Plantar, colher, comer: um estudo sobre o campesinato goiano – BRANDÃO (T-RAA)

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Plantar, colher, comer: um estudo sobre o campesinato goiano. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981. Resenha de: OLIVEIRA, Ana Luisa Araújo de. Plantar, Colher, Comer: relações entre a produção e o consumo de alimentos. Tessituras, Pelotas, v.6, n.2, p. 258-265, jul./dez., 2018.

Historicamente, o desenvolvimento rural brasileiro foi pautado, principalmente, pela implantação de grandes propriedades fundiárias e expropriação do camponês, constituindo-se uma verdadeira questão agrária presente desde a colonização aos dias atuais. No contexto de forte repressão dos movimentos sociais e daqueles que eram contrários ao modelo instalado, os anos entre 1965 e 1984 marcaram o período da ditadura militar e a publicação do livro que ora é resenhado ocorre em 1981 em um cenário completamente desfavorável para reflexões sobre o campesinato no Brasil.

Diante disso, a importância dada ao debate naquele momento era pequena, porém “ganhou corpo” após a redemocratização em 1985 e aumentando consideravelmente a partir da década de 1990 com a pressão exercida pelos movimentos sociais, o reconhecimento internacional da importância da agricultura de base familiar e a criação de políticas públicas para esse grupo social. No entanto, mesmo com essas mudanças, pouco discute quanto as práticas sociais de produção e consumo de comida dos camponeses brasileiros. Nesse sentindo, essa resenha se propõe a uma releitura do livro “Plantar, colher, comer: um estudo sobre o campesinato goiano”, de Carlos Rodrigues Brandão, buscando conexões entre o trabalho do autor e o debate contemporâneo sobre as temáticas ligadas à alimentação.

Como dito, o livro escrito por Carlos Rodrigues Brandão “Plantar, colher, comer: um estudo sobre o campesinato goiano” foi publicado em 1981 e oferece ao leitor reflexões sobre hábitos alimentares, ideologias e crenças do camponês no que se refere às práticas sociais de produção e consumo de comida na pequena cidade de Mossâmedes, interior do Estado de Goiás. Retomar esse livro depois de tantos anos, contribui para (re)descobrir as relações entre a produção e o consumo, assim como o entendimento de que os alimentos são iguarias dotadas de significados, de forma que compreender as práticas voltadas à comida é chave para a análise sobre os modos de sociação singulares entre camponeses.

Importante destacar que, o livro de Brandão dialoga com o clássico de Antônio Cândido “Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e as transformações de seus meios de vida” publicado pela primeira vez em 1964, e com “O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa” de Ellen Woortmann e Klass Woortmann, publicado em 1997.

Além disso, sua abordagem dialoga com a disciplina de Sociologia da Alimentação, a qual discute elementos para compreender o moderno sistema alimentar e as relações entre alimentos, saúde e ambiente sob um ponto de vista político e social. Cassol e Schneider (2015), se referindo a essa disciplina, destacam outros elementos que tem impulsionado as discussões, como as questões de saúde pública (desnutrição e obesidade), a opulência do consumo e consequente desperdício de alimentos, as ações de segurança alimentar e nutricional (SAN) e as ações voltadas à agricultura familiar, o que aparece no livro de Brandão.

O livro de Carlos Rodrigues Brandão está dividido em sete capítulos e apresenta três anexos que contribuem para enriquecer a obra, aumentar o valor do trabalho de campo realizado e melhorar a compreensão do leitor quanto às práticas alimentares do camponês brasileiro, a partir da apresentação das receitas de comida do lugar.

No capítulo 01 Brandão faz uma introdução de seu estudo, apontando que a análise se concentra na produção, circulação e consumo de alimentos, principalmente, em três fases de relações que o lavrador aponta ao falar sobre seu trabalho e as condições de acesso à sua comida: “as duas primeiras quando o lavrador define sua experiência como um agricultor de cereais: a terceira quando se apresenta como um dos consumidores da comida do lugar” (BRANDÃO, 1981, p. 12).

Uma melhor compreensão do leitor sobre as relações que coexistiram em Mossâmedes é fornecida por Brandão no capítulo 02, quando o autor faz uma descrição preciosa dos habitantes que a colonizaram e os ciclos econômicos que a cidade passou: de uma local de aldeamento de índios à residência de verão dos governadores da Província, posteriormente abandonada por funcionários da Coroa e por seus primeiros habitantes à uma região repovoada por ganadeiros e agricultores de cereais (alguns desses últimos vindos de região mineiras em decadência).

