História econômica, política e intelectual da África Ocidental: Lógicas de intercâmbio / Varia História / 2020

Em 2013, a revista Varia Historia publicou o dossiê “Nações, Comércio e Trabalho na África Atlântica”. Ao apresentarem esta quinquagésima primeira edição do periódico, Vanicléia Silva Santos e Alexsander Gebara, seus organizadores, destacavam:

É visível o crescimento do campo dos estudos africanos no Brasil ao longo da última década. Cada vez mais eventos dedicados ao tema ocorrem em diversos espaços no país, as agências de fomento investem no desenvolvimento de projetos vinculados à área, as traduções e publicações de livros de pesquisadores brasileiros também aumentaram significativamente nos últimos anos. O diálogo internacional, já em andamento, é mais um objetivo a ser perseguido e consolidado nos próximos anos (Santos; Gebara, 2013).

Naquele momento, as expectativas de investimento no ensino superior brasileiro eram positivas, com editais de fomento em diferentes linhas e, em especial, com financiamento para pesquisas dedicadas aos estudos africanos. No ano anterior, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) havia lançado o Edital Capes n.º 33 / 2012, referente ao Programa Internacional de Apoio à Pesquisa e ao Ensino por meio da Mobilidade Docente e Discente Internacional – Pró-Mobilidade Internacional. Entre os objetivos do programa, constava o oferecimento de oportunidades a estudantes e docentes brasileiros para realização de atividades de pesquisas, desenvolvimento tecnológico e inovação em países lusófonos localizados na África e Ásia. Oportunidades como essa foram fundamentais nas trajetórias de vários jovens pesquisadores que, com financiamento público, puderam, pela primeira vez, estabelecer parcerias e interlocução com pesquisadores angolanos, cabo-verdianos, guineenses, moçambicanos, são-tomenses e timorenses. Thiago Mota, um dos organizadores deste dossiê foi beneficiário dessa iniciativa, enquanto estudante de doutorado. Hoje, professor universitário, coordena um convênio de cooperação entre a Universidade Federal de Viçosa e a Universidade Eduardo Mondlane, de Moçambique, fruto do investimento público no ensino superior de outrora.

Além do Pró-Mobilidade Internacional, a disponibilidade de recursos às universidades e a oferta de bolsas de mestrado e doutorado também foram fundamentais à ampliação da pós-graduação, em geral, e dos estudos africanos pós-graduados, em particular. Este dossiê resulta dessas duas iniciativas, uma vez que foi por intermédio delas que os pesquisadores aqui reunidos iniciaram uma rede de colaboração. Em 2015, o então Centro de Estudos Africanos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) lançou a Chamada de Apoio à Realização de Eventos Científicos, que contemplou a proposta da I Jornada de Estudos sobre África Ocidental. Esse evento foi um dos primeiros do gênero no país a concentrar-se especificamente numa porção do continente africano, considerando suas articulações sociais, culturais, econômicas e políticas internas. Inspirado no Seminário Internacional Cultura, Política e Trabalho na África Meridional, que se realizaria na Unicamp em maio daquele ano, a I Jornada propunha verticalizar a agenda científica em estudos africanos, rumo a uma maior especificidade no campo, por meio de dinâmicas circunscritas ao espaço oeste-africano. Foi a semente deste número.

Do evento resultou o livro Estudos sobre África Ocidental: dinâmicas culturais, diálogos atlânticos (Reis; Resende; Mota, 2016), por intermédio do qual um dos organizadores do dossiê travou profícuo diálogo com Sílvio Marcus de Souza Correa, um dos colaboradores deste volume. A iniciativa fomentou uma segunda edição da Jornada, que tomou corpo através da V Jornada do Centro de Estudos Africanos da UFMG, em 2017, em parceria com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), da Guiné-Bissau. Esse evento contou com ampla participação de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, muitos deles africanos vindos de países como Cabo Verde, Gâmbia, Guiné-Bissau e Nigéria. Dele resultou outro importante livro sobre a história intelectual e o patrimônio cultural na África Ocidental (Santos; Amado; Marcussi; Resende, 2019), estreitando ainda mais os laços entre a historiografia brasileira e aquela procedente do oeste africano.

Entre 2016 e 2017, em decorrência de uma bolsa de doutorado sanduíche a ser cumprida na Universidade de Lisboa, oferecida pela FAPEMIG, o outrora doutorando em História na UFMG estabeleceu trocas intelectuais com Cornelia Giesing, uma vez que ambos estavam vinculados ao Centro de História da Universidade de Lisboa. A estadia em Portugal também o colocou em contato com Juliana Barreto Farias, professora da UNILAB que se preparava para atividades de pós-doutorado em Portugal. Ademais, com o auxílio da bolsa conseguida, o então pesquisador pós-graduando pode deslocar-se ao Senegal e à Gâmbia, para realizar pesquisas em arquivos e bibliotecas desses países. Em Dacar, no Senegal, onde ficou institucionalmente vinculado à Universidade Cheikh Anta Diop, travou duradoura interlocução com Idrissa Ba, outro organizador deste dossiê, parceira que tem se mantido ao longo dos últimos anos e resultado em produtos como este número.

