Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830) – FRAGOSO (VH)

FRAGOSO, Joao Luís Ribeiro. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. Resenha de: MENESES, José Newton Coelho. Varia História, Belo Horizonte, v.12, n.15, p. 193-198, mar., 1996.

Se tentássemos resumir em poucas palavras uma obra de tal porte, diríamos que ela se propõe a fazer uma investigação reflexiva sobre os mecanismos de reprodução da economia colonial, em torno da praga do Rio de Janeiro, na virada do século XVIII e primeiras décadas do século XIX, evidenciando que essa economia não se restringe as estruturas do escravismo e do mercado internacional. A esses elementos estruturais somam-se a existência de um mercado interno, a ocorrência de acumulações endógenas e a presença de um setor mercantil residente. A somatória de todos esses elementos, configuraria uma formação social que controlaria, em boa parte, seus pr6prios mecanismos de reprodução.

O presente livro e composto pelos quatro primeiros capítulos da tese de doutoramento do autor1 que, ao que parece, foram pouco alterados para essa publicação, uma vez que se apresenta sob forma rigorosamente acadêmica, o que, infelizmente, pode limitar sua leitura a grupos de interessados. Esses leitores, no entanto, certamente não se arrependerão de poder refletir, sob uma orientação clara e lúcida, acerca da estrutura econômica do sudeste colonial, no período proposto. O caráter acadêmico está caracterizado na obra, sobretudo quando se mantêm a descrição dos métodos e técnicas de pesquisa utilizados, onde o autor explicita as Pontes de diversas naturezas trabalhadas (fiscais e cartoriais), bem como o tratamento dado a elas e os cruzamentos dos seus dados. Além disso, o número excessivo de Tabelas e Curvas (são 79, no total) e a descrição dos dados de cada uma delas, não nos deixa dúvidas acerca do rigorismo citado, e evidenciam a necessidade de uma edição futura, cuidadosamente preparada para uma major parcela de leitores.

Logo de início, Joao Luís Fragoso nos apresenta seu objeto e hipóteses de trabalho, contrapostos a uma análise dos debates que buscaram criar os modelos explicativos clássicos da economia colonial. E discute tais modelos de forma crítica, mas evidenciando a necessidade de conhece-los e de apreender alguns de seus conceitos. 1  Não esquece de mencionar as diversas pesquisas de base que, nas décadas de 70 e 80, buscam as evidencias de um mercado interno colonial e as atividades que giram em torno dele, e define, por fim, a necessidade de se testar novos moldes explicativos, que é o que ele se propõe a fazer. A busca desses novos modelos se enraízam em bases que o autor já pesquisara em trabalho anterior e que lhe apresentaram a formação de uma economia agro-exportadora cafeeira no Vale do Paraíba fluminense, em meio a uma conjuntura econômica internacional desfavorável (depressão europeia de 1815-1850), o que vai de encontro as análises clássicas da economia colonial. Estas veem para o período, uma impossibilidade de acumulação end6gena e, para o autor, somente uma ampla acumulação previamente existente, explicaria aquela nova formação agro-exportadora em período recessivo internacional e da economia escravista açucareira e do algodão. Da mesma forma, ao contrário do que pensava Celso Furtado, a economia cafeeira do Vale do Paraíba não contaria com abundante escravaria vinda de Minas Gerais (em economia decadente), pois Minas, nessa época era a principal compradora de escravos que desembarcavam no Porto do Rio de Janeiro, bem como apresentava um crescimento demográfico significativo. Aos negociantes da praga do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, caberiam uma acumulação, que teria começado nas Últimas décadas do século XVIII, não s6 ligada à exportação, mas também ao abastecimento interno. A elasticidade dessa economia, ultrapassaria as vicissitudes da agro-exportação e, assim, surge, para o autor, a necessidade de se cunhar um novo pressuposto que considere a economia colonial como uma formação econômico-social.

