Ensayos y debates sobre historia intelectual y marxismo | Archivos de Historia del Movimiento Obrero y la Izquierda | 2021

Historia intelectual y marxismo son dos perspectivas teóricas y procedimientos de análisis cuyos vínculos y entrelazamientos –si es que efectivamente puede sostenerse que los mismos existen, por supuesto– resultan en más de un sentido problemáticos. Una de las principales razones de este desencuentro fundamental es que la primera es una división temática de la historiografía que, hacia fines de la década de 1960 y comienzos de la de 1980, emerge en el norte global –con especial epicentro en la academia norteamericana– no sólo como reacción a la Kulturgeschichte y una más antigua historia de ideas sino también como consecuencia de la propia crisis (y crítica) del marxismo. Para los marxistas más presuntamente fieles, por su parte, hacer este tipo de historia siempre ha constituido una suerte de herejía, pues, a su entender, habría sido el mismo Marx quien la tachó de idealista y en consecuencia se opuso a ella. Uno de los pocos seguidores del gigante de Tréveris que osó inscribir (parte de) su trabajo en el área de estudio en cuestión fue Perry Anderson (Campos de batalla, de 1992), quien, a principios de los años 90 del siglo pasado, además de referirse al mismo como “un campo de batalla de enfoques que rivalizan entre sí”, trazó los contornos generales del que quizás fuera el primer programa marxista propiamente dicho de historia intelectual en sentido amplio.

Por entonces, esta tematización abierta y conflictiva de la especialidad proporcionada por el autor de Consideraciones sobre el marxismo occidental campeaba también entre historiadores intelectuales del mainstream académico. Fue así que, en 1993, un estudioso del marxismo y la teoría crítica francfortiana como Martin Jay (Campos de fuerza: entre la historia intelectual y la crítica cultural) podía señalar que la historia intelectual era “un campo de fuerza de diferentes impulsos” en el que confluyen, se arremolinan e incluso hibridan segmentos completos de las humanidades y las ciencias sociales –a saber, la filosofía, la filología, la crítica literaria hermenéutica, la antropología cultural, corrientes historiográficas diversas, varias ramas de la sociología, etcétera–. Un poco más recientemente, Anthony Grafton –integrante del comité editorial del prestigioso Journal of the History of Ideas–, en el artículo “La historia de las ideas: preceptos y prácticas, 1950-2000 y más allá”, publicado en Prismas en 2007, fue incluso más lejos y sugirió que la misma es no tanto “una subdivisión borrosa de la historia” como “una zona sísmica intelectual donde las placas tectónicas disciplinares” convergen y se entrechocan, “produciendo ruidos de todo tipo”. Leia Mais

História econômica, política e intelectual da África Ocidental: Lógicas de intercâmbio / Varia História / 2020

Em 2013, a revista Varia Historia publicou o dossiê “Nações, Comércio e Trabalho na África Atlântica”. Ao apresentarem esta quinquagésima primeira edição do periódico, Vanicléia Silva Santos e Alexsander Gebara, seus organizadores, destacavam:

É visível o crescimento do campo dos estudos africanos no Brasil ao longo da última década. Cada vez mais eventos dedicados ao tema ocorrem em diversos espaços no país, as agências de fomento investem no desenvolvimento de projetos vinculados à área, as traduções e publicações de livros de pesquisadores brasileiros também aumentaram significativamente nos últimos anos. O diálogo internacional, já em andamento, é mais um objetivo a ser perseguido e consolidado nos próximos anos (Santos; Gebara, 2013).

Naquele momento, as expectativas de investimento no ensino superior brasileiro eram positivas, com editais de fomento em diferentes linhas e, em especial, com financiamento para pesquisas dedicadas aos estudos africanos. No ano anterior, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) havia lançado o Edital Capes n.º 33 / 2012, referente ao Programa Internacional de Apoio à Pesquisa e ao Ensino por meio da Mobilidade Docente e Discente Internacional – Pró-Mobilidade Internacional. Entre os objetivos do programa, constava o oferecimento de oportunidades a estudantes e docentes brasileiros para realização de atividades de pesquisas, desenvolvimento tecnológico e inovação em países lusófonos localizados na África e Ásia. Oportunidades como essa foram fundamentais nas trajetórias de vários jovens pesquisadores que, com financiamento público, puderam, pela primeira vez, estabelecer parcerias e interlocução com pesquisadores angolanos, cabo-verdianos, guineenses, moçambicanos, são-tomenses e timorenses. Thiago Mota, um dos organizadores deste dossiê foi beneficiário dessa iniciativa, enquanto estudante de doutorado. Hoje, professor universitário, coordena um convênio de cooperação entre a Universidade Federal de Viçosa e a Universidade Eduardo Mondlane, de Moçambique, fruto do investimento público no ensino superior de outrora.

Além do Pró-Mobilidade Internacional, a disponibilidade de recursos às universidades e a oferta de bolsas de mestrado e doutorado também foram fundamentais à ampliação da pós-graduação, em geral, e dos estudos africanos pós-graduados, em particular. Este dossiê resulta dessas duas iniciativas, uma vez que foi por intermédio delas que os pesquisadores aqui reunidos iniciaram uma rede de colaboração. Em 2015, o então Centro de Estudos Africanos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) lançou a Chamada de Apoio à Realização de Eventos Científicos, que contemplou a proposta da I Jornada de Estudos sobre África Ocidental. Esse evento foi um dos primeiros do gênero no país a concentrar-se especificamente numa porção do continente africano, considerando suas articulações sociais, culturais, econômicas e políticas internas. Inspirado no Seminário Internacional Cultura, Política e Trabalho na África Meridional, que se realizaria na Unicamp em maio daquele ano, a I Jornada propunha verticalizar a agenda científica em estudos africanos, rumo a uma maior especificidade no campo, por meio de dinâmicas circunscritas ao espaço oeste-africano. Foi a semente deste número.

Do evento resultou o livro Estudos sobre África Ocidental: dinâmicas culturais, diálogos atlânticos (Reis; Resende; Mota, 2016), por intermédio do qual um dos organizadores do dossiê travou profícuo diálogo com Sílvio Marcus de Souza Correa, um dos colaboradores deste volume. A iniciativa fomentou uma segunda edição da Jornada, que tomou corpo através da V Jornada do Centro de Estudos Africanos da UFMG, em 2017, em parceria com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), da Guiné-Bissau. Esse evento contou com ampla participação de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, muitos deles africanos vindos de países como Cabo Verde, Gâmbia, Guiné-Bissau e Nigéria. Dele resultou outro importante livro sobre a história intelectual e o patrimônio cultural na África Ocidental (Santos; Amado; Marcussi; Resende, 2019), estreitando ainda mais os laços entre a historiografia brasileira e aquela procedente do oeste africano.