Especificamente, na primeira fase as relações consideravam as trocas entre a sociedade produtora e a natureza como o primeiro espaço efetivo de produção. Nessa fase o espaço era dominado pela natureza e as relações sociais eram dadas entre os fazendeiros e os agregados.

Esses podiam usar as pastagens, criar porcos e galinhas, cultivar cereais e outros vegetais permanentes e semipermanentes na fazenda. Além disso, ao mesmo tempo em que eram agricultores, eram coletores, caçadores e pescadores – a percepção dos lavradores dessa fase é de uma natureza hostil (sem domínio do homem).

O surgimento de um mercado para os cereais é visto pelos lavradores como o principal responsável pela mudança da primeira para a segunda fase da relação entre natureza, lavradores e proprietários das terras.

O reflexo da mudança de uma economia de subsistência para uma economia voltada ao mercado foi o aumento da área com o cultivo de gramíneas para o gado e cereais (arroz, milho e feijão), bem como o uso de adubos, máquinas e implementos agrícolas obtidos por meio de financiamentos da produção. Nessa segunda fase as relações colocam em confronto categorias de produtores nos limites de um espaço de natureza e da sociedade constituída. Nesse momento as relações foram redefinidas, os não proprietários tornaram-se agregados-meeiros.

O sucesso do aumento da área de produção e da modernização da agricultura resultou em um crescente número de fazendeiros reduzindo ou eliminando os contratos de “lavoura na meia”. A resposta a este momento, foi a migração dos agregados para a área urbana de Mossâmedes. Na terceira fase os lavradores consideram-se consumidores e um novo espaço de relações se constitui na sociedade urbanizada, através da comida consumida.

A progressiva restrição do acesso a recursos imediatos de obtenção de alimentos familiares, fora os das lavouras associadas, é considerado pelo lavrador como uma das razões mais decisivas para a certeza de que “não compensa” mais morar nas fazendas (BRANDÃO, 1981, p. 28).

Importante ressaltar que, a série histórica de dados da Pesquisa Agrícola Municipal (PAM) e da Pesquisa Pecuária Municipal (PPM) do IBGE, quantificam a descrição qualitativa realizada pelo autor sobre as mudanças da produção agrícola e pecuária e contribuem para visualizar que, as características permaneceram dinâmicas ao longo da história de Mossâmedes. Além disso, quando confrontado aos dados brasileiros evidencia semelhanças no que se refere a transformação da “economia de subsistência para uma economia voltada ao mercado”.

Em Mossâmedes, ao longo dos últimos 30 de sua história observa-se redução dos cultivos de cereais (arroz, feijão e milho, principalmente) destinados a alimentação humana e aumento de cultivos de soja, assim como aumento de 70% na criação de aves em virtude da instalação de grandes aviários na região. Além disso, em 2010 a cidade de Mossâmedes contava com 5.007 habitantes, dos quais somente 35% residiam no meio rural (IBGE, 2010).

Uma vez lavrador urbanizado, Brandão teve o cuidado de dedicar o capítulo 03 a esse ator social. Nele o autor explica quem são esses atores, como trabalham na cidade, como reorganizam a família e como manipulam os recursos para acesso e consumo de comida.

Brandão ressalta que, além de nascidos “na roça”, os lavradores de Mossâmedes tiveram uma vida ligada a agricultura. Com a mudança para a cidade, esses redefinem-se profissionalmente e passam a ser diarista de seus empregadores – que podem ser ou não fazendeiros. No entanto, as preocupações da família continuam direcionadas a prioridade de obtenção de alimentos.

O autor pontua que, mesmo morando na cidade, o lavrador urbanizado tende a continuar como um produtor rural parceiro e aproveita as terras sob seu uso para o plantio de arroz, milho e feijão. Em alguns casos também para o cultivo de culturas complementares: mandioca, amendoim, café e banana. Mas, Brandão ressalta que a cada ano “os fazendeiros reservam porções maiores de suas fazendas para as suas próprias lavouras ou para a formação de pastagens, e destinam a produtores sem-terra áreas cada vez menores e de pior qualidade de terreno” (BRANDÃO, 1981, p. 37).

