources.

The structure of such changes is lawful, and integrating the activities that rely on knowledge of the relevant laws in planning, reasoning and speech is experiencing color. The remaining sensory modalities are individuated by sets of laws that are unique to each of them. Consider auditory sensorimotor contingencies: eye movements or blinks make no difference to them, whereas head rotations do (when we move our heads towards a sound source, we change the amplitude of the input)1. By the same token, tactile information is not obtained from a viewpoint, and is not dependent on light sources. The relevant transformations depend on contact with the objects, that is, a particular use of our bodies.

Touching allows us to perceive an object’s shape when we have a sense of the movements “allowed by the object’s contours” (p. 61).

What is the brain’s role in all this? According to Noë, the brain is a key element in consciousness because it “coordinates our dealings with the environment” (p. 65). Without an environment to ground such dealings, though, there is no interaction and therefore no experience. Perception is like dancing with a partner; when dancing, one moves this or that way because the partner has made a given movement. Brains are analogously connected to their environment. This implies the falsity of the neuroscientific account of a brain that generates consciousness through representational activity alone.

Indeed, it is misleading to see the mind as a set of representations. The world is its own model; we do not need a map of it inside our heads because the environment is accessible to those that have the sensory motor skills described above (p. 141). This claim is supported by change blindness data.

The relevant experiments show that we fail to perceive major changes in our visual environment when not attending to the fleeting elements themselves.

Noë concludes that “it is untrue that we enjoy detailed, stable internal depictions of the external world” (p. 142). Consequently, the search for NCCs pursued by cognitive neuroscientists is futile. The target representations are simply not there! It is about time we realized that instead of neural representations doing the job on their own, “it is the world itself, all around, that fixes the character of conscious experience” (p. 142).

Unfortunately, there are some gaps in Noë’s case on Out of our heads.

Those familiar with his earlier work2 will probably notice Noë fails to mention how his view can unify a range of phenomena from blindsight to visual agnosia to color vision (although prosthetic perception and perceptual stability are mentioned). This is a rather curious omission, since discussing the phenomena above would considerably strengthen the case for a sensorimotor approach.

Further weaknesses can be found in the negative arguments against the mainstream view. It is certainly interesting to learn about the shortcomings of brain scanning techniques, but is it not premature to criticize neuroscience for not being able to see directly what is going on? Science, after all, does not necessarily depend on direct observations. Cognitive neuroscientists can complement brain imaging evidence with new predictions, and this has been done3. Another weakness on the book is Noë’s portrayal of neuroscience as a science of picture-like representations (p. 140). The mainstream view does not need mental snapshots. It can use vector coding, for example, to explain representation in a more abstract way4. Some philosophers sympathetic to the mainstream view are also aware that mental activity needs a wider environment that provides a context. Christopher Hill’s account, for example, claims that representational content is determined by interaction with the environment in an evolutionary context.5 This means he is quite ready to concede that it is impossible to have consciousness in a petri dish (there is no straightforward supervenience of mental properties on neurological goings-on), while holding a view where internal representations are key.

What is the main lesson to be drawn here? The main point in favor of Noë’s view (as expressed in Out of our heads) is its concern with problems that are internal to the relevant science, but relevant to philosophy at the same time.

Notions such as qualia and zombies have often been used in a way that is hardly constructive; it is arguably futile to look for a positive role they can play in formulating theories. Noë manages to present an intriguing alternative to the mainstream theory that is built with materials outside the box of metaphysical thought experiments, qualia and zombies. The coming battle between mainstream neuroscience and the sensorimotor approach will be a rather interesting one.

Notas

1 See A sensorimotor account of vision and visual consciousness (O’REGAN e NOË 2001), p. 941.

2 See, for example, O’REGAN & NOË, 2001.

3 DEHAENE & NACACCHE, 2001, p. 18-22.

4 CHURCHLAND 2002, p. 290-302.

5 HILL, 2009, p. 148-153.

Referências

CHURCHLAND, P. S. Brain-wise: studies in neurophilosophy. Cambridge, MA: MIT Press, 2002.