Entre 2016 e 2017, em decorrência de uma bolsa de doutorado sanduíche a ser cumprida na Universidade de Lisboa, oferecida pela FAPEMIG, o outrora doutorando em História na UFMG estabeleceu trocas intelectuais com Cornelia Giesing, uma vez que ambos estavam vinculados ao Centro de História da Universidade de Lisboa. A estadia em Portugal também o colocou em contato com Juliana Barreto Farias, professora da UNILAB que se preparava para atividades de pós-doutorado em Portugal. Ademais, com o auxílio da bolsa conseguida, o então pesquisador pós-graduando pode deslocar-se ao Senegal e à Gâmbia, para realizar pesquisas em arquivos e bibliotecas desses países. Em Dacar, no Senegal, onde ficou institucionalmente vinculado à Universidade Cheikh Anta Diop, travou duradoura interlocução com Idrissa Ba, outro organizador deste dossiê, parceira que tem se mantido ao longo dos últimos anos e resultado em produtos como este número.

Assim, a rede que permitiu a constituição da presente edição da Varia Historia resulta de um trabalho longo e contínuo, de colaboração e constituição de relações acadêmicas que somente foram possíveis devido ao investimento público na pesquisa brasileira. Destacamos essas informações para evidenciar como o financiamento público à pesquisa tem seus resultados prolongados ao longo do tempo, não se restringindo ao produto imediato do projeto em voga. Num momento em que a academia brasileira vive um período de crise, especialmente no que tange às Humanidades, reconhecer o amplo e duradouro impacto dos recursos recebidos torna-se estratégia de sobrevivência. Apesar disso, o fortalecimento de redes de cooperação acadêmica não isenta a organização deste número do rigor científico e da ética na condução de publicações de resultados de pesquisa. Por isso, todos os artigos que compõem este dossiê foram duplamente avaliados por pares, no sistema de revisão às cegas, e evidenciam os pontos destacados por Santos e Gebara em 2013, no que concerne aos estudos africanos: o impacto positivo do investimento público das agências de pesquisa na área, a maturidade das pesquisas realizadas no Brasil e os avanços necessários rumo à internacionalização dos estudos, da interlocução intelectual e dos resultados.

No Senegal, país cujo território atual corresponde ao espaço de várias das análises inscritas neste dossiê, que abriga muitos dos interlocutores mobilizados nos artigos a seguir e que é casa de um dos organizadores do número, a pesquisa também encontra suas principais fontes de financiamento em órgãos públicos. Trata-se de estruturas nacionais ou universitárias que arcam com a concessão de bolsas a professores-pesquisadores e pesquisadores. Entre essas estruturas, podem-se citar a Academia de Ciências, a Direção da pesquisa e cooperação internacional, as Reitorias, os Decanatos, as comissões de pesquisa dos vários estabelecimentos, as escolas de doutorado. Contudo, sob o impulso das autoridades ministeriais, a pesquisa e seu financiamento estão passando por uma revisão completa, que consiste em reorganizar as escolas de doutorado, a formação doutoral e as equipes de pesquisa, que devem tornar-se equipes maiores, transcendendo as fronteiras epistemológicas para melhor racionalizar os recursos e impulsionar as investigações. Além desse primeiro modo de financiamento da pesquisa, que conta com recursos públicos nacionais, há também parcerias internacionais, como a que está sendo formada entre universidades senegalesas, portuguesas e brasileiras em busca de formas de financiamento advindas de órgãos internacionais, como a União Europeia. Lá e cá, o que se nota é que a construção de redes internacionais de colaboração torna-se paulatinamente uma condição para a prospecção de recursos e otimização dos resultados das pesquisas históricas.

Diante desse quadro, a historiografia brasileira amplia seu diálogo com a Escola de Dacar. Essa, por sua vez, permanece fiel à sua tradição historiográfica em duas de suas principais preocupações: ampliar, seguindo Boubacar Barry (1988), a grande e bela Senegâmbia até os rios do óleo de palma; interrogar e integrar fontes de língua portuguesa (além de outras línguas europeias) aos principais materiais de construção do conhecimento histórico, como já o fizeram Sékéné Mody Cissoko (1966)Saliou Sarr (1980)Yoro Khary Fall (19911992), e muitos outros. O dossiê “História econômica, política e intelectual da África ocidental: lógicas de intercâmbio” segue esse caminho. A proposta de regionalização da agenda africanista brasileira também resulta de reflexão amadurecida ao longo dos anos e das trocas realizadas em eventos acadêmicos, como as duas jornadas relatadas. Os artigos que os leitores encontrarão indicam, pois, como os estudos africanos têm crescido no Brasil, alcançando reconhecimento e visibilidade nacional e internacional,[1] em fundamental diálogo com historiografias africanas. Intercâmbios entre pesquisadores nacionais e estrangeiros são fundamentais à expansão das perspectivas sobre a História da África, seja em abordagem, metodologias ou debates nos quais se inserem. Atualmente, pesquisas sólidas, focadas na África Ocidental, encontram-se em curso em programas de pós-graduação em História, no Brasil, e indicam a relevância dessa discussão.[2]

A proposta deste dossiê é fomentar a ampliação do campo, trazendo outros problemas, fontes e abordagens. Nutrindo-se do dinamismo do cenário existente, da expertise já em curso na historiografia brasileira dedicada à África Ocidental e agregando colaboradores estrangeiros, apresentamos um conjunto de artigos que lida com o período entre os séculos XV e XIX. O foco está nas conexões, internas e externas, estabelecidas pelas sociedades da África Ocidental, lidas na perspectiva das últimas. Visa ainda ao estímulo a pesquisas em arquivos africanos pouco visitados por historiadores brasileiros, localizados no Senegal, Gâmbia e Guiné-Bissau, além dos bem conhecidos arquivos e documentos europeus. Através desse corpus documental, o dossiê destacará intercâmbios econômicos, políticos e intelectuais dentro do continente africano e desde esse espaço com o exterior. Nossa proposta parte das conquistas teóricas e metodológicas realizadas pela historiografia africanista brasileira, senegalesa e internacional, no que diz respeito ao uso de fontes orais (Henige, 1982Wright, 1991Green, 2012), às pesquisas em arquivos africanos (Nobili, 2016Ceesay, 2018Ngom, 2020) aos métodos de análise de fontes europeias que tratam da África (Jones; Heintze, 1987Horta, 2011) e à busca pela perspectiva africana da História (Sarr, 2016Cooper, 2016).

Dialogando com a bibliografia que aponta a complexidade na História africana, além das dicotomias branco / negro, colonizador / colonizado, estrangeiro / autóctone (Boilley; Thioub, 2004), este dossiê focará na inter-relação entre sociedades sul-saarianas, norte-africanas e europeias, em contextos transitórios, entre os séculos XV e XIX. O número é formado por cinco artigos, escritos por historiadores vinculados a instituições do Brasil, Senegal e Portugal. Trazem temas variados, orientados por diferentes metodologias: 1) justaposição de fontes narrativas europeias, tratados filosóficos africanos e fontes orais para o entendimento da formação de uma cultura política islâmica na Senegâmbia; 2) abordagem historiográfica das diferentes formas de acomodação entre o comércio transsaariano e o trato atlântico, na longa duração; 3) cruzamento entre fontes escritas e orais para estudo das transformações de identidades culturais e dinâmicas de ocupação e reivindicação do espaço; 4) análise de um inquérito produzido no Senegal, em 1844, sob encomenda da administração francesa, acerca dos significados da escravidão, liberdade e sentidos do trabalho; 5) estudo da produção, reprodução e circulação de imagens sobre a conquista europeia na África através do estudo comparado de dois casos oeste-africanos.

