De volta ao Lago de Leite: gênero e transformação no Alto Rio Negro – LASMAR (CP)

LASMAR, Cristiane. De volta ao Lago de Leite: gênero e transformação no Alto Rio Negro. São Paulo/Rio de Janeiro, Editora UNESP-ISA/NUTI, 2005. Resenha de: FERREIRA, Carolina Branco de Castro. Virando “branca” e subvertendo a ordem? Gênero e transformação no Alto Rio Negro. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, Jul./Dez. 2009.

O livro De Volta ao Lago de Leite: gênero e transformação no Alto Rio Negro foi originalmente apresentado como tese de doutorado por Cristiane Lasmar no Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, sob a orientação de Bruna Franchetto. Ao longo de suas 285 páginas somos levados pela autora a refletir sobre as transformações que ocorrem no modo de vida quando os/as indígenas deixam suas comunidades, situadas ao longo da faixa ribeirinha dos rios Uaupés e Negro, e passam a residir na cidade amazônica de São Gabriel da Cachoeira.

O olhar de Lasmar situa-se no pólo nativo e a partir de uma sociologia indígena, ela busca compreender as instituições e organizações sociais, a sócio-cosmologia dos grupos estudados e como a população indígena percebe e define, em seus próprios termos, a situação de contato. Em minha leitura, a pesquisa da autora está interessada em revelar, ao modo de Sahlins (1997), como os grupos ameríndios do Uapés vêm tentando incorporar o sistema tecnológico e de conhecimentos “dos brancos” a uma ordem ainda mais abrangente: seu próprio sistema de mundo.

O que motiva os índios em direção ao mundo dos brancos?1, pergunta a autora. Além disso, uma problemática de gênero permeia seus questionamentos, porque dentre as transformações que a autora investiga está a preferência das mulheres indígenas em se casar com homens brancos, o questionamento sobre o status dos filhos nascidos deste enlace e a violência de gênero.

Para organizar sua etnografia, Lasmar utiliza o recurso analítico de contrastar “comunidade” e “cidade”, pois segundo ela estas palavras remetem a modos de vida distintos no discurso indígena. Para a autora, o contraste entre “viver na cidade” e “viver na comunidade” permite compreender a diferença entre índios e brancos, bem como a experiência social dos índios que vivem em São Gabriel da Cachoeira, uma vez que a “comunidade” e seus padrões de sociabilidade ainda representam uma referência moral organizativa importante para estes sujeitos, porque na comunidade ainda se vive como índio.

Além da introdução e das considerações finais, o texto está dividido em duas partes, cada qual com um prólogo e um epílogo. O livro conta com dois cadernos de desenho de autoria de Feliciano Lana, um de seus colaboradores. Bem como, com dois mapas, um do Alto Rio Negro, onde é possível ter uma boa idéia da localização das comunidades ribeirinhas e da cidade de São Gabriel, e outro com a divisão dos bairros deste município, onde o leitor pode localizar os bairros da Praia e de Dabaru, que concentram a população indígena citadina. E ainda, se encontra uma tabela de convenções sobre segmentos fonêmicos e indicações de pronúncia em língua tukano. No anexo está na integra o mito de origem – A viagem na canoa da Fermentação, leitura imprescindível para compreender as sócio-cosmologias dos grupos referidos e também a proposta teórico-metodológica inovadora de Lasmar.

A metáfora espacial entre “comunidade” e “cidade”, ao invés de opor tradicional/moderno, nos permite perceber a translocalidade, para tomar emprestado um termo de Sahlins (1997), existente no “movimento dos índios em direção ao mundo dos brancos” (Lasmar, 2003:213). Assim, ao estabelecer esse modo de análise, a autora busca esse movimento e suas várias interfaces, privilegiando as narrativas das mulheres indígenas. Vale lembrar que os grupos do Uaupés organizam as relações de parentesco por um cálculo agnático, portanto, ao focar nas histórias de vida feminina, é possível perceber como esses deslocamentos, eu diria até subversões da “tradição” e da ideologia de gênero, são explicados, vividos e agenciados por estes sujeitos.

Antes de entrar na discussão sobre esses deslocamentos ou subversões da “tradição”, recupero alguns argumentos da autora sobre a organização social ribeirinha dos grupos do Uaupés. A bacia do rio Uaupés se localiza em território brasileiro e colombiano e abarca uma população de 9.300 indivíduos que se dividem em dezessete grupos étnicos, os quais se organizam exogâmicamente e falam línguas distintas.

