A geometria nos primeiros anos escolares: história e perspectivas atuais – SILVA; VALENTE (Bo)

SILVA, M.C.L. da; VALENTE, W.R. (Orgs.). A geometria nos primeiros anos escolares: história e perspectivas atuais. Campinas: Papirus, 2014. 141p.  Resenha de: GARNICA, Antonio Vicente Marafoti. Alterações e Manutenções: leituras sobre a geometria como saber escolar. BOLEMA, Rio Claro, v. 29, n.51, p.403-414, abr., 2015.

Dentre os historiadores que abraçam concepções contemporâneas sobre história, três princípios já enunciados em Bloch parecem indiscutíveis: aceitar que a origem de uma narrativa historiográfica é sempre arbitrada, atendendo a uma disposição do narrador; concordar que a origem não justifica a permanência; entender que as circunstâncias humanas do passado – que a história pretende prender num emaranhado de significados entrelaçados – são analisadas à luz do presente, numa dinâmica de manutenções e alterações que não ocorrem linearmente nem são guiadas pela ideia de progresso.

O recente livro organizado por Maria Célia Leme da Silva e Wagner Rodrigues Valente, A geometria nos primeiros anos escolares: história e perspectivas atuais, nos permite um exercício sobre essas concepções que, segundo penso, seria importante a todos os que escrevem história e, mais particularmente, história da Educação Matemática. Seu tema: como, no ensino primário brasileiro, se constitui e se mantém – em meio a uma dinâmica intensa de transformações – uma geometria escolar.

Ainda que o livro – como enunciam explicitamente tanto o prefácio, de Ana Maria Kaleff, quanto os próprios autores, na Introdução – tenha como público-alvo o professor que ensina Matemática para os anos iniciais, segundo os autores; e/ou os cursos de formação de professores, segundo Kaleff, o pesquisador do campo da História da Educação Matemática, não apenas por ser, também, professor que ensina Matemática – pode aproveitá-lo do mesmo modo, dada a diversidade de fontes nele disponibilizadas, os exercícios de análise sobre essas fontes e as possibilidades de problematização que ele abre, seja em relação à prática de escrever história ou às práticas didáticas relativas à Matemática.

Deve-se ressaltar, entretanto, que nem todos os quatro capítulos do texto são marcados pela mesma disposição historiográfica, viés acentuado nos três capítulos iniciais, que tecem como que um fio sequencial desde os primórdios do ensino de geometria nos anos iniciais (este o título do primeiro capítulo, que já arbitra aquela origem da narrativa da qual falávamos), passando pelo Ensino de Geometria nos Grupos Escolares, segundo capítulo, escrito por Silva e Valente, até chegar à perspectiva do Movimento Matemática Moderna, terceiro capítulo, escrito por Pinto e Valente. O quarto capítulo, redigido por Lima e Carvalho, – no qual há um diálogo mais direto com o professor que ensina Matemática acerca de conceitos geométricos e de formas possíveis de tratá-los em sala de aula, mas que, talvez por priorizar esse diálogo no presente não esteja entrecortado por uma perspectiva, digamos, histórica, nem teça relações com os capítulos anteriores, como fazem os três primeiros textos da coletânea – talvez esteja representado, no subtítulo da obra, pela expressão perspectivas atuais, ao passo que os demais capítulos respondem ao termo história, que consta do mesmo subtítulo. A conclusão, elaborada por Wagner Rodrigues Valente, explica a presença desse quarto capítulo, advogando por um vínculo entre ele e os capítulos anteriores: posto que coube aos primeiros capítulos analisar como a geometria se constitui em saber escolar para a escola primária brasileira, em meio a transformações e interferências dos mais variados matizes, seria necessário analisar, no presente,

[…] as referências tidas como importantes, tendo em vista a geometria escolar para o ensino fundamental, com destaque para os anos iniciais, em relação a como e ao que abordar nos primeiros contatos com a geometria, E, neste caso [do quarto capítulo], os temas tratados, conteúdos presentes para serem ensinados nos primeiros anos escolares, foram considerados de um ponto de vista mais avançado, sistematizados e com dose maior de rigor matemático (VALENTE, 2014, p. 129).

Segundo Silva e Valente, as primeiras discussões sobre o ensino de Geometria nos cursos primários brasileiros pode ser encontrada em texto de Martim Francisco d’Andrada – Memórias sobre a reforma de estudos da Capitania de São Paulo –, que defende proposta similar – uma quase tradução – àquela do Cinco memórias sobre a instrução pública, de Condorcet (2008) “o conteúdo desse ensino deve articular-se com a prática da agrimensura: um ensino de geometria para a prática, uma geometria prática para a primeira etapa da escolarização”. Desejando arbitrar um momento anterior à narrativa sobre a constituição, no Brasil, de um saber escolar relativo à geometria, o leitor poderia procurar aprofundar suas leituras acerca da posição do Marquês de Condorcet e dos Iluministas acerca da Instrução pública e, nela, das propostas para o ensino de geometria. Silva e Valente, entretanto, escrevendo para o professor que ensina matemática, sensatamente dão ao leitor apenas algumas indicações gerais acerca da posição de Condorcet sobre o assunto, e seguem em seu texto para abordar o primeiro fórum de discussão educacional instalado a partir da Independência: os debates parlamentares sobre a instrução popular.

O projeto da Casa Legislativa fixa, não sem controvérsias, que nas escolas primárias, “os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações da aritmética, prática dos quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria prática, a gramática da língua nacional” (grifo dos autores). Sai vencedora dos debates, portanto, a linha dos parlamentares que, de alguma forma, abraçam a proposta de Martim Francisco, incluindo, em decorrência, a geometria dentre os saberes a serem ensinados na escola primária. Além disso, abraçam também, de alguma forma, aquela proposta condorcetiana que enfatiza o ensino dessa geometria prática. Interessante notar que se trata de um ponto de vista defendido pelo intelectual francês que, antes do período revolucionário, adepto das posições de Rousseau, Locke e Condillac, defendia o preceptorado, a instrução privada, para a educação da infância, e para o qual, apenas anos mais tarde, “a instrução pública passa a se configurar […] como uma resposta direta à contingência histórica, como alternativa anticlerical” (GOMES, 2008, p. 226). Interessante, também, notar que o plano de Concorcet – o Informe sobre a organização da instrução pública, baseado nas Cinco Memórias –, sequer votado pela Assembléia Legislativa do governo revolucionário, esteve na pauta de vários outros planos posteriores para a instrução pública da França, até fixar-se em solo brasileiro, na Lei de 15 de Outubro de 1827, marco historiográfico da educação nacional.

A lei de 1827 cria a escola primária em todas as cidades e vilas e aposta na adoção do método mútuo, do que decorre a publicação de livros que pudessem ajudar os mestres na tarefa que agora era deles exigida. Nesse cenário, surge a obra de Holanda Cavalcanti de Albuquerque, uma tradução/adaptação do Desenho Linear e Agrimensura, para todas as escolas primárias, qualquer que seja o modo de instrução que seja seguido, de 1819, referência para o ensino em Portugal e no Brasil, e cujo autor, Louis-Benjamin Francoeur, é pioneiro em sistematizar os conteúdos de desenho para as escolas de ensino mútuo. Mas, segundo Silva e Valente (p. 31)

[…] a análise do livro de Holanda Cavalcanti […] mostra que a geometria será prática se os alunos forem levados a trabalhar com as figuras geométricas. […] associar a esse ensino de geometria a agrimensura, a medição de terrenos, como é a intenção inicial de Condorcet, parece ter sido deixado de lado. […]. A representação do caráter prático migra, ao que parece, de atividades rurais – como a medição de terrenos – para as profissões que têm lugar nas vilas e cidades francesas ao tempo da escrita da obra de Francoeur. E mais: a forma prática dessa geometria deverá ser demonstrada no âmbito escolar: a atividade dos alunos com o desenho das formas geométricas. Não mais o campo, o terreno, como lugar da ação dos alunos é prova do caráter prático. Assim, nesses tempos iniciais, logo ficam à mostra as transformações de significado da geometria prática: nasce, desse modo, uma geometria escolar.

