História econômica, política e intelectual da África Ocidental: Lógicas de intercâmbio / Varia História / 2020

Em 2013, a revista Varia Historia publicou o dossiê “Nações, Comércio e Trabalho na África Atlântica”. Ao apresentarem esta quinquagésima primeira edição do periódico, Vanicléia Silva Santos e Alexsander Gebara, seus organizadores, destacavam:

É visível o crescimento do campo dos estudos africanos no Brasil ao longo da última década. Cada vez mais eventos dedicados ao tema ocorrem em diversos espaços no país, as agências de fomento investem no desenvolvimento de projetos vinculados à área, as traduções e publicações de livros de pesquisadores brasileiros também aumentaram significativamente nos últimos anos. O diálogo internacional, já em andamento, é mais um objetivo a ser perseguido e consolidado nos próximos anos (Santos; Gebara, 2013).

Naquele momento, as expectativas de investimento no ensino superior brasileiro eram positivas, com editais de fomento em diferentes linhas e, em especial, com financiamento para pesquisas dedicadas aos estudos africanos. No ano anterior, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) havia lançado o Edital Capes n.º 33 / 2012, referente ao Programa Internacional de Apoio à Pesquisa e ao Ensino por meio da Mobilidade Docente e Discente Internacional – Pró-Mobilidade Internacional. Entre os objetivos do programa, constava o oferecimento de oportunidades a estudantes e docentes brasileiros para realização de atividades de pesquisas, desenvolvimento tecnológico e inovação em países lusófonos localizados na África e Ásia. Oportunidades como essa foram fundamentais nas trajetórias de vários jovens pesquisadores que, com financiamento público, puderam, pela primeira vez, estabelecer parcerias e interlocução com pesquisadores angolanos, cabo-verdianos, guineenses, moçambicanos, são-tomenses e timorenses. Thiago Mota, um dos organizadores deste dossiê foi beneficiário dessa iniciativa, enquanto estudante de doutorado. Hoje, professor universitário, coordena um convênio de cooperação entre a Universidade Federal de Viçosa e a Universidade Eduardo Mondlane, de Moçambique, fruto do investimento público no ensino superior de outrora.

Além do Pró-Mobilidade Internacional, a disponibilidade de recursos às universidades e a oferta de bolsas de mestrado e doutorado também foram fundamentais à ampliação da pós-graduação, em geral, e dos estudos africanos pós-graduados, em particular. Este dossiê resulta dessas duas iniciativas, uma vez que foi por intermédio delas que os pesquisadores aqui reunidos iniciaram uma rede de colaboração. Em 2015, o então Centro de Estudos Africanos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) lançou a Chamada de Apoio à Realização de Eventos Científicos, que contemplou a proposta da I Jornada de Estudos sobre África Ocidental. Esse evento foi um dos primeiros do gênero no país a concentrar-se especificamente numa porção do continente africano, considerando suas articulações sociais, culturais, econômicas e políticas internas. Inspirado no Seminário Internacional Cultura, Política e Trabalho na África Meridional, que se realizaria na Unicamp em maio daquele ano, a I Jornada propunha verticalizar a agenda científica em estudos africanos, rumo a uma maior especificidade no campo, por meio de dinâmicas circunscritas ao espaço oeste-africano. Foi a semente deste número.

Do evento resultou o livro Estudos sobre África Ocidental: dinâmicas culturais, diálogos atlânticos (Reis; Resende; Mota, 2016), por intermédio do qual um dos organizadores do dossiê travou profícuo diálogo com Sílvio Marcus de Souza Correa, um dos colaboradores deste volume. A iniciativa fomentou uma segunda edição da Jornada, que tomou corpo através da V Jornada do Centro de Estudos Africanos da UFMG, em 2017, em parceria com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), da Guiné-Bissau. Esse evento contou com ampla participação de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, muitos deles africanos vindos de países como Cabo Verde, Gâmbia, Guiné-Bissau e Nigéria. Dele resultou outro importante livro sobre a história intelectual e o patrimônio cultural na África Ocidental (Santos; Amado; Marcussi; Resende, 2019), estreitando ainda mais os laços entre a historiografia brasileira e aquela procedente do oeste africano.