A regra matrimonial é que um homem deve se casar com uma mulher que fale uma língua diferente da dele. A residência é virilocal, ou seja, é a mulher quem se muda para a comunidade do marido, e o sistema de descendência é patrilinear. As relações de parentesco são fundamentais para entender a cosmologia destes grupos, uma vez que o sistema de descendência não diz respeito apenas às regras de transmissão de bens e direitos, mas também à idéia de transmissão de uma “alma” e um nome indígena. Para ser índio é necessário estar ligado a um ancestral reconhecido pelo sib2 patrilinear. Essa forma de organizar o parentesco insere uma assimetria na posição das mulheres. São elas que personificam uma alteridade ameaçadora, e não raro são ligadas a um descompromisso com a harmonia coletiva. Com o passar do tempo e com as relações de comensalidade e co-residência essa alteridade vai se tornando menos marcada entre o casal.

Aqui, vale um comentário a respeito das relações de parentesco nas sociedades ameríndias. Lasmar é caudatária da reflexão de vários antropólogos (Carneiro da Cunha, 1978; Rivière, 1993; Viveiros de Castro, 2002; Overing, 1973, dentre muitos outros)3 a respeito da amerindianização da descendência e da afinidade. Esses autores rejeitaram o modelo africanista, que enfatizava a definição de grupos de descendência e a transmissão de bens/ofícios, e elaboraram explicações mais próximas aos princípios subjacentes à composição dos grupos de parentesco nativo das terras baixas sul-ameríndias.

Overing argumenta que para muitas sociedades os grupos locais são a base do parentesco e o casamento por aliança se torna a instituição crucial responsável pela coesão e perpetuação do grupo. Segundo ela:

Nós deveríamos distinguir entre aquelas sociedades que enfatizam a descendência, aquelas que enfatizam a descendência e a aliança, e finalmente aquelas que dão ênfase apenas na aliança como o princípio básico organizador das relações (Overing, 1973:556, tradução livre).

Nesse artigo, a autora está interessada em certos problemas de interpretação, especificamente em relação a sociedades que combinam a regra positiva de casamento, a pouca ênfase dada por elas ao princípio de descendência e o casamento endogâmico. Os dados etnográficos explorados pela autora são retirados de sua pesquisa de mais de 10 anos entre os Piaroa. Overing (1973) chama a atenção para o fato de que estamos diante de sociedades que não operam com o princípio da descendência unilinear, mas há uma regularidade que precisa ser entendida a partir de outro arcabouço teórico. Já nesse texto a autora aponta para a importância que a noção de diferença ocupa para a reprodução social neste grupo e também para outros das terras baixas da América do Sul.

Segundo Viveiros de Castro (2002a; 2002b), para os grupos ameríndios, a afinidade (ou a diferença/alteridade) é o “dado” e é na esfera da consangüinidade que a “energia social é despendida”. Na teoria nativa dos grupos ameríndios a afinidade é um valor que desempenha um papel fundamental como operador sociocosmológico. O autor distingue duas espécies de afinidade: a “afinidade atual”, na qual os afins são consanguinizados a partir da consubstanciação por meio da co-residência4, e a “afinidade potencial”, que extrapola as alianças matrimoniais e constitui-se como gramática de trocas simbólicas do interior para o exterior, da passagem do local para o global. Assim, a socialidade ameríndia não é marcada pela troca de esposas e de coisas, mas envolve trocas simbólicas, nas quais há lugar para a incorporação do desconhecido.

Nesse sentido, a noção de afinidade transcende as relações de parentesco. Iniciei essa digressão teórica ao discutir os dados etnográficos relacionados ao parentesco do livro de Lasmar. No entanto, após essa reflexão, é possível falar de parentesco indígena? Ou à maneira de Shneider (1980), o parentesco seria uma ideologia da sociedade ocidental ou euro-americana (para lembrar Strathern, 1992) que, às vezes, se aplica a outros grupos sociais? Segundo Viveiros de Castro a responda é sim. No entanto, ao falar de parentesco é possível colocar em perspectiva as matrizes sócio-cosmológicas e as ontologias ocidentais e também ameríndias (entendidas aqui fora de pressupostos identitários). Esse jogo semântico é fundamental para entender o empreendimento de Lasmar, que ao tomar como objeto de pesquisa as relações entre índios e brancos, se diferencia das perspectivas que rapidamente associam essas relações a exploração, submissão e aculturação.