A cadeia de transformações pela qual passa a geometria ensinada nas escolas primárias leva, portanto, de uma geometria prática (essencialmente vinculada à agrimensura, como propunha Condorcet) ao desenho linear (uma prática relativa ao aprendizado da construção de linhas à mão livre. Uma prática de adestramento do olhar, rumo à precisão dos traçados) e, deste, à abordagem1 que aponta como saberes a serem ensinados “a caracterização e a nomenclatura dos objetos geométricos. […] Às aritméticas, agrega-se a geometria considerada mínima para o curso primário: os seus primeiros elementos, as primeiras definições” (SILVA; VALENTE, 2014, p. 38-9).

Pode-se notar, nos parágrafos anteriores (que nada mais são que uma síntese tosca das detalhadas análises realizadas no primeiro capítulo do livro aqui resenhado) esse processo de apropriação e transformação de ideias2 que servem de exemplo àquela não-linearidade a que nos referimos no início deste artigo e que cabe à historiografia estudar: por mais que a elaboração textual teime em exigir uma linearidade na apresentação, as ideias apresentadas explicitam o tortuoso caminho para que uma determinada apreensão se estabeleça, criando vínculos e impondo-se como referência, entre permanências e alterações. Trata-se, percebe-se, de uma defesa constante da prática como aliada à geometria escolar, ainda que essa prática possa ser (e efetivamente seja) lida de modo diferente com o correr do tempo. Os interessados em historiografia – e, especificamente, os interessados ou especialistas em História da Educação Matemática que, reiterando, não são (mas bem poderiam ser) o público-alvo do livro organizado por Silva e Valente – podem, a partir desse livro, destrinchar o emaranhado de linhas que conduzem ora a um resultado, ora a outro; que partem de uma mesma compreensão para criar diferentes versões, incluindo aquela que, num movimento homeopático e subversivo, tornar-se-á, de alguma forma, a versão hegemônica ou preponderante. Por outro lado, mesmo para o público-alvo do livro – os professores que ensinam Matemática – talvez fosse interessante problematizar – ou aventar perspectivas possíveis e plausíveis – sobre o que leva uma proposta de teor nitidamente prático – o ensino de geometria vinculado à agrimensura – deformar-se a ponto de se aproximar de uma apreensão mais teórica, mais elementar (no sentido euclidiano)3, como aquela veiculada nos manuais escolares de Souza Lobo (publicados na segunda metade do século XIX mas com edições até os anos de 1930, estudados em Silva e Valente). Uma dessas possibilidades, parece-me, traz à tona uma faceta da comunidade à qual o livro de Silva e Valente se dirige: trata-se da formação de professores. Se não, vejamos: mesmo Condorcet, que não era favorável aos livros de elementos para as crianças, recomendava aos professores dessas crianças as obras de Aritmética e Álgebra do padre Bossut e uma tradução francesa dos Elementos de Euclides (GOMES, 2008). Sabe-se que, passado um século da época de Condorcet, já na Inglaterra Vitoriana, o surgimento de manuais de Geometria para o ensino, alternativos ao de Euclides, causou vasta polêmica envolvendo a comunidade de matemáticos e educadores (MONTOITO, 2013). Nessa polêmica envolve-se, por exemplo, Lewis Carroll, cuja obra Euclides e seus rivais modernos, de 1879, é uma veemente defesa da manutenção dos Elementos como texto-base nas escolas inglesas. Não é polêmica – de modo geral, e não apenas à luz desses dois exemplos – a permanência da obra de Euclides no pensamento ocidental, seja na filosofia (como uma apreensão ao que seria Matemática) (MONTOITO; GARNICA, 2014), seja como estratégia de ensino para as salas de aula. Formados segundo essas concepções de uma Matemática que só têm sentido na órbita euclidiana4, não seria implausível pensar no papel que os autores dos Manuais escolares do passado desempenham ao elaborar suas obras: cuidam de deslizar para a prática didática as abordagens da prática científica segundo a qual eram formados. São, portanto, agenciadores. Esse debate, ainda bastante atual, pode ser levantado a partir da leitura do texto aqui resenhado, e poderia mesmo dele fazer parte, como questionamento explícito das práticas de agenciamento efetivadas por aqueles aos quais esse mesmo texto se destina.

Tratados esses primórdios, são os ventos republicanos e seu modelo específico de organização educacional – os Grupos Escolares – que constituem o pano de fundo do que o leitor encontrará no segundo capítulo. Fundamental para a organização e consolidação do ensino primário, não só no estado de São Paulo onde foram inicialmente criados ao final do século XIX, os Grupos Escolares são parte do esforço republicano, junto à criação de outros símbolos específicos, para a popularização do sistema político então vigente. Sabe-se que, ao contrário do que ocorreu na França, a República brasileira foi uma estratégia das elites, implantada sem a participação popular. Era preciso, pois, extravasar a república para fora do campo da elite, popularizar as potencialidades do novo regime. Para isso, a Educação foi, desde o princípio, chave fundamental. Esse extravasamento “não poderia ser feito por meio do discurso, inacessível a um público com baixo nível de educação formal. Ele teria de ser feito mediante sinais mais universais, de leitura mais fácil, como as imagens, as alegorias, os símbolos, os mitos” (CARVALHO, 2006, p.10). A construção de prédios monumentais foi decorrência dessa necessidade de formar almas, difundindo uma instrução nova, que seguiria uma legislação também nova, diametralmente oposta – pretendiam os republicanos – à da estrutura educacional mantida pelo Império. O método intuitivo, preconizado por Rui Barbosa, que traduzira o livro Lições de Coisas, de Norman Allison Calkins, passava a ser

[…] exaltado como o elemento mais importante dessas novas propostas educacionais”, e junto à geometria introduzia-se a taquimetria, “definida por Rui Barbosa como ‘concretização da geometria’, é o ensino da geometria pela evidência material […]: é a lição de coisas aplicada à medida das extensões e volumes’ (SILVA; VALENTE, 2014, p. 43-4)