Os alimentos produzidos pelo lavrador urbanizado são, em sua maioria, guardados para o consumo da família, ainda são feitas trocas entre parentes e doações para a igreja, assim como para famílias mais pobres. A sobra as vezes pode ser destinada à venda.

Complementar a produção “na meia”, Brandão constatou que essas famílias mantêm pequena plantação caseira (frutas, verduras e legumes) e criação de animais (porcos e galinhas) no quintal da casa, sendo a mulher a principal responsável pela produção doméstica. Além disso, uma terceira forma de acesso aos alimentos do lavrador urbanizado é por meio da compra em Mossâmedes.

Da fazenda para uma casa na “vila”, a família do lavrador completa um ciclo de relações de acesso aos alimentos que começa com a produção de todos os alimentos consumidos, quando o lavrador é agregado de uma das fazendas da região; e termina com a compra de quase toda a comida familiar, quando o lavrador residente na cidade, é um produtor rural assalariado, não produz como parceiro e reside na “vila” em uma casa com quintal pequeno e em terreno “da serra” (BRANDÃO, 1981, p. 42).

Concomitante a mudança nas formas de acesso aos alimentos, a mudança para a cidade também altera a sequência e os horários de alimentação, tendendo a equiparar ao costume de centros urbanos. No entanto, “a variação da dieta alimentar entre sujeitos de classes sociais diferentes está mais na frequência de alimentos de mais alto custo do que na variação de tipos de comida” (BRANDÃO, 1981, p. 43).

Os três capítulos seguintes (04, 05 e 06) apresentam as ideologias e crenças dos lavradores urbanizados sobre a produção, acesso, circulação e consumo de comida. Nesses capítulos, o autor enfatiza que as respostas dos lavradores entrevistados sempre começavam por uma comparação entre as condições dadas em um “tempo antigo” e as dos “dias de hoje”.

Palavras como “sadia/fraca” para caracterizar a qualidade da terra e/ou do alimento são comumente utilizadas e descritas de forma preciosa pelo autor. As matas, as árvores e os rios são percebidos e relacionados ao modo de uso pelos lavradores.

A percepção do lavrador evidencia dimensões simbólicas, culturais, espaciais e naturais dos alimentos e são cuidadosamente abordadas por Brandão. A riqueza da obra é ainda maior diante dos capítulos que trazem, na íntegra, trechos da fala de diversos entrevistados, tornando a leitura ainda mais prazerosa, até mesmo para aqueles que não estão muito familiarizados com o tema.

Brandão evidencia que a chegada à cidade representa o início de uma série de rupturas e redefinições quanto a prática alimentar, marcando uma passagem de um período de fartura à um tempo de restrições, resultando “[…] no empobrecimento da dieta familiar com a diminuição da quantidade e da variedade de mantimentos […]” (BRANDÃO, 1981, p. 83). De acordo com o autor e, fica a impressão ao leitor, a representação das diferenças de qualidade de vida e trabalho é maior quando separa a fazenda da cidade, do que a natureza da fazenda.

Além da preciosa abordagem de Brandão sobre a vida do lavrador, o autor traz no capítulo VI as ideologias dos entrevistados sobre os alimentos. Nesse sentido, o leitor poderá apreciar os valores atribuídos aos alimentos quanto à natureza (remédio, tempero e/ou comida), a origem (da cidade, natureza ou da fazenda – pasto, quintal ou lavoura), se possui origem animal ou vegetal e as classificações quanto à forte ou fraco, quente ou frio, reimoso ou sem reima, gostoso ou sem gosto). Importante ressaltar que, esses atributos dos alimentos são também utilizados para determinar aquilo que o homem come ou não come, ou o que não se deve comer ou pode comer mas faz mal.

No capítulo VII o autor vai trazer uma conclusão de que,

Em Mossâmedes os princípios de proibição do consumo de tipos de alimentos não correm paralelos aos determinantes de acesso a eles. […] a dieta congrega em um mesmo prato os representantes das diferentes séries: há comida forte e fraca, reimosa e sem-reima, quente e fria (BRANDÃO, 1981, p.151).

Brandão ressalta ainda que “o desequilíbrio atual de relações reflete-se, em última análise, na sua alimentação que ele [o lavrador urbanizado] percebe como uma síntese, no prato e sobre a mesa, do resultado de combinações inadequadas entre pessoas com pessoas e pessoas com a natureza” (BRANDÃO, 1981, p. 153).