A partir de um olhar feminista, privilegiando narrativas femininas, a autora complexifica o “movimento dos índios em direção ao mundo dos brancos” de modo crítico e inovador. No entanto, a reflexão sobre episódios de violência propriamente ditos até questões colocadas pelo cotidiano das mulheres, certamente marcadas por gênero, suscita algumas questões, subjacentes no texto e não retomadas.

Mesmo havendo uma inversão no sistema de descendência e na ideologia de gênero a partir do casamento de mulheres indígenas com brancos, segundo a autora, essa inversão é pautada pela socialidade ribeirinha, que tem na diferença seu operador/produtor social fundamental. Como aponta Lasmar, esta inversão não se dá sem conflitos.

A autora explora bem os conflitos entre irmãos e irmãs resultantes dessa inversão. No entanto, ela explora menos aqueles resultantes do casamento das mulheres indígenas com os brancos. É verdade que Lasmar mostra como depois de um tempo as mulheres se decepcionam com o comportamento de seus maridos, bem como os maridos muitas vezes se fartam com a presença contínua dos parentes da mulher em casa. No entanto, o texto mostra uma certa homogeneidade do conflito. Se a convivencialidade é fundamental para operacionalizar as cosmologias ameríndias, neste caso, ligada ao campo etnográfico da autora, cuja centralidade está na relação entre índios e brancos como produtora de identidade entre co-residentes, nem sempre essa convivencialidade acontece de modo homogêneo.5

Lasmar mostra como na visão dos parentes da mulher indígena, ela está se “tornando branca”, já que se casou com branco e mora na cidade. Esse processo atualiza a teoria nativa da socialidade, na qual são sempre seres que guardam diferenças que entram em relação – a mulher, antes filha, neta, ou seja, consangüínea, agora é “branca” e, por conseguinte, uma afim. Se não há uma ligação automática entre diferença e desigualdade ou entre diferença e violência, é necessário escrutinar, neste caso, onde e como essas relações acontecem.

Na segunda parte do livro, Lasmar busca compreender como nessa translocalidade entre comunidade e cidade, na qual a primeira é um ponto de referência simbólico importante para os indígenas, existem maneiras distintas de estar na cidade. Aqui, a autora é herdeira das reflexões de Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro (1987) a respeito da noção de pessoa e corporalidade nas sociedades ameríndias. Esses autores buscaram compreender as cosmologias ameríndias a partir dos seus próprios termos e afirmam que elas apontam para a importância de pensar a pessoa e a corporalidade como elementos centrais da experiência vivida socialmente, pois a “produção física de indivíduos se insere em um contexto voltado para a produção social de pessoas” (Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro, 1987:13).

Segundo Lasmar, há uma forma mais próxima do modo branco e outra mais próxima do modo indígena de se viver na cidade. Assim, é a partir da trajetória de três mulheres indígenas de gerações distintas em São Gabriel da Cachoeira que a autora mostra como são as práticas cotidianas, a idade e a corporalidade que informam e desenham essas posicionalidades – por exemplo, ter uma roça ou não, o tipo de alimento consumido, o jeito de andar, as roupas que se veste, dentre outros.

A partir dessas trajetórias e da etnografia podemos perceber uma preferência das mulheres indígenas em se casar com homens brancos, muitas vezes, influenciadas por suas mães. Segundo Lasmar, essa preferência pode ser explicada pelos benefícios econômicos que esse tipo de casamento permite a partir de um acesso facilitado ao “mundo de mercadorias dos brancos”, bem como pelo fato de ampliar a rede familiar, de reciprocidade e de circulação dos parentes. Por exemplo, ter uma filha casada com um branco, facilita o acesso ao mundo da cidade, do hospital, da escola, etc., ao mesmo tempo em que transforma o estilo de vida e a corporalidade dessa mulher.

A autora argumenta que há uma hierarquização entre índios e brancos na cidade de São Gabriel da Cachoeira, onde os brancos teriam acesso mais facilitado e legitimado a bens, serviços, empregos e posições sociais. Assim, a condição da esposa de um branco pode estar próxima a de algumas mulheres casadas com homens indígenas que conseguiram uma boa colocação no mercado de trabalho e possuem condições de prover os parentes e ampará-los materialmente ou em caso de necessidade e cuidados. No entanto, a autora argumenta que o casamento com brancos potencializa a capacidade de agência das mulheres no que se refere aos processos de construção de uma identidade no âmbito da família extensa a partir da subversão da ideologia de gênero. Além disso, esse tipo de casamento cria uma tensão e uma inversão da assimetria de valor nas relações entre irmãos e irmãs no Uaupés. Para entendê-la é necessário remeter à identidade das crianças nascidas das uniões com brancos.