DEHAENE, S. & NACCACHE, L. “Towards a cognitive science of consciousness: basic evidence and a workspace framework”. In: DEHAENE, S. The cognitive neuroscience of consciousness. Cambridge, MA: MIT Press, 2001.

HILL, C. S. Consciousness. Nova York: Cambridge University Press, 2009.

NOË, A. Out of our heads: why you are not your brain, and other lessons from the biology of consciousness. Nova York: Hill and Wang, 2010.

O’REGAN, K. & NOË, A. “A sensorimotor account of vision and visual consciousness”. In: Behavioral and Brain Sciences (2001) 24:5, p. 939-1031

Gabriel Jucá de Hollanda – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

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A Biologia militante – DUARTE (VH)

DUARTE, Regina Horta. A Biologia militante: o Museu Nacional, especialização científica, divulgação do conhecimento e práticas políticas no Brasil – 1926-1945. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010, 219 p. Resenha de: PEREIRA, Airton dos Reis; OLIVEIRA JÚNIOR, Rômulo José Francisco de. “A  voz mais alta da Biologia”: Diálogos entre história política e história da ciência. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.

A Biologia Militante, de Regina Horta Duarte, professora titular do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, é, certamente, uma grande contribuição aos muitos cursos de graduação e pós-graduação em História e permite-nos não apenas aprender sobre o tema analisado, mas compreender os procedimentos teórico-metodológicos do fazer histórico.

A partir da leitura dessa obra temos a certeza de que, além de pesquisas em arquivos, a escrita da história é fruto de escolhas afetivas, de constantes perguntas, da busca por conhecimentos transformadores e do desejo de fazer História como uma aventura intelectual que ressignifica nossas questões referentes à relação presente-passado por meio da construção de narrativas plausíveis.

A Biologia Militante é uma escrita leve, sedutora, clara e traz excelentes análises sobre a história do Brasil no período varguista. O fio condutor adotado foi a história do Museu Nacional do Rio de Janeiro, no período compreendido entre 1926 e 1945, privilegiando as articulações entre prá-ticas cientificas e vida política, o surgimento das especializações, no caso especifico da ciência biológica, e as experiências de divulgação científica.

O livro nos convida a entrar em contato com os conhecimentos e as práticas de três cientistas do Museu Nacional: Edgar Roquette-Pinto (18841954), antropólogo; Alberto Sampaio (1881-1946), fitobotânico; e Cândido de Mello Leitão (1886-1948), aracnólogo. Ambos haviam passado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro quando esta tinha passado por reformas, com a introdução de novas disciplinas e ênfase no ensino prático. As novas tendências européias de valorização do laboratório e do conhecimento biológico, sob influência da teoria de Pasteur, estiveram presentes na faculdade, nesse período. Esses homens fizeram de suas pesquisas ferramentas para a construção de uma identidade nacional e por meio da noção de saber criativo possuíam a esperança de que este tipo de conhecimento transformaria a sociedade brasileira

Roquete-Pinto foi professor do Museu Nacional desde 1906, sóciofundador da Academia Brasileira de Ciências (ABC), membro fundador da Associação Brasileira de Educação (ABE) e participou ativamente da organização da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro da qual foi seu secretáriogeral. Mello Leitão iniciou sua carreira como zoólogo, em 1913, na Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, do Rio Janeiro e no ano de 1916 trabalhou com Roquete-Pinto na Escola Normal do Rio de Janeiro. Sampaio foi contratado como professor de Botânica do Museu Nacional, em 1912, era membro da ABE e participou ativamente das atividades da Rádio Sociedade. Roquete-Pinto e Sampaio, embora que em momentos distintos, participaram de viagens feitas por Marechal Rondon no interior do Brasil.