Nesse sentindo mesmo com a percepção dos lavradores urbanizados das mudanças nas relações sociais e com a natureza, nas suas práticas sociais de produção e consumo, resultado de sua expropriação do rural, a obra de Brandão mostrar que esses carregam aspectos relacionados aos hábitos alimentares, crenças e ideologias que marcam a vida do campesinato.

Apesar das rupturas evidenciadas ao longo do livro, o autor aponta continuidades que são suficientes para os lavradores não romperem com o que Wanderley (1999) chamou de “as raízes históricas do campesinato” e a “tradição camponesa”. E esses lavradores urbanizados podem também ser vistos como um “camponês adormecido” (JOLLIVET, 2000 apud WANDERLEY, 2003) no que se refere aos hábitos alimentares.

Ao fim da leitura, o sentimento é de que, apesar de ser um livro de 1981 ele continua atual para aqueles que se propõem a estudar o modo de vida camponês e/ou hábitos alimentares da sociedade.

É sabido que, no Brasil, o processo de modernização da agricultura e a inserção, cada vez maior, à mercados globais têm sido responsáveis por profundas mudanças no modo de vida daqueles que vivem no campo com a finalidade de reprodução social desenvolvendo agricultura de subsistência ou inseridos em cadeias curtas de comercialização. Brandão conhece bem essa armadilha trazida pela utopia do “desenvolvimento”, o que pode ser visto na riqueza e qualidade do livro “Plantar, colher, comer: um estudo sobre o campesinato goiano”. Só lendo para conferir!

Além disso, a realidade de Mossâmedes não é uma exceção no Brasil e a medida que a modernização da agricultura avança, mais camponeses tem migrado para a cidade, alterando suas práticas alimentares, relação com a terra e quiça, suas ideologias e crenças são transformadas e/ou perdidas. Nesse cenário, essa obra oferece uma rica descrição de um lugar e pode inspirar o desenvolvimento de estudos contemporâneos sobre a relação do camponês com a alimentação, terra, mercados e consumo, fundamental para a manutenção, ou pelo menos registro, de culturas singulares que compuseram e compõe o rural brasileiro.

Referências

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Plantar, colher, comer: um estudo sobre o campesinato goiano. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981.

CÂNDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: José Olympio, 1964. (Coleção Documentos Brasileiros).

CASSOL, Abel Perinazzo; SCHNEIDER, Sérgio. Produção e consumo de alimentos: novas redes e atores. Lua Nova, v. 5, p. 143-177, 2015.

WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. Raízes históricas do campesinato brasileiro. In: TEDESCO, João Carlos (Org.). Agricultura familiar: realidades e perspectivas. Passo Fundo: EDIUPF, 1999. p. 23-56.

WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. Agricultura Familiar e campesinato: rupturas e continuidade. Revista Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, n. 21, p. 42-61, 2003.

WOORTMANN, Ellen; WOORTMANN, Klaas. O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: UnB, 1997.

Ana Luisa Araújo de Oliveira – Graduada em Agronomia (UNEMAT); Mestre em Engenharia Agrícola, área de concentração de Planejamento e Desenvolvimento Rural Sustentável (FEAGRI/UNICAMP) e; Doutoranda no Programa de Pós Graduação Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). Tem interesse nos seguintes temas: desenvolvimento rural, políticas públicas, meio ambiente e agricultura. E-mail: [email protected] .

Acessar publicação original

Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830) – FRAGOSO (VH)

FRAGOSO, Joao Luís Ribeiro. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. Resenha de: MENESES, José Newton Coelho. Varia História, Belo Horizonte, v.12, n.15, p. 193-198, mar., 1996.

Se tentássemos resumir em poucas palavras uma obra de tal porte, diríamos que ela se propõe a fazer uma investigação reflexiva sobre os mecanismos de reprodução da economia colonial, em torno da praga do Rio de Janeiro, na virada do século XVIII e primeiras décadas do século XIX, evidenciando que essa economia não se restringe as estruturas do escravismo e do mercado internacional. A esses elementos estruturais somam-se a existência de um mercado interno, a ocorrência de acumulações endógenas e a presença de um setor mercantil residente. A somatória de todos esses elementos, configuraria uma formação social que controlaria, em boa parte, seus pr6prios mecanismos de reprodução.