Entre 2016 e 2017, em decorrência de uma bolsa de doutorado sanduíche a ser cumprida na Universidade de Lisboa, oferecida pela FAPEMIG, o outrora doutorando em História na UFMG estabeleceu trocas intelectuais com Cornelia Giesing, uma vez que ambos estavam vinculados ao Centro de História da Universidade de Lisboa. A estadia em Portugal também o colocou em contato com Juliana Barreto Farias, professora da UNILAB que se preparava para atividades de pós-doutorado em Portugal. Ademais, com o auxílio da bolsa conseguida, o então pesquisador pós-graduando pode deslocar-se ao Senegal e à Gâmbia, para realizar pesquisas em arquivos e bibliotecas desses países. Em Dacar, no Senegal, onde ficou institucionalmente vinculado à Universidade Cheikh Anta Diop, travou duradoura interlocução com Idrissa Ba, outro organizador deste dossiê, parceira que tem se mantido ao longo dos últimos anos e resultado em produtos como este número.

Assim, a rede que permitiu a constituição da presente edição da Varia Historia resulta de um trabalho longo e contínuo, de colaboração e constituição de relações acadêmicas que somente foram possíveis devido ao investimento público na pesquisa brasileira. Destacamos essas informações para evidenciar como o financiamento público à pesquisa tem seus resultados prolongados ao longo do tempo, não se restringindo ao produto imediato do projeto em voga. Num momento em que a academia brasileira vive um período de crise, especialmente no que tange às Humanidades, reconhecer o amplo e duradouro impacto dos recursos recebidos torna-se estratégia de sobrevivência. Apesar disso, o fortalecimento de redes de cooperação acadêmica não isenta a organização deste número do rigor científico e da ética na condução de publicações de resultados de pesquisa. Por isso, todos os artigos que compõem este dossiê foram duplamente avaliados por pares, no sistema de revisão às cegas, e evidenciam os pontos destacados por Santos e Gebara em 2013, no que concerne aos estudos africanos: o impacto positivo do investimento público das agências de pesquisa na área, a maturidade das pesquisas realizadas no Brasil e os avanços necessários rumo à internacionalização dos estudos, da interlocução intelectual e dos resultados.

No Senegal, país cujo território atual corresponde ao espaço de várias das análises inscritas neste dossiê, que abriga muitos dos interlocutores mobilizados nos artigos a seguir e que é casa de um dos organizadores do número, a pesquisa também encontra suas principais fontes de financiamento em órgãos públicos. Trata-se de estruturas nacionais ou universitárias que arcam com a concessão de bolsas a professores-pesquisadores e pesquisadores. Entre essas estruturas, podem-se citar a Academia de Ciências, a Direção da pesquisa e cooperação internacional, as Reitorias, os Decanatos, as comissões de pesquisa dos vários estabelecimentos, as escolas de doutorado. Contudo, sob o impulso das autoridades ministeriais, a pesquisa e seu financiamento estão passando por uma revisão completa, que consiste em reorganizar as escolas de doutorado, a formação doutoral e as equipes de pesquisa, que devem tornar-se equipes maiores, transcendendo as fronteiras epistemológicas para melhor racionalizar os recursos e impulsionar as investigações. Além desse primeiro modo de financiamento da pesquisa, que conta com recursos públicos nacionais, há também parcerias internacionais, como a que está sendo formada entre universidades senegalesas, portuguesas e brasileiras em busca de formas de financiamento advindas de órgãos internacionais, como a União Europeia. Lá e cá, o que se nota é que a construção de redes internacionais de colaboração torna-se paulatinamente uma condição para a prospecção de recursos e otimização dos resultados das pesquisas históricas.

Diante desse quadro, a historiografia brasileira amplia seu diálogo com a Escola de Dacar. Essa, por sua vez, permanece fiel à sua tradição historiográfica em duas de suas principais preocupações: ampliar, seguindo Boubacar Barry (1988), a grande e bela Senegâmbia até os rios do óleo de palma; interrogar e integrar fontes de língua portuguesa (além de outras línguas europeias) aos principais materiais de construção do conhecimento histórico, como já o fizeram Sékéné Mody Cissoko (1966)Saliou Sarr (1980)Yoro Khary Fall (19911992), e muitos outros. O dossiê “História econômica, política e intelectual da África ocidental: lógicas de intercâmbio” segue esse caminho. A proposta de regionalização da agenda africanista brasileira também resulta de reflexão amadurecida ao longo dos anos e das trocas realizadas em eventos acadêmicos, como as duas jornadas relatadas. Os artigos que os leitores encontrarão indicam, pois, como os estudos africanos têm crescido no Brasil, alcançando reconhecimento e visibilidade nacional e internacional,[1] em fundamental diálogo com historiografias africanas. Intercâmbios entre pesquisadores nacionais e estrangeiros são fundamentais à expansão das perspectivas sobre a História da África, seja em abordagem, metodologias ou debates nos quais se inserem. Atualmente, pesquisas sólidas, focadas na África Ocidental, encontram-se em curso em programas de pós-graduação em História, no Brasil, e indicam a relevância dessa discussão.[2]