Além de serem grandes amigos, tais cientistas articulavam, entre si, não só a produção e difusão de conhecimentos, mas o jogo de reconhecimento pessoal e intelectual e, por outro lado, partilhavam grandes expectativas de transformação do Brasil numa grande nação, num contexto de jogo político intenso do governo provisório de Getúlio Vargas. A perspectiva era a construção de uma sociedade sem conflitos, harmônica, corporativa e regida por um Estado forte e centralizado. Estudos como os de Mello Leitão – num processo de negação ao darwinismo -focalizavam a vida social dos animais negando a competição entre os seres vivos, mas a obediência, harmonia, bondade, solidariedade, a hierarquia. Não obstante, as perspectivas de Vargas encontraram eco nas concepções defendidas pelos cientistas do Museu Nacional. Apesar das nuances do jogo político da época, esses cientistas foram atores em sintonia com as perspectivas do governo provisório de Vargas em “curar o corpo e aperfeiçoar o espírito” de um povo desvalido e empobrecido, vítima de elites egoístas.

O livro é composto de três capítulos. No primeiro, “A voz mais alta da biologia”, a autora argumenta que, desde o final do século XIX, a idéia da natureza como patrimônio nacional era um tema importante, e acreditava-se que o Brasil deveria se afinar ao debate internacional para amoldar-se aos padrões de civilidade. A hipótese central deste capítulo era de que, entre 18951930, a biologia se afirmou como saber específico e diferenciado, ganhando importância política e visibilidadede “mestra da vida”. Duarte estabelece sua argumentação a partir de quatro temas: a eugenia nas primeiras décadas do século XX,a biomedicina,a entomologia (médica e agrária) e o que ela vai chamar de a experiência de campo (em que poderíamos denominar de pesquisas para obter a noção da relação teoria e prática dos estudos).

A autora mostra como a biologia se constituiu como campo específico do conhecimento e como este se firmou como um saber decisivo na resolução de problemas políticos, principalmente a partir da emergência da população como objeto de preocupação nacional. Neste capítulo, Duarte trata ainda da participação de Roquette-Pinto, Mello Leitão e Sampaio, autoridades científicas do Museu Nacional, na elaboração de um anteprojeto do Código de Caça e Pesca, solicitado pelo Ministério da Educação e Saúde, em 1933, cujo decreto foi assinado pelo Presidente da República, no ano seguinte. O Código de Caça e Pesca seria um instrumento importante na regularização e preservação do patrimônio flora-faunístico. Naquela época era notória a extinção de espécies animais cujas peles eram exportadas para compor a moda da “alta sociedade”. Os cientistas advogaram a necessidade do Governo Federal regular os “apetites” das elites em favor dos interesses de todos. Duarte destaca os êxitos e as frustrações dos cientistas no tocante ao texto final da Lei.

No segundo capítulo, A miniatura da Pátria, a historiadora inicia discorrendo sobre um churrasco realizado na Quinta da Boa Vista, na cidade do Rio de Janeiro, por contingentes das forças armadas gaúchas que visitavam a capital do Brasil. Edgar Roquette-Pinto, diretor do museu, convidou os soldados e os acomodou no Museu Nacional para assistir vídeos educativos sobre a natureza fauna-florística brasileira. Tal evento ganhou expressão para compreender como os biólogos articulavam uma série de meios comunicativos para propagar a idéia de preservação da natureza do país. Rádio, cinema, jornais e a Revista Nacional de Educação foram os principais divulgadores dessa idéia e o Museu Nacional abriu as portas para aulas práticas com crianças e jovens, e para visitas à sala de exposições de antropologia. Divulgar o conhecimento natural de todas as formas possíveis, ensinar às massas a ler e a escrever eram metas dos biólogos do museu. Ao final deste capítulo a autora se debruça sobre a documentação da Coleção Brasiliana1 e analisa as idéias dos três cientistas publicadas em diversos livros que produziram e cujo tema central versava sobre a biologia no Brasil. Entretanto, sendo o período histórico em questão, um momento na qual circulava no país as concepções da Escola Nova, seria muito mais enriquecedor se a autora tivesse tecido relações com essa postura pedagógica. Acreditarmos que essas análises seriam um elemento a mais para compreender a propagação das políticas de divulgação do conhecimento científico na era Vargas.

