Obras filosóficas e políticas – ABU NASR AL-FARABI ABU NASR AL-FARABI (V)

ABU NASR AL-FARABI ABU NASR AL-FARABI. Obras filosóficas e políticas. Edição e tradução de Rafael Ramón Guerrero. Madri: Editorial Trotta/Liberty Fund, 2008, 252 p. Resenha de: LEITE, Thiago Soares. Veritas, Porto Alegre v. 54 n. 3, p. 204-205, set./dez. 2009.

Al-Farabi, o “Segundo Mestre” (al-mu‘allim al-tani), é um dos mais importantes filósofos medievais. É com ele que se inicia o processo de desenvolvimento a que a filosofia grega foi submetida no meio islâmico. Sua influência nas obras de ibn Sl n  a, ibn Ba jja e Maimônides é inegável. De igual importância é sua influência na filosofia medieval latina.

Al-Farabi é conhecido por adotar uma plotinização da metafísica aristotélica e tentar uma harmonização entre a filosofia platônica e a aristotélica, tentativa essa que encontramos presente, por exemplo, em Alberto Magno. Além disso, é de al-Farabi a famosa tese, e erroneamente atribuída a ibn-Sina, acerca da distinção real entre essência e existência, cuja importância para as discussões da metafísica latina medieval é por demais conhecida. Também encontra-se na obra do filósofo árabe a definição do homem como animal social e político, definição essa que ganharia destaque na filosofia de Tomás de Aquino.

Não obstante isso, al-Farabi é um virtual desconhecido para os leitores em língua portuguesa. O que dele foi publicado no Brasil é praticamente nada se comparado ao volume de traduções nas demais línguas européias.

O volume ora apresentado por Ramón Guerrero contribui para tornar al-Farabi mais conhecido entre nós brasileiros. Traduzidas para a língua espanhola, três são as obras apresentadas na edição. Todas podem ser classificadas como “filosófico-políticas” e possuem em comum a preocupação central nos temas da associação política e da melhor forma de comunidade, partindo sempre de uma perspectiva política.

A primeira intitula-se Libro de la Política (Kitab al siyas a al-madaniyya), também conhecida como Los principios de los seres (Mabad i’ al-mawyu d at ).

Divide-se em duas partes, a saber: De los principios de los seres e De la política.

Partindo do pressuposto farabiano, segundo o qual a felicidade só é alcançada mediante o conhecimento teórico da estrutura do universo e o agir concorde a ele, al-Farabl expõe os princípios dos seres, que são em número de seis: a causa primeira; as causas segundas; o intelecto agente; as almas; forma e matéria; substancias incorpóreas e substancias materiais. Feito isso, o filósofo pode, então, abordar os seres especificamente. A ordem é a seguinte: o ser primeiro; as causas segundas; o intelecto agente; os corpos celestes; os seres possíveis.

205 Terminada a parte metafísica, inicia-se a parte propriamente política.

Nela, al-Farabi aborda três tópicos: as associações próprias das cidades; a felicidade; os diferentes tipos de cidades.

Duas questões devem, por tanto, ser postas em relevo. A primeira, endógena ao pensamento farabiano, é a inserção da metafísica à política.

Com efeito, o conhecimento metafísico é condição de possibilidade da política, tal qual essa é o fim daquela. A segunda, trata-se do paralelo existente entre a Politica e sua obra mais conhecida, a Princípios das opiniões dos habitantes da cidade virtuosa (Mabadi’ ara ahl al-madl na al-fadila), paralelo esse já sinalizado por Ramón Guerrero em sua Introducción.

A segunda obra traduzida intitula-se Libro de la religión (Kitab almilla).

Se, em Politica e em Opiniões, al-Farabi definiu as condições de estabelecimento da cidade virtuosa, seu governo pelo filósofo e sua regência pela filosofia, em Libro de la religión, o filósofo árabe parece reconhecer que tal projeto carrega em si um quê de utopia e volta-se para a necessidade da religião na cidade virtuosa: ela é, com efeito, a única garantia que os cidadãos têm de obter a felicidade. Nesse sentido, al-Farabi investiga a natureza e as características que deve possuir a religião da cidade virtuosa. Dito de outra maneira, se, em Politica e em Opiniões, al-Farabi apresenta sua teoria sobre a formação da cidade virtuosa, em Libro de la religión, a investigação se dá acerca das regras e os princípios que o governante da cidade virtuosa deve conhecer e seguir.