Em conjunto, essas pesquisas apontam um panorama sobre a África Ocidental, com destaque para a região conhecida como Grande Senegâmbia, que compreende os territórios dos atuais Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri e alcança o norte da Serra Leoa (Barry, 1988Dias; Horta, 2007), além de uma incursão no atual Benim, em perspectiva comparativa. Nossa proposta é estimular o interesse de pesquisadores brasileiros por esse espaço, no período entre os séculos XV e XIX, marcado por intenso dinamismo. Ademais, buscamos evidenciar ao leitor as possibilidades de pesquisa em arquivos africanos, metodologias de trabalho com tradições orais e análises construídas a partir de textos e imagens produzidos na África e / ou na Europa, por agentes africanos e / ou europeus, ao longo do tempo. As fontes utilizadas e as abordagens recorridas indicam a riqueza do diálogo entre tais tipologias e coleções documentais publicadas ou presentes em arquivos europeus. Entendemos que a valorização desse intercâmbio documental e intelectual é necessária à ampliação e aprofundamento dos estudos africanos no Brasil, como já demonstrado pela Escola de Dacar. Dessa forma, este dossiê contribui para esse processo.

O presente número conta com cinco artigos, que abordam desde estudos de casos a análises inscritas na longa duração. A primeira contribuição é “Um coração de rei: cultura política islâmica como antecedente das revoluções muçulmanas na África Ocidental (Senegâmbia, séculos XVI e XVII)”, de Thiago Henrique Mota. Nesse artigo, o autor argumenta que os jihads que ocuparam a agenda política da África Ocidental, com maior fôlego entre os séculos XVIII e XIX, tiveram raízes mais profundas, que germinaram a partir do estabelecimento de uma cultura política islâmica sediada na África atlântica. Os elementos constitutivos dessa cultura política são uma base filosófica islâmica; sua difusão institucional a amplo número de pessoas por meio de escolas corânicas; a produção da ideia de um passado comum e o estabelecimento de expectativas de futuro fundadas num projeto de moralidade islâmica. Tais elementos teriam se articulado diante da ampliação do tráfico de pessoas através do Atlântico e seus variados impactos nas comunidades africanas. Por um lado, ampliação da violência endêmica, da escravização e das desigualdades sociais com rápido enriquecimento das elites locais envolvidas com o tráfico. Por outro, o fortalecimento das demandas por soluções jurídicas para o problema, que protegessem os muçulmanos da arbitrariedade da escravização. A isso se soma maior afluxo de papel procedente do comércio atlântico, aplicado na produção textual religiosa e jurídica islâmica através da região.

Em seguida, temos “Le commerce transsaharien et ses logiques d’accommodation par rapport au commerce transatlantique entre le XVe et le XIXe siècle”, de Idrissa Ba. Esse artigo pretende uma análise historiográfica. Ele convoca amplamente, de uma perspectiva crítica, trabalhos relacionados a três espaços intimamente ligados pela lógica comercial: o Saara, o Mediterrâneo e o Atlântico. No centro do debate, encontram-se as contribuições de David Robinson e de Vitorino Magalhães Godinho. A partir de Robinson, aborda o conceito de acomodação, redefinindo-o e recontextualizando. Em seguida, o conceito é aplicado para demonstrar como os atores e os beneficiários do comércio transsaariano adaptaram-se à abertura e ao comércio transatlânticos: por superposição, competição, colisão, captura de produtos, etc. Neste processo, o autor elabora uma contraposição à famosa fórmula de Vitorino Magalhães Godinho, relativa à vitória da caravana sobre a caravela.

“‘Le loup dans la bergerie’: narrations et identités des sujets de l’ancien royaume de Kasa en Sénégambie – Hommage à Stephan Bühnen (1950-2015)”, de Cornelia Giesing, é a terceira contribuição. Giesing é uma historiadora dedicada às fontes, como demonstrado por sua tradução e comentários acerca do Ta’rikh Mandinka de Bijini, na Guiné-Bissau (Giesing; Vydrine, 2007). Conforme a autora, o “artigo enfoca as divisões territoriais do país ajaa no interior do reino de Kaasa (séculos XV a XIX) através de narrativas sobre seu ocupação”. Na realidade, é por modéstia que Cornelia assim caracteriza sua contribuição, que explora vários documentos, constituídos principalmente por fontes portuguesas e pesquisas que ela própria conduziu em campo, para nos apresentar diferentes aspectos da história de Kaasa e dos reinos vizinhos, ao longo de cinco séculos. Tudo lhe toca: a estrutura política do espaço, em torno da capital Brikama e outras cidades secundárias; uma intensa mistura étnica e cultural (Mandinka-Sooninkee, Bañun, Joolaa, Balantes); o comércio entre o interior e a costa dominada, é verdade, pelo tráfico de pessoas; religiões locais; a exploração da terra e seus recursos. Em filigrana, a autora mostra que todas essas lógicas e dinâmicas foram feitas em detrimento dos povos Bañun que, de mestres e dominantes, tornam-se vítimas, minoritários e em vias de desaparecer. Esse processo macabro para os Bañun é reproduzido por uma frase bem escolhida, que Cornelia toma de tradições orais através da narrativa do comandante de um navio francês. Supostamente qualificando a atitude dos Balantas em relação aos Bañun, tem a seguinte redação: “um Balanta em uma de nossas aldeias é uma raposa no galinheiro”[3].

“‘Não há cativo que não queira ser livre!’: significados da escravidão e da liberdade entre marinheiros do Senegal, século XIX”, de Juliana Barreto Farias, é o quarto artigo. Aqui, o objetivo é compreender os significados da escravidão e da liberdade para os trabalhadores negros que atuavam em embarcações, nos rios e mares do Senegal. O principal aporte documental utilizado é um inquérito realizado em Saint Louis e Gorée, em 1844, no qual homens e mulheres escravizados, entre outros sujeitos, puderam se expressar e dizer o que pensavam sobre o cativeiro e sobre a liberdade. Trata-se de um documento sui generis, pouco explorado pela historiografia, ao qual se somam outras fontes, procedentes de arquivos senegaleses, franceses e publicações. Através da análise dessa seleta documentação, a autora aponta complexidades num sistema escravista vivido entre a ilha de Saint Louis e o continente africano, marcado pela mobilidade dos sujeitos escravizados, pelas relações de trabalho no contexto comercial da goma arábica e pelas hierarquias que estruturavam sociedades mestiças nos primórdios da colonização europeia na África. O sentido da liberdade construído por sujeitos negros – escravos ou livres – passava por uma ideologia marcada pela centralidade do trabalho, tema que era a ocupação central das autoridades coloniais naquela região.