No terceiro capítulo, Como se fazia um biólogo, a autora nos apresenta a criação da Sociedade dos Amigos do Museu Nacional. Esse grupo surgiu em detrimento do afastamento dos três cientistas do museu e nos conduz a compreender a trajetória de Cândido de Mello Leitão ao analisar esmeradamente as obras escritas por ele e como sua produção foi significativa para a Biologia tornando-o reconhecido nacional e internacionalmente como um especialista em aracnídeos. Duarte não deixa de mencionar que o Museu Nacional perdeu força no fim da era Vargas como instrumento constituidor de opinião pública e que o discurso biológico, da mesma forma, se enfraqueceu como símbolo da identidade brasileira. Não obstante, a Biologia despontou como ciência importante no cenário brasileiro e ganhou espaço significativo nas universidades do país.

A leitura de A Biologia Militante é fundamental por ser um exemplo de trabalho bem escrito, fundamentado teoricamente e com fontes utilizadas de forma burilada. Deve ser lido para entender que o exercício interdisciplinar, lançado mão desde a Escola dos Annales, é extremamente significativo para as pesquisas históricas. É possível ainda conhecer possibilidades do exercício prosopográfico e perceber que muitos temas podem ser vistos como edificadores da nacionalidade brasileira.

O texto nos mostra ainda que a melhor referência teórica a ser aplicada na escrita depende dos documentos que escolhemos para cotejar as informações; é assim que Michel Foucault emerge diversas vezes na obra, principalmente quando fica notória a noção de que os sujeitos se constituem nas redes relacionais em que atuam, como no caso dos biólogos analisados. A obra coloca o leitor na perspectiva da História como conhecimento criador, realizado nas condições de possibilidades de cada pesquisa. Ao analisar racionalmente o papel do fazer científico na instituição das sociedades ao longo dos tempos, a autora busca se afastar do que Marc Bloch chamou do “satânico inimigo” da História: a mania de julgar.

A Biologia Militante, além de ser um excelente diálogo entre História e Biologia, pode permitir primorosos debates sobre questões sócio-ambientais, no Brasil, além de servir de alerta à sociedade brasileira para não aplainar o novo Código Florestal, aprovado em maio de 2011, sem indignações.

Mais do que um discurso histórico construído na interface da história política e da história da ciência, o livro de Regina Horta Duarte ajuda a compreender as articulações e os arranjos políticos que certos intelectuais fazem em seu tempo, no campo de produção e no jogo de relações com os poderes instituídos. Podemos, com certeza, afirmar: é uma excelente contribuição ao campo da história intelectual.

Programa de Pós-Graduação em História/Centro de Filosofia e Ciências Humanas.Universidade Federal de Pernambuco. Campus Recife.Avenida Acadêmico Hélio Ramos S/N10º andar CFCH. Cidade Universitária -Recife- PE- Brasil. CEP:50670-901.

1 A Coleção Brasiliana foi inaugurada em 1931 por Fernando Azevedo e o projeto central era de “descobrir o Brasil aos brasileiros”.

Airton dos Reis Pereira – Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Professor da Universidadedo Estado do Pará (UEPA) e membro do Grupo de Pesquisa: Movimentos Sociais, EducaçãoeCidadania na Amazônia/UEPA/CNPq. [email protected].

Rômulo José Francisco de Oliveira Júnior – Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Integrante do GEHISC/UFRPE/CNPq. [email protected].

História e Filosofia da Biologia | ABFHiB | 2007

Historia e Filosofia da Biologia

O “Boletim de História e Filosofia da Biologia” ([?], 2007) é uma publicação trimestral da Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia (ABFHiB), iniciado em setembro de 2007, por Roberto de Andrade Martins. A partir de março de 2011 passou a ser editado por: Maria Elice Brzezinski Prestes (Universidade de São Paulo); Lilian Al-Chueyr Pereira Martins (Universidade de São Paulo/Ribeirão Preto); Aldo Mellender de Araújo, (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e Waldir Stefano (Universidade Presbiteriana Mackenzie e Universidade Cruzeiro do Sul). […]

O objetivo do “Boletim de História e Filosofia da Biologia” é divulgar informações de interesse dos pesquisadores e estudantes interessados em história e filosofia da Biologia. Com periodicidade trimestral, este Boletim traz informações atualizadas sobre congressos e outros eventos relevantes (no Brasil e no exterior), novas publicações da área (livros e revistas), informações sobre teses e dissertações, informes sobre as atividades da Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia (ABFHiB), bem como artigos curtos, descritos abaixo.

