A medicina financeira. A ética estilhaçada – VIANNA SOBRINHO (TES)

VIANNA SOBRINHO, Luiz. A medicina financeira. A ética estilhaçada. Rio de Janeiro: Garamond, 2013. 336p. Resenha de: CASTIEL, Luis David. A dimensão financeira da medicina em questão. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15 n.1 , jan./abr. 2017.

A revista Piauí de setembro de 2015 apresenta como matéria de capa a reportagem “O lobby dos remédios”, intitulada “Intoxicado de ofertas”. Um médico pesquisador participa de um congresso de psiquiatria com o firme propósito de se oferecer como ‘prescritor’ aos desígnios do bric-a-brac do marketing da indústria farmacêutica de psicofármacos. E faz fila para receber lanches, ganha brindes de qualidade, serventia e gosto duvidosos, joga videogames – num deles sua missão é salvar uma jovem da depressão munido de um antidepressivo virtual. Ao final da jornada, sai com seis sacolas com quase nove quilos de bugigangas e ainda conclui que, de certa forma, esta promiscuidade pode ser tratada alegoricamente com uma dose de benevolência, como um polvo, do qual os braços ‘somos todos nós’, assim como o alimento. Mas de quem é a cabeça do polvo?

Apesar de inegáveis benefícios farmacológicos dos medicamentos, é difícil sustentar uma postura de atenuar e relativizar a atuação poderosa e notadamente abusiva da indústria farmacêutica – no contexto do neoliberalismo sustentável em suas estratégias mercadológicas. Estas são identificadas por estudiosos do campo por visarem a proliferação contínua do consumo de medicamentos por meio de recursos eticamente discutíveis (Elliott, 2010), algo como o lado escuro da força da Big Pharma. Por exemplo: a minimização/omissão de efeitos farmacológicos adversos; a aquisição do uso de nomes de pesquisadores (com anuência destes) como autores de artigos favoráveis ao uso seguro da droga escritos por ghostwriters da própria indústria; a realização de dispendiosos ensaios clínicos com resultados que legitimam a inclusão de resultados favoráveis enviesando metanálises ao evitar a publicação de resultados desfavoráveis; o reforço à utilização abusiva de órteses e próteses, práticas de oferecer viagens, refeições, financiamento para eventos, brindes vários, entre outros agrados e lembranças que seduzem médicos, farmacêuticos e inclusive bioeticistas.

Inclusive, está documentado que pesquisadores da indústria farmacêutica elaboram uma nova droga e, conforme seu espectro de efeitos farmacológicos, profissionais do marketing da empresa devem vinculá-la ao tratamento de determinadas afecções e promover seu uso junto aos médicos como o tratamento ‘mais indicado’. Isto pode até implicar em encontrar uma doença incomum cujas respectivas fronteiras possam ser expandidas para incluir mais pacientes ou redefinir aspectos desagradáveis da vida cotidiana como patologia médica (por exemplo: a distimia, que tem o mau humor como sintoma). Este fenômeno costuma fazer parte destacada do que pode também ser designado por ‘medicalização’. Elliott (2010) enfatiza que a medicina já foi encarada como uma profissão, não como um negócio. Hoje os empreendimentos médicos são enormes e é duro admitir que o código de confiança implícito entre médicos, pacientes, pesquisadores e sujeitos de pesquisa não está mais assegurado.

Em uma matéria publicada no Le Monde DiplomatiqueQuentin Ravelli (2015) descreve as estratégias de ‘marketing’ da Big Pharma, representada pela gigante Sanofi-Aventis. Os médicos que mais interessam são aqueles com alto ‘potencial de prescrição’. Para localizá-los, há um bom tempo existem programas computacionais que os mapeiam por intermédio de dados coletados junto a distribuidores e com base nas vendas diretas em farmácias que exigem a apresentação e retenção de receitas. Além disto, são agregadas outras informações veiculadas por enquetes ad hoc de médicos.

Em busca de maior efetividade em suas ações, os setores de marketing elaboram uma tipologia de perfis de médicos: aqueles vinculados a movimentos sindicais, os afáveis e potencialmente receptivos, os acadêmicos, os ansiosos, os resistentes às investidas. Em síntese, o que interessa é sobrepujar qualquer enfrentamento retórico com argumentos e práticas que obtenham a fidelização dos prescritores aos medicamentos produzidos pela empresa. Isto se dá mediante treinamentos/workshops com vistas à formação de representantes hábeis em chegar aos resultados comercialmente desejáveis: o consumo dos produtos pelos pacientes. Para tanto, deve-se obter a aquiescência aos argumentos convenientes enunciados pela indústria farmacêutica.