Como mencionei acima, é a partir da descendência agnática que é transmitido a “alma indígena”, ou seja, é por onde a identidade indígena é constituída. Neste caso, se uma mulher casa-se com um branco, esta transmissão seria impossível. O que não aconteceria, por exemplo, se um homem indígena se casa com uma branca, uma vez que ele teria legitimidade dentro dos “cânones tradicionais” da descendência para dar o nome cerimonial à criança e por conseqüência o acesso a “alma indígena”.

Lasmar mostra que tem sido habitual os filhos/as das mulheres casadas com brancos receberem o nome cerimonial pela via do avô materno, que faz com que a criança seja identificada com a etnia da mãe. Embora os filhos/as nascidos do casamento entre índios e brancos sejam considerados “misturados”, a “parte indígena” desse corpo é dada pela linha materna, contrariando o princípio de descendência. Isso tem causado uma tensão com os tios maternos, pois segundo a tradição seriam eles os únicos a terem o direito da transmissão do sib. A preferência das mulheres pelos brancos também tem sido foco de tensão não só em relação ao irmão materno, mas de maneira geral, pois os homens indígenas se queixam que os brancos “roubam” suas mulheres, uma vez que o casamento entre um índio e uma mulher branca é escasso.

Para a autora, esse ponto ao redor da identidade dos filhos “misturados” reforça sua hipótese de que o enlace com um branco dá a mulher uma oportunidade de se recolocar no sistema indígena de relações sociais. Pois, além de dotá-la de recursos que a permitem ajudar os parentes, esse casamento cria uma situação favorável para que ela transmita aos filhos o nome de seus antepassados com a conivência de seu pai ou de outro homem de seu sib. Assim, o casamento com um homem branco permite a mulher indígena uma posição relevante em meio a ambigüidade social da cidade, pois ela indica a tensão entre a reprodução da identidade indígena e a apropriação das capacidades/conhecimentos e bens dos brancos.Para a autora essa pode ser uma explicação do porquê as mães fazem pressão para que as filhas se casem com brancos (Lasmar,2005:245).

Enquanto lia o livro de Lasmar, eu me lembrava do texto de Bourdieu (2006), no qual ele mostra como as transformações pelas quais passam as sociedades camponesas (neste caso, no Béarn, no sudoeste da França) levam a desvantagens dos homens no mercado matrimonial quando as categorias urbanas penetram no campo. Segundo sua análise, as mulheres assimilariam mais rapidamente as transformações culturais vindas da cidade do que os rapazes, nesse sentido, eles seriam desvalorizados diante da visão de suas potenciais esposas, pois não sabem lidar com os padrões valorizados por uma nova “economia política” do casamento, ficando solteiros.

Assim, fica a questão: a partir de uma imagética de gênero, seriam as mulheres em diferentes sistemas sociais, nos quais a reprodução social como reposição de hierarquias implica na produção da diferença sexual, os sujeitos mais propensos a redefini-los? Essa pergunta me remeteu a quão diferente seriam os resultados da pesquisa de Lasmar, se retomássemos o debate da antropologia feminista da década de 1970, no qual havia um certo consenso sobre a subordinação universal das mulheres. De maneira similar a Strathern (2006), Lasmar trabalha com gênero como metáfora de categorias socio-cosmológicas mais gerais, permitindo conhecer, dentro de um grupo específico, como se arranjam as práticas e as idéias em torno dos sexos e dos objetos sexuados.

Nesse sentido, a categoria gênero não seria de ordem analítica e sim empírica, como uma categoria de diferenciação que não se reduz à diferenciação sexual/corporal de pessoas e sim como motivação empírica para o engendramento de sistemas simbólicos. A escolha dessa noção de gênero permitiu à autora apreender como a diferença sexual dá significado ao vivido a partir de categorias coletivas e suas transformações.

Essa escolha teórico-metodológica permitiu a Lasmar investigar as transformações sociais a partir de cosmologias produzidas pelos grupos da região do Uaupés e possibilitou, ainda, descortinar as questões de gênero a partir da agência dos sujeitos. Ao desmitificar generalizações pouco explicativas sobre a subordinação feminina ou outras, como a suposta “fixidez” e “subordinação” das “sociedades tradicionais”, a pesquisa da autora abre perspectivas para entender a natureza dessas transformações. Porque embora as mulheres invertam a orientação sexual do sistema de descendência, elas o fazem a partir das bases da socialidade ribeirinha, que guarda proximidade com a discussão que fiz a respeito dos grupos ameríndios, ou seja, essa inversão está informada pela lógica da diferença como marcação social entre os grupos (entre índios e brancos), bem como a identidade entre co-residentes (as transformações no modo de vida).