O presente livro e composto pelos quatro primeiros capítulos da tese de doutoramento do autor1 que, ao que parece, foram pouco alterados para essa publicação, uma vez que se apresenta sob forma rigorosamente acadêmica, o que, infelizmente, pode limitar sua leitura a grupos de interessados. Esses leitores, no entanto, certamente não se arrependerão de poder refletir, sob uma orientação clara e lúcida, acerca da estrutura econômica do sudeste colonial, no período proposto. O caráter acadêmico está caracterizado na obra, sobretudo quando se mantêm a descrição dos métodos e técnicas de pesquisa utilizados, onde o autor explicita as Pontes de diversas naturezas trabalhadas (fiscais e cartoriais), bem como o tratamento dado a elas e os cruzamentos dos seus dados. Além disso, o número excessivo de Tabelas e Curvas (são 79, no total) e a descrição dos dados de cada uma delas, não nos deixa dúvidas acerca do rigorismo citado, e evidenciam a necessidade de uma edição futura, cuidadosamente preparada para uma major parcela de leitores.

Logo de início, Joao Luís Fragoso nos apresenta seu objeto e hipóteses de trabalho, contrapostos a uma análise dos debates que buscaram criar os modelos explicativos clássicos da economia colonial. E discute tais modelos de forma crítica, mas evidenciando a necessidade de conhece-los e de apreender alguns de seus conceitos. 1  Não esquece de mencionar as diversas pesquisas de base que, nas décadas de 70 e 80, buscam as evidencias de um mercado interno colonial e as atividades que giram em torno dele, e define, por fim, a necessidade de se testar novos moldes explicativos, que é o que ele se propõe a fazer. A busca desses novos modelos se enraízam em bases que o autor já pesquisara em trabalho anterior e que lhe apresentaram a formação de uma economia agro-exportadora cafeeira no Vale do Paraíba fluminense, em meio a uma conjuntura econômica internacional desfavorável (depressão europeia de 1815-1850), o que vai de encontro as análises clássicas da economia colonial. Estas veem para o período, uma impossibilidade de acumulação end6gena e, para o autor, somente uma ampla acumulação previamente existente, explicaria aquela nova formação agro-exportadora em período recessivo internacional e da economia escravista açucareira e do algodão. Da mesma forma, ao contrário do que pensava Celso Furtado, a economia cafeeira do Vale do Paraíba não contaria com abundante escravaria vinda de Minas Gerais (em economia decadente), pois Minas, nessa época era a principal compradora de escravos que desembarcavam no Porto do Rio de Janeiro, bem como apresentava um crescimento demográfico significativo. Aos negociantes da praga do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, caberiam uma acumulação, que teria começado nas Últimas décadas do século XVIII, não s6 ligada à exportação, mas também ao abastecimento interno. A elasticidade dessa economia, ultrapassaria as vicissitudes da agro-exportação e, assim, surge, para o autor, a necessidade de se cunhar um novo pressuposto que considere a economia colonial como uma formação econômico-social.

O autor busca “apreender as formas de acumulação presentes na economia colonial do Sudeste, no século XIX”, 2 através das seguintes hipóteses: (1) o escravismo colonial (da plantation), em sua reprodução, gera formas de produção não-capitalistas, ligadas a seu abastecimento, entre as quais, a produção camponesa, o trabalho livre não-assalariado e a produção escravista de alimentos; (2) nessa formação econômico-social do sudeste colonial, o escravismo tem papel hegem6nico; (3) o processo de produção escravista do Sudeste introduz ou redimensiona três categorias na economia colonial que são, a acumulação endógena, o mercado interno onde ela se realiza e o capital mercantil residente que e um elemento gestado e, ao mesmo tempo mediador do processo de reprodução dessa economia. Este mercado interno tem natureza não-capitalista e, parte do trabalho não remunerado colonial assumiria forma de acumulação mercantil, originando uma distinção na hierarquia social sob a forma de dois grupos: uma aristocracia escravista territorial, hegemônica, e comerciantes de grosso trato que seriam os negociantes envolvidos, simultaneamente, no tráfico internacional de escravos, no abastecimento interno e nas finanças coloniais. Apesar do titulo do livro, e mais do que sobre esses homens que o autor vai falar. Ele não descuida de tratar do risco para esse sistema que seriam esses homens de grosso trato, mas, por outro lado, como eles tratam de reproduzi-lo com base na busca do poder hierárquico e na recorrência ao investimento em terras e escravos. Este, talvez seja um dos pontos nevrálgicos de que trata o autor: a recriação de sistemas agrários escravistas em áreas de fronteira que vão manter a sociedade colonial.