Poderão ser publicados no “Boletim de História e Filosofia da Biologia” artigos assinados (curtos) que discutam temas gerais de interesse da área como, por exemplo, a metodologia da pesquisa em história e filosofia da biologia, ou o uso da história e filosofia da biologia no ensino; bibliografias comentadas sobre tópicos específicos de história e filosofia da biologia; e textos de divulgação. Podem também ser publicadas resenhas, assinadas, de livros recentes sobre história e/ou filosofia da biologia, bem como tradução de trechos de fontes primárias relevantes da história e/ou filosofia da biologia, acompanhada de breve introdução e notas. Os artigos devem ser submetidos aos Editores deste Boletim (ver endereços no Expediente, ao final deste número). Todos os artigos submetidos devem ser elaborados tendo em vista os padrões acadêmicos usuais.

[Periodicidade quadrimestral].

Acesso livre.

ISSN 1982-1026.

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Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica – MAYR (VH)

MAYR, Ernst. Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Prefácio de Drauzio Varella. Tradução de Marcelo Leite. Resenha de: FONSECA, Alexandre Torres. Varia História, Belo Horizonte, v.22, n.36, p. 574-576, jul./dez., 2006.

As contribuições feitas por Ernst Mayr à biologia evolucionária o colocariam certamente em qualquer lista dos maiores biólogos evolucionários do século XX. Edward Wilson e Stephen Jay Gould, colegas de Mayr em Harward, chegam a colocá-lo como o maior biólogo de todos os tempos. Mas as realizações de Mayr se estenderam para além da biologia. Além de seus trabalhos de divulgação da história natural e da evolução, ele também escreveu sobre a história e a filosofia da ciência, especialmente da biologia.

Se levarmos em consideração o volume, a abrangência e a profundidade do trabalho de Ernst Mayr, ele ocupa um lugar único no desenvolvimento da biologia evolucionária no século XX. E, para entendermos adequadamente este desenvolvimento, nós precisamos entender seu trabalho. E é exatamente isso que Biologia, ciência única nos permite. A cuidadosa edição da Companhia das Letras, com tradução de Marcelo Leite, transforma Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica (2005) em um livro indispensável tanto para historiadores da ciência quanto para os historiadores ambientais, e, naturalmente, também para os biólogos.

Mayr, que morreu em fevereiro de 2005 com cem anos, começou seus estudos em medicina, mudando depois para a biologia. Publicou seu primeiro paper aos dezenove anos, em 1923; tornou-se Ph.D. com 22 anos pela Universidade Humboldt em Berlim. Publicou quase 700 papers e 25 livros, dos quais o último é Biologia, ciência única, que é, segundo ele, uma versão revisada e mais madura de seus pensamentos.

Mayr, ao mudar-se para os Estados Unidos em 1931, considerava-se um ornitologista. Durante sua vida deu nome a 26 espécies e a 473 subespécies novas de pássaros, publicou cerca de 300 artigos discutindo e descrevendo a variação geográfica e a distribuição dos pássaros. Como muitos de seus contemporâneos acreditava na herança lamarkiana até se tornar amigo e interlocutor de Theodosius Dobzhansky, o qual vai exercer grande influência no pensamento de Mayr. Desse encontro surgirá a Moderna Síntese evolucionária.

A teoria evolutiva moderna surgiu entre 1936 e 1947, com a Síntese Evolucionária ou Síntese moderna. Este termo foi introduzido por Julian Huxley no livro Evolution: The Modern Synthesis, em 1942. Esta síntese é reunião da teoria de Darwin com a genética e as contribuições da sistemática e da paleontologia. Este processo começou com R. A. Fisher, J. B. S. Haldane e Sewall Wright. Alguns anos mais tarde, o paleontólogo George Gaylord Simpson, o biólogo Ernst Mayr e o geneticista Theodosius Dobzhansky irão alargar o paradigma neodarwinista. E da união entre o darwinismo e a genética nascerá o neodarwinismo.