O artigo que encerra o dossiê é um estudo comparado da produção, reprodução e usos de imagens, intitulado “Imagens itinerantes de potentados banidos da África Ocidental (1894-1899)”, de autoria de Silvio Marcus de Souza Correa. O texto é cronologicamente definido pelas capturas de potentados africanos diante da consolidação do colonialismo francês na África Ocidental. Em 1894, Béhanzin, oba do Daomé, foi deportado para a Martinica, após sua rendição diante das tropas francesas; em 1899 foi a vez de Samori Touré, almamy do Futa Jalom, ser deportado para o Gabão, após sua captura no ano anterior. Diante desses eventos, interessa ao autor refletir sobre as imagens desses governantes produzidas após sua captura, o trânsito delas, suas recepções e resignificações ao longo do tempo. Correa argumenta que tais representações fizeram parte da “ocupação imagética” da África Ocidental, termo que faz referência à fragilidade do controle exercido pelas metrópoles sobre os territórios africanos. Por outro lado, diferentes formas de apropriação das mesmas imagens, ao longo do tempo, transformaram-lhes os significados: de potentados africanos capturados como índice do poderio francês, foram lidas no período pós-colonial como ícones da resistência africana frente ao colonialismo. Nos dois casos, trata-se de representações pouco matizadas diante do complexo jogo de poder envolvido na captura desses sujeitos e na relação mantidas por eles com a França, antes e depois de seus exílios.

Portanto, esses textos se complementam, restauram diferentes dinâmicas e lógicas (comerciais, políticas, religiosas, etc.) que ocorreram na África Ocidental, esse vasto espaço constantemente redescoberto à luz das fontes e de sua exploração, entre os séculos XV e XIX. Aqui, as lógicas de intercâmbio são várias. Por um lado, remetem à natureza das trocas, compartilhamentos, acomodações e transformações ocorridos no espaço oeste-africano sob escrutínio. Por outro, dizem respeito aos diálogos e partilhas entre historiadores de distintos pontos da bacia Atlântica, unidos pelo interesse comum na história da África Ocidental. A continuidade desse tipo de intercâmbio depende de investimentos dedicados a pesquisas, por órgãos públicos e privados, nacionais e estrangeiros, e do fortalecimento das relações intelectuais trans-fronteiriças. Tais recursos permitiram a realização deste dossiê, que busca contribuir para nosso maior conhecimento da história africana e suas conexões com outras partes do mundo. Assim, ajuda-nos a compreender o passado da humanidade e a refletir sobre as escolhas feitas e os limites impostos a homens e mulheres, que ecoam na caracterização das sociedades do nosso tempo. Como as lógicas de intercâmbio através do tempo e do espaço bem o demonstram, ninguém é uma ilha, nenhum lugar existe fora do tempo, fora de suas conexões com o mundo. A história e sua construção estão, pois, em andamento, e a elaboração deste dossiê em tempo recorde, por historiadores de várias origens, é um exemplo disso e abre caminho para futuras colaborações, que esperamos que sejam frutíferas.

Notas

  1. Green (2019)publicou um artigo na revista Atlantic Studies discutindo o contributo de vários trabalhos realizados no Brasil à historiografia internacional, concernente aos estudos africanos.
  2. Para ficar em um exemplo, destacamos os resultados já publicados de Malacco (2017).
  3. A expressão original utilizada pela autora, loup dans la bergerie, corresponde a “lobo no curral”. Contudo, trata-se de expressão empregada por um europeu para expressar seu entendimento de tradições orais oeste-africanas, uma vez que o lobo não é uma espécie nativa do Kasa. Diante disso, optamos por uma frase mais familiar aos leitores de língua portuguesa, mantendo o entendimento central da metáfora utilizada.

Referências

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História dos conceitos e história intelectual: conexões teórico-metodológicas / História – Debates e Tendências / 2020

A história dos conceitos e a história intelectual consolidaram-se, desde a segunda metade do século XX, como um dos principais campos de pesquisa da historiografia, dos seus focos e margens de inovação. Com efeito, sob o crivo e os desafios das ciências sociais, a tradicional história das ideias, desprovida de uma contextualização social, passou desde a década de 1950 por diversas mutações, geradoras de múltiplas vias e interrogações, num arco internacional de propostas metodológicas que tem enriquecido o debate sobre a História. Leia Mais

História Intelectual / Boletim Historiar / 2018

É com prazer que apresento este Dossiê sobre História Intelectual organizado por mim a convite da Revista Boletim Historiar. Os textos apresentados aqui são frutos das discussões promovidas durante o primeiro semestre de 2018 na disciplina História Intelectual latino-americana entre os séculos XIX e XX. Esta foi ministrada por mim no Programa de Pós- Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro como uma das atividades do estágio pós-doutoral que realizei nesta instituição.

O objetivo principal do curso era estimular o debate sobre as possibilidades de análise no campo da História Intelectual, sobretudo no âmbito da América Latina e Brasil e em diálogo com áreas afins. Com o mesmo intuito reuni os textos que agora apresento. Estes artigos foram elaborados por alguns dos alunos da referida disciplina a partir de uma proposta de trabalho final. Somado a estes textos, apresento também o artigo de uma colega que realiza reflexões acerca de um diálogo entre a História Intelectual e o Pensamento Social Brasileiro. Leia Mais

Los jesuitas entre la historia intelectual y la historia de las prácticas en el mundo iberoamericano. Debates pasados, implicaciones contemporáneas/Historia y Grafía/2017

La Compañía de Jesús, quizá más que ninguna otra orden religiosa, tuvo un rol activo en la conformación de la sociedad moderna. Ya fuera por la concepción del Estado que contribuyó a delinear, ya fuera por la orientación que tomaron sus métodos de misión desde el Paraguay hasta la China, los jesuitas intervinieron en los principales debates y políticas que marcaron los siglos XVII y XVIII, proyectando algunas de sus polémicas a los siglos XIX, XX y XXI. De manera particular en los últimos años se ha generado una preocupación creciente por el papel que los miembros de la Orden tuvieron en diferentes áreas del conocimiento –en especial las ciencias y las artes–, en la creación de sistemas morales y jurídicos que marcaron la transición del Antiguo Régimen a la época moderna y en la contribución a historiografías eclesiásticas y nacionales.1 El diálogo de la historiografía de la Orden con la historiografía laica, los encuentros conmemorativos y las publicaciones periódicas especializadas, han jugado un rol fundamental en este crecimiento de la producción y en el interés académicos en torno de la Compañía. Aunque esta situación ha beneficiado al campo de estudios ampliamente reconocible como “jesuitología”, también tendió a generar una falsa idea de aislamiento de la Orden de su contexto más general. La supuesta excepcionalidad de la Compañía tal vez se funde en la existencia concreta de un enorme legado documental –disperso por el mundo– que supera en cantidad al de cualquier otra orden religiosa. Esto tendió a sobredimensionar la singularidad de los jesuitas en la reconstrucción histórica del proceso de expansión global del cristianismo. Puede decirse que la misma autoimagen de la Compañía de Jesús se construyó –y se sigue construyendo– a partir de este legado escriturario, muy regulado desde el principio y en constante crecimiento. Es lícito afirmar, junto a otros autores, que la historia de la Compañía de Jesús es en buena medida la historia de su relación con la escritura.2 Leia Mais

Historiografia e História Intelectual / Varia História / 2015

)Não por acaso, este Dossiê escolheu como tema Historiografia e História Intelectual. O movimento historiográfico com renovado interesse, já há algumas décadas, tem registrado uma produção em uma escala bastante globalizada, marcada pela reivindicação de um alinhamento com a chamada História Intelectual, cuja definição tem comportado diferentes entendimentos, e cujas fronteiras disciplinares têm comportado deslocamentos sistemáticos e bastante e promissores. Em suas margens, delimitadas por variadas tendências, se tocam, se cruzam, se confrontam questões teórico-conceituais de tradições, linhagem e filiação diversas, as quais nem sempre se ocupam do mesmo objeto. O que por vezes confunde e obscurece as incursões dos interessados, já que nem sempre há clareza suficiente dos itinerários e dos percursos a serem seguidos, em um espaço que não se furta a alimentar debates, e tampouco descarta a possibilidade de sua autonomização no interior da disciplina histórica.