Lasmar explora a experiência das mulheres indígenas na cidade e sua preferência pelos homens brancos, ressaltando as transformações no sistema de relações entre índios e brancos e a capacidade de agência das mulheres. No entanto, a questão da violência de gênero é retomada de maneira menos sistematizada. A autora aponta que uma de suas motivações para construir seu objeto de pesquisa foi o convite do Instituto Socioambiental (ISA) para realizar uma pesquisa entre as mulheres indígenas residentes em São Gabriel da Cachoeira vítimas de violência sexual praticada, em sua maioria, por militares brancos na cidade. Logo, ela percebeu que a relação entre homens brancos e mulheres indígenas não se explicava somente a partir de episódios de violência, mas também em encontros sexuais consentidos, namoro e casamento. Nesse sentido, seria preciso apreender a experiência feminina na cidade e suas relações com os brancos também como potenciais parceiros sexuais e/ou maridos dessas mulheres (Lasmar, 2004:25-26).

Se as mulheres são responsabilizadas na maioria das explicações sobre os episódios de violência, esse entendimento passa pela culpabilização ou punição dessas por relações sexuais ilícitas presentes no mito e no discurso dos índios. Bem como, pela visão das moças do bairro da Praia, sugerindo que o comportamento das jovens indígenas recém-chegadas à cidade as torna mais expostas a esse tipo de situação, pois ainda seriam ingênuas e não saberiam viver na cidade. Além disso, é recorrente a explicação de que grande parte das mulheres usa plantas afrodisíacas para deixar os homens de “cabeça fraca” fazendo-os agir como “loucos” (Id. ib.:204).

O/a leitor/a poderia ter uma visão ampliada sobre os episódios de violência, caso o texto disponibilizasse mais informações a respeito dos sujeitos envolvidos e como eles se envolvem neles. A partir da visão das moças do bairro da Praia, a autora afirma que as mulheres indígenas recém-chegadas à cidade (consideradas por aquelas “as meninas do sítio”) estão mais vulneráveis a esses acontecimentos, mas o que pensam as moças do sítio? Outras questões permearam minha leitura: caso as mulheres se casem, deixam de estar vulneráveis a situações de violência sexual/de gênero?As mulheres casadas estão vulneráveis? De que modo? Como são coletados os dados sobre violência sexual e de gênero? Há denúncias por parte das mulheres indígenas? Como entender a complexidade desses sofrimentos marcados por gênero?

O livro de Lasmar deve ser lido por antropólogos/as e estudantes de ciências sociais em geral, porque sem dúvida traz contribuições relevantes, além de ser leitura instigante e trazer ótimas sínteses teóricas sobre parentesco e grupos ameríndios. Para os/as profissionais e estudiosos/as da área de etnologia indígena brasileira e ameríndia a leitura é fundamental, pois a autora não é herdeira da antropologia feminista dos anos 1970, que ligou automaticamente o antagonismo sexual à dominação masculina, influenciando muitos americanistas. Para a área de teoria feminista e de gênero vale a pena conferir como a autora trabalhou com gênero de modo criativo e inovador.

Referências

BOURDIEU, Pierre. O camponês e seu corpo. Revista de Sociologia e Política, número 26, UFPR, 2006.         [ Links ]

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Os mortos e os outros: uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa entre os índios Krahó. São Paulo, Hucitec, 1978.         [ Links ]

OVERING, Joana Kaplan. Endogamy and the marriage alliance: a note on continuity in kindred-based groups. Man, vol. 8, nº 4, dec. 1973.         [ Links ]

RIVIÈRE, Peter. The amerindianization of descent and affinity. L’Homme, avril-décembre-XXXIII, 1993.         [ Links ]

SCHNEIDER, David M. American kinship. A cultural account. 2ª ed. Chicago/Londres, The University of Chicago Press, 1980.         [ Links ]

SEEGER, Antony; DAMATTA, Roberto; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. (org.) Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1987.         [ Links ]

STRATHERN, Marilyn. After Nature. English Kinship in the late Twentieth Century. Cambridge, Cambridge University Press, 1992.         [ Links ]