A terceira e última obra traduzida, Artículos de la ciencia politica (Fusul [al-‘ilm] al-madani), trata-se, como o próprio título já indica, de uma coletânea de artigos colhidos nas obras de autores antigos. Seu conteúdo expõe, como era de se esperar em uma obra do tipo, diversos temas, tais como a causa primeira, a estrutura metafísica do universo, as características da cidade virtuosa, a definição de felicidade. Percebe-se, mais uma vez, a interligação entre metafísica e política no pensamento de al-Farabl. Por fim, resta dizer que a edição é muito bem cuidada. Tanto a introdução de Ramón Guerrero quanto sua tradução são ricamente anotadas. O volume contém também uma bibliografia selecionada, o índice onomástico e o analítico, ferramentas indispensáveis para um pesquisador.

Thiago Soares Leite

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Textos sobre poder, conhecimento e contingência – SCOTUS (V)

SCOTUS, João Duns. Textos sobre poder, conhecimento e contingência. Tradução, introdução e notas de Roberto H. Pich. Porto Alegre: Edipucrs/Edusf, 2008, 508 p. (col. Pensamento Franciscano, XI). Resenha de: LEITE, Thiago Soares. Veritas, Porto Alegre v. 54 n. 3, p. 202-203, set./dez. 2009.

Inserindo-se nas celebrações do VII centenário de falecimento de João Duns Scotus, vem a lume a obra João Duns Scotus. Textos sobre poder, conhecimento e contingência, compondo o décimo primeiro volume da já tradicional coleção Pensamento Franciscano.

Após haver traduzido o Prólogo da Ordinatio (JOÃO Duns Scotus. Prólogo da Ordinatio. Porto Alegre: Edipucrs, 2003, 456 p. – col. Pensamento Franciscano, V) e a questão 15 do livro IX das Quaestiones super libros metaphysicorum Aristotelis (Veritas 53/3 (2008), p. 118-57), o Prof. Dr. Roberto Hofmeister Pich (PUCRS) apresenta sua tradução das três versões dos textos de Duns Scotus sobre os temas “poder”, “contingência”, “conhecimento divino” e “liberdade”, a saber: Lectura I, d. 39-45; Ordinatio I, d. 38-48 (no lugar destinado à d. 39, encontra-se a tradução do apêndice A – Segunda parte da trigésima oitava distin203 ção e trigésima nona distinção) e Reportatio parisiensis examinata I, d. 38-44.

Como é sabido, Lectura I, d. 39-45 constitui-se na parte final do comentário ao livro primeiro das Sentenças de Pedro Lombardo, elaborado por Scotus com a finalidade de docência em Oxford. Já Ordinatio I, d. 38-48 representa a “ordenação” dos textos de Lectura com o objetivo, diríamos hoje, de publicação. Nesse sentido, os textos de Ordinatio seriam a revisão que Scotus iniciara em Oxford e continuara em Paris. Por fim, o terceiro bloco de textos traduzidos (Reportatio parisiensis examinata I, d. 38-44) reporta as anotações de aula de alunos e discípulos que ouviram as preleções de Scotus em Paris e, por ele, examinadas e aprovadas.

Tal coletânea consiste em um projeto único no mundo e tornar-se-ia um cânone no meio scotista mundial caso os textos latinos acompanhassem a tradução, o que caracteriza um primeiro demérito da edição. Pode ser considerado um segundo demérito a ausência de uma revisão mais detida.

Não obstante os problemas acima citados, o volume está repleto de méritos. O primeiro é o já citado fato de, nele, se encontrarem traduzidas as três versões dos textos de Scotus. O leitor que não esteja familiarizado com as obras da Scotus poderá se situar na coletânea de textos apresentada através do Prefácio, escrito por Pich.

Ao Prefácio, segue-se o segundo mérito do volume, a saber: um extenso estudo sobre os temas “contingência” e “liberdade”, no qual Pich, para explicar a tese do Doctor Subtilis sobre o indeterminismo da vontade, realiza uma descrição do que denomina “modo de causalidade do ato da vontade” e “modo de realidade do ato volitivo”. É também digno de nota a bibliografia apresentada ao fim do estudo por ser, ao que tudo indica, a mais atualizada sobre o tema.

Um terceiro mérito consiste na apresentação da estrutura de cada distinção traduzida. Tal modus operandi, que já se tornou característico das traduções de Pich, permite uma rápida visualização do modo como o assunto será desenvolvido por Duns Scotus.

Quanto à tradução, a competência de Pich é inegável. Seu conhecimento sobre os temas abordados por Scotus se faz ver ao longo da tradução, de modo que, por muitas vezes, o tradutor transfere uma clareza tal ao texto que seu original latino carecia. A fluidez da tradução é tamanha que um leitor sem acesso aos originais latinos dificilmente entenderá o porquê Scotus ser conhecido como o Doctor Subtilis.

Enfim, trata-se de uma excelente homenagem a esse filósofo tão pouco conhecido e estudado em nosso país.

Thiago Soares Leite

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