Sua geografia inclui espaços nacionais diversos, a exemplo da Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos, França, Argentina, em instituições de renome, como as universidades de Cambridge, Oxford, Johns Hopkins, Cornell, Chicago, Yale, Quilmes , os institutos de Sciences Po, CNRS, em que filósofos, lingüistas, epistemólogos, historiadores, sociólogos do direito, enfim, nomes de grande reputação como Reinhard Koselleck, Quentin Skiner, François Sirinelli, François Foucault, M. Abensour , Charles Zarka, Carlos Altamirano, J. A. Pocock, Richard Rorty, Dominique La Capra foram definindo novas epistemologias e espaços de pesquisa. Entre a história intelectual e a história dos intelectuais, a história dos conceitos e a história da historiografia, a abordagem contextual e a reflexão lingüística, a internalidade e a externalidade dos textos vão pontificando os conceitos de semântica histórica, campo semântico, atos de linguagem, lance, formação discursiva, redes, gerações, corpus textuais entre tantos outros. Os avanços, as mudanças e as convergências entre as várias correntes no movimento de sua instituição foram introduzindo novos desafios e outras práticas: dos grandes textos filosóficos, históricos e políticos a outros corpus documentais, como os escritos dos publicistas, os manifestos políticos e culturais, os jornais e revistas, as correspondências, as biografias e autobiografia, dentre outros. Entra em cena a atenção sobre o papel das trocas culturais, a intertextualidade, a dimensão comparativa no âmbito da história conceitual e as inúmeras relações, já apontadas por estudiosos, “entre conceitos e práticas não lingüísticas: o gesto, a imagem, o cênico”. Neste vaivém das trocas entre teoria e empiria, pensamento e texto, o texto e o contexto, a multiplicidade de sentidos e a mobilidade das significações, a natureza histórica das obras e a instabilidade das mesmas, as performances do texto e as interpretações estabelecidas, as regras metodológicas e os processos de pesquisas se cruzam e extrapolam as fronteiras disciplinares, e se reforça a irredutibilidade de busca da historicidade.

O Dossiê aqui proposto pretendeu, entre outros objetivos, acolher reflexões de natureza historiográfica que pudessem trazer pistas ao leitor sobre o “estado da arte” da historiografia nas suas interfaces com o domínio da chamada História Intelectual. Os autores convocados, Jorge Eduardo Myers, Valdei Lopez de Araújo, Verônica Zarate Toscano e Gabriella Pellegrino Soares, conhecidos pela excelência da sua contribuição histórica e científica, aqui se detiveram em criativas e diversificadas análises que mostram como o manuseio de referenciais teórico metodológicos, afinados com a História Intelectual, pode contribuir para desvendar ricos aspectos no campo dos estudos do pensamento, da cultura e das práticas intelectuais, e dar mostras do seu impacto sobre o labor historiográfico e a escrita da história. Os textos tangenciam, quando não atacam diretamente, questões importantes como aquelas dos limites, bem como dos contatos, aproximações e possíveis tensões no interior da historiografia, entre a História Intelectual e a História das Idéias, uma vez que experimentam, na exploração dos seus objetos ou dos balanços que realizam as implicações da opção por uma ou por outra, em termos das aberturas hermenêuticas e / ou dos possíveis déficits epistemológicos.

A leitura das contribuições aqui apresentadas aporta aos leitores, por um lado, vários elementos especulativos. De outro, motivam e induzem perguntas e respostas, ainda que nem sempre diretas, e que não podem ser negligenciadas, a exemplo de ser ou não procedente a separação da História Intelectual frente a uma Nova História das Idéias. Que balanço pode ser feito da fortuna crítica nesses domínios, bem como nas interfaces da História Intelectual com a história dos conceitos, com a nova história política e com a história cultural? Como pensar as relações da História Intelectual com a memória e a narratividade da história? Como se complementam História Conceitual e História Social? Os textos publicados neste Dossiê fazem perfilar, nas suas diferenças de abordagem, pistas para se pensarem essas questões, ao tempo em que sinalizam para algumas tendências mais recentes, responsáveis por uma configuração outra da abordagem e da análise dos corpos textuais, sejam historiográficos, sejam do pensamento político, sejam documentais.

O Dossiê se respalda em estudos e análises históricas sobre o tema nos domínios de pesquisa dos convidados, daí contar com explorações mais pontuais, comparações e balanços, que propiciam importantes aportes para a historiografia do Brasil e de outros países também da América Latina, a exemplo do México e da Argentina.

Que os leitores da Varia Historia aproveitem e façam uma boa e proveitosa leitura!

Eliana Regina de Freitas Dutra – Pós-Graduação em História. Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]


DUTRA, Eliana Regina de Freitas. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.31, n.56, mai. / ago., 2015. Acessar publicação original [DR]

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História Intelectual / Tempos históricos / 2015

O campo da História Intelectual e da História dos Intelectuais, surgia, há alguns anos, envolto em muitas dúvidas e incertezas, objeto de pesadas críticas por parte da comunidade acadêmica. Nos últimos anos, contudo, assistimos a partir do esforço de pesquisadores e / ou professores do Brasil e fora dele, ao fortalecimento do referido campo de estudo. Cada vez mais suas balizas históricas estão definidas, bem como sua natureza e seu campo de ação. O dossiê “História Intelectual” é um exemplo deste esforço empreendido por diversos pesquisadores da grande área das ciências humanas, demonstrando a pluralidade de abordagens possíveis para a História Intelectual. Passamos a apresentar, de forma breve, pois a leitura aprofundará a discussão, os artigos que compõem o dossiê da Revista Tempos Históricos.

Deste modo, os quatro primeiros artigos do dossiê centram-se em questões de ordem teórica e metodológica no que se refere à História Intelectual. O texto de José D’Assunção Barros oferece uma original e instigante proposta, com vistas à superação das dificuldades comuns aos conceitos e modelos tradicionalmente empregados pelos pesquisadores dedicados ao mencionado campo historiográfico. Assim sendo, o estudioso parte da teoria musical a fim de construir uma metáfora – o “acorde historiográfico” – como possibilidade para se lidar com os complexos temas vinculados à História Intelectual.