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O problema da afinidade na Amazônia. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac Naify, 2002a.         [ Links ]

__________. Atualização e contra-efetuação virtual: o processo do parentesco. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac Naify, 2002b.         [ Links ]

Notas

1 Na região do Alto Rio Negro podem ser encontradas mais de 17 etnias indígenas diferentes. No entanto, a autora opta por trabalhar com as categorias pan-étnicas de índio e branco, pois são estes os termos articulados no discurso nativo.
2 O sib é o termo norte-americano equivalente às linhagens dos grupos exógamos.
3 Esses antropólogos/as não têm uma produção homogênea – quero dizer que eles estabelecem diálogos críticos uns com os outros em busca de uma abordagem teórico-metodológica mais apropriada para tratar a relevância da afinidade nas terras baixas da América do Sul.
4 Overing (1973) também aponta a importância da convivencialidade como estratégia para consaguinizar os afins.
5 Agradeço ao professor Mauro Almeida por seus comentários inspiradores na disciplina de Parentesco e Redes Sociais.

Carolina Branco de Castro Ferreira – Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – área de gênero -, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp. E-mail: [email protected].

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Um peixe olhou para mim. O povo Yudjá e a perspectiva – LIMA (IA)

LIMA, Tânia Stolze. Um peixe olhou para mim. O povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo: Editora UNESP/ISA;  Rio de Janeiro: NuTI, 2005. 399p. Resenha de: SILLA, Rolando. Intersecciones en Antropología, Olavarría, n.9, ene./dic., 2008.

Un pez me miró es el nombre con que Tânia Stolze Lima (profesora de antropología de la Universidad Federal Fluminense) tituló su estudio etnológico (palabra maldita para el ambiente académico argentino) sobre los Yudjá que habitan a orillas del río Xingu, en el Estado de Mato Grosso (Brasil). Resultado de diferentes viajes realizados entre 1984 y 1990, el libro es una reformulación de su tesis doctoral defendida en el Museo Nacional (Universidad Federal de Rio de Janeiro) en 1995 e inspiradora de uno de los conceptos centrales del debate amazónico actual: el perspectivismo cosmológico amerindio, acuñado por Eduardo Viveiros de Castro. Obra dividida en siete capítulos, desarrolla progresivamente la gesta mítica de los Judjá, el concepto nativo de otredad, la concepción de cuerpo, embarazo y procreación, el canibalismo y las fiestas de sociabilidad. Estudio que intenta “liberarse de las categorías de finalidad cultural, causalidad sociológica y totalidad jerárquica”, parte del presupuesto de que el concepto de totalidad en el pensamiento antropológico clásico se haya fundamentado sobre las antinomias naturaleza-cultura e individuo-sociedad. Por ello la autora intenta desarrollar una perspectiva totalizadora pero sin reproducir estas antinomias. Así, a partir de las preguntas sobre cómo pensar relaciones entre perspectivas sin efectuar conceptualizaciones jerárquicas, o cómo crear totalidades que no sean cerradas, el texto plantea desafíos a la escritura etnográfica.

Su objetivo es la descripción del sistema sociocosmológico Yudjá; y Lima parte de la narración nativa para luego, y a partir de las cuales, desarrollar sus interpretaciones. Los relatos no son entonces considerados “supercherías” o representaciones mentales, sino realidades construidas y por lo tanto eficaces en la vida cotidiana indígena. Para describir tal sistema no sólo toma los relatos sino que analiza su vida social y en especial una actividad considerada central: las fiestas de embriaguez producida por la cerveza de madioca (cauim) que las mujeres producen. Según la autora, ésta es una de las tres prácticas con que los Yudjá se autoidentifican y eligieron como expresión de su diferencia, siendo las restantes la navegación y las narraciones sobre Sen´. Lima señala que “la historia de Sen´ le fue narrada diversas veces por personas que la dejaban con la impresión de que resumía todo aquello que los Yudjá querían decir a los karai (o sea a los brasileros, o sea a ella). Le fue presentada en un conjunto articulado de mitos que forman la epopeya propiamente dicha, y en mitos que componen un conjunto articulado independiente, pero que son citados por intermedio de Taku (2005: 71), un hombre que, según el relato mítico, fue invitado por los karai a participar de una expedición fluvial al país de Sen´, situado en los confines del mundo. Sen´ es el chaman a quién los Yudjá atribuyen gran parte de la configuración actual del mundo y de la condición humana. Lima desarrolla esta epopeya en gran parte del libro, pero es ante todo en el primer capítulo donde cuenta cómo el gran chaman sopló a una parte de los Yudjá para que se transformen en karai y los dotó de la condición de criadores de ganado, teniendo “su caza” almacenada en sus corrales, mientras que losYudjá propiamente dichos asumieron la condición de predadores, y por lo tanto estuvieron obligados a realizar expediciones para encontrar alimento. Después de su partida, Sen´ “inventó las mercaderías, las armas de fuego, los tejidos, los cuchillos de acero y los aviones pequeños” (2005: 25). De esta manera, la historia Yudjá no construye un discurso sobre sí, destinado a los karai y generando una política de la etnicidad, sino que construye un discurso para sí sobre los karai, y sobre por qué unos predan y los otros fabrican. El mito se transforma así en una “antropología indígena” sobre ellos y los Otros con quienes interaccionan; y crea categorías producidas por el propio grupo para explicar su actual condición, su relación y subordinación a los blancos y al Estado nacional brasilero. Esta explicación propia de los Yudjá no utiliza categorías de pensamiento occidental. Por ello la autora afirma que lo que en general se toma por meras ideas o representaciones son principios tan reales y de tanta eficacia como nuestros conceptos antropológicos de linaje, clase o tabú.