Assim, a rede que permitiu a constituição da presente edição da Varia Historia resulta de um trabalho longo e contínuo, de colaboração e constituição de relações acadêmicas que somente foram possíveis devido ao investimento público na pesquisa brasileira. Destacamos essas informações para evidenciar como o financiamento público à pesquisa tem seus resultados prolongados ao longo do tempo, não se restringindo ao produto imediato do projeto em voga. Num momento em que a academia brasileira vive um período de crise, especialmente no que tange às Humanidades, reconhecer o amplo e duradouro impacto dos recursos recebidos torna-se estratégia de sobrevivência. Apesar disso, o fortalecimento de redes de cooperação acadêmica não isenta a organização deste número do rigor científico e da ética na condução de publicações de resultados de pesquisa. Por isso, todos os artigos que compõem este dossiê foram duplamente avaliados por pares, no sistema de revisão às cegas, e evidenciam os pontos destacados por Santos e Gebara em 2013, no que concerne aos estudos africanos: o impacto positivo do investimento público das agências de pesquisa na área, a maturidade das pesquisas realizadas no Brasil e os avanços necessários rumo à internacionalização dos estudos, da interlocução intelectual e dos resultados.

No Senegal, país cujo território atual corresponde ao espaço de várias das análises inscritas neste dossiê, que abriga muitos dos interlocutores mobilizados nos artigos a seguir e que é casa de um dos organizadores do número, a pesquisa também encontra suas principais fontes de financiamento em órgãos públicos. Trata-se de estruturas nacionais ou universitárias que arcam com a concessão de bolsas a professores-pesquisadores e pesquisadores. Entre essas estruturas, podem-se citar a Academia de Ciências, a Direção da pesquisa e cooperação internacional, as Reitorias, os Decanatos, as comissões de pesquisa dos vários estabelecimentos, as escolas de doutorado. Contudo, sob o impulso das autoridades ministeriais, a pesquisa e seu financiamento estão passando por uma revisão completa, que consiste em reorganizar as escolas de doutorado, a formação doutoral e as equipes de pesquisa, que devem tornar-se equipes maiores, transcendendo as fronteiras epistemológicas para melhor racionalizar os recursos e impulsionar as investigações. Além desse primeiro modo de financiamento da pesquisa, que conta com recursos públicos nacionais, há também parcerias internacionais, como a que está sendo formada entre universidades senegalesas, portuguesas e brasileiras em busca de formas de financiamento advindas de órgãos internacionais, como a União Europeia. Lá e cá, o que se nota é que a construção de redes internacionais de colaboração torna-se paulatinamente uma condição para a prospecção de recursos e otimização dos resultados das pesquisas históricas.

Diante desse quadro, a historiografia brasileira amplia seu diálogo com a Escola de Dacar. Essa, por sua vez, permanece fiel à sua tradição historiográfica em duas de suas principais preocupações: ampliar, seguindo Boubacar Barry (1988), a grande e bela Senegâmbia até os rios do óleo de palma; interrogar e integrar fontes de língua portuguesa (além de outras línguas europeias) aos principais materiais de construção do conhecimento histórico, como já o fizeram Sékéné Mody Cissoko (1966)Saliou Sarr (1980)Yoro Khary Fall (19911992), e muitos outros. O dossiê “História econômica, política e intelectual da África ocidental: lógicas de intercâmbio” segue esse caminho. A proposta de regionalização da agenda africanista brasileira também resulta de reflexão amadurecida ao longo dos anos e das trocas realizadas em eventos acadêmicos, como as duas jornadas relatadas. Os artigos que os leitores encontrarão indicam, pois, como os estudos africanos têm crescido no Brasil, alcançando reconhecimento e visibilidade nacional e internacional,[1] em fundamental diálogo com historiografias africanas. Intercâmbios entre pesquisadores nacionais e estrangeiros são fundamentais à expansão das perspectivas sobre a História da África, seja em abordagem, metodologias ou debates nos quais se inserem. Atualmente, pesquisas sólidas, focadas na África Ocidental, encontram-se em curso em programas de pós-graduação em História, no Brasil, e indicam a relevância dessa discussão.[2]

A proposta deste dossiê é fomentar a ampliação do campo, trazendo outros problemas, fontes e abordagens. Nutrindo-se do dinamismo do cenário existente, da expertise já em curso na historiografia brasileira dedicada à África Ocidental e agregando colaboradores estrangeiros, apresentamos um conjunto de artigos que lida com o período entre os séculos XV e XIX. O foco está nas conexões, internas e externas, estabelecidas pelas sociedades da África Ocidental, lidas na perspectiva das últimas. Visa ainda ao estímulo a pesquisas em arquivos africanos pouco visitados por historiadores brasileiros, localizados no Senegal, Gâmbia e Guiné-Bissau, além dos bem conhecidos arquivos e documentos europeus. Através desse corpus documental, o dossiê destacará intercâmbios econômicos, políticos e intelectuais dentro do continente africano e desde esse espaço com o exterior. Nossa proposta parte das conquistas teóricas e metodológicas realizadas pela historiografia africanista brasileira, senegalesa e internacional, no que diz respeito ao uso de fontes orais (Henige, 1982Wright, 1991Green, 2012), às pesquisas em arquivos africanos (Nobili, 2016Ceesay, 2018Ngom, 2020) aos métodos de análise de fontes europeias que tratam da África (Jones; Heintze, 1987Horta, 2011) e à busca pela perspectiva africana da História (Sarr, 2016Cooper, 2016).

