Ensino de História e Linguagem: discurso, narrativa e práticas de significação do tempo / História Hoje / 2015

As pesquisas no campo do ensino de História que hoje consideram os referenciais da historiografia e da teoria da História no diálogo com diversos outros campos de conhecimento têm crescido em quantidade e qualidade no Brasil. No entanto, em que pese o avanço teórico evidente e sua importante contribuição para a renovação do ensino dentro e fora da escola, poucos são os investigadores que têm se dedicado às questões concernentes à linguagem destacando, por um lado, a leitura e a escrita como práticas sociais, e, por outro, os gêneros discursivos em sua relação com o ensino e aprendizagem da História.

Destarte, o ensino de História é permeado e impactado pelas questões da Linguagem de forma singular, assemelhando-se e distinguindo-se da historiografia em seu sentido estrito. Nesse diálogo permanente, significantes como narrativa histórica tornam-se elementos centrais das empreitadas analíticas situadas em lugar de fronteira na busca por compreensão dos diferentes processos de significação do tempo presente que tomam lugar no espaço escolar. Articulados, tempo e narrativa, por sua qualidade discursiva compõem o processo de compreensão da existência temporal do ser humano, dado que o espaço do contar é um espaço de compreensão.

Movidas por essa preocupação, procuramos reunir neste dossiê estudos cujas preocupações recaem sobre os diálogos e tensões surgidos nos enfrentamentos e indagações pela aproximação de referenciais provenientes de dois campos: Ensino de História e Linguagem. Nesse sentido, ressaltam, em exercícios e propostas teórico-metodológicas, que a compreensão do tempo é produção linguística e que as operações discursivas envolvidas na narrativa implicam também um processo constitutivo da compreensão do mundo pelo homem, envolvendo, ainda, a constituição do próprio ser. A produção de sentido histórico no ensino de História está, dessa forma, impregnada pelo narrar o tempo e por seus desdobramentos pelos múltiplos e complexos espaços vividos.

Nesse marco analítico, propõe-se o adensamento de questões a princípio triviais e cotidianas da História escolar como os atos de ler o livro, copiar do quadro, escrever no caderno, responder provas, comprar e ler periódicos de divulgação de História e tantos outros aspectos que constituem este universo complexo, múltiplo, híbrido, ambivalente e polissêmico, que desperta muitos questionamentos e possibilidades investigativas.

A seção Dossiê é aberta pelo texto “Potencialidades das ‘narrativas de si’ em narrativas da história escolar”, de Ana Maria Monteiro e Mariana de Oliveira Amorim. As autoras apresentam as bases teórico-metodológicas de uma pesquisa em andamento que busca examinar as potencialidades das “narrativas de si” de professores, em sala de aula, para a construção do saber histórico escolar e, também, para a produção de identidades docentes.

Carmen Teresa Gabriel apresenta “Jogos do tempo e processos de identificação hegemonizados nos textos curriculares de História”, instaurando um diálogo com as teorizações do discurso e os estudos narrativos. Seu objetivo é explorar os jogos do tempo que articulam passado, presente e futuro nas narrativas identitárias hegemonizadas nos Parâmetros Curriculares Nacionais de História (PCNs) que tem como leitor potencial o professor desta disciplina.

Patricia Bastos de Azevedo em “História Ensinada e Dialogismo: prática de letramento no 6º ano do Ensino Fundamental” empenha-se em compreender a produção de sentido em práticas de letramento na história ensinada que tomam lugar em uma sala de aula de história em uma escola estadual no Rio de Janeiro / Baixada Fluminense.

Marcelo Fronza convida-nos a ler o artigo “As narrativas históricas gráficas como expressão da aprendizagem histórica de jovens estudantes do ensino médio – perspectivas da educação histórica”. O autor enfoca aspectos da expressão da consciência histórica de jovens estudantes de ensino médio tomando como objeto de análise suas narrativas históricas gráficas. No texto, Fronza indaga-se se os conceitos de intersubjetividade e verdade, ligados à identidade histórica dos jovens, interferem na orientação de sentido no tempo.

Em “Práticas de escrita escolar no ensino de História: indícios de significação do tempo em manuscritos escolares”, Maria Lima analisa aspectos expressivos e contextuais de um manuscrito escolar de uma aluna de 6º ano, cuja produção é, socialmente, considerada insuficiente do ponto de vista de uma escrita convencional. A autora privilegia o enfoque dos aspectos expressivos e contextuais com a intenção de identificar as marcas que fortalecem a hipótese de que os sentidos ali instituídos remetem a movimentos de exclusão social apoiados em formações discursivas relacionadas a processos de silenciamento empreendidos por práticas que se utilizam da escrita e da História para doutrinar, mais do que para formar.