O programa de ensino que implantaria essas e outras disposições foi elaborado por “Oscar Thompson, Benedito Tolosa e Antonio Rodrigues Alves [e] oficializado pelo decreto 248 de 26 de junho de 1894.” Trata-se de um programa extenso que cobre os quatro anos de instrução, e no qual o desenho aparece como “apoio importante para a geometria e um auxiliar poderoso à observação”. Notam Silva e Valente, porém, que a mobilização do desenho de forma vinculada ao ensino de geometria não é uma novidade no ensino, posto já estar presente em obras didáticas do final do Império (como, por exemplo, no conhecido Desenho Linear ou elementos de geometria prática popular, do Barão de Macaúbas). Trata-se, pois, de outra manutenção em meio a uma dinâmica de alterações5. Do mesmo modo, mesmo ausente na letra da lei, a expressão Geometria Prática continuava a frequentar o título de manuais como os de Olavo Freire (a primeira obra didática para o ensino primário de geometria em tempos republicanos, publicada em 1894)6. Agora, no tempo dos Grupos Escolares, porém, a geometria prática passa a ser caracterizada pelas construções geométricas com régua e compasso, enquanto que o desenho, apartado, torna-se desenho natural, em que se observam e desenham objetos da vida da criança e não mais as figuras geométricas. Se a reforma de 1905 estabelece, além dessa dissociação entre geometria e desenho, uma inversão no desenvolvimento dos conteúdos de ensino da geometria (passa-se a iniciar o ensino, nos primeiro e segundo anos, pelo estudo das figuras espaciais até chegar aos elementos de geometria plana, nos terceiro e quarto anos) que se mantém até meados do século XX, a reforma de 1925 insere no programa uma nova matéria, Formas, para os dois anos iniciais, “configurada como ensino intuitivo, prático, de exploração, manipulação de objetos, sem denominações e construções”, reservando aos últimos dois anos a matéria geometria, “caracterizada por definições, propriedades geométricas, construções com utilização de régua e compasso e medidas de áreas e volumes.

Marcas da geometria escolar no ensino primário da época dos Grupos Escolares são, portanto, o novo significado atribuído à expressão Geometria Prática, anunciando a “chegada de instrumentos de construção ao ensino de geometria primário” e “a separação de conteúdos e procedimentos de ensino da geometria e do desenho, num primeiro momento, e de geometria e formas, num segundo período”.

Fica-se com a impressão, portanto, a partir das argumentações e análises de Silva e Valente, que, aparentemente, o ensino de geometria não estaria completo, ou não seria adequado, se a abordagem mais intuitiva, mais elementar, mais introdutória, mais prática (qualquer que seja o sentido que se dê a este último termo) não fosse transcendida por uma perspectiva mais sistemática, como que iniciando uma abordagem formal e, em decorrência, mais rigorosa (do ponto de vista tradicional em Matemática) dos objetos da geometria. Essa perspectiva, de forma clara, mas vestida com uma roupagem emprestada da Psicologia que se alia às perspectivas matemáticas vistas como modernas e altamente rigorosas – a proposta de Bourbaki – será o tema do terceiro capítulo da coletânea organizada por Silva e Valente: chegamos aos tempos da Matemática Moderna.

O Movimento Matemática Moderna (MMM) foi, como se sabe, tema de um projeto de grande envergadura conduzido pelo GHEMAT, Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática no Brasil, coordenados (pesquisa e grupo) por Valente e do qual participaram ativamente os autores dos três primeiros capítulos do livro aqui resenhado. Boa parte dos estudos em História da Educação Matemática sobre esse tema, principalmente em tempos mais recentes, foi desenvolvida dentro desse projeto e, portanto, essa experiência prévia permite que uma síntese aprofundada desse período e, nele, do MMM, seja feita na produção mais recente de Silva e Valente. A familiaridade dessa experiência prévia, me parece, faz com que temas como o estruturalismo na matemática e a abordagem piagetiana a este estruturalismo, bem como uma história da constituição e desenvolvimento do MMM, sejam apresentados de modo breve, mas adequado em seu detalhamento, de modo a conduzir o leitor para a discussão sobre a geometria nesses tempos de modernização do ensino.

Dos livros didáticos para o ensino primário destacam-se aqueles produzidos por Anna Franchi, Lucília Bechara Sanchez e Manhúcia Perelberg Liberman7, “verdadeiros best-sellers do ponto de vista da quantidade de exemplares vendidos ao tempo do MMM”. Sintetizando, os autores desse capítulo afirmam que “numa análise breve, pode-se dizer que, pelo menos em termos das normas para o trabalho pedagógico, altera-se substancialmente a organização dos conteúdos escolares matemáticos a serem ensinados para as crianças. Ainda que os dois primeiros livros desse Curso Moderno de Franchi, Sanchez e Liberman não abordem – ou tratem de forma brevíssima, como no caso do segundo volume – o tema geometria, o terceiro volume, no seu item Noções de Geometria, inaugura “o estudo de conceitos topológicos como dentro, fora, aberto e fechado, regiões, que se caracterizam como inovadores para o ensino primário. […] [e] pode-se dizer que a articulação entre os conceitos topológicos e a geometria euclidiana se dá por meio da linguagem dos conjuntos”.

A disposição em incluir temas da topologia – ou apostar numa abordagem topológica em detrimento da perspectiva euclidiana, apenas –, que serviria para outras coleções e livros do mesmo período, radica-se na proposta fundamentadora do MMM, estruturalista (e) piagetiana8, cuja ênfase foi marcada por três eixos matemáticos que guiariam a forma dos programas escolares e suas diretrizes psicopedagógicas: as estruturas algébricas, as noções topológicas e a relação de ordem.

A cultura escolar estabelecida, com seus valores, concepções e estratégias arraigados, entretanto, subverte homeopaticamente essas disposições revolucionárias, e acentua, mesmo nesses tempos de modernização – que não demorarão muito para se exaurir –, a abordagem euclidiana: trata-se, aqui, de outro exemplo de como as alterações e manutenções – cerne dos estudos historiográficos, reitero – ocorrem no universo da escola:

Mesmo em meio a um contexto revolucionário de propostas de mudança da matemática escolar, [sintetizam os autores], o MMM encontrou o cotidiano pronto para incorporar novos elementos da geometria sem que efetivamente tenha sido abandonada a referência da geometria euclidiana. Por entre as páginas e páginas dos livros didáticos que enfatizavam os elementos da teoria dos conjuntos, logo viria a geometria com os primeiros itens da topologia. Mas esses elementos mesclaram-se, servindo como rápida introdução para o estudo das figuras geométricas [numa abordagem] euclidiana (PINTO; VALENTE in SILVA; VALENTE, 2014, p. 81-2).

A experiência dos autores sobre o MMM e o ensino de determinados conteúdos matemáticos na órbita desse movimento, já o dissemos, permite que temas muito diversificados sejam abordados de forma sintética, mas correta e adequada para permitir um encadeamento de ideias que, em consequência, retrata, em sua dinâmica de alterações e manutenções, o ensino de geometria no ensino primário brasileiro nas cercanias dos anos de 1960. Essa mesma experiência, porém, pode justificar o que eu percebo como sendo um certo afastamento em relação ao leitor que se tem em mente para o livro: o professor que ensina matemática.