Para resenhar e comentar este livro que aborda a dimensão financeira das práticas atuais da medicina, é preciso falar do seu autor. Talvez assim seja possível esclarecer não apenas seu conteúdo, mas algo que se sobressai da leitura, a inevitável ironia crítica que atravessa seus argumentos.

O autor é um médico cardiologista que também teve uma experiência na gestão técnica de um sistema de seguro de saúde de uma instituição pública de pesquisa, ensino, serviços e produção de insumos em saúde. A origem desta importante obra se localiza numa dissertação de mestrado em bioética que não foi defendida, mas que foi retomada, ampliada, atualizada e desenvolvida por iniciativa persistente do autor durante quase uma década.

Desde logo, percebe-se a estrutura acadêmica do livro. Impressiona a extensão do texto, a grande quantidade de referências e notas de rodapé. Mas esse formato é amenizado pela apresentação de exemplos provenientes da literatura e do cinema, e também de narrativas de eventos pessoais, muitas vezes, exibindo uma coragem admirável.

Vale repetir que o estilo empregado incide numa mordacidade que se harmoniza com a perspectiva de crítica necessariamente indignada diante das contradições precarizantes dos modos como se configuram atualmente as muitas engrenagens das cadeias de produção e consumo de sistemas e práticas de saúde. O livro também tem a ousadia de descrever aspectos que transitam pela hipocrisia por parte dos agentes que participam de situações que transitam por uma banalização do mal.

Assim, somos postos diante de médicos cujas práticas são configuradas por uma perspectiva de um neoliberalismo sustentável, abandonando o papel de cuidador e assumindo o lugar de gestor de condições de saúde, em função de critérios que ajustam meios e fins gerencialmente definidos. Tais médicos implodem a relação médico-paciente e diante do cliente (não mais um paciente, alguém que padece de algo), e tendem a se tornar profissionais impessoais que prestam serviços padronizados de qualidade variável, cuja efetividade em termos de resolução dos problemas dos pacientes é discutível.

Há uma atuação abusiva das empresas farmacêuticas e de equipamentos médicos que chega praticamente a uma forma mal disfarçada de suborno de médicos. São oferecidos presentes que participam, como indica o subtítulo, do estilhaçamento da ética, pois, por mais que os médicos achem que isto não influi no ato médico em si, há estudos que mostram como existem efeitos destas práticas na prescrição de medicamentos, próteses e órteses a pacientes.

São descritas as práticas de hospitais e planos de seguros de saúde que não conseguem camuflar os interesses mercantis na determinação dos níveis de capacidade de consumo de saúde dos clientes. Desta forma, assistimos à metamorfose precarizante daqueles que eram designados como ‘pacientes’ em ‘consumidores’.

Por sua vez, as ciências biomédicas e epidemiológicas sustentam uma perspectiva exacerbada na produção de evidências, metanálises e revisões sistemáticas sem levar em conta pressupostos metafísicos não explicitados quanto à noção de ‘realidade’ em questão, nem aspectos que são incluídos, não-incluídos e apagados nos procedimentos de pesquisa em saúde, segundo autores dos estudos sociais da ciência.

Além disto, importa mencionar que há evidências suficientes acerca dos enviesamentos que as corporações farmacêuticas geram nos resultados de ensaios clínicos que escamoteiam a real efetividade e os efeitos adversos dos novos fármacos postos no mercado. Da mesma maneira, não se apresentam sob a forma de publicação os resultados de estudos que apontam para achados desfavoráveis em relação aos medicamentos experimentados.

Este quadro inevitavelmente contamina a cadeia de produção de ‘guidelines’ que sustentam o gerencialismo baseado na lógica de adequação de custos em termos de insumos e produtos/serviços. Isto cinicamente termina por prover na extremidade do paciente a provisão de ‘cuidados’ de saúde já definidos, na sua origem, por um selo imaginário de qualidade precária. Por mais duro que possa parecer, é impossível se conter e não enfatizar a dimensão de cinismo que se manifesta nas práticas cotidianas de (des)atenção à saúde.

Os leitores do livro irão perceber configurações que muitos irão vincular a penosos eventos como pacientes ou como pessoas de sua família. A origem da palavra ‘paciente’ indica sua posição como alguém que está afetado por algo que o ameaça ou o faz sofrer ou o deixa enfraquecido diante das demandas da sua vida (enfermo é aquele que está num estado de debilidade; doente é originalmente aquele que sente dor). Não se trata do sentido de quem é obrigado a ter paciência, que aguenta com resignação não só a manifestação de sinais e sintomas, mas, também, ao alto risco de ser maltratado durante seus encontros com as incômodas facetas do atual Complexo Econômico-Industrial da Saúde.