Maria Aparecida Leopoldino apresenta-nos o artigo “A leitura de textos literários no ensino de história escolar: entrelaçando percursos metodológicos para o trato com os conceitos de tempo e espaço”. A partir de uma abordagem focada no conceito de tempo e espaço em diálogo com literatura contextualizada no ensino de História nos anos iniciais de escolaridade, a autora realiza um exercício de leitura que se constitui em proposta teórico-metodológica que favorece a desnaturalização dos heróis e a crítica às datas comemorativas.

No artigo “Enseñanza de la Historia y enfoque narrativo”, Virginia Cuesta analisa narrativas históricas produzidas por crianças e jovens do “nível secundário” no contexto de aulas de História em que privilegiou o uso didático da empatia histórica. Sua análise é fundamentada no enfoque narrativo preconizado por Gerome Bruner, e nos aportes de Kieran Egan no concernente às relações entre o poder da imaginação no ensino e o pensamento narrativo. Mobiliza também referenciais da Crítica Literária para pensar o aspecto processual da produção de narrativas históricas pelos alunos, reforçando a ideia de que as práticas de ensino de História pressupõem um trabalho comprometido com a escrita.

Fechando o Dossiê, Ana Zavala aborda em seu texto “Pensar ‘teóricamente’ la práctica de la enseñanza de la Historia” o que significa falar em teorização da prática de ensino. Confronta, para isso, os dois modos de teorização, o acadêmico e o realizado pelos professores na sala de aula da Educação Básica. A autora nega a contradição entre teoria e prática, pensando sua complementaridade e potencialidades, destacando que há uma teoria guiando a prática concebida pelos próprios praticantes, sejam eles os professores, sejam os pesquisadores que investigam as práticas docentes.

Na seção Entrevista, convidamos você leitor a uma conversa instigante com o prof. Dr. Gonzalo de Amézola, docente da Universidade Nacional de La Plata (UNLP). O diálogo norteou-se, inicialmente, pelas reflexões em torno do que chamou de esquizohistoria, termo mobilizado no contexto de suas reflexões sobre as relações entre o conhecimento histórico acadêmico e o escolar em uma perspectiva histórica. Além disso, o prof. Amézola apresenta um panorama histórico do processo de constituição da disciplina escolar de História na Argentina, destacando como uma tradição de memorismo e nacionalismo, que marcam a prática docente naquele país até a atualidade, foi instaurada ao longo dos séculos XIX e XX na História ensinada, em uma perspectiva cada vez mais autoritária.

Na terceira seção, Falando de História Hoje, podemos ler o artigo intitulado “A teoria da história de Jörn Rüsen no Brasil e seus principais comentadores”, escrito por Wilian Carlos Cipriani Barom. Nesse artigo, pautando-se numa revisão da literatura produzida no Brasil, o autor busca identificar as principais contribuições da teoria de Rüsen para a história e seu ensino, de acordo com a opinião de pesquisadores e comentadores nacionais. Utiliza-se de uma amostragem de 34 artigos publicados em revistas e anais eletrônicos de eventos dedicados às áreas de História e Educação.

A quarta seção, E-storia, é composta por dois artigos. No primeiro, intitulado “Ensino de História e tecnologias digitais: trabalhando com oficinas pedagógicas”, Marcella Albaine Farias da Costa discorre sobre possibilidades de trabalho com / sobre tecnologias digitais a partir de sua própria experiência ao desenvolver atividades com oficinas pedagógicas. Reflete sobre as diferenças entre as estratégias propostas e uma atividade dita “tradicional”, defendendo o ponto de vista que as fixam enquanto espaço e tempo de formação e pesquisa

Em seguida, Joelci Mora Silva e Sônia da Cunha Urt, no texto “Professores de História e a internet nas escolas: concepções e caminhos”, discorrem sobre a inserção das redes sociais on-line no fazer docente assumindo como principais objetivos o estudo e a reflexão acerca dos caminhos do ensino de História em sua interlocução com o uso escolar da internet.