Em seguida, Eugênio Rezende de Carvalho salienta de que maneira o filósofo e historiador argentino Arturo Andrés Roig contribuiu decisivamente no sentido de uma renovação teórica do movimento latino-americano da História das Ideias durante os anos 1970, abrindo uma via rumo à História Intelectual. Todavia, como bem demonstra o autor, muitos trabalhos que não abandonaram as tradicionais práticas ligadas à História das Ideias mantiveram intenso diálogo com as perspectivas inovadoras formuladas por Roig.

O artigo da professora e pesquisadora Claudia Wassermann discute os principais conceitos para a História Intelectual, a natureza dos intelectuais e suas funções. O artigo traz, como um estudo de caso, a ação de alguns intelectuais latino-americanos.

Por sua vez, Carlos Henrique Armani aborda um dos temas mais caros da História Intelectual: o conceito de contexto. Ao revisitar o tema, estabelece-se um diálogo com os principais autores da área em questão, propondo outras perspectivas de abordagem para o conceito de contexto na e para a História Intelectual.

Na sequência, Raphael Guilherme de Carvalho investiga determinados aspectos da escrita de si observáveis em alguns textos que o historiador Sérgio Buarque de Holanda produziu no decorrer da década de 1970. O estudioso indica a forma pela qual Sérgio Buarque elaborou discursos tendo por objetivo legitimar a sua produção ensaística – como, por exemplo, Raízes do Brasil – em um contexto marcado, entre outros, pelo aprofundamento da especialização da pesquisa histórica em nosso país.

Walkiria Oliveira Silva nos apresenta suas reflexões sobre as funções do conhecimento histórico e da historiografia para a Alemanha de meados do século XX, tomando como ponto de partida o chamado Círculo de Stefan. Discute ainda as relações estabelecidas entre o Círculo e o conceito alemão de Bildung.

O texto seguinte, de Raimundo Lima dos Santos, aborda a presença dos viajantes no Maranhão ao final do século XIX. O autor aponta, ao discutir as impressões dos viajantes sobre a fauna, a flora, a cultura e a economia, a presença do Romantismo e da Ilustração, ainda que tal se observe por vezes de forma indireta. As impressões construídas pelos viajantes sobre o Brasil, e mais especificamente sobre o Maranhão, ainda sobrevivem nos dias atuais.

Por sua vez, Andrea Ciacchi delineia em seu artigo a trajetória intelectual da antropóloga Gioconda Mussolini e a relevância de seu trabalho na Universidade de São Paulo ao longo dos anos 1940-1960. A abordagem biográfica ora empregada pelo autor visa, ao mesmo tempo, esclarecer a importância da referida intelectual em um momento crucial no que se refere à institucionalização da antropologia no Brasil.

O professor André Fabiano Voigt a partir do diálogo com diversos importantes autores do século XIX e XX delimita o principal foco de sua análise: a discussão sobre a presença da mimesis que em Jacques Rancière que deve ser entendida dentro de sua historicidade, em contraposição às reflexões de Hans-Georg Gadamer e Luiz Lima, para os quais a mimesis mantém sua atualidade para a compreensão da experiência artística.

Jocelito Zalla analisa a obra Terra Gaúcha, vista no artigo como espécie de “ensaio histórico” composto pelo escritor João Simões Lopes Neto na segunda metade da década de 1910. O livro reiterava o modelo do gaúcho da região do Pampa como figura representativa do povo do Rio Grande do Sul. No entanto, o estudioso busca desvelar o fato de que, naquele ensejo, o modelo de identidade social rio-grandense ainda se encontrava em aberto, forjado em meio a disputas pela configuração de uma memória local que, por seu turno, se articulavam a questões nacionais mais amplas.

O artigo de Patrícia Helena Baialuna de Andrade reflete, tendo como pano de fundo o contexto dos anos 1930, mais especificamente a partir do estabelecimento do chamado nacional-socialismo, a publicação de dois periódicos. A autora analisa os referidos periódicos (Freies Deutschland e Internationale Literatur), que tinham como objetivo criar focos de resistência e apoiar os artistas, políticos e intelectuais, em grande parte, judeus, forçosamente exilados pelo regime nazista.

Por fim, Regina Weber se volta para a presença étnica polonesa no Brasil, particularmente aos conflitos derivados das iniciativas propostas por intelectuais laicos e religiosos no seio de associações construídas por emigrados na primeira metade do século XX, em especial no estado do Paraná. A autora destaca, por outro lado, que na década de 1960 nota-se um processo de convergência entre tais intelectuais no interior dessas comunidades, então compostas por muitos descendentes, pautado na noção de pertencimento étnico e na constituição de uma memória comum para os imigrantes de origem polonesa.

Boa leitura a todos.

Marcos Luís Ehrhardt – Doutor em História Social (UFPR). Professor do curso de História e do PPGH – UNIOESTE.

Moisés Antiqueira – Doutor em História Social (USP). Professor do curso de História e do PPGH – UNIOESTE.


EHRHARDT, Marcos Luís; ANTIQUEIRA, Moisés. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.19, n.1, 2015. Acessar publicação original [DR]

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História intelectual, impressos e culturas políticas na América Latina | Temporalidades | 2012

O nome da revista, Temporalidades, expressa uma das problemáticas centrais do trabalho do historiador: as temporalidades históricas. Umas das tarefas do historiador é problematizar o tempo histórico ou como diria Fernand Braudel, “os ritmos do tempo”. A revista Temporalidades, a cada número, tem se mostrado como um importante espaço de divulgação de novas pesquisas promovendo importantes reflexões históricas em suas páginas. Em seus três anos de existência, a revista constituiu-se como um espaço de publicação que permite a jovens pesquisadores de diversas regiões e instituições, inclusive internacionais, divulgarem seus trabalhos para seus pares e para a sociedade em geral. Leia Mais

História intelectual: “ideias e conhecimentos: produção, circulação, transmissão” / História – Questões & Debates / 2010

Partindo da própria fundamentação da história intelectual, este dossiê, intitulado “Ideias e conhecimentos: produção, circulação, transmissão”, pretendeu enfatizar os procedimentos de construção, de transposição e de apropriação do saber.

Praticada nestas últimas três décadas, notadamente na Europa, a história intelectual se afirmou como uma área de pesquisa das ciências humanas, tendo por ambição principal elucidar a formação, a produção, a circulação e a recepção das ideias e dos conhecimentos. Apreender tanto as ferramentas de análise como os mecanismos de transposições intelectuais constitui, por consequência, seu objeto de estudo.

Ora, este vasto campo de pesquisa interdisciplinar requer, inevitavelmente, uma abordagem que ultrapassa as fronteiras disciplinares, passível de melhor apreender os elementos componentes, a saber: a produção das obras, a posição dos autores e as respectivas inscrições nos contextos emergentes (culturais, intelectuais, históricos).

Objeto de controvérsias e de debates, esta área se situaria, para uns, na continuidade da história das ideias, e, para outros, ela se demarcaria radicalmente desta última.