Referências

AMARAL, Olavo. Intoxicado de ofertas. Revista Piauí, Rio de Janeiro, n. 108, p. 20-28, set. 2015. [ Links ]

ELLIOTT, Carl. White coat, black hat. Adventures on the dark side of medicine. Boston: Beacon Press, 2010. [ Links ]

RAVELLI, Quentin. Nos subterrâneos da indústria farmacêutica. Le Monde Diplomatique. Disponível em: <http://outraspalavras.net/destaques/nos-subterraneos-da-industria-farmaceutica>. Acesso em: 25 dez. 2015. [ Links ]

Luis David CastielEscola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil <[email protected]>

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Le médicament qui devait sauver l’Afrique: un scandale pharmaceutique aux colonies – LACHENAL (HCS-M)

LACHENAL, Guillaume. Le médicament qui devait sauver l’Afrique: un scandale pharmaceutique aux colonies. Paris: La Découverte, 2014. 283pp. Resenha de: CORREA, Sílvio Marcus. Uma chave para a África. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 22  supl. Rio de Janeiro Dec. 2015.

Desde o início do século XX, a chamada doença do sono era um grande desafio à medicina tropical.1 Durante a Partilha da África, a doença tomou proporções alarmantes. Na década de 1920, a Alemanha já tinha perdido as suas colônias no continente africano, quando a imprensa deu notícias sobre uma nova wonder drug, considerada a “chave para África” (A key…, 1 set. 1922). O Bayer 205 foi tido como um medicamento promissor no combate à tripanossomíase africana. Estariam os alemães aptos a reaver suas colônias? (Das deutsche…, 22 set. 1922).

A Segunda Guerra Mundial poria fim a qualquer projeto colonial do Terceiro Reich. Quanto ao Bayer 205, sua eficácia foi superada por outro medicamento da indústria farmacêutica: a Lomidina®. A história da Lomidina corresponde a uma fase pouco conhecida, mas capital, da luta colonial contra a doença do sono. Sobre ela, tem-se, agora, o livro de Guillaume Lachenal, mestre de conferências junto ao departamento de história e filosofia das ciências na Universidade Paris-Diderot.

O “medicamento que deveria salvar a África” suscitou uma série de dúvidas e incertezas quanto à sua eficácia, à sua posologia etc. Apesar disso, o medicamento foi usado na quimioprofilaxia contra uma doença tropical que debilitava a saúde dos trabalhadores.2 Na África portuguesa, as campanhas de vacinação se intensificaram até os últimos anos do colonialismo.3 Em Angola, algumas sociedades de capital privado tinham o seu próprio serviço de saúde. Na Companhia de Diamantes de Angola (Diamang), por exemplo, havia uma sessão autônoma chamada Missões de Profilaxia Contra a Doença do Sono (Varanda, 2014).

Mas, durante a euforia da utopia higienista colonial, houve uma hecatombe em Yokadouma, um vilarejo na parte oriental dos Camarões, então sob domínio colonial francês. Em meados de novembro de 1954, dezenas de pessoas morreram depois de terem sido vacinadas por uma equipe do serviço de higiene e de profilaxia responsável pela aplicação da Lomidina. O acidente de Yokadouma se inscreve numa história da medicina tropical que revela o lado falível, presunçoso e geralmente encoberto pela grandiloquência do discurso colonial. Para tratar disso, o autor evoca o valor heurístico da noção de “besteira colonial”. Para Lachenal, a besteira não remete a uma deficiência da razão, mas a uma possibilidade intrínseca à razão. Pela confiança desmesurada nos procedimentos científicos, a razão pode tornar-se uma obstinação. A besteira não raro se confunde com arrogância. Por isso, ela se caracteriza pelo excesso e não pela falta de razão. A obstinação em erradicar a doença do sono e os métodos empregados como as campanhas de lodiminização preventiva fazem parte daquilo que o autor chamou de “besteira colonial”.

No entanto, diante da morte de dezenas de pessoas e dos graves ferimentos de centenas de outras, além dos traumas, humilhações e coerções a que foram submetidos milhares de indivíduos durante as campanhas periódicas de lomidinização, a “besteira” pode vir a significar muito pouco e não passar de mero eufemismo.