Otro aspecto central de esta etnografía es el desarrollo del concepto de perspectivismo, que nos lleva a reconsiderar las relaciones que la antropología clásica desarrolló sobre la dicotomía naturaleza-cultura. Desde la perspectiva Yudjá, Sen´ es un humano para los demás humanos y para sí mismo. Pero sus padres son jaguares para los humanos, aunque humanos para sí mismos; Sen´ los considera jaguares, excepto que entiende su lenguaje y los trata como a sus padres (2005: 28). Esta peculiar visión de los animales, las cosas y las personas, en dónde existe una diferencia de perspectiva entre lo que uno cree que es y cómo los demás (hombres o animales) lo ven a uno, es según Lima, el andamiaje fundamental desde donde estos grupos humanos construyen sus formas de ver el mundo, sus convicciones de cómo el mundo es, y por ende, cómo hay que operar sobre él. Se acostumbra llamar a este fenómeno “perspectivismo indígena panamericano” e implica la convicción nativa de que los animales, además de voluntad, tienen puntos de vista propios; y de que mientras los humanos (los Yudjá) ven a los animales como animales, estos se autoconsideran personas y nos ven a nosotros como personas también. Por ello, desde este punto de vista, los humanos pueden conocer a los animales como tales, pero también como otra persona, e incluso como otra sociedad con sus propias costumbres. Como una forma de conocer el mundo de los animales y de los espíritus radica en la capacidad del chaman del grupo en transformarse, esta cosmovisión implica también una concepción diferente de persona, de cuerpo y de sus potencialidades. Entonces, y según la perspectiva de las sociedades amazónicas, es propio de la persona humana estar dotada de una perspectiva que contenga a otras. Esta es la visión del mundo del cazador, y según la autora, oponer apariencia a esencia no essuficientemente explicativo del fenómeno. Como para los nativos esta diferencia de perspectiva, más que creencia es una certeza, actúan en consecuencia a este mundo construido y por lo tanto real para ellos; e incide sobre su concepción de cuerpo, de embarazo y procreación, de comensalidad y ante todo implica una conceptualización diferente de la identidad, tanto humana como animal, e incide sobre las nociones nativas de humanidad, sociedad, y naturaleza.

Para los Yudjá “el lugar en que hoy viven es un cielo derrumbado” (2005: 57). En su origen, los Yudjá le dijeron a Sen´ que los karai eran buenos. Entonces éste les dio la posibilidad de fabricar mercancías. Es así que fue un error de ellos que el gran chaman los privara de la capacidad de las artes industriales y se las otorgara a los blancos. Así el mito retrata la condición humana en términos de un equívoco. Se podría fácilmente asociar el derrumbe demográfico Yudjá causado por la explotación y corrimiento que sufrieron debido a la extracción del caucho por parte de los brasileros al mítico derrumbamiento celeste, y traducir un discurso “subjetivo y no-occidental” a una categoría sociológica propia de nuestro entendimiento. De hecho la merma demográfica es aterradora: 2000 miembros en 1842, 40 en 1916 y la ínfima suma de 37 en 1950. Sin embargo la autora se niega a seguir esta tentadora y directa explicación derivada de una causalidad sociológica para señalar que en su opinión el “derrumbe demográfico no destruyó el sistema, sólo hizo que operara en una escala menor” (2005: 79). Así, y pese a que los miembros casi desaparecieron, su lógica de pensar y actuar no; planteo que se opone a las concepciones clásicas de aculturación y contacto interétnico.