O autor busca “apreender as formas de acumulação presentes na economia colonial do Sudeste, no século XIX”, 2 através das seguintes hipóteses: (1) o escravismo colonial (da plantation), em sua reprodução, gera formas de produção não-capitalistas, ligadas a seu abastecimento, entre as quais, a produção camponesa, o trabalho livre não-assalariado e a produção escravista de alimentos; (2) nessa formação econômico-social do sudeste colonial, o escravismo tem papel hegem6nico; (3) o processo de produção escravista do Sudeste introduz ou redimensiona três categorias na economia colonial que são, a acumulação endógena, o mercado interno onde ela se realiza e o capital mercantil residente que e um elemento gestado e, ao mesmo tempo mediador do processo de reprodução dessa economia. Este mercado interno tem natureza não-capitalista e, parte do trabalho não remunerado colonial assumiria forma de acumulação mercantil, originando uma distinção na hierarquia social sob a forma de dois grupos: uma aristocracia escravista territorial, hegemônica, e comerciantes de grosso trato que seriam os negociantes envolvidos, simultaneamente, no tráfico internacional de escravos, no abastecimento interno e nas finanças coloniais. Apesar do titulo do livro, e mais do que sobre esses homens que o autor vai falar. Ele não descuida de tratar do risco para esse sistema que seriam esses homens de grosso trato, mas, por outro lado, como eles tratam de reproduzi-lo com base na busca do poder hierárquico e na recorrência ao investimento em terras e escravos. Este, talvez seja um dos pontos nevrálgicos de que trata o autor: a recriação de sistemas agrários escravistas em áreas de fronteira que vão manter a sociedade colonial.

As proposições do autor, na medida em que vão de encontro as análises dos modelos explicativos clássicos que tentam demonstrar a incapacidade estrutural da Colônia em gerar acumulação interna, poderiam levar a uma crença na invalidade dos mesmos. Não e o que acontece, uma vez que o próprio autor resgata e apreende o que há de proximidades entre eles e passa a refletir sobre as bases daquelas argumentações. Através dessa raiz, propõe uma nova abordagem acerca do comercio metrópole-colônia: mercado de concorrência e não de monopólios, 1 ou mesmo, quando elege o Rio de Janeiro como o locus privilegiado para a verificação dos mesmos. A busca de respostas a uma pergunta, no entanto, aponta os limites dos modelos explicativos: como se abastecia a plantation ?

A partir da evid6ncia dos limites dos modelos explicativos clássicos da economia escravista colonial, Fragoso, seguindo o pressuposto de caracterizar a economia colonial como uma formação econômico-social, exemplifica, com as áreas do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, o “mosaico de formas nao-capitalistas de produção”, de uma economia colonial “para além da plantation escravista-exportadora”, mostrando formas diferenciadas de organização do trabalho escravo, formas especificas de trabalho livre (camponesa e peonagem) e, sobretudo, uma escravidão alocada em outros setores econômicos.

Em relação ao que descreve sobre Minas Gerais e o comercio de abastecimento desenvolvido na Capitania e, mais tarde, Província, o autor afirma que teria havido uma mudança de direção desse comercio, da mineração para a agro-exportação para território fluminense. Nesse ponto, me parece, o autor negligencia o crescimento demográfico da região mineira, crescimento, aliás, que ele evidencia em vários momentos. A meu ver, mais que uma mudança de direção, ocorre uma ampliação desse mercado, já que este crescimento proporcionaria um aumento da demanda estável de alimentos em território mineiro. Este fator e pouco tratado na obra. No entanto, outras observações são instigantes coma a comparação dos dados de crescimento demográfico, porcentagem de população escrava e participação da pecuária na economia mineira. A partir dessa analise conclui, por exemplo, que a agricultura mineira era tão mercantilizada que permitia adquirir cativos; que a pecuária não era somente produto do trabalho escravo e que o acesso à terra, em Minas, era estável, o que permitia um trabalho camponês/familiar com o auxílio do braço escravo.

Ao tratar, especificamente, do mercado colonial e das acumulações endógenas, Fragoso volta a apontar limites nos modelos explicativos clássicos por apresentarem uma situação paradoxal: a economia colonial, mesmo sendo um modo de produção, não possuiria suas próprias flutuações. Reitera algumas concordâncias com os citados modelos mas propõe novos pressupostos que mudam o angulo de visão do problema. São eles: (1) existência de uma formação econômica e social no espago colonial (escravismo associado a outras formas de produção não-escravistas); (2) ação de uma elite mercantil, originaria de acumulações endógenas e responsável pela reprodução da agro-exportação; (3) o fato de que a economia colonial, mais do que a plantation escravista, é a base de uma sociedade que se pretende reproduzir e, portanto, a inversão do sobretrabalho não mais depende apenas de injunções externas, mas das necessidades de reprodução dessa estrutura social, ditadas, principalmente, pelo mercado interno e pelas acumulações dele originadas. Mais uma vez, o exemplo e Minas Gerais que, sendo a principal região importadora de escravos, tem sua economia baseada na produção para o mercado interno e não para o internacional, o que prova a existência de acumulação endógena. Da mesma forma, o próprio tráfico internacional de cativos era controlado, desde o século XVIII, por comerciantes residentes no Brasil. Esse fato e os dados do tráfico interno “(…)colocam de cabeça para baixo os modelos clássicos da economia colonial’1 e demonstram que “(..) o custeio da empresa agroexportadora era feito, em grande medida, por uma elite mercantil colonial autônoma.” 1

Fragoso caracteriza bem: a plantation não tinha caráter autárquico e, mais que isso, gerava um mercado interno que, por sua vez redefine a natureza da economia e da sociedade coloniais e possibilita, juntamente com outras formas de produção, a ocorrência de acumulação endógena. 0 crescimento demográfico, por outro lado, provoca uma demanda (inelástica) de alimentos produzidos para três segmentos: plantation, setores urbanos e segmentos mercantis voltados para o mercado interno.