Dos três capítulos até aqui analisados, este, o terceiro, é o que mais se aproxima de uma abordagem acadêmica – seja em sua forma, seja no modo de tratar a literatura que surge como apoio às ideias apresentadas ou, ainda, no que diz respeito aos conteúdos (ou, mais propriamente, à abordagem proposta para os conteúdos) tratados na escola sob a égide do MMM. Essa opção pelo tom – mais acadêmico que o dos dois primeiros capítulos9 – não é, sob meu ponto de vista, tão problemática para o público-alvo posto que, embora mais cifrada em seus conceitos, a elaboração textual é sempre clara. Entretanto, a alusão demasiado frequente a conceitos aparentemente desconhecidos (ou, pelo menos, mais distantes) dos professores que ensinam matemática é, sim, problemática. Notemos, por exemplo, o uso reiterado do termo topologia e suas variações (estruturas topológicas, estágio topológico, conceitos topológicos, distinção entre geometria euclidiana e topologia etc)10. Sabe-se que o professor que ensina matemática não necessariamente passou pelos bancos escolares em cursos de Licenciatura em Matemática, e mesmo aos licenciandos em Matemática, na quase totalidade dos cursos atualmente vigentes no país, não é oferecida a disciplina Topologia, nem sua introdução mais óbvia na cadeia dos conteúdos matemáticos sistematizados, o tratamento dos espaços métricos. Sem esse feedback, esses leitores potenciais dificilmente darão conta de, com esse capítulo, entender o que subjaz à proposta do MMM e, em decorrência, terão dificuldade de identificar, no tratamento dos livros da época, por exemplo, a diferenciação ou aproximação subversora entre euclidiano e topológico. A experiência dos autores, obviamente, permitiria tratar com mais detalhamento esses termos e expressões aparentemente delicados sem comprometer o fluxo do texto. Poder-se-ia, talvez, sugerir ao leitor-alvo, de forma mais incisiva, leituras complementares ou, ainda, incorporar ao livro um apêndice com uma série de verbetes (ao modo de um pequeno glossário) que serviria de guia básico para esses leitores. Ficam, aqui, essas sugestões para as edições futuras que, certamente, serão produzidas.

O último e o mais longo dos quatro capítulos do livro, de autoria de Paulo Figueiredo Lima e João Bosco Pitombeira de Carvalho, é, segundo minha perspectiva, oposto, em seu tom, ao capítulo anterior. Seu subtítulo, Conversas com o professor que ensina matemática, anuncia, exatamente, o que o leitor encontrará nele: um diálogo muito cuidadoso com os professores sobre os conteúdos e os modos de trabalhar esses conteúdos nas salas de aula do ensino inicial. Os temas abordados são bastante variados: a ideia de dimensão em geometria, as representações gráficas, as projeções, as perspectivas e a classificação das figuras geométricas. O tratamento é rigoroso, mas não formalizado a ponto de afastar o leitor não muito familiarizado com a matemática. Ao contrário, o capítulo foi elaborado ao modo de um guia que pode auxiliar professores, futuros professores e até mesmo autores de livros didáticos em suas dúvidas ou intenções de produzir materiais ou discutir temas relativos ao ensino de geometria. A experiência de ambos os autores desse capítulo não só quanto à pesquisa em Matemática ou em Educação Matemática e – talvez mais decisivamente – a vinculação de ambos à avaliação de livros didáticos de matemática brasileiros, no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), resultam num texto cujo viés é mais de natureza didática que propriamente historiográfica: o capítulo ensina e esclarece alguns elementos básicos de geometria que constam dos atuais programas de ensino para a escolaridade inicial, e faz isso de forma muito clara. Assim, ainda que destoe dos demais capítulos em sua natureza, dialoga com eles em sua intenção de ter como interlocutor o professor que ensina matemática.

A conclusão dessa sequência de esforços para compreender o ensino de geometria e as dinâmicas de transformação desse saber escolar ao longo do tempo sintetiza alguns ingredientes fundamentais discutidos no livro, e enuncia, de forma clara, aquilo que penso ser uma das maiores contribuições do estudo. Trata-se de uma caracterização do fazer do professor que ensina matemática que, embora já tenha sido referenciada por Kaleff em sua apresentação ao texto, nesse momento, nas conclusões, ganha densidade por surgir como resultado da série de construções argumentativas que ocuparam todo o volume: a geometria escolar constitui-se num percurso pleno de contraposições e incorporações no qual foram elaborados e reelaborados ingredientes didático-pedagógicos que a constituem num saber transitório que faculta o acesso ao saber sistematizado da geometria, à geometria da matemática. Essa caracterização da geometria escolar, por sua vez, permite que se compreenda “que o professor que ensina matemática não é um especialista em matemática; sua especialidade liga-se à condução dos alunos a progressivamente apropriarem-se de uma cultura transitória que dá acesso aos saberes científicos”. Essa conclusão, embora não decorra apenas dos estudos historiográficos acerca do ensino de matemática que encontramos nessa coletânea organizada por Silva e Valente, pode apoiar-se de forma inequívoca nesses estudos, o que torna esse livro uma contribuição preciosa não só para professores que ensinam matemática ou professores em formação (que ensinarão matemática), mas aos interessados em História da Educação Matemática e aos pesquisadores que, mantendo ou não uma aproximação com a historiografia, dedicam-se ao estudo da formação e da atuação docente no Brasil.

Notas

1 O representante desse viés é o Manual Enciclopédico para uso das escolas de instrução primária, do português Emílio Achilles Monteverde, que parece fazer escola para outros livros (como, por exemplo, os livros do brasileiro Souza Lobo).

2 Pode-se notar, por exemplo, que em seu Reflexões e notas sobre a educação, do final do século XVIII, Condorcet já explicita um programa de estudos, estabelecendo a ordem a ser seguida no ensino. A primeira das ciências a ser estudada seria a aritmética, seguida da geometria (“explicar-se-lhe-iam [às crianças] as proporções sobre as linhas, sobre as superfícies, sobre os sólidos que se podem entender sem a teoria das proporções” (GOMES, 2008, p.222). Lacroix, um contemporâneo muito próximo de Condorcet, em sua obra autobiográfica sobre a instrução pública francesa no século XVIII, confessando sua ignorância acerca do ensino das crianças na primeira idade, mas não abrindo mão de opinar sobre isso, sentencia que seria conveniente, quanto às primeiras instruções dadas na infância, “empregar tanto quanto possível o testemunho dos sentidos” (LACROIX, 2013, p.147), no que não há discordância com o Marquês. Em seguida, porém, complementa: “A Geometria é, talvez, de todas as partes da Matemática, aquela que se deve aprender primeiro. Ela me parece muito adequada para atrair as crianças, desde que seja apresentada principalmente com relação às suas aplicações, tanto teóricas quanto práticas. As operações de traçado e de medição certamente agradarão aos alunos e os conduzirão, em seguida, como que pela mão, ao raciocínio. Aqui [neste meu livro] não é lugar para desenvolver essas ideias, que estão expostas de maneira tão verdadeira quanto eloquente no final do segundo livro do Emílio”. Para Lacroix, o costume de ensinar primeiro a ciência dos números – a Aritmética – prevaleceu apenas por serem mais frequentes as aplicações do “cálculo numérico” (LACROIX, 2013, p. 244-5).

3 Os tempos revolucionários, na França, marcaram também uma nova apreensão ao adjetivo elementar que, frequentemente, caracterizava os livros de Matemática. Antes desse período, a expressão Elementos de… indicava, mais frequentemente, obras cujo modelo era os Elementos de Euclides, ou seja, obras nas quais da apresentação e discussão de uma série de resultados essenciais a uma certa área decorriam outros resultados, também centrais a essa área. O conjunto dessas proposições essenciais com suas decorrências, ao qual algumas vezes vinculavam-se exemplos, constituía o corpo de uma determinada disciplina, seus elementos (no sentido euclidiano). Ao final do século XVIII, Elementos de… passaram a indicar livros elementares, no sentido mais usual do termo: obras voltadas ao ensino, com os conteúdos básicos de um determinado campo (Aritmética, Álgebra, Geometria etc.).