A proposta deste dossiê é fomentar a ampliação do campo, trazendo outros problemas, fontes e abordagens. Nutrindo-se do dinamismo do cenário existente, da expertise já em curso na historiografia brasileira dedicada à África Ocidental e agregando colaboradores estrangeiros, apresentamos um conjunto de artigos que lida com o período entre os séculos XV e XIX. O foco está nas conexões, internas e externas, estabelecidas pelas sociedades da África Ocidental, lidas na perspectiva das últimas. Visa ainda ao estímulo a pesquisas em arquivos africanos pouco visitados por historiadores brasileiros, localizados no Senegal, Gâmbia e Guiné-Bissau, além dos bem conhecidos arquivos e documentos europeus. Através desse corpus documental, o dossiê destacará intercâmbios econômicos, políticos e intelectuais dentro do continente africano e desde esse espaço com o exterior. Nossa proposta parte das conquistas teóricas e metodológicas realizadas pela historiografia africanista brasileira, senegalesa e internacional, no que diz respeito ao uso de fontes orais (Henige, 1982Wright, 1991Green, 2012), às pesquisas em arquivos africanos (Nobili, 2016Ceesay, 2018Ngom, 2020) aos métodos de análise de fontes europeias que tratam da África (Jones; Heintze, 1987Horta, 2011) e à busca pela perspectiva africana da História (Sarr, 2016Cooper, 2016).

Dialogando com a bibliografia que aponta a complexidade na História africana, além das dicotomias branco / negro, colonizador / colonizado, estrangeiro / autóctone (Boilley; Thioub, 2004), este dossiê focará na inter-relação entre sociedades sul-saarianas, norte-africanas e europeias, em contextos transitórios, entre os séculos XV e XIX. O número é formado por cinco artigos, escritos por historiadores vinculados a instituições do Brasil, Senegal e Portugal. Trazem temas variados, orientados por diferentes metodologias: 1) justaposição de fontes narrativas europeias, tratados filosóficos africanos e fontes orais para o entendimento da formação de uma cultura política islâmica na Senegâmbia; 2) abordagem historiográfica das diferentes formas de acomodação entre o comércio transsaariano e o trato atlântico, na longa duração; 3) cruzamento entre fontes escritas e orais para estudo das transformações de identidades culturais e dinâmicas de ocupação e reivindicação do espaço; 4) análise de um inquérito produzido no Senegal, em 1844, sob encomenda da administração francesa, acerca dos significados da escravidão, liberdade e sentidos do trabalho; 5) estudo da produção, reprodução e circulação de imagens sobre a conquista europeia na África através do estudo comparado de dois casos oeste-africanos.

Em conjunto, essas pesquisas apontam um panorama sobre a África Ocidental, com destaque para a região conhecida como Grande Senegâmbia, que compreende os territórios dos atuais Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri e alcança o norte da Serra Leoa (Barry, 1988Dias; Horta, 2007), além de uma incursão no atual Benim, em perspectiva comparativa. Nossa proposta é estimular o interesse de pesquisadores brasileiros por esse espaço, no período entre os séculos XV e XIX, marcado por intenso dinamismo. Ademais, buscamos evidenciar ao leitor as possibilidades de pesquisa em arquivos africanos, metodologias de trabalho com tradições orais e análises construídas a partir de textos e imagens produzidos na África e / ou na Europa, por agentes africanos e / ou europeus, ao longo do tempo. As fontes utilizadas e as abordagens recorridas indicam a riqueza do diálogo entre tais tipologias e coleções documentais publicadas ou presentes em arquivos europeus. Entendemos que a valorização desse intercâmbio documental e intelectual é necessária à ampliação e aprofundamento dos estudos africanos no Brasil, como já demonstrado pela Escola de Dacar. Dessa forma, este dossiê contribui para esse processo.