O termo neodarwinismo ou teoria neodarwinista é usado correntemente como sinônimo de Síntese Moderna por quase todos os biólogos evolucionários, como por exemplo, Dennett, Gould, Futuyma e Dawkins. É neste sentido que este termo é usado neste artigo. Ernst Mayr, embora tenha usado neodarwinismo com esse sentido, mudou de idéia em Biologia, ciência única (2005). Por isso, a importância deste livro. Fica claro que a promessa feita na introdução do livro, de apresentar uma versão revisada e mais madura de seu pensamento, é realizada.

Neste livro (capítulo 7, Maturação do darwinsimo), ele diz que é um equívoco chamar de neodarwinismo à versão do darwinismo desenvolvida nos anos 1940, porque Romanes já havia usado este termo, em 1894, para qualificar o “paradigma darwiniano sem a hereditariedade leve [soft inheritance] (isto é, sem a crença na herança de características adquiridas)” (2005, p. 147). Na sua nova maneira de pensar, a teoria sintética da evolução, o “produto da síntese das teorias dos estudiosos da anagênese e da cladogênese” (p. 147), deveria ser chamada simplesmente de darwinismo, pois se trata

em essência, da teoria original de Darwin com uma teoria válida de especiação e sem a hereditariedade leve. Como essa forma de hereditariedade foi refutada mais de cem anos atrás, não pode haver equívoco na retomada do simples termo “darwinismo”, porque ele engloba os aspectos essenciais do conceito original de Darwin. Em particular, refere-se à inter-relação entre variação e seleção, o cerne do paradigma de Darwin, e confirma que é melhor referir-se ao paradigma evolucionista, após um longo período de maturação, simplesmente como darwinismo (p. 147).

Outro exemplo é a discussão sobre o que constitui uma espécie (capítulo 10, Um outro olhar sobre o problema da espécie). O conceito de espécie defendido por Mayr é ao mesmo tempo sua mais conhecida contribuição para o estudo da biologia, e o motivo pelo qual a maioria dos biólogos, hoje em dia, discordam da visão de espécie de Darwin. Neste capítulo ele critica o conceito de espécie dos “taxonomistas de poltrona”.

Mayr também descreve as causas que o levam a considerar a biologia uma ciência única, autônoma, com vários conceitos ou princípios específicos, necessitando, por isso, de uma filosofia da biologia específica, que difere de filosofia da ciência, segundo ele, mais ligada à física. No capítulo 9, As revoluções científicas de Thomas Kuhn acontecem mesmo?, discute as idéias de Kuhn sobre revolução científica e paradigma, chegando à conclusão que esta não é uma boa teoria para a biologia. Mayr considera que “as descrições da epistemologia evolucionista darwiniana parecem captar melhor a mudança em teoria em biologia” (p. 184), fazendo uma clara opção por esta última.

Ernst Mayr é importante para a história da biologia e para o pensamento biológico por ter sido tanto um participante ativo da história na criação da Moderna Síntese quanto por sua significativa obra reflexiva sobre a filosofia da biologia. Nos últimos vinte anos de sua vida, ele se dedicou mais à história e à filosofia da biologia. Seu grande trabalho nesta área é The growth of Biological thought, de 1982, um tour de force de 974 páginas, que demorou dez anos para ser concluído. Havia a promessa de um segundo volume que não se realizou. Além disso, ele influenciou consideravelmente três ou quatro gerações de biólogos. Mayr diz que “por toda a biologia há numerosas controvérsias não resolvidas, e que ele não era otimista a ponto de acreditar que [ele tivesse] resolvido todas (ou mesmo a maioria)” (p. 13-14) delas. E o desafio que ele propõe aos jovens pesquisadores evolucionistas é ir em busca tanto das questões não respondidas quanto, e isso é o mais importante, de questões não formuladas. Com certeza, Biologia, ciência única é um bom começo.

Alexandre Torres Fonseca – Doutorando em Ciência e Cultura na História. UFMG. E-mail: [email protected]

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