4 Opera exatamente nesse sentido a consideração feita por Lacroix ao discutir suas intenções, como autor, em seu Elementos de Geometria: “Se a dificuldade de fazer bons tratados, em qualquer que seja a ciência, é muito grande, há várias razões que a aumentam ainda mais com relação aos tratados de Geometria: primeiro, a concorrência com um autor consagrado pelas marcas da antiguidade (Euclides), sempre perigosa para um autor moderno, independentemente das razões que este último possa trazer em favor do plano que adota […]” (LACROIX, 2013, p. 221-2).

5 Já na primeira reforma do ensino primário nos Grupos Escolares, ocorrida em 1905, “a proximidade [da geometria] com o desenho não existe mais, as figuras geométricas que eram estudadas e desenhadas como passo inicial no processo de aquisição para desenhos aplicados não constam mais da lista de conteúdos”.

6 Além da obra de Olavo Freire, este segundo capítulo de Silva e Valente considera, também, a coleção (composta de quatro volumes, um para cada ano) Manual do Ensino Primário, de Miguel Milano.

7 Trata-se da coleção Curso moderno de matemática para a escola elementar, cujo primeiro dos cinco volumes foi lançado entre 1966 e 1967 (as edições publicadas quando já em vigor a lei 5692 têm o título alterado para Curso moderno de matemática para o ensino de 1º. grau, atendendo à nova nomenclatura da seriação escolar, imposta a partir de 1971). Um dentre os tantos diferenciais que tornam emblemática essa coleção é a formação das autoras: “a elaboração de obras didáticas para o ensino das primeiras letras, em especial aquelas de matemática, até meados da década de 1960, não tem autoria de professores formados em cursos de licenciatura em matemática. Liberman, Franchi e Bechara têm essa formação”.

8 De acordo com Inhelder e Piaget, segundo os autores deste capítulo, “a criança passa primeiro pelo estágio topológico, antes do euclidiano, na apropriação do espaço. /…/ Dever-se-ia [então] abandonar a milenar ideia do ensino dos rudimentos dos elementos de Euclides, voltando-se a atenção para os elementos de topologia”.  9 Notemos que os dois primeiros capítulos, ainda que não tenham um “tom acadêmico”, valendo-se, ao contrário, de uma linguagem e de um modo de mobilização de conceitos mais próximos à linguagem usual – conseguem prender tanto a atenção do especialista quanto do leigo interessado nos temas neles apresentados, sem que haja concessões quanto à profundidade, pertinência ou correção das ideias discutidas, ainda que alguns elementos mais propriamente teóricos – digamos assim –, reconhecíveis à comunidade de pesquisadores, mas estranhos ou não usuais a outras comunidades, fiquem necessariamente subjacentes, dada a opção por um determinado público-alvo.  10 A mesma consideração se aplica para outros termos, próprios da linguagem matemática, como Estruturas Algébricas e ordem, por exemplo, mas obviamente não se aplicam a termos como conjuntos, ângulos, retas perpendiculares etc, que frequentam a escolarização em todos os níveis, enquanto aqueles, quando muito, frequentam apenas os cursos superiores de Matemática, sendo, entretanto, mais essenciais para entender a proposta do MMM, tema do capítulo.

Referências

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PINTO, N.B.; VALENTE, W.R.. Quando a Geomeria tornou-se moderna: tempos do MMM. In: SILVA, M. C. L. da; VALENTE, W. R. (Org.). A geometria nos primeiros anos escolares: história e perspectivas atuais. Campinas: Papirus, 2014. p. 65-82.

SILVA. M.C.L. da; VALENTE, W.R. A Geometria nos Grupos Escolares. In: SILVA, M. C. L. da; VALENTE, W. R. (Org.). A geometria nos primeiros anos escolares: história e perspectivas atuais. Campinas: Papirus, 2014. p. 41-64.

VALENTE, W.R.; SILVA, M.C.L. da. Primórdios do Ensino de Geometria nos Anos Iniciais. In: SILVA, M. C. L. da; VALENTE, W. R. (Org.). A geometria nos primeiros anos escolares: história e perspectivas atuais. Campinas: Papirus, 2014. p. 17-40.

Antonio Vicente Marafioti Garnica – Docente do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da UNESP de Bauru e dos Programas de Pós-graduação em Educação Matemática (UNESP-Rio Claro) e Educação para a Ciência (UNESP-Bauru). Endereço para correspondência: Departamento de Matemática. Avenida Luiz E. C. Coube, s/n. 17033-360. Bauru-SP. E-mail: [email protected].

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Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói nacional – GRAMMONT (Bo)

GRAMMONT, G. Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Resenha de: GARNICA, Antonio Vincente Marafioti. Da Historiografia: campos, mitos, biografias. Bolema, Rio Claro, n. 34, p. 283-294, 2009.

“Toda vida narrada, biográfica ou auto-biográfica, é sempre habitada por uma dupla tentação: transformar os acasos e imprevistos de uma existência numa implacável necessidade; sustentar, com irredutível singularidade, o que foi um destino fragmentário.” (Roger Chartier)

“It ain’t necessarily so

It ain’t necessarily so

De things dat yo’ liable to read in de Bible

It ain’t necessarily so

/…/

Dey tell all you chillun de debble’s a villain But ‘taint necessarily so.”

(Gershwin)

Na apresentação ao recente livro de Guiomar de Grammont – sua tese de doutorado em Literatura Brasileira defendida na Universidade de São Paulo em 2002 – Roger Chartier sensatamente avalia o trabalho como uma demonstração de que “é possível escrever a história sem ficar prisioneiro de fórmulas herdadas”. O tema, bem como o esboço de cada um dos cinco capítulos, vem explicitado na Introdução da autora: “Esta não é a história de um personagem. É a história de uma imagem que se desdobra em outra e outra”. Trata-se, portanto, não de apresentar Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, e suas obras, mas de descortinar a trajetória que alçou o personagem à condição emblemática de mito, herói nacional, genial expressão do espírito barroco. Os mitos e heróis são predestinados a serem e fazerem aquilo que se deseja que sejam e façam, sendo suas existências atestadas, grande parte das vezes, à revelia de documentação que as sustente. Uma vasta busca em arquivos e uma cautelosa análise das referências bibliográficas fundadoras da mitificação permite à autora afirmar que a história do Aleijadinho (e de sua obra), “reconstituída, na medida do possível, apenas a partir dos dados que se encontram nos documentos, resulta prosaica e comum, muito menos espetacular do que se supunha. Como costuma ser, aliás, a maior parte das vidas humanas.” O tom configurador desse mito barroco é inaugurado pelo texto de Rodrigo José Ferreira Bretas1, obra meticulosamente analisada pela autora.

Fundado em 1838 e tendo como patrono o imperador Pedro II, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) esforça-se para iniciar uma historiografia nacional, da qual necessariamente faria parte o resgate de personagens, localidades e eventos que, em seu conjunto, definiriam “a” identidade nacional. O IHGB, com a intenção enunciada de apropriar-se do passado como fonte de experiência que visasse a uma sustentação para o futuro da Nação, praticava uma história teleológica, não só “conferindo ao historiador um papel central na condução desse fim último, que seria o patriotismo, o amor pelas instituições monárquicas e o sentimento religioso” como também, nas palavras de Lilia Schwarcz, “nas mãos de uma forte oligarquia local, associada a um monarca ilustrado, o IHGB se autorepresentará, nos certames internos e externos, enquanto uma fala oficial em meio a outros discursos apenas parciais”. Nesse cenário não é estranha a criação de um prêmio, em 1842, aos melhores trabalhos estatísticos e históricos sobre as províncias brasileiras. Particularmente interessantes seriam as notas biográficas sobre nossas “celebridades”, das quais surgiria um panteon de heróis nacionais. Tendo ou não sido escrita com a intenção específica de permitir a Bretas o ingresso no IHGB, o certo é que a obra sobre o Aleijadinho abre a ele as portas do Instituto, do qual passa a fazer parte como sócio-correspondente.