O presente número conta com cinco artigos, que abordam desde estudos de casos a análises inscritas na longa duração. A primeira contribuição é “Um coração de rei: cultura política islâmica como antecedente das revoluções muçulmanas na África Ocidental (Senegâmbia, séculos XVI e XVII)”, de Thiago Henrique Mota. Nesse artigo, o autor argumenta que os jihads que ocuparam a agenda política da África Ocidental, com maior fôlego entre os séculos XVIII e XIX, tiveram raízes mais profundas, que germinaram a partir do estabelecimento de uma cultura política islâmica sediada na África atlântica. Os elementos constitutivos dessa cultura política são uma base filosófica islâmica; sua difusão institucional a amplo número de pessoas por meio de escolas corânicas; a produção da ideia de um passado comum e o estabelecimento de expectativas de futuro fundadas num projeto de moralidade islâmica. Tais elementos teriam se articulado diante da ampliação do tráfico de pessoas através do Atlântico e seus variados impactos nas comunidades africanas. Por um lado, ampliação da violência endêmica, da escravização e das desigualdades sociais com rápido enriquecimento das elites locais envolvidas com o tráfico. Por outro, o fortalecimento das demandas por soluções jurídicas para o problema, que protegessem os muçulmanos da arbitrariedade da escravização. A isso se soma maior afluxo de papel procedente do comércio atlântico, aplicado na produção textual religiosa e jurídica islâmica através da região.

Em seguida, temos “Le commerce transsaharien et ses logiques d’accommodation par rapport au commerce transatlantique entre le XVe et le XIXe siècle”, de Idrissa Ba. Esse artigo pretende uma análise historiográfica. Ele convoca amplamente, de uma perspectiva crítica, trabalhos relacionados a três espaços intimamente ligados pela lógica comercial: o Saara, o Mediterrâneo e o Atlântico. No centro do debate, encontram-se as contribuições de David Robinson e de Vitorino Magalhães Godinho. A partir de Robinson, aborda o conceito de acomodação, redefinindo-o e recontextualizando. Em seguida, o conceito é aplicado para demonstrar como os atores e os beneficiários do comércio transsaariano adaptaram-se à abertura e ao comércio transatlânticos: por superposição, competição, colisão, captura de produtos, etc. Neste processo, o autor elabora uma contraposição à famosa fórmula de Vitorino Magalhães Godinho, relativa à vitória da caravana sobre a caravela.

“‘Le loup dans la bergerie’: narrations et identités des sujets de l’ancien royaume de Kasa en Sénégambie – Hommage à Stephan Bühnen (1950-2015)”, de Cornelia Giesing, é a terceira contribuição. Giesing é uma historiadora dedicada às fontes, como demonstrado por sua tradução e comentários acerca do Ta’rikh Mandinka de Bijini, na Guiné-Bissau (Giesing; Vydrine, 2007). Conforme a autora, o “artigo enfoca as divisões territoriais do país ajaa no interior do reino de Kaasa (séculos XV a XIX) através de narrativas sobre seu ocupação”. Na realidade, é por modéstia que Cornelia assim caracteriza sua contribuição, que explora vários documentos, constituídos principalmente por fontes portuguesas e pesquisas que ela própria conduziu em campo, para nos apresentar diferentes aspectos da história de Kaasa e dos reinos vizinhos, ao longo de cinco séculos. Tudo lhe toca: a estrutura política do espaço, em torno da capital Brikama e outras cidades secundárias; uma intensa mistura étnica e cultural (Mandinka-Sooninkee, Bañun, Joolaa, Balantes); o comércio entre o interior e a costa dominada, é verdade, pelo tráfico de pessoas; religiões locais; a exploração da terra e seus recursos. Em filigrana, a autora mostra que todas essas lógicas e dinâmicas foram feitas em detrimento dos povos Bañun que, de mestres e dominantes, tornam-se vítimas, minoritários e em vias de desaparecer. Esse processo macabro para os Bañun é reproduzido por uma frase bem escolhida, que Cornelia toma de tradições orais através da narrativa do comandante de um navio francês. Supostamente qualificando a atitude dos Balantas em relação aos Bañun, tem a seguinte redação: “um Balanta em uma de nossas aldeias é uma raposa no galinheiro”[3].

“‘Não há cativo que não queira ser livre!’: significados da escravidão e da liberdade entre marinheiros do Senegal, século XIX”, de Juliana Barreto Farias, é o quarto artigo. Aqui, o objetivo é compreender os significados da escravidão e da liberdade para os trabalhadores negros que atuavam em embarcações, nos rios e mares do Senegal. O principal aporte documental utilizado é um inquérito realizado em Saint Louis e Gorée, em 1844, no qual homens e mulheres escravizados, entre outros sujeitos, puderam se expressar e dizer o que pensavam sobre o cativeiro e sobre a liberdade. Trata-se de um documento sui generis, pouco explorado pela historiografia, ao qual se somam outras fontes, procedentes de arquivos senegaleses, franceses e publicações. Através da análise dessa seleta documentação, a autora aponta complexidades num sistema escravista vivido entre a ilha de Saint Louis e o continente africano, marcado pela mobilidade dos sujeitos escravizados, pelas relações de trabalho no contexto comercial da goma arábica e pelas hierarquias que estruturavam sociedades mestiças nos primórdios da colonização europeia na África. O sentido da liberdade construído por sujeitos negros – escravos ou livres – passava por uma ideologia marcada pela centralidade do trabalho, tema que era a ocupação central das autoridades coloniais naquela região.