Ora, a fim de evitar análises redutoras e simplistas, seus pesquisadores, nos dias atuais, recusam-se a se restringir unicamente às leituras internalistas e / ou externalistas dos textos, privilegiando a interconexão entre contextualismos e análises das obras. Rica em pesquisas, tanto na França (François Dosse) como fora dela, a partir da versão anglo-saxã (Skinner, Pocock) e da versão germânica (Koselleck), a história intelectual se afirmou como um ramo indispensável da história e das demais ciências sociais.

História dos conceitos, semântica histórica, sócio-história das ideias, ela vem se enriquecendo graças aos aportes de outras áreas do conhecimento e de diferentes métodos de análise, como a hermenêutica e as chamadas “transferências culturais”.

Abordando contextos históricos e intelectuais do final do século XIX ao início do século XXI e espaços culturais distintos (Europa e América), este presente dossiê teve por preocupação combinar diferentes objetos e temáticas: obras, autores, disciplinas, métodos de trabalho, correntes de pensamento, debates intelectuais, engajamentos políticos, circulações de ideias e de pessoas, procurando interligar a função de produtor do conhecimento ao efeito das ideias produzidas.

A emergência de uma disciplina, ou seja, a institucionalização de um conhecimento, neste caso a filosofia grega – os pré-socráticos –, no final do século XIX, inicia este dossiê. Neste texto, André Laks, filósofo da antiguidade, questiona o significado desta “escola de pensamento”, procurando mostrar como a criação desta corrente pré-socrática decorre tanto dos procedimentos intelectuais, ligados à instituição acadêmica moderna, como do legado de uma historiografia aristotélica.

Analisando o debate de ideias ocorrido na França, no final do século XIX, opondo dois cientistas sociais – Gabriel Tarde e Émile Durkheim –, adversários uma vez que concorrentes, Márcia Consolim explica a razão de suas divergências disciplinares e científicas. Como bem mostra seu artigo, esta polêmica é reveladora do estado do campo intelectual francês do momento, marcado pela disputa em torno do reconhecimento e do conhecimento entre dois pesquisadores e duas disciplinas emergentes: a sociologia e a psicologia social.

Sobre o processo de relações culturais entre a Alemanha e o Chile, na virada do século XX, o texto de Carlos Sanhueza propõe questionar as implicações destas transições de ideias e de modelos (militares e educacionais), via os intelectuais de ambos os países. Seu objetivo consiste em mostrar que, embora a Alemanha represente “o lugar” da ciência e do conhecimento, sua “presença” no Chile não deixa de projetar uma imagem negativa. Isto em razão das controvérsias e dos debates, por parte dos intelectuais chilenos, sobre o dito “embrujamiento alemán”. Em outras palavras, ele questiona se a “influência” cultural alemã não ameaçaria as culturas de raízes latinas.

Aliando análises antropológicas e estudos de linguagem, Maria de Lourdes Patrini Charlon investiga os “cadernos de campo” de Roger Bastide, redigidos ao longo de seu itinerário de pesquisador pelo Brasil, pela África e pela Europa. Professor visitante na Universidade de São Paulo durante vários anos, Bastide formou uma nova geração de professores brasileiros e desenvolveu inúmeros estudos sobre a cultura afro-brasileira. Instrumentos de trabalho etnológico, os “cadernos de campo” não só revelam o olhar deste antropólogo sobre o “outro”, mas permitem entrever as etapas e as modalidades de uma abordagem de pesquisa.

Buscando apreender o procedimento da circulação mundial das ideias, nos contextos intelectuais chileno e latino-americano, Eduardo Devés-Valdés elabora uma pesquisa sobre o cristianismo social na década de 1960. Especialista no pensamento latino-americano desta época, ele privilegia os enfoques, por um lado, sobre a importação de ideias através da “rede econômica e do humanismo” e, por outro, sobre a exportação de valores, através da rede dos chamados “cristãos para o socialismo”.

Autor de uma biografia intelectual de Gilles Deleuze, François Dosse demonstra como a obra deste filósofo, elaborador de conceitos, é perpassada pela questão política. “Pensador rebelde”, Deleuze participa de maio de 68 e se investe, na década de 1970, em movimentos sociais concretos (como o GIP) e em debates políticos e intelectuais que marcaram este momento. Engajada contra toda forma de institucionalização, de repressão e de poder, sua obra testemunha sua vontade de liberar o “fluxo de desejo” a partir da necessidade, que ela própria proclama, de procurar as “linhas de fuga”.

Por sua vez, o texto de Laurent Jeanpierre sobre as invenções e as reinvenções transatlânticas da “Critical Theory” remete a questões da migração de conceitos e da assimetria na circulação internacional do conhecimento. Forjada por Horkheimer, em 1937, durante o exílio do Institut für Sozialforschung nos Estados Unidos, esta expressão é abandonada nos anos 1960, mas reapropriada, em seguida, pelas universidades americanas sem que, no entanto, esta etiqueta “teoria crítica” tenha a mesma equivalência na Europa continental.

Fechando o dossiê, o texto sobre as “transferências culturais” pretende indagar a operacionalidade desta teoria e desta metodologia para o estudo da história intelectual. Buscando questionar as modalidades e as condições de possibilidade de sua utilização, Helenice Rodrigues apresenta seus pressupostos de análise, a saber: as interações, as imbricações, as apropriações e as transformações como resultado do processo de deslocamento das ideias no tempo e no espaço. Aliando o método comparativo ao cruzado, os utilizadores desta área se esforçam em mostrar a necessidade de se ultrapassar as áreas culturais nacionais pelos espaços transnacionais, a fim de melhor entender os fenômenos de circulação e de transferência do conhecimento.

Por fim, um artigo e uma resenha encerram os textos deste volume. O artigo, de autoria de Fernando Nicolazzi, tem como proposta a análise de alguns trabalhos recentes do historiador francês François Hartog, com o intuito de expor suas incursões sobre a cultura histórica contemporânea. Partindo de noções-chave como regimes de historicidade e presentismo, a análise empreendida pelo autor se insere no âmbito geral de uma história da historiografia.

A resenha, escrita por Nataniél Dal Moro, faz uma análise da obra Arte na rua: o imperativo da natureza, de autoria da historiadora Suzana Cristina Souza Guimarães. A obra procura refletir sobre o impacto provocado pela migração populacional ocorrida nas décadas de 1960-70 no cotidiano urbano da cidade de Cuiabá, com o objetivo de analisar a relação entre a arte, a natureza e a identidade do povo cuiabano a partir de fontes produzidas no campo das artes plásticas.

Helenice Rodrigues – Professora Associada da Universidade Federal do Paraná (UFPR)


RODRIGUES, Helenice. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.53, n.2, jul./dez., 2010. Acessar publicação original [DR]

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História intelectual e política / Varia História / 2005

A idéia de um dossiê da Revista Vária História organizado em torno da temática História Intelectual e Política origina-se de duas motivações fundamentais. De um lado alargar o horizonte de referências e, por conseguinte, de compreensão dos interessados no estudo das culturas políticas na história. De outro, destacar a contribuição da história intelectual “nas suas diferentes abordagens e perspectivas” para a análise dos fenômenos políticos, permitindo assim uma maior exploração das várias relações / interações entre a vida cultural e política. Junto aos interesses acima mencionados, este dossiê, como os demais da Vária História, visa assegurar um espaço para os debates historiográficos e o ensaio de novas idéias.