A obra de Bretas cria o Aleijadinho e torna-se não um texto a ser lido segundo a perspectiva da ficção – como são os retratos biográficos encomiásticos – mas como uma síntese documental encorpada com fontes orais e, portanto, a descrição de um conjunto de “fatos reais”. E “o retrato realizado por Bretas não apenas servirá à invenção romântica do artista como monstruoso gênio que a doença teria tornado taciturno e solitário, mas também provocará leituras da obra do monstro como retrato expressivo da sua personalidade atormentada. /…/ Na urgência de destacar um personagem da massa anônima dos artesãos coloniais, já não se sabe quem é autor, quem é obra”. O Aleijadinho de Bretas carrega a pesada cruz dos heróis, cujos destinos são sempre acompanhados de provação e dor. O sofrimento é condição essencial para que os consumidores de mitos reconheçam, nesses heróis, sua própria finitude e com eles sejam solidários, tornando-se co-criadores e perpetuadores dos heróis, apropriando-se inclusive de sua redenção e vitória sobre o mal. “Em Bretas”, afirma a autora, “já se inicia a associação entre o artista sofrido, martirizado (como Cristo, naturalmente) e a idéia, germinal, de nação. Aleijadinho e a nacionalidade brasileira nascem juntos na mesma manjedoura, ou seja, envoltos pela força da Igreja, força que atravessou, incólume, um século XIX de transição para a República, marcado por conflitos sangrentos, mas setorizados. Aleijadinho chega quase a tornar-se um mártir a serviço da pátria: ‘jazeu por quase dois anos, tendo um dos lados horrivelmente chagado, aquele que por suas obras de artista distinto tanto havia honrado a sua pátria!´.”

Embora a documentação existente não dê garantias sobre a paternidade do Aleijadinho, Bretas a atribui a Manuel Francisco Lisboa, artesão branco e relativamente reverenciado nas Minas dos Oitocentos: “Na sociedade rigidamente hierarquizada de então, o ‘homem bom’ é aquele que tem um bom nascimento. O filho de um homem sábio e honrado será necessariamente sábio e respeitado2. Além disso, note-se que, ao fazê-lo, Bretas dá a seu personagem uma origem branca, que o dignifica, mesmo no século XIX, quando, supõe-se, essas clivagens raciais fossem um pouco mais tênues do que no século anterior”.

Também os viajantes, interessados em explorar a exótica terra brasilis e descrevê-la a seus conterrâneos, criam uma imagem da arte mineira e, por conseguinte, operam no sentido de atribuir uma identidade ao Brasil frente ao mundo civilizado que representam. Essa visão estrangeira será por vezes negada e por vezes servirá de fundamentação aos modernistas, nas primeiras décadas do século XX, ainda que sustentando discursos em sentidos distintos: “No discurso dos viajantes do século XIX, como Saint-Hilaire, Burton, Eschwege e outros, observamos sempre a comparação implícita com manifestações artísticas e monumentos europeus, para fornecer imagens verossímeis, que possam aproximar mais da visão de seus leitores aquilo que descrevem. A comparação, contudo, sempre é efetuada segundo um padrão de inferioridade da colônia americana em relação à Europa /…/. No discurso modernista, o movimento é contrário: a ordem é revalorizar a arte local para integrá-la no vasto programa de ‘redescoberta’ das raízes da arte brasileira, enfatizando aspectos como a miscigenação racial e cultural, projeto no qual foi integrado o mito do Aleijadinho. O que chamamos de ‘redescoberta’, contudo, em nossa perspectiva, significou, efetivamente, a invenção de um país que é o Brasil modernista, baseado na invenção das raízes culturais. O barroco teria um papel fundamental na constituição dessas ‘raízes’.”

Para o viajante estrangeiro, as artesanias nacionais sempre foram arremedos da alta arte praticada nos países “centrais” dos quais provinham; interessava-lhes mais a fauna e a flora exóticas e as possibilidades que elas abriam ao desenvolvimento das ciências européias. Os relatos dos viajantes, entretanto, convém notar – como ressalta a própria autora – “costumam ser utilizados como fontes históricas ‘primárias’, capazes de fornecer informações de ‘primeira mão’ sobre os acontecimentos. Raramente essas obras são analisadas como ficção literária em si mesmas /…/. Não são apenas ‘fontes históricas’, mas fontes privilegiadas, em acordo com o pressuposto positivista de que a distância conferiria certa ‘imparcialidade’ ao olhar.” O modernismo, ao contrário, tenderá a valorizar as produções nacionais, ávido por repensar nossa identidade. O projeto de constituição dessa identidade, entretanto, afasta-se daquele anteriormente praticado pelo IHGB que era, ao mesmo tempo, uma continuidade da tradição ilustrada já iniciada no século XVIII e uma alteração quanto aos seus objetivos: no século XIX, o IHGB “tinha o objetivo completamente novo de produzir uma reflexão sistemática sobre os problemas da nação e do Estado emergentes, como um projeto civilizatório de uma elite, uma vez que /…/ a maior parte de seus membros pertencia aos aparelhos burocráticos e administrativos da hierarquia dominante no Império.” Apostando na construção da idéia de Nação num momento em que a escravidão ainda existia e parametrizado por uma visão de História apoiada na noção de progresso, não caberia identificar a cultura nacional a uma arte produzida por mulatos e indivíduos situados em escalas sociais inferiores (daí a necessidade, em Bretas, de “clarear” Antônio Francisco Lisboa e aproximá-lo da casta mais nobre, atribuindo-lhe um pai branco e até certo ponto endinheirado). Os “mitógrafos do império” tenderão, de forma mais ou menos clara, mais ou menos explícita, a desvalorizar a arte barroca ou jesuítica. No Modernismo, ao contrário, a intenção de repensar a identidade nacional não teme a aproximação com a discussão sobre a identidade racial: torna-se visceral a idéia da pluralidade étnica e, conseqüentemente, passam a ser valorizadas as contribuições dadas pela mistura de raças diferentes, ainda que as relações entre o Modernismo (leia-se Mário de Andrade) e o Estado Novo (leia-se Gustavo Capanema) não tenham sido totalmente cordiais principalmente devido ao desacordo quanto a essa questão das etnias raciais3. Do modernismo surge o Aleijadinho mulato genial, representante de uma artesania emblemática que simbolizaria a riqueza e a originalidade da arte brasileira, expressão mesmo da “alma nacional”.

Se os três primeiros capítulos do livro de Guiomar de Grammont voltam-se mais à biografia (lacunar) e à constituição do mito do artista genial a partir dessas caracterizações biográficas e interesses diversos, o capítulo quarto inicia uma discussão mais pormenorizada sobre a produção do Aleijadinho que, se já havia sido evocada nos capítulos anteriores – dada a vinculação sempre estabelecida entre autor e obra – começa então a ser tratada com mais detalhamento. O pressuposto da autora, enunciado já no primeiro parágrafo do capítulo, é o de que técnicos e historiadores da arte, via-de regra, operam “sem questionar a historicidade das categorias nas quais se baseiam para construir seus objetos. Fundamentando-se em pressupostos como ‘estilo’, ‘autoria’, ‘diretos autorais’ etc., os críticos costumam analisar obras de tempos e lugares diferentes do seu, aplicando, anacronicamente, categorias de análise contemporâneas.”