O artigo que encerra o dossiê é um estudo comparado da produção, reprodução e usos de imagens, intitulado “Imagens itinerantes de potentados banidos da África Ocidental (1894-1899)”, de autoria de Silvio Marcus de Souza Correa. O texto é cronologicamente definido pelas capturas de potentados africanos diante da consolidação do colonialismo francês na África Ocidental. Em 1894, Béhanzin, oba do Daomé, foi deportado para a Martinica, após sua rendição diante das tropas francesas; em 1899 foi a vez de Samori Touré, almamy do Futa Jalom, ser deportado para o Gabão, após sua captura no ano anterior. Diante desses eventos, interessa ao autor refletir sobre as imagens desses governantes produzidas após sua captura, o trânsito delas, suas recepções e resignificações ao longo do tempo. Correa argumenta que tais representações fizeram parte da “ocupação imagética” da África Ocidental, termo que faz referência à fragilidade do controle exercido pelas metrópoles sobre os territórios africanos. Por outro lado, diferentes formas de apropriação das mesmas imagens, ao longo do tempo, transformaram-lhes os significados: de potentados africanos capturados como índice do poderio francês, foram lidas no período pós-colonial como ícones da resistência africana frente ao colonialismo. Nos dois casos, trata-se de representações pouco matizadas diante do complexo jogo de poder envolvido na captura desses sujeitos e na relação mantidas por eles com a França, antes e depois de seus exílios.

Portanto, esses textos se complementam, restauram diferentes dinâmicas e lógicas (comerciais, políticas, religiosas, etc.) que ocorreram na África Ocidental, esse vasto espaço constantemente redescoberto à luz das fontes e de sua exploração, entre os séculos XV e XIX. Aqui, as lógicas de intercâmbio são várias. Por um lado, remetem à natureza das trocas, compartilhamentos, acomodações e transformações ocorridos no espaço oeste-africano sob escrutínio. Por outro, dizem respeito aos diálogos e partilhas entre historiadores de distintos pontos da bacia Atlântica, unidos pelo interesse comum na história da África Ocidental. A continuidade desse tipo de intercâmbio depende de investimentos dedicados a pesquisas, por órgãos públicos e privados, nacionais e estrangeiros, e do fortalecimento das relações intelectuais trans-fronteiriças. Tais recursos permitiram a realização deste dossiê, que busca contribuir para nosso maior conhecimento da história africana e suas conexões com outras partes do mundo. Assim, ajuda-nos a compreender o passado da humanidade e a refletir sobre as escolhas feitas e os limites impostos a homens e mulheres, que ecoam na caracterização das sociedades do nosso tempo. Como as lógicas de intercâmbio através do tempo e do espaço bem o demonstram, ninguém é uma ilha, nenhum lugar existe fora do tempo, fora de suas conexões com o mundo. A história e sua construção estão, pois, em andamento, e a elaboração deste dossiê em tempo recorde, por historiadores de várias origens, é um exemplo disso e abre caminho para futuras colaborações, que esperamos que sejam frutíferas.

Notas

  1. Green (2019)publicou um artigo na revista Atlantic Studies discutindo o contributo de vários trabalhos realizados no Brasil à historiografia internacional, concernente aos estudos africanos.
  2. Para ficar em um exemplo, destacamos os resultados já publicados de Malacco (2017).
  3. A expressão original utilizada pela autora, loup dans la bergerie, corresponde a “lobo no curral”. Contudo, trata-se de expressão empregada por um europeu para expressar seu entendimento de tradições orais oeste-africanas, uma vez que o lobo não é uma espécie nativa do Kasa. Diante disso, optamos por uma frase mais familiar aos leitores de língua portuguesa, mantendo o entendimento central da metáfora utilizada.

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MOTA, Thiago Henrique; BA, Idrissa. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.36, n.71, mai. / ago., 2020. Acessar publicação original [DR]

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