As proposições do autor, na medida em que vão de encontro as análises dos modelos explicativos clássicos que tentam demonstrar a incapacidade estrutural da Colônia em gerar acumulação interna, poderiam levar a uma crença na invalidade dos mesmos. Não e o que acontece, uma vez que o próprio autor resgata e apreende o que há de proximidades entre eles e passa a refletir sobre as bases daquelas argumentações. Através dessa raiz, propõe uma nova abordagem acerca do comercio metrópole-colônia: mercado de concorrência e não de monopólios, 1 ou mesmo, quando elege o Rio de Janeiro como o locus privilegiado para a verificação dos mesmos. A busca de respostas a uma pergunta, no entanto, aponta os limites dos modelos explicativos: como se abastecia a plantation ?

A partir da evid6ncia dos limites dos modelos explicativos clássicos da economia escravista colonial, Fragoso, seguindo o pressuposto de caracterizar a economia colonial como uma formação econômico-social, exemplifica, com as áreas do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, o “mosaico de formas nao-capitalistas de produção”, de uma economia colonial “para além da plantation escravista-exportadora”, mostrando formas diferenciadas de organização do trabalho escravo, formas especificas de trabalho livre (camponesa e peonagem) e, sobretudo, uma escravidão alocada em outros setores econômicos.

Em relação ao que descreve sobre Minas Gerais e o comercio de abastecimento desenvolvido na Capitania e, mais tarde, Província, o autor afirma que teria havido uma mudança de direção desse comercio, da mineração para a agro-exportação para território fluminense. Nesse ponto, me parece, o autor negligencia o crescimento demográfico da região mineira, crescimento, aliás, que ele evidencia em vários momentos. A meu ver, mais que uma mudança de direção, ocorre uma ampliação desse mercado, já que este crescimento proporcionaria um aumento da demanda estável de alimentos em território mineiro. Este fator e pouco tratado na obra. No entanto, outras observações são instigantes coma a comparação dos dados de crescimento demográfico, porcentagem de população escrava e participação da pecuária na economia mineira. A partir dessa analise conclui, por exemplo, que a agricultura mineira era tão mercantilizada que permitia adquirir cativos; que a pecuária não era somente produto do trabalho escravo e que o acesso à terra, em Minas, era estável, o que permitia um trabalho camponês/familiar com o auxílio do braço escravo.

Ao tratar, especificamente, do mercado colonial e das acumulações endógenas, Fragoso volta a apontar limites nos modelos explicativos clássicos por apresentarem uma situação paradoxal: a economia colonial, mesmo sendo um modo de produção, não possuiria suas próprias flutuações. Reitera algumas concordâncias com os citados modelos mas propõe novos pressupostos que mudam o angulo de visão do problema. São eles: (1) existência de uma formação econômica e social no espago colonial (escravismo associado a outras formas de produção não-escravistas); (2) ação de uma elite mercantil, originaria de acumulações endógenas e responsável pela reprodução da agro-exportação; (3) o fato de que a economia colonial, mais do que a plantation escravista, é a base de uma sociedade que se pretende reproduzir e, portanto, a inversão do sobretrabalho não mais depende apenas de injunções externas, mas das necessidades de reprodução dessa estrutura social, ditadas, principalmente, pelo mercado interno e pelas acumulações dele originadas. Mais uma vez, o exemplo e Minas Gerais que, sendo a principal região importadora de escravos, tem sua economia baseada na produção para o mercado interno e não para o internacional, o que prova a existência de acumulação endógena. Da mesma forma, o próprio tráfico internacional de cativos era controlado, desde o século XVIII, por comerciantes residentes no Brasil. Esse fato e os dados do tráfico interno “(…)colocam de cabeça para baixo os modelos clássicos da economia colonial’1 e demonstram que “(..) o custeio da empresa agroexportadora era feito, em grande medida, por uma elite mercantil colonial autônoma.” 1

Fragoso caracteriza bem: a plantation não tinha caráter autárquico e, mais que isso, gerava um mercado interno que, por sua vez redefine a natureza da economia e da sociedade coloniais e possibilita, juntamente com outras formas de produção, a ocorrência de acumulação endógena. 0 crescimento demográfico, por outro lado, provoca uma demanda (inelástica) de alimentos produzidos para três segmentos: plantation, setores urbanos e segmentos mercantis voltados para o mercado interno.