Dialogando com a bibliografia que aponta a complexidade na História africana, além das dicotomias branco / negro, colonizador / colonizado, estrangeiro / autóctone (Boilley; Thioub, 2004), este dossiê focará na inter-relação entre sociedades sul-saarianas, norte-africanas e europeias, em contextos transitórios, entre os séculos XV e XIX. O número é formado por cinco artigos, escritos por historiadores vinculados a instituições do Brasil, Senegal e Portugal. Trazem temas variados, orientados por diferentes metodologias: 1) justaposição de fontes narrativas europeias, tratados filosóficos africanos e fontes orais para o entendimento da formação de uma cultura política islâmica na Senegâmbia; 2) abordagem historiográfica das diferentes formas de acomodação entre o comércio transsaariano e o trato atlântico, na longa duração; 3) cruzamento entre fontes escritas e orais para estudo das transformações de identidades culturais e dinâmicas de ocupação e reivindicação do espaço; 4) análise de um inquérito produzido no Senegal, em 1844, sob encomenda da administração francesa, acerca dos significados da escravidão, liberdade e sentidos do trabalho; 5) estudo da produção, reprodução e circulação de imagens sobre a conquista europeia na África através do estudo comparado de dois casos oeste-africanos.

Em conjunto, essas pesquisas apontam um panorama sobre a África Ocidental, com destaque para a região conhecida como Grande Senegâmbia, que compreende os territórios dos atuais Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri e alcança o norte da Serra Leoa (Barry, 1988Dias; Horta, 2007), além de uma incursão no atual Benim, em perspectiva comparativa. Nossa proposta é estimular o interesse de pesquisadores brasileiros por esse espaço, no período entre os séculos XV e XIX, marcado por intenso dinamismo. Ademais, buscamos evidenciar ao leitor as possibilidades de pesquisa em arquivos africanos, metodologias de trabalho com tradições orais e análises construídas a partir de textos e imagens produzidos na África e / ou na Europa, por agentes africanos e / ou europeus, ao longo do tempo. As fontes utilizadas e as abordagens recorridas indicam a riqueza do diálogo entre tais tipologias e coleções documentais publicadas ou presentes em arquivos europeus. Entendemos que a valorização desse intercâmbio documental e intelectual é necessária à ampliação e aprofundamento dos estudos africanos no Brasil, como já demonstrado pela Escola de Dacar. Dessa forma, este dossiê contribui para esse processo.

O presente número conta com cinco artigos, que abordam desde estudos de casos a análises inscritas na longa duração. A primeira contribuição é “Um coração de rei: cultura política islâmica como antecedente das revoluções muçulmanas na África Ocidental (Senegâmbia, séculos XVI e XVII)”, de Thiago Henrique Mota. Nesse artigo, o autor argumenta que os jihads que ocuparam a agenda política da África Ocidental, com maior fôlego entre os séculos XVIII e XIX, tiveram raízes mais profundas, que germinaram a partir do estabelecimento de uma cultura política islâmica sediada na África atlântica. Os elementos constitutivos dessa cultura política são uma base filosófica islâmica; sua difusão institucional a amplo número de pessoas por meio de escolas corânicas; a produção da ideia de um passado comum e o estabelecimento de expectativas de futuro fundadas num projeto de moralidade islâmica. Tais elementos teriam se articulado diante da ampliação do tráfico de pessoas através do Atlântico e seus variados impactos nas comunidades africanas. Por um lado, ampliação da violência endêmica, da escravização e das desigualdades sociais com rápido enriquecimento das elites locais envolvidas com o tráfico. Por outro, o fortalecimento das demandas por soluções jurídicas para o problema, que protegessem os muçulmanos da arbitrariedade da escravização. A isso se soma maior afluxo de papel procedente do comércio atlântico, aplicado na produção textual religiosa e jurídica islâmica através da região.

Em seguida, temos “Le commerce transsaharien et ses logiques d’accommodation par rapport au commerce transatlantique entre le XVe et le XIXe siècle”, de Idrissa Ba. Esse artigo pretende uma análise historiográfica. Ele convoca amplamente, de uma perspectiva crítica, trabalhos relacionados a três espaços intimamente ligados pela lógica comercial: o Saara, o Mediterrâneo e o Atlântico. No centro do debate, encontram-se as contribuições de David Robinson e de Vitorino Magalhães Godinho. A partir de Robinson, aborda o conceito de acomodação, redefinindo-o e recontextualizando. Em seguida, o conceito é aplicado para demonstrar como os atores e os beneficiários do comércio transsaariano adaptaram-se à abertura e ao comércio transatlânticos: por superposição, competição, colisão, captura de produtos, etc. Neste processo, o autor elabora uma contraposição à famosa fórmula de Vitorino Magalhães Godinho, relativa à vitória da caravana sobre a caravela.