A caracterização deste mercado colonial é o objeto sobre o qual o autor vai se dedicar a reflexão, com dados numerosos e suficientes para permitir a conclusão de que ele é um mercado de fortes variações conjunturais que “reforçam o caráter especulativo de seu empresario”2  permitindo acumulações endógenas e uma hierarquia econômica altamente diferenciada, com graus de concentração de riquezas diferentes, de sua base ao seu topo, proporcionando a formação de uma elite mercantil hegemônica, com práticas especulativas que, no entanto, não a impediria de ter uma considerável estabilidade e, mesmo, de exercer práticas monopolistas. Estas seriam as características de um pequeno grupo de abastados empresários da praga mercantil do Rio de Janeiro que, no fundo, demonstrariam o caráter desigual da hierarquia econômico-social dessa praga e a natureza não capitalista do mercado colonial. A direção desse comercio praticado pelos “coloniais” se diversifica geograficamente e especificamente (do tráfico de escravos ao abastecimento de alimentos), mas com sua base no abastecimento interno. A ausência de fortes instituições financeiras, apesar da criação do Banco do Brasil, em 1808, tornaria o ápice desta pirâmide comercial dependente de um capital usurário fornecedor de empréstimos ao mercado e exercido pelos grandes negociantes de cada setor que se tornavam, também, grandes financistas de um mercado cativo.

Este capital mercantil seria o “elemento unificador” do mosaico de formas econômicas da Colônia, papel este que caberia “ao capital mercantil da praga do Rio de Janeiro, personificado em sua comunidade de comerciantes de grosso trato.”3  Praga essa marcada por uma hierarquia econômica que pouco se distingue da presente em sociedades pré-industriais da Europa dos séculos XV e XVI.4  Essa elite comercial carioca, de caráter múltiplo em sua atuação (abastecimento de alimentos, exportação, importação e tráfico de escravos), teria a possibilidade de substituir a aristocracia fundiária no topo da pirâmide econômica, pelas facilidades de apropriar-se do excedente do escravismo exportador e do de outras formas de produção, presentes na formação econômica e social da Colônia.

Como vimos, todas as análises de Fragoso acerca da economia colonial, a consideram como dependente não somente de fatores externos, mas, também de flutuações e especulações internas exercidas por uma pirâmide empresarial de base pequeno proprietária e topo financista usuraria, bem como de um mercado interno diversificado e dinâmico. 0 pressuposto que permite ao autor fazê-las é o de que o ritmo do mercado colonial só pode ser entendido, se considerarmos a Colônia como uma sociedade com suas pr6prias estruturas econômicas e sociais. E mais que isso, uma sociedade com necessidades e mecanismos de reprodução próprios.

A obra de Joao Luís Ribeiro Fragoso, tem vários méritos como a riqueza de dados e a limpidez das análises. No entanto o que mais se destaca é a sua lucida capacidade de justificar as proposições e pressupostos que dão base a sua reflexão.

Notas

1 Comerciantes, Fazendeiros e Formas de Acumulação em uma Economia Escravista-Colonial: Rio de Janeiro, 1799-1888, apresentada a Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, em dezembro de 1990. 0 presente trabalho recebeu o Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa, de 1991.

2 Trata-se aqui dos modelos explicativos de Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Fernando A. Novais, Ciro F. Cardoso, Jacob Gorender, António Barros de Castro, Joao Manuel Cardoso de Mello e Jose Jobson Arruda, dentre outros.

2 FRAGOSO, J. L. R., Homens de Grossa Aventura: acumulação a hierarquia na praga mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830), Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 1992. p. 27

1 Usando, aqui, conceito de Jose Raimundo Correia de Almeida. Op. cit., pp. 70-72.

1 Op. cit., p. 147.

1 Op. cit., p. 133.

2 Op. cit., p. 153.

3 Op. cit., p. 212.

4 0 autor a compara a Florença de 1427 e a Lyon de 1543. Op. cit. pp. 257-258.

José Newton Coelho Meneses – Mestrando em História – FAFICH/UFMG.

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