Racismo: história e historiografia / História Social / 2010

Introdução: a história social e o racismo

O tema que preside o dossiê desta nova edição da Revista História Social pode parecer corriqueiro para muitos, mas não é. Durante muito