Na trilha do conceito de Direitos Humanos, sua emergência e estatuto no interior do mundo político moderno, o artigo de Lynn Hunt, O Romance e as Origens dos Direitos Humanos. Interseções entre História, Psicologia e Literatura, nos propõem a um só tempo uma reflexão criativa sobre os limites da história intelectual, e as vantagens do alargamento do seu escopo analítico. Nesta linha, a autora empreende uma arqueologia da linguagem dos direitos humanos, sem descurar dos discursos filosóficos e das disputas políticas por direitos, que tiveram como pano de fundo as Revoluções Americana, de 1776, e Francesa, de 1789, para então, via a leitura dos romances epistolares no século XVIII, encontrar na crescente autonomia individual e na noção de “empatia imaginada ” os fundamentos dos direitos humanos. Os efeitos psicológicos e emocionais provocados por esse gênero de leitura, a exemplo da conquista do self guardariam, assim, um dos segredos da ressonância dos direitos humanos.

Em História, eventos e narrativa: incidentes e cultura do quotidiano, Robert Darnton, na sua leitura do livro O Assassinato Sentimental. Amor e Loucura no século XVIII, de John Brewer, vai problematizar, com sua originalidade habitual, a emergência de uma nova história dos incidentes, surgida do interesse dos historiadores por fatos menores, mas nem por isso menos presentes na vida dos homens comuns ” à exemplo de crimes de assassinato, atrocidades, escândalos, entre outros que fazem a alegria da imprensa sensacionalista, ” bem como por sua repercussão pública e formas de apropriação e divulgação na mídia. Do acompanhamento crítico da análise de John Brewer, com seus vários meandros em torno de um crime passional na Londres do século XVIII, e de seus desdobramentos, versões e manipulações sentimentais, Darnton recupera a potencialidade da análise dos incidentes da vida cotidiana través das suas formas de comunicação midiática, o que nos é muito sugestivo para pensar os vários debates de idéias, e que, a seu ver, pode levar os historiadores a buscar e encontrar outras respostas no passado.

Por outras vias, o artigo de Christophe Prochasson, Emoções e Política: Primeiras Aproximações nos leva também aos sentimentos, em particular ao seu papel na vida política. Alinhado com a perspectiva de uma História Política que contemple, entre outras, as dimensões afetiva e simbólica, tal como possibilitada entre outros, pela aná- lise das culturas políticas, e após realizar um rico percurso historiográfico pelas novas formas de abordagem do político na História, o autor toma o pensamento político de Tocqueville como um caso exemplar a favor de uma história das emoções políticas. As emoções coletivas fundando vínculos políticos entre os indivíduos; a força das paixões, comandando a ordem política, ao lado dos mais legítimos interesses racionais; as cargas emocionais intervindo sobre os comportamentos políticos e as formas de ação; são temas que vão se perfilando na leitura instigante que o autor empreende de A Democracia na América e Lembranças de 1848.

Por seu lado Elías Palti, no seu artigo História das Idéias e História das Linguagens Políticas. Acerca do debate em torno dos usos dos termos “povo” e “povos”, revisita o tema da elaboração do conceito de nação na América Hispânica tomando como referente o discurso independentista e a utilização, no seu interior, de formas diferentes da palavra povo, seja no singular ou no plural, como chave para pensar a alteração das linguagens políticas. Em clara afinidade teórica com os estudiosos das terminologias e conceitos políticos, e em franca colisão com a antiga tradição de uma história das idéias, o autor estabelece um diálogo franco e consistente, com os aportes de uma historiografia que, ao analisar a concepção de nação conformada no discurso político latinoamericano do período da emancipação, acabou por definir uma chave de leitura baseada em antinomias, a exemplo de liberalismo / tradicionalismo, tradição / moderno, informadas pelo teor ideológico dos discursos.

No horizonte da história político-intelectual na Hispanoamérica Maria Helena Capelato, no artigo Cuadernos Hispanoamericanos: IdéiasPolíticas numa Revista de Cultura, acompanha a construção e instrumentalização de um ideal de hispanidad na trajetória de num periódico de cultura criado para circular nos países de língua hispânica, no âmbito de uma política americanista do governo espanhol definida após a segunda grande. Ponto de encontro de intelectuais e homens políticos oriundos das hostes franquistas, simpáticos ao nacionalismo, a revista ainda assim, nos mostra a autora, acolhe um múltiplo e contraditório conjunto discursivo. É justo esse aspecto que o artigo dará relevo, ao se orientar pela busca da relação texto-contexto e dos para-textos culturais, os quais conformam, na referida publicação, os padrões de uma interação das idéias com uma dinâmica político-social marcada pela emergência da Guerra Fria e pelas disputas de poder no interior do regime franquista.

A primeira grande guerra tomada como pano de fundo para uma história dos intelectuais e seus posicionamentos políticos é o tema do artigo de Yael Dagan, Civilizados, Bárbaros e Europeus. Três Homens de Letras em Face do Inimigo. 1914-1925. Nele, a autora segue os escritos e os conflitos pessoais de três importantes intelectuais franceses, a saber, André Gide, Jean Schlumberger e Jacques Rivière, em torno da mobilização patriótica durante a Primeira Guerra Mundial e no imediato pós-guerra, até 1925, período que qualifica da passagem da guerra à paz. Detendo-se nas representações do “inimigo nacional” conquanto elemento forte das representações coletivas da época, e rastreadas numa pesquisa meticulosa dos escritos desses homens, em particular seus textos na La Nouvelle Revue Française (La NRF,) e suas correspondências pessoais, a autora põe a nu os mecanismos de mobilização e de desmobilização cultural no qual esses escritores estiveram engajados, para além das suas experiências com a guerra.

O tema do engajamento, como princípio definidor da figura moderna do intelectual e de sua contrapartida, o silêncio dos intelectuais, é o fio condutor do artigo O Intelectual no “Campo” Cultural Francês: do caso Dreyfus aos Tempos Atuais, de autoria de Helenice Rodrigues. Do acompanhamento da noção de intelectual, remontando à sua origem no final do século XIX, na França . ocasião em essa categoria social faz sua aparição através da sua atuação política no espaço público . passando pelas várias concepções, formas e crises do engajamento dos intelectuais franceses ao longo da história contemporânea do século XX; e chegando ao ocaso de um modelo de representação do intelectual nos anos 80, a autora repõe a urgência de uma reavaliação da função crítica dos intelectuais. Na análise da força, no discurso engajado, de termos como verdade, valores morais, consciência crítica, liberdade; num contraste ente o intelectual engajado e o expert, um quadro vivo da cultura intelectual francesa é aqui traçado.

Diante de tal riqueza e diversidade espera-se que a organização desse Dossiê tenha cumprido seus objetivos.

Belo Horizonte, Verão de 2004 / 2005

Eliana de Freitas Dutra – Organizadora. Departamento História / UFMG. E-mail:
[email protected]


DUTRA, Eliana de Freitas, Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.21, n.34, jul., 2005. Acessar publicação original [DR]

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