Los Yudjá distinguen a los karai de sus otros vecinos también indígenas. Si ellos “son dueños” del río, sus vecinos los Abi “son dueños” de la floresta. Por ello, y aunque se tiene gran aprecio por la carne de caza, la pesca es la actividad que domina y no se acostumbra ambular por la selva en busca de alimento, pues en general se caza desde la canoa.

Para los Yudjá vivir en sociedad es ante todo promover comidas colectivas y cauinagems. Las diferentes modalidades de embriaguez, ligadas a la guerra, al chaman y al cauinagem, definen, según Lima, el problema de la comunicación entre categorías sociocosmológicas como un venir-Otro, y sugieren que ese devenir es tan indisociable de la socialidad ritual cuanto del chaman, quien ocupa una situación ambigua por excelencia. Ni vivo ni muerto, bueno y malo, hombre y animal, es el gran mediador entre los hombres, los espíritus y los animales, pues por su capacidad de transformarse puede viajar y establecer puentes de comunicación entre todos estos mundos. Pero es por esta misma ambigüedad que también tiene algo en común con el guerrero y el borracho, pues sobre ninguno de ellos se puede estar enteramente seguro de sus buenas intenciones para con la aldea.

El carácter altamente transformacional del mundo según la visión amazónica se evidencia también a partir de la comensalidad. Una de las preguntas de la autora es si, desde la perspectiva nativa, existe una diferencia fundamental entre comer personas y beber cauim; de si en una sociedad en dónde el perspectivismo reina y la antropofagia aparece como una posibilidad latente sea suficiente evidencia que no comer personas no es ser caníbal. Si el vocablo gente y un tipo de cauim se dice igualmente dubia, entonces postulados que utilizan los Yudjá tales como los Arupaya “comen gente” (dubia) contiene ambos significados. Por otro lado, los Yudjá afirman que, desde el punto de vista de los espíritus, el cauim es producido a partir del cadáver de una persona, y que posee propiedades nutritivas para los Yudjá. O sea que cuando los espíritus observan los cauinagems que los Yudjá realizan, ven que están comiendo seres humanos. Entonces, si desde el punto de vista humano están bebiendo mandioca fermentada, desde el punto de vista de los espíritus están bebiendo el producto de un cadáver, y por lo tanto serían, desde la perspectiva de los espíritus, caníbales.

Texto construido a partir de un extenso trabajo de campo en el que implicó, entre otras cosas, aprender la lengua, la autora no deja de admitir los problemas inherentes a la traducción, así como a la comprensión de las prácticas nativas. Admite incluso que los propios informantes le señalaron lo difícil que fue explicarle su cosmovisión y de “que mil cosas le fueron dichas por pura aproximación”. Por ello considera que la monografía es sólo una aproximación a la vida Yudjá. De lectura compleja, combina sus datos con un profundo conocimiento del debate amazónico. Creo que tiene al menos dos méritos que sobrepasan la pertinencia al área en cuestión. Uno es la crítica a la causalidad sociológica intentando en todo momento no hacer traducciones rápidas de los conceptos y prácticas nativas a nuestro sentido y creencia de lo que es la sociedad y la cultura. El otro es estar atento a qué pertenece a la naturaleza y qué a la cultura desde las perspectivas nativas, y no dar esta división como un a priori. Sobre este punto, en la etnografía reseñada es admirable la sofisticación que la autora despliega respecto a la importancia de pensar otras totalidades en grupos humanos en la que la distinción entre lo humano y lo animal, lo terrenal y el “más allá”, lo real y lo simbólico, no se encuentran divididos exactamente de la misma forma en que nosotros lo hacemos; y que esto no es un falso saber, sino que tiene consecuencias reales sobre la vida cotidiana de estas poblaciones, pues es el fundamento sobre el que constituyen su mundo de vida. Por último, creo que desde la academia argentina debiéramos valorar cómo en un contexto como el brasilero etnología y antropología social han conseguido, no sin conflictos, tolerarse mutuamente, contribuyendo ambas y por diferentes caminos, a la comprensión de la vida en sociedad.

Rolando Silla – CONICET, IDES. Departamento de Antropología, Facultad de Ciencias Sociales (UNCPBA). Avda. del Valle 5737, B7400JWI, Olavarría. E-mail:[email protected]

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