A noção de autoria – cujas origens Foucault supõe radicadas no final do século XVIII e início do século XX e que Chartier, preenchendo as lacunas cronológicas deixadas por Foucault, fixa no começo do século XVIII – pressupõe a construção de um autor que, de alguma forma, teria a prerrogativa de propriedade em relação a sua obra. Ainda que atualmente a idéia de autoria – em vários campos, mas principalmente no da arte, onde autoria está diretamente vinculada à questão financeira – nos seja usual, ela só é consolidada no século XVIII, embora tenha começado a desenhar-se na idade média (“com o revivescimento das cidades [e] a conseqüente formação das corporações de ofícios”) e fortalecida durante o Renascimento. Certamente a autoria encontra ressonância e tem sua importância maximizada num mundo que transforma tudo em mercadoria. Os ateliers mineiros do século XVIII, entretanto, funcionavam como uma coletividade produtora de obras cuja execução era “arrematada” em leilões pelos mestres desses núcleos que congregavam os mais distintos artesãos. Dessa feita, os mestres coloniais seriam bons negociantes, mas não necessariamente os artistas mais hábeis de sua corporação. Sem ater-se a esses “pormenores”, a atribuição de obras ao Aleijadinho passou a ser feita a partir de um suposto “estilo próprio”, categoria bastante interessante ao ideal onipresente de destacar, dentre a multidão de artífices mineiros, os criadores originais e, dentre eles, o genial criador dentre os criadores. Do estilo Aleijadinho, segundo os críticos, destacam-se, “além dos polegares na mesma posição dos outros dedos, /…/ os olhos amendoados, o furo no queixo, o nariz afilado com as ventas bem marcadas, as maçãs salientes do rosto; os bigodes e a barba bem delineados, apontando para baixo, barba partida no queixo /…/ etc.” O estilo é a norma a partir da qual todo o resto é definido como mesmice e vulgaridade. A discussão sobre os parâmetros que dariam conta da autenticidade da obra, assentados em princípios anacrônicos, despreza tanto as lacunas documentais relativas às obras quanto despreza as condições reais de produção à época: “em um tempo em que a locomoção de uma cidade a outra não era nada fácil, Aleijadinho teria trabalhado em cerca de trinta igrejas em diversas cidades de Minas, e realizado um número incalculável de pequenas imagens, oratórios, castiçais etc. Quantos artífices anônimos não se ocultam sob a sombra desse mito?”.

Junto aos critérios de autoria e estilo surge, para os historiadores da arte, a difícil questão da originalidade. Estudos sobre Manoel da Costa Ataíde mostram claramente que a originalidade não era um critério a nortear os trabalhos dos artífices coloniais. Há evidências eloqüentes quanto à existência de modelos prévios, gravuras e desenhos comercializados e/ou disponíveis em bíblias e outras obras. A originalidade do Aleijadinho – defendida chamando à cena seu autodidatismo, suas limitações físicas, a enorme produção em um período de tempo tão exíguo – sempre foi uma prova de sua genialidade. Há que se considerar, entretanto, que não há prática – artística ou qualquer que seja – genuinamente autóctone, e as evidências face às cópias e emulações naturais à artesania colonial levaram a uma redefinição no conceito de originalidade de modo a perpetuar mitos de genialidade artística: aos originais, o artista genuinamente genial agrega características próprias, que definem a arte nacional frente aos modelos importados. As igrejas de Aleijadinho, por exemplo, seriam “borromínicas”, mas sua apropriação do estilo seria nova e consistiria em algo totalmente diferenciado.

“Em sua definição contemporânea” – afirma Chartier logo na apresentação do livro – “a obra [de arte] supõe a originalidade da expressão, fortes relações entre as experiências do artista e suas criações e a inalterável propriedade do criador sobre os produtos de sua imaginação. É sobre tais categorias que, a partir do século XIX, foram escritas as histórias da literatura, da pintura e da escultura”. Aplicadas anacronicamente à produção artística de um escultor (ou de vários escultores) mineiro do século XVIII, esses postulados vão se conformando para sustentar a genialidade de um personagem intencionalmente constituído para louvar a nação e provê-la com uma identidade. Na confluência desses fatores tantos surge um Aleijadinho inventado a partir de documentos que, ao mesmo tempo, servem para diferentes fins, “na medida em que se imponha a eles a interpretação desejada”. Constrói-se, pois, o Aleijadinho, e tal construção – alerta Chartier – atua como um silogismo: “Aleijadinho é o escultor barroco por excelência; o barroco é a expressão mais completa da identidade brasileira; portanto, o barroco é a nação brasileira em sua essência e Aleijadinho seu profeta, reconhecido como tal pelo Estado e suas instituições. Guiomar de Grammont retira (como se diz em relação à restauração de um quadro) as diferentes camadas de verniz depositadas sobre o traço histórico do Aleijadinho”.

O que justifica, entretanto, uma resenha deste trabalho, elaborado em searas aparentemente tão distantes, num Boletim de Educação Matemática?

A aproximação de outros campos de produção cultural e acadêmica – temos defendido – é vital para repensarmos nossas próprias práticas e, num processo de apropriação criativa, dão novo fôlego e permitem a configuração de novos rumos às nossas investigações. Assim, alguns elementos claramente perceptíveis no livro de Grammont podem, sim, servir de guia principalmente aos que atualmente exercitam-se na interface entre História, Matemática e Educação Matemática.

Como primeira contribuição, aponta-se a clareza com que a autora – e o prefácio de João Adolfo Hansen, orientador da pesquisa que originou o livro – explicita a posição do IHGB que, como sabemos, é uma das matrizes – se não a matriz – da historiografia nacional e, especificamente, da historiografia da Educação. Não parece ser vão entender os mecanismos de favores e interesses que sustentavam o projeto historiográfico elitista e teleológico do Instituto, afinando-o como um aparelho ideológico cuja função precípua era inventar a nacionalidade de modo a propagar os valores imperiais. São, essas, algumas das raízes do nosso modo de conceber e produzir História, e aliar-se ou afastar-se dessas intenções talvez seja uma opção mais adequadamente feita ao se analisar versões sobre suas “origens”. Note-se, entretanto, que nem todas essas versões sobre o IHGB são tão radicais. A reportagem “Os inventores do Brasil”, de Lorenzo Aldé, publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional em comemoração ao aniversário de 170 anos do IHGB, relativiza a situação do Instituto e seus sócios em relação à tutela do Império: “D. Pedro II foi assíduo freqüentador dos debates. O fato de ter o imperador como patrono e mecenas costuma render à instituição o rótulo de ‘chapa branca’. Embora não haja dúvidas sobre o monarquismo do IHGB no século XIX, essa impressão soa anacrônica, segundo Lúcia Guimarães: ‘Era um espaço de contraposição de interpretações. As idéias eram debatidas, não impostas. A versão sobre a independência que se consolidou nos livros didáticos tinha opositores no Instituto. Varnhagen combatia a idéia de que o episódio tinha sido fruto da vontade de José Bonifácio, D. Pedro I e do povo’ /…/. Ou seja, a idéia de ´chapa branca´ faz sentido atualmente, mas não é adequada para se pensar um tempo em que os contornos do Brasil mal existiam. Literalmente falando. Em 1841, convocado ao Parlamento para expor informações sobre os limites do país, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Aureliano de Souza Coutinho, teve que confessar que…não sabia. Quando D. João voltou para Portugal, em 1821, levou com ele os mapas originais.”