“‘Le loup dans la bergerie’: narrations et identités des sujets de l’ancien royaume de Kasa en Sénégambie – Hommage à Stephan Bühnen (1950-2015)”, de Cornelia Giesing, é a terceira contribuição. Giesing é uma historiadora dedicada às fontes, como demonstrado por sua tradução e comentários acerca do Ta’rikh Mandinka de Bijini, na Guiné-Bissau (Giesing; Vydrine, 2007). Conforme a autora, o “artigo enfoca as divisões territoriais do país ajaa no interior do reino de Kaasa (séculos XV a XIX) através de narrativas sobre seu ocupação”. Na realidade, é por modéstia que Cornelia assim caracteriza sua contribuição, que explora vários documentos, constituídos principalmente por fontes portuguesas e pesquisas que ela própria conduziu em campo, para nos apresentar diferentes aspectos da história de Kaasa e dos reinos vizinhos, ao longo de cinco séculos. Tudo lhe toca: a estrutura política do espaço, em torno da capital Brikama e outras cidades secundárias; uma intensa mistura étnica e cultural (Mandinka-Sooninkee, Bañun, Joolaa, Balantes); o comércio entre o interior e a costa dominada, é verdade, pelo tráfico de pessoas; religiões locais; a exploração da terra e seus recursos. Em filigrana, a autora mostra que todas essas lógicas e dinâmicas foram feitas em detrimento dos povos Bañun que, de mestres e dominantes, tornam-se vítimas, minoritários e em vias de desaparecer. Esse processo macabro para os Bañun é reproduzido por uma frase bem escolhida, que Cornelia toma de tradições orais através da narrativa do comandante de um navio francês. Supostamente qualificando a atitude dos Balantas em relação aos Bañun, tem a seguinte redação: “um Balanta em uma de nossas aldeias é uma raposa no galinheiro”[3].

“‘Não há cativo que não queira ser livre!’: significados da escravidão e da liberdade entre marinheiros do Senegal, século XIX”, de Juliana Barreto Farias, é o quarto artigo. Aqui, o objetivo é compreender os significados da escravidão e da liberdade para os trabalhadores negros que atuavam em embarcações, nos rios e mares do Senegal. O principal aporte documental utilizado é um inquérito realizado em Saint Louis e Gorée, em 1844, no qual homens e mulheres escravizados, entre outros sujeitos, puderam se expressar e dizer o que pensavam sobre o cativeiro e sobre a liberdade. Trata-se de um documento sui generis, pouco explorado pela historiografia, ao qual se somam outras fontes, procedentes de arquivos senegaleses, franceses e publicações. Através da análise dessa seleta documentação, a autora aponta complexidades num sistema escravista vivido entre a ilha de Saint Louis e o continente africano, marcado pela mobilidade dos sujeitos escravizados, pelas relações de trabalho no contexto comercial da goma arábica e pelas hierarquias que estruturavam sociedades mestiças nos primórdios da colonização europeia na África. O sentido da liberdade construído por sujeitos negros – escravos ou livres – passava por uma ideologia marcada pela centralidade do trabalho, tema que era a ocupação central das autoridades coloniais naquela região.

O artigo que encerra o dossiê é um estudo comparado da produção, reprodução e usos de imagens, intitulado “Imagens itinerantes de potentados banidos da África Ocidental (1894-1899)”, de autoria de Silvio Marcus de Souza Correa. O texto é cronologicamente definido pelas capturas de potentados africanos diante da consolidação do colonialismo francês na África Ocidental. Em 1894, Béhanzin, oba do Daomé, foi deportado para a Martinica, após sua rendição diante das tropas francesas; em 1899 foi a vez de Samori Touré, almamy do Futa Jalom, ser deportado para o Gabão, após sua captura no ano anterior. Diante desses eventos, interessa ao autor refletir sobre as imagens desses governantes produzidas após sua captura, o trânsito delas, suas recepções e resignificações ao longo do tempo. Correa argumenta que tais representações fizeram parte da “ocupação imagética” da África Ocidental, termo que faz referência à fragilidade do controle exercido pelas metrópoles sobre os territórios africanos. Por outro lado, diferentes formas de apropriação das mesmas imagens, ao longo do tempo, transformaram-lhes os significados: de potentados africanos capturados como índice do poderio francês, foram lidas no período pós-colonial como ícones da resistência africana frente ao colonialismo. Nos dois casos, trata-se de representações pouco matizadas diante do complexo jogo de poder envolvido na captura desses sujeitos e na relação mantidas por eles com a França, antes e depois de seus exílios.

Portanto, esses textos se complementam, restauram diferentes dinâmicas e lógicas (comerciais, políticas, religiosas, etc.) que ocorreram na África Ocidental, esse vasto espaço constantemente redescoberto à luz das fontes e de sua exploração, entre os séculos XV e XIX. Aqui, as lógicas de intercâmbio são várias. Por um lado, remetem à natureza das trocas, compartilhamentos, acomodações e transformações ocorridos no espaço oeste-africano sob escrutínio. Por outro, dizem respeito aos diálogos e partilhas entre historiadores de distintos pontos da bacia Atlântica, unidos pelo interesse comum na história da África Ocidental. A continuidade desse tipo de intercâmbio depende de investimentos dedicados a pesquisas, por órgãos públicos e privados, nacionais e estrangeiros, e do fortalecimento das relações intelectuais trans-fronteiriças. Tais recursos permitiram a realização deste dossiê, que busca contribuir para nosso maior conhecimento da história africana e suas conexões com outras partes do mundo. Assim, ajuda-nos a compreender o passado da humanidade e a refletir sobre as escolhas feitas e os limites impostos a homens e mulheres, que ecoam na caracterização das sociedades do nosso tempo. Como as lógicas de intercâmbio através do tempo e do espaço bem o demonstram, ninguém é uma ilha, nenhum lugar existe fora do tempo, fora de suas conexões com o mundo. A história e sua construção estão, pois, em andamento, e a elaboração deste dossiê em tempo recorde, por historiadores de várias origens, é um exemplo disso e abre caminho para futuras colaborações, que esperamos que sejam frutíferas.