Embora a análise do autor tenha ficado circunscrita aos (ab)usos da Lomidina, cabe informar que outras “besteiras” como o desmatamento e mesmo a matança de animais selvagens foram práticas largamente adotadas nas campanhas de controle ou erradicação da tripanossomíase africana (Correa, 2014).

O “império da besteira” não se restringiu às fronteiras africanas. Enquanto Aníbal Bettencourt, Aldo Castellani, David Bruce, Robert Koch e outros buscavam decifrar a doença do sono, outras enfermidades preocupavam as autoridades sanitárias e de higiene nos trópicos. Suas técnicas e métodos no combate a certas epidemias não foram diferentes. Uma campanha de vacinação obrigatória contra a varíola levou a uma revolta no Rio de Janeiro em 1904 (Chalhoub, 1996). No Brasil meridional, campanhas sanitárias para erradicação da malária tiveram por alvo algumas bromeliáceas, reservatórios naturais à proliferação dos mosquitos anofelinos (Oliveira, 2011). Ou seja, a presunção ou arrogância de uma razão médica, o autoritarismo e a violência de certas medidas de higiene, sanitárias ou profiláticas não foram apanágios do colonialismo em África. Dito de outro modo, a “besteira colonial” teve suas similares em contextos pós-coloniais.

Ao tratar de um medicamento considerado “a chave para África”, Guillaume Lachenal brinda com uma abordagem inovadora, em termos teóricos e metodológicos, a historiografia da medicina tropical.

Referências

A KEY…A key to Africa. Rhodesia Herald. 1 set. 1922. [ Links ]

BETTENCOURT, Aníbal.La maladie du sommeil: rapport présenté au Ministère de la Marine et des Colonies par la Mission envoyée en Afrique Occidentale Portugaise. Lisboa: Libanio da Silva. 1903. [ Links ]

CHALHOUB, Sidney.Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras. 1996. [ Links ]

CORREA, Silvio M. de Souza. Evicção da fauna bravia: medida radical de saneamento na África colonial. Revista de Ciências Humanas, v.14, n.2, p.410-422. 2014. [ Links ]

DAS DEUTSCHE….Das deutsche Schlafkrankheitsmittel: der Schlüssel zu Afrika in deutscher Hand. Lüderitztbuchter Zeitung. 22 set. 1922. [ Links ]

OLIVEIRA, Eveli S. D’Ávila. O combate à malária em Florianópolis e suas implicações ambientais. Tempos Históricos, v.15, p.405-429. 2011. [ Links ]

PICOTO, José. Assistência médico-cirúrgica na Luanda pelo serviço de saúde da Diamang. Anais do Instituto de Medicina Tropical, v.10, n.4. (separata). 1953. [ Links ]

VARANDA, Jorge. Cuidados biomédicos de saúde em Angola e na Companhia de Diamantes de Angola, c. 1910-1970. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.21, n.2, p.587-608. 2014. [ Links ]

VINTE ANOS DE LUTA…Vinte anos de luta contra a doença do sono, 1946-1965. O Médico, n.792, p.17. (separata). 1966. [ Links ]

Notas

1 Angola, por exemplo, acolheu uma das primeiras expedições científicas para o estudo da doença do sono (Bettencourt, 1903).

2 Para ficar num exemplo, ao elogiar a assistência médico-cirúrgica do serviço de saúde da Diamang, o doutor Fernando Correia afirmou que a referida sociedade mineradora acabava também “por lucrar economicamente, visto que a economia de saúde e de vidas se repercute sempre, mais cedo ou mais tarde, direta ou indiretamente, sobre a produção” (citado em Picoto, 1953, p.2703).

3 Em 1963, pelo decreto n.45.177, foi criada a Missão de Combate às Tripanossomíases (MCT) que, no ano seguinte, entrou em ação. O escopo da nova organização era “a luta total, em todos os campos, contra as tripanossomíases consideradas nos múltiplos aspectos-médico, veterinário, entomológico, agronômico, etc.” (Vinte anos de luta…, 1966, p.17). Entre outras atividades da MCT, a campanha de pentamidinização em Angola foi reconhecida do outro lado do Atlântico. Em 20 de agosto de 1970, em sessão realizada na Academia Nacional de Medicina, no Rio de Janeiro, o médico brasileiro Olympio da Fonseca Filho fez elogios à obra de Portugal no combate à doença do sono.

Sílvio Marcus de Souza Correa – Professor, Programa de Pós-graduação em História/Universidade Federal de Santa Catarina. [email protected]