Nas práticas do IHGB ficam claras as intenções quanto à construção de um panteon nacional de heróis a partir de biografias. O fascínio pelas biografias, entre alguns, perdura até hoje, e por vezes a elaboração de descrições de personagens e situações “como realmente ocorreram” confunde-se com a própria função da historiografia. Dos livros didáticos (inclusive dos de Matemática) provêm grandes contribuições para a divulgação dessa concepção distorcida de história. A “ilusão biográfica”, expressão cunhada por Bourdieu, nos dá “a ilusória unidade de uma identidade específica, aparentemente sem contradições, mas que não passa de uma máscara sob a qual se oculta uma miríade de fragmentos e versões. A utopia biográfica”, continua Grammont, “é a ilusão de que a narrativa pode reconstituir autenticamente um destino”. Esforços contemporâneos, portanto, têm a intenção de “desnudar essa utopia, de desconstruir – a contrapelo – uma história tornada verdade pela repetição e por sua adequação aos diversos interesses de momentos específicos da historiografia brasileira”. O desnudamento da utopia, porém, implica trazê-la à cena: por que as verdades fabricadas deveriam ser rechaçadas, postas à margem do histórico? Não somos também as verdades que nos impomos e segundo as quais pretendemos ou quereríamos viver? Qual o problema em aceitar o relato de uma vida que se faz relato exatamente para que o passado seja purgado, para que o presente seja mais aceitável? Tal relato não nos diz tanto quanto o relato que o nega? E ainda que alguma checagem fosse feita, ainda que alguma divergência nos surgisse no processo mesmo sem checagem alguma, não seria mais produtivo indagar-se por que essa divergência? O que ela nos ensina sobre o sujeito, sobre suas verdades, sobre seu tempo e seu modo de constituição do mundo? Recentemente numa revista nacional de grande circulação debatia-se, na seção de cartas dos leitores, sobre a autoria da conhecida frase “O Brasil não é um país sério”. Foi Charles De Gaulle, afirmam alguns. Foi Celso Vieira, embaixador brasileiro na França, rebatem outros. Foi um assessor de De Gaulle? Foi Carlos Alves de Souza, embaixador em Paris? Perguntaríamos: o que faz com que o eco dessa frase ressoe tão significativamente até hoje? Por que esse fascínio com uma autoria? O que esse fascínio nos revelaria? Que percepção de país a frase nos permite vislumbrar? Na História da Matemática, Gauss realmente determinou com presteza, quando ainda criança, a soma dos cem primeiros naturais? Como saber? Como garantir a isenção dos biógrafos de Gauss? Por que essas perguntas afetam de modo tão inclemente os historiadores da Matemática? Não seria mais operativo perguntar-se que tipo de concepção essa afirmação – e sua trajetória pelos tempos – desvela? Qual Gauss esse registro permite construir? Qual Gauss esse registro quer construir? Obviamente, na esteira de uma história-problema, não se negam as questões: afirma-se a necessidade de analisá-las sob diferentes perspectivas.

Ademais, a criação de mitos e heróis para defender posições e construir verdades “compartilhadas” não é nova, não foi inventada pelo IHGB, nem termina com o Império.

Joaquim José da Silva Xavier – apelidado Tiradentes pela habilidade em arrancar dentes sem ter formação específica para isso – é um dos maiores heróis nacionais, tido como mártir do movimento que levou o Brasil à independência de Portugal. Tiradentes foi enforcado no Rio de Janeiro em 21 de abril de 1792. Tanto sua biografia quanto os traços de seu caráter são incertos, vagamente registrados: de Tiradentes não conhecemos um esboço fisionômico confiável, nem podemos decidir se foi um consistente revolucionário ou apenas uma personagem útil às causas da República implantada no país em 1889. Dentre tantos revolucionários de biografia mais documentada, com configuração de caráter e fisionomias menos lacunares, foi Tiradentes o escolhido a representar o sucesso da causa republicana: tão logo proclamada a República, já o dia 21 de Abril de 1890 foi feriado. O regime militar, em 1965, declarou Tiradentes “Patrono da Nação Brasileira”.

Os espaços em branco no registro de sua trajetória permitiam que ele fosse visto por uns como o defensor dos valores que os militares pretendiam representar e, por outros, como um revolucionário contrário aos valores defendidos pelos militares. Sobretudo, agradava à população a fusão de dois aspectos – o Tiradentes herói defensor da Pátria e o Tiradentes ícone religioso que, como um quase-Cristo protagonizou uma paixão, percorrendo seu calvário. Mas, principalmente – e este é o traço que pretendemos realçar – Tiradentes havia nascido no estado de Minas Gerais. Ao contrário de outros estados brasileiros onde viveram grandes revolucionários, defensores das causas da Pátria, Minas Gerais constituiria, já em meados do século XIX, com os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, o centro político do país.

IHGB, Modernismo, Império, República, Tiradentes, Aleijadinho… em tantas alterações, quantas permanências. Face a essas observações, mantemos (e defendemos como legítima) a posição de que se escreve história a partir da detecção e análise dos mecanismos – ora contrários, ora complementares – que sustentam alterações e permanências, de que é possível escapar à sina de escrever História a partir de estratégias consagradas – muitas vezes pelo senso comum –, apostando na história-problema, querendo com isso significar que “a história não deveria ser propriamente vista como uma ciência do passado, mas como uma disciplina que procuraria estabelecer um  ‘diálogo do presente com o passado, e no qual o presente tomaria e conservaria a iniciativa’”, como aponta Miguel. Essa não é, definitivamente, uma posição hegemônica dentre aqueles que, em Educação Matemática, se inscrevem na região cujas preocupações orbitam no binômio História – Educação Matemática. Dentre as tantas justificativas possíveis, essa talvez seja a que mais eloqüentemente indique a pertinência da leitura, entre nós, educadores matemáticos, do livro de Guiomar de Grammont.

Notas:  

1 Traços biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa (o Aleijadinho), publicado no Correio Oficial de Minas em 1858.

2 Segundo a autora, o postulado de que os filhos se assemelham a seus pais está radicado na noção de genus, da retórica de Quintiliano que Bretas – especialista em retórica – certamente conhecia.

3 Segundo Guiomar de Grammont, o projeto do governo Vargas propunha a erradicação das raças, ao contrário do Modernismo que defendia a integração e louvava a miscigenação: “Houve, então, um prepotente esforço do governo nacionalista de criar as bases de um novo conceito de nacionalidade por meio da educação, da cultura e de versões oficiais da história, visando, pela unificação da língua e padronização do ensino, à ‘erradicação das minorias étnicas, lingüísticas e culturais’ em todos os níveis.”

Referências

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CARVALHO, J. M. de. A Formação das Almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

GRAMMONT, G. Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

HORTA, J.S.B. O hino, o sermão e a ordem do dia: a educação no Brasil (1930-1945). Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994.

NEMER, J.A. A mão devota: santeiros populares das Minas Gerais nos séculos 18 e 19. Rio de Janeiro: Editora Bem-Te-Vi, 2008.

VIDAL, D.G., A escrita da História da Educação e seus múltiplos olhares In: SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA MATEMÁTICA.PACHECO, n. 7, 2007, Guarapuava. Anais… Guarapuava: SBHMat, 2007. p. 97-108.

Antonio Vicente Marafioti Garnica.

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