A caracterização deste mercado colonial é o objeto sobre o qual o autor vai se dedicar a reflexão, com dados numerosos e suficientes para permitir a conclusão de que ele é um mercado de fortes variações conjunturais que “reforçam o caráter especulativo de seu empresario”2  permitindo acumulações endógenas e uma hierarquia econômica altamente diferenciada, com graus de concentração de riquezas diferentes, de sua base ao seu topo, proporcionando a formação de uma elite mercantil hegemônica, com práticas especulativas que, no entanto, não a impediria de ter uma considerável estabilidade e, mesmo, de exercer práticas monopolistas. Estas seriam as características de um pequeno grupo de abastados empresários da praga mercantil do Rio de Janeiro que, no fundo, demonstrariam o caráter desigual da hierarquia econômico-social dessa praga e a natureza não capitalista do mercado colonial. A direção desse comercio praticado pelos “coloniais” se diversifica geograficamente e especificamente (do tráfico de escravos ao abastecimento de alimentos), mas com sua base no abastecimento interno. A ausência de fortes instituições financeiras, apesar da criação do Banco do Brasil, em 1808, tornaria o ápice desta pirâmide comercial dependente de um capital usurário fornecedor de empréstimos ao mercado e exercido pelos grandes negociantes de cada setor que se tornavam, também, grandes financistas de um mercado cativo.

Este capital mercantil seria o “elemento unificador” do mosaico de formas econômicas da Colônia, papel este que caberia “ao capital mercantil da praga do Rio de Janeiro, personificado em sua comunidade de comerciantes de grosso trato.”3  Praga essa marcada por uma hierarquia econômica que pouco se distingue da presente em sociedades pré-industriais da Europa dos séculos XV e XVI.4  Essa elite comercial carioca, de caráter múltiplo em sua atuação (abastecimento de alimentos, exportação, importação e tráfico de escravos), teria a possibilidade de substituir a aristocracia fundiária no topo da pirâmide econômica, pelas facilidades de apropriar-se do excedente do escravismo exportador e do de outras formas de produção, presentes na formação econômica e social da Colônia.

Como vimos, todas as análises de Fragoso acerca da economia colonial, a consideram como dependente não somente de fatores externos, mas, também de flutuações e especulações internas exercidas por uma pirâmide empresarial de base pequeno proprietária e topo financista usuraria, bem como de um mercado interno diversificado e dinâmico. 0 pressuposto que permite ao autor fazê-las é o de que o ritmo do mercado colonial só pode ser entendido, se considerarmos a Colônia como uma sociedade com suas pr6prias estruturas econômicas e sociais. E mais que isso, uma sociedade com necessidades e mecanismos de reprodução próprios.

A obra de Joao Luís Ribeiro Fragoso, tem vários méritos como a riqueza de dados e a limpidez das análises. No entanto o que mais se destaca é a sua lucida capacidade de justificar as proposições e pressupostos que dão base a sua reflexão.

Notas

1 Comerciantes, Fazendeiros e Formas de Acumulação em uma Economia Escravista-Colonial: Rio de Janeiro, 1799-1888, apresentada a Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, em dezembro de 1990. 0 presente trabalho recebeu o Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa, de 1991.

2 Trata-se aqui dos modelos explicativos de Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Fernando A. Novais, Ciro F. Cardoso, Jacob Gorender, António Barros de Castro, Joao Manuel Cardoso de Mello e Jose Jobson Arruda, dentre outros.

2 FRAGOSO, J. L. R., Homens de Grossa Aventura: acumulação a hierarquia na praga mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830), Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 1992. p. 27

1 Usando, aqui, conceito de Jose Raimundo Correia de Almeida. Op. cit., pp. 70-72.

1 Op. cit., p. 147.

1 Op. cit., p. 133.

2 Op. cit., p. 153.

3 Op. cit., p. 212.

4 0 autor a compara a Florença de 1427 e a Lyon de 1543. Op. cit. pp. 257-258.

José Newton Coelho Meneses – Mestrando em História – FAFICH/UFMG.

Acessar publicação original

[DR]