Na seção História Hoje na sala de aula somos instigados pelo artigo do professor Décio Gatti Júnior intitulado “Uma experiência de formação de professores em torno do conhecimento histórico-educacional na Universidade Federal de Uberlândia”. O texto traz uma reflexão sobre sua experiência de ensino da disciplina História da Educação em cursos de formação de professores entre 1994 e 2014. Destacando os esforços de construção de um programa disciplinar ajustado aos interesses dos alunos e que se conjugue aos propósitos formativos, o autor fornece subsídios para pensarmos a importância da permanência da disciplina nos cursos de licenciatura.

Na seção Resenha, Isabelle de Lacerda Nascentes e Sérgio Armando Diniz Guerra Filho apresentam-nos o livro Pesquisa em Ensino de História: entre desafios epistemológicos e apostas políticas, organizado por Ana Maria Monteiro, dentre outros autores. Ressaltam que o propósito central das discussões converge para o enfrentamento dos dilemas político-institucionais ligados ao reconhecimento e valorização do potencial da escola pública como lócus privilegiado de difusão e democratização de bens culturais, incluindo o conhecimento científico. Destacam ainda que os autores assumem um desafio epistemológico, articulando campos distintos e mobilizando discursos da historiografia, das teorias do currículo, da didática e da pedagogia que construam sentido e legitimidade para o ensino da disciplina de História.

Célia Santana Silva convida à leitura do livro Ensino de História: usos do passado, memória e mídia, organizado por Helenice Rocha, Marcelo Magalhães, Jaime Ribeiro e Alessandra Ciambarella. De acordo com ela, os autores apresentam reflexões sobre o uso social da História e suas interfaces entre o ensino de história e a circulação social da história nas diversas esferas de produção, além de considerações acerca dos usos do passado em diferentes mídias. Ressalta como os textos contribuem para a ampliação de diálogos e olhares com e para a história pública, ou seja, as histórias que são produzidas para e além dos muros da escola.

Na seção Artigos leremos três textos de caráter distinto.

Maria Aparecida da Silva Cabral é autora do artigo “O Currículo Mínimo, o Ensino de História e o Sistema Estadual de Avaliação no Estado do Rio de Janeiro: reflexões sobre os processos de ensino e aprendizagem na escola básica”. A autora analisa o processo de implementação, a partir de 2012, do Currículo Mínimo proposto pela Secretaria de Educação e Cultura estadual, enfocando o impacto dessa política educacional no cotidiano escolar, especificamente, nas aulas de História do Ensino Fundamental II.

Marta Ferreira, em “Os cadernos diários nos cotidianos do Ilè Aṣé Omi Larè Ìyá Sagbá”, convida-nos a conhecer as redes educativas construídas nesse terreiro de candomblé por meio da leitura dos ìtàn (histórias de òrìṣà) como narrativa histórica que dá sentido à religião, bem como dos cadernos / diários de crianças e adolescentes candomblecistas, que registram por escrito o aprendido nos cotidianos desse terreiro.

Por fim, o texto “Conexões entre escola e universidade: o Pibid e as estratégias de residência docente” assinado pelos professores da área de Ensino de História do Departamento de Ensino e Currículo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – Fernando Seffner, Carla Beatriz Meinerz, Carmem Zeli de Vargas Gil, Caroline Pacievitch e Nilton Mullet Pereira. Os autores apresentam reflexões produzidas no âmbito do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid) desenvolvido com alunos do Curso de História da UFRGS.

Os debates tecidos neste volume não se fecham em si, mas abrem possibilidades outras, pois apresentam diferentes questões, algumas em seu processo embrionário e outras com uma trajetória mais consolidada. Nosso desafio, nesse sentido, é provocar no leitor um desassossego e um exercício de contrapalavra. Para isso, lançamos um convite aos graduandos, professores, pesquisadores e a comunidade mais ampla ao exercício de olhar com mais atenção ao comum e cotidiano e ao exótico e excepcional, pois trazemos uma incompletude e um inacabamento estruturante próprio desse processo de diálogo entre dois campos fecundos – ensino de História e Linguagem – que apresentam muitos desafios a serem enfrentados futuramente.

Maria Aparecida Lima dos Santos – Doutora em Educação. Docente do curso de Pedagogia, Centro de Ciências Humanas e Sociais (CCHS), Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Membro do Grupo de Pesquisas Oficinas da História, sediado na UERJ. Campo Grande, MS, Brasil. E-mail: [email protected].

Patrícia Bastos de Azevedo – Doutora em Educação. Professora da área de Ensino de História, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Nova Iguaçu, RJ, Brasil. E- mail: [email protected].

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