Notas

  1. Green (2019)publicou um artigo na revista Atlantic Studies discutindo o contributo de vários trabalhos realizados no Brasil à historiografia internacional, concernente aos estudos africanos.
  2. Para ficar em um exemplo, destacamos os resultados já publicados de Malacco (2017).
  3. A expressão original utilizada pela autora, loup dans la bergerie, corresponde a “lobo no curral”. Contudo, trata-se de expressão empregada por um europeu para expressar seu entendimento de tradições orais oeste-africanas, uma vez que o lobo não é uma espécie nativa do Kasa. Diante disso, optamos por uma frase mais familiar aos leitores de língua portuguesa, mantendo o entendimento central da metáfora utilizada.

Referências

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Thiago Henrique Mota – Universidade Federal de Viçosa Departamento de História. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-2204-4229

Idrissa Ba – Faculté des Lettres et Sciences Humaines Université, Senegal. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-7107-4854


MOTA, Thiago Henrique; BA, Idrissa. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.36, n.71, mai. / ago., 2020. Acessar publicação original [DR]

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História e História Econômica  | SÆCULUM – Revista de História | 2013

O dossiê História e História Econômica, publicado neste número 29 da Sæculum, reúne um conjunto bastante amplo e diversificado da produção historiográfica atual neste campo. Como se poderá ver, as contribuições são muito variadas, desde a apresentação do método de georreferenciamento, proposto por Angelo Carrara e Rafael Laguardia, até o debate contemporâneo sobre o Estado de Bem Estar Social formulado por Matteo Troilo, passando por uma saudável questão em torno do método comparativo de dois clássicos da História Econômica proposta por Elio Flores.

Por outro lado, o leitor poderá encontrar algumas afinidades temáticas entre os artigos, representando, talvez, as tradições mais consolidadas da historiografia brasileira no campo da História Econômica. Os textos de Marina Candido e Filipa da Silva tratam do tráfico de escravos, tema que também é tangenciado no estudo de Natália Tammone sobre o comércio brasileiro com os Estados Unidos durante o século XIX. Um diálogo interessante também pode ser promovido entre os artigos de Laurent Saes e Rafael Marquese em torno da evolução dos sistemas escravistas americanos e do abolicionismo. O que, por sua vez, leva-nos ao problema da transição ao trabalho livre, acercado qual o estudo monográfico de Paulo Gonçalves sobre o transporte de imigrantes italianos no Atlântico e o artigo de Alexandre Saes e Fábio Castilhos sobre a produção de café e de mantimentos no Sul de Minas têm muito a acrescentar. Há ainda os trabalhos de História Agrária de Gustavo Pereira da Silva, também sobre o complexo cafeeiro, e o de André Corrêa sobre a pecuária em Caçapava, no Rio Grande do Sul, que ajudam a traçar um panorama mais amplo e complexo das estruturas agrárias do Brasil nos oitocentos. Leia Mais

História e História Econômica / Sæculum / 2013

O dossiê História e História Econômica, publicado neste número 29 da Sæculum, reúne um conjunto bastante amplo e diversificado da produção historiográfica atual neste campo. Como se poderá ver, as contribuições são muito variadas, desde a apresentação do método de georreferenciamento, proposto por Angelo Carrara e Rafael Laguardia, até o debate contemporâneo sobre o Estado de Bem Estar Social formulado por Matteo Troilo, passando por uma saudável questão em torno do método comparativo de dois clássicos da História Econômica proposta por Elio Flores.

Por outro lado, o leitor poderá encontrar algumas afinidades temáticas entre os artigos, representando, talvez, as tradições mais consolidadas da historiografia brasileira no campo da História Econômica. Os textos de Marina Candido e Filipa da Silva tratam do tráfico de escravos, tema que também é tangenciado no estudo de Natália Tammone sobre o comércio brasileiro com os Estados Unidos durante o século XIX. Um diálogo interessante também pode ser promovido entre os artigos de Laurent Saes e Rafael Marquese em torno da evolução dos sistemas escravistas americanos e do abolicionismo. O que, por sua vez, leva-nos ao problema da transição ao trabalho livre, acercado qual o estudo monográfico de Paulo Gonçalves sobre o transporte de imigrantes italianos no Atlântico e o artigo de Alexandre Saes e Fábio Castilhos sobre a produção de café e de mantimentos no Sul de Minas têm muito a acrescentar. Há ainda os trabalhos de História Agrária de Gustavo Pereira da Silva, também sobre o complexo cafeeiro, e o de André Corrêa sobre a pecuária em Caçapava, no Rio Grande do Sul, que ajudam a traçar um panorama mais amplo e complexo das estruturas agrárias do Brasil nos oitocentos.

Também há de se destacar os trabalhos que tratam da economia colonial, outro campo tradicional e de importância no Brasil desde os clássicos de Roberto Simonsen e Caio Prado Jr. Pablo MontSerrath retoma o debate sobre a crise do ouro nas décadas de 1760 e 1770; Regina Batista investiga o comércio de Madeiras no Grão Pará; Denise Moura trata do comércio do açúcar no circuito platino; e Leonardo Rolim aborda o negócio de carnes no Ceará Grande; estudos que revelam outras geografias econômicas da América portuguesa na segunda metade do século XVIII.

Por último, o artigo de Aloisio Cunha, acerca das estradas de ferro na Bahia, e o de Sydenham Neto, que versa sobre o papel do Estado e dos empresários na constituição da siderurgia brasileira, permitem enriquecer o debate a respeito da industrialização e da modernização do Brasil durante o século XX.

O dossiê é completado pela entrevista com Robin Blackburn, historiador e sociólogo inglês, na qual são abordados temas como a contribuição dos estudos marxistas para a história da escravidão e sua relação com a formação do capitalismo, o impacto do tráfico de escravos nas sociedades africanas, as origens da Revolução Industrial inglesa, entre outros. Agradecemos a ele por ter aceito o convite para a entrevista, que foi feita durante sua estadia em João Pessoa, onde esteve a convite do Departamento de História da UFPB. Agradecemos, igualmente, a todos os autores que enviaram suas contribuições ao dossiê, representando quinze instituições distintas, doze do Brasil e três de outros países.

Registre-se à guisa de conclusão que, com este dossiê, os organizadores esperam estar estimulando a pesquisa e a investigação em História Econômica, área tão maltratada quanto necessária nesses anos de crise, mas que, como os artigos aqui publicados indicam, ainda desperta o interesse de pesquisadores de várias gerações.

Na seção de artigos livres, como sempre, Sæculum abre espaço para temas dos mais variados: Breno Lisboa trata das especificidades das despesas da Câmara de Olinda entre os séculos XVII e XVIII; Aaron Sena Cerqueira Reis analisa o livro Lições de História Pátria, publicado em 1876 por Américo Brasiliense com aprovação do IHGB; Antônio Manoel Elíbio Jr, Carolina Soccio Di Manno de Almeida e Marcos Costa Lima discutem a importância de Edward Said para os estudos sobre o póscolonialismo; e Alessandra Soares Santos se debruça sobre a obra de Afonso Arinos a fim de melhor compreender as visões desse intelectual sobre a identidade nacional e a cultura popular. A resenha de Elisgardênia de Oliveira Chaves sobre o livro Homens de caminho, originado na tese de doutorado de Isnara Pereira Ivo, docente da UESB, mostra a riqueza e profundidade que os estudos coloniais vêm alcançando nos últimos anos fora do eixo Rio / São Paulo. Fechando a edição, uma saborosa entrevista com o prof. Robin Blackburn, da Universidade de Essex, exdiretor da New LeftReview, que visitou a UFPB em março deste ano.

Esperamos que o leitor aproveite estas páginas, que elas encontrem terreno fértil para fomentar a constante e incansável construção do conhecimento histórico crítico que possibilita, ao final, o exercício de uma cidadania mais plena por todos nós. Vamos ao mundo de Clio, então…

A Comissão Editorial.


Comissão Editorial. Editorial. Sæculum, João Pessoa, n.29, 2013. Acessar publicação original [DR]

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História econômica argentina / Estudos Ibero-Americanos / 2008

Industria y empresas en la Argentina, siglo XX

La historiografía sobre el sector industrial en la Argentina tiene ya una larga tradición aunque no es abundante. Destacan algunas obras generales que han pretendido presentar una visión de largo plazo del desarrollo manufacturero local; los trabajos de Adolfo Dorfman, Aldo Ferrer, Jorge Katz y Bernardo Kosacoff, y Jorge Schvarzer representan hitos de indudable valor, independientemente de sus enfoques de análisis no necesariamente convergentes.[1]

Con todo, resulta notoria la falta de interés por la problemática industrial a partir de mediados de los años setenta y hasta prácticamente el cambio de siglo. Ello fue consecuencia, en parte, de la crisis de los paradigmas estructurales y del cuestionamiento de su valor explicativo, y, en parte del mismo proceso de desindustrialización que se manifestaba en la Argentina y otros países latinoamericanos. La escasa institucionalización académica de esa área de estudios ha sido quizás también uno de los factores que impidieron un mayor desarrollo.

En la última década una serie de investigaciones históricas ha logrado reinsertar la discusión sobre las características que asumió el sector manufacturero principalmente durante el período denominado “industrialización por sustitución de importaciones” (ISI), entre 1930 y 1976. Esta renovación historiográfica ha permitido focalizar en períodos específicos y contribuir desde nuevos relevamientos empíricos a matizar y, en algunos casos, a rebatir parte de las consideraciones más generales que sobre el sector habían brindado las interpretaciones estructurales o de largo plazo. En efecto, novedosos estudios sobre la industria e instrumentos de la política industrial durante el peronismo llamaron la atención sobre lo escaso que era el conocimiento sobre uno de los momentos más emblemáticos de la política argentina, identificado con la “era de las manufacturas”.[2] Otros períodos, en particular la maduración de la ISI hacia los años sesenta y primeros setenta, han sido menos “revisados”, no obstante allí también despuntan algunas indagaciones promisorias. Por ejemplo, recientemente se han abordado los mecanismos que la intervención estatal tuvo para promover grandes emprendimientos industriales que se ubicarían en la cúpula de la elite empresaria local, si bien esta era una línea de investigación ya presente en los años ochenta y noventa.[3]

Más descuidado ha resultado el estudio del sector manufacturero para el período previo al surgimiento de políticas industriales en la década de 1940, precisamente sobre la etapa en la que cierta renovación de los años setenta había indagado más. No obstante, nuevas líneas de investigación pueden encontrarse en los últimos años, referidas a problemáticas novedosas como el consumo, el mercado de capitales o vinculadas a temáticas ya antiguas como la inversión extranjera en el sector.[4]

Pese a estos avances, la carencia de análisis sectoriales es significativa en la literatura especializada argentina. Prácticamente no hay estudios de largo plazo sobre ramas o actividades específicas que permitan una revisión desde esa perspectiva de las problemáticas más generales de la industria. Significativamente, la renovación más importante del campo de la historia de la industria en la Argentina ha provenido desde la historiografía de empresas. En efecto, la efervescencia de esta disciplina en los últimos años ha permitido un notable enriquecimiento de los enfoques y de los saberes heredados respecto al sector industrial. Dado que la historia de empresas se focalizó principalmente en compañías y conglomerados manufactureros, el análisis micro permitió incluir temas relacionados a las estrategias empresariales en torno a la incorporación de tecnología, la necesidad de integración, el desarrollo de una red de proveedores o la capacitación de mano de obra, independientemente de los mecanismos específicos de gestión.[5] La perspectiva también insufló nuevos aires para la revisión de las políticas estatales respecto al sector, de la importancia de los entornos macroeconómicos y de las relaciones intrasectoriales.[6]

Este dossier se propone contribuir al estudio del sector manufacturero argentino desde las dos perspectivas mencionadas. Por una lado presentamos algunos estudios sectoriales que prestan atención a su vez a la dinámicas empresariales; y por otro un conjunto de estudios que focalizan en las trayectorias de empresas industriales pero que no descuidan su inserción dentro del conjunto de la rama o actividad empresarial; ambas dimensiones de análisis se entrelazan con las políticas industriales desarrolladas. La selección de estos estudios no es caprichosa; ellos cubren, un espacio temporal amplio, el transcurso del siglo XX, y variadas experiencias del sector manufacturero (algunas actividades “vegetativas”, características de los primeros años de industrialización, y otras “dinámicas”, propias de la maduración del sector) con el propósito de aportar a una visión más estilizada de la trayectoria del conjunto.

Los primeros tres trabajos recorren actividades tradicionales de la industria argentina en las primera mitad del siglo XX. Las artes gráficas, la industria textil y la producción tabacalera constituyen sectores de larga trayectoria y pueden considerarse “pioneros” en el avance de la sustitución de importaciones, aún durante la vigencia del modelo de extraversión económica que predominó hasta los años treinta.

El artículo de Silvia Badoza analiza el proceso de integración de la Compañía General de Fósforos, una de las más grandes empresas locales en las primeras décadas del siglo XX. Esta empresa avanzó en su proceso de integración hacia la actividad gráfica inicialmente con el propósito de garantizar la provisión de insumos a su producción principal. La autora presenta un estudio de la rama industrial de artes gráficas primero para focalizarse luego en las estrategias empresariales que tendieron a una integración vertical y a la diversificación productiva. El análisis de los ciclos de inversiones permite identificar una fuerte apuesta productiva con el propósito de adquirir un lugar preponderante en el mercado gráfico, una estrategia que resultó exitosa y abrió toda una nueva línea de oportunidades de negocios.

Claudio Belini nos presenta un estudio del sector textil para un período clave en la historia de la industria argentina que comprende la década de 1920 y los primeros años de la Gran Depresión. Discutiendo algunas de las hipótesis más tradicionales sobre el sector, el autor sostiene que antes de los años treinta se observaron progresos en la sustitución de importaciones. Esos avances fueron notorios tanto en la industria lanera como en la fabricación de tejidos de seda artificial, que logró abastecer niveles significativos de la demanda interna. El análisis de la evolución de la rama se completa con un estudio de los principales instrumentos de política económica que afectaron el desempeño de esa industria, en particular del régimen de tarifas aduanero.

El estudio de Noemí Girbal-Blacha aborda también un sector de consumo masivo y tradicional de la industria argentina, pero significativamente muy poco investigado. La autora entrelaza el análisis del sector con las políticas estatales de protección y las características del mercado; allí destacaban unas pocas grandes empresas y una gran cantidad de productores de materia prima, cuyas demandas frente a los poderes públicos no eran necesariamente coincidentes. El análisis de la industria tabacalera en la Argentina, antes y después de la crisis de los años treinta, permite además incorporar la dimensión regional, descuidada en la literatura especializada, salvo las honrosas excepciones de la producción azucarera o vitivinícola.

Los cuatro trabajos siguientes avanzan temporalmente sobre la última mitad del siglo XX, y recorren actividades industriales vinculadas a lo que se ha denominado la “segunda fase” del proceso ISI. En estos trabajos las políticas públicas de promoción, que han desbordado ya sobradamente la aplicación de pautas arancelarias, adquieren especial relevancia para entender el desempeño productivo de sectores manufactureros enteros y de algunas empresas en particular. Algunos sectores productivos más complejos como la siderurgia, automotriz, química y petroquímica son analizadas aquí combinando la perspectiva de la rama con los estudios de empresas y de las políticas estatales.

El estudio de Marcelo Rougier focaliza en el desempeño productivo de SIAT una empresa del grupo Di Tella creada para fabricar tubos de acero durante los años peronistas. El autor analiza cómo las demandas del sector público en el área de infraestructura estimularon la instalación de la planta y condicionaron luego las estrategias empresariales. El desempeño productivo y el proceso de diversificación que ensaya la firma a partir de los años cincuenta constituyen un resultado de ese vínculo estrecho con el estado que, a su vez, permitió un significativo avance de la sustitución de importaciones en rubros básicos y más intensivos en capital. Adicionalmente, el trabajo presenta información que permite avanzar hacia una mayor comprensión de las políticas industriales durante el peronismo.

Valeria Ianni aborda la instalación y desarrollo de las empresas transnacionales que protagonizaron la fuerte expansión de la rama automotriz en Argentina a comienzo de los años sesenta. La autora destaca el desarrollo de tramas productivas y los eslabonamientos multiplicadores sobre otros sectores industriales de esa implantación, así como una modernización del proceso productivo y de gestión que esas empresas provocaron sobre la estructura industrial local. No obstante, también señala los límites de la experiencia que, en palabras de Ianni, reprodujo el desarrollo desigual en lugar de lograr homogeneizar las condiciones de producción. Un proceso que en definitiva estaba condicionado fuertemente por las estrategias de las empresas transnacionales y dejaba escaso margen de acción a las políticas de promoción locales.

El artículo de Juan Odisio explora un caso específico de promoción industrial en el segundo lustro de los años setenta, cuando el estado, a través de distintos mecanismos, pretendió impulsar algunos grandes proyectos en la producción de insumos básicos, a la vez que favorecer la desconcentración regional. El trabajo estudia en particular la conformación del complejo industrial de Petroquímica Bahía Blanca y desentraña el entramado específico que permitió, luego de numerosos avatares, la consolidación de ese polo industrial en el sur de la Provincia de Buenos Aires. Odisio destaca, asimismo, los problemas que tuvo el estado en el desarrollo industrial, tanto en su faz empresarial como en la de promotor del surgimiento y consolidación de empresas privadas.

Finalmente, el trabajo de Graciela Pampin también recala en un caso particular de promoción industrial y regional, aunque mucho menos exitoso que el anterior. Se trata de la empresa Alpat SA, destinada a producir soda solvay, un insumo clave para vastos sectores industriales. El proyecto fue promovido por el estado a fines de los años sesenta y encarado por empresarios privados con fuerte asistencia crediticia pública. Sin embargo, jaqueada por los cambiantes marcos institucionales y legales, la empresa no entró en producción hasta entrado el siglo XXI. El caso ilustra no sólo la falta de coherencia del sector público a la hora de impulsar un proyecto industrial, si no también el nocivo comportamiento empresarial en esas condiciones.

Si bien la fragmentación y la heterogeneidad predominan aun en los estudios industriales y empresariales en la Argentina, el resultado de estas investigaciones que se presentan en conjunto es sin duda alentador. No sólo porque se trata de estudios novedosos en sectores y espacios temporales poco explorados, sino porque sus aportes permiten rediscutir varias de las hipótesis más tradicionales heredades de la literatura especializada. La incipiente renovación de la historia industrial, que se evidencia también en la profusa utilización de fuentes primarias y secundarias prácticamente ausente en los estudios generales, alienta a esperar prontamente nuevas síntesis superadoras en este campo historiográfico.

Notas

1. Dorfman, Adolfo. Historia de la industria argentina. Buenos Aires: Solar, 1970; Ferrer, Aldo. El devenir de una ilusión. Buenos Aires: Sudamericana, 1989; Katz, Jorge y Kosacoff, Bernardo. El proceso de industrialización en la Argentina. Buenos Aires: CEAL, 1989; Schvarzer, Jorge. La industria que supimos conseguir. Buenos Aires: Planeta, 1996.

2. Véase por ejemplo Rougier, Marcelo. La política crediticia del Banco Industrial durante el peronismo. Buenos Aires: CEEED, 2001; Girbal-Blacha, Noemí. Mitos, paradojas y realidades en la Argentina peronista (1946-1955). Bernal: UnQui, 2004; y Belini, Claudio. La industria durante el primer peronismo (1946-1955). Tesis de doctorado, Buenos Aires: UBA, 2004.

3. Por ejemplo, Rougier, Marcelo. Industria, finanzas e instituciones. La experiencia del Banco Nacional de Desarrollo. Bernal: UnQui, 2004; y Castellani, Ana. La ampliación del complejo económico estatal-privado y su incidencia sobre el perfil de la cúpula empresaria. Argentina 1966-1975. H-industri@, año 2, n. 2, primer semestre, Buenos Aires, 2008.

4. Véase, entre otros, Rocchi, Fernando. Consumir es un placer: la industria y la expansión de la demanda a la vuelta del siglo pasado. Desarrollo Económico, n. 148, enero-marzo de 1998; y Pineda, Yovanna. Sources of Finance and Reputation. Merchants Finance Groups in Argentine Industrialization, 1890-1930. Latin American Research Review, n. 2, 2006.

5. Véanse principalmente Kosacoff, Bernardo, y otros. Globalizar desde Latinoamérica. El caso Arcor. Bogotá: Mc Graw Hill, 2001; Gilbert, Jorge. Empresario y empresa en la Argentina Moderna. El Grupo Tornquist, 1873-1930. DT n. 27, Buenos Aires: UDESA; Castro, Claudio. Política industria y empresa. El fracaso de Propulsora como polo siderúrgico integrado, 1958-1976. Anuario del CEH “Profesor Carlos Segreti”, n. 5, Córdoba, 2005; Rougier, Marcelo y Schvarzer, Jorge. Las grandes empresas no mueren de pie. El (o)caso de SIAM. Buenos Aires: Norma, 2006.

6. Véanse como ejemplo los trabajos incluidos en Rougier, Marcelo (dir.). Políticas de promoción y estrategias empresariales en la Argentina. Buenos Aires: Ediciones Cooperativas, 2007.

Marcelo Rougier.


ROUGIER, Marcelo. Presentación. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v.34, n.2, dez., 2008. Acessar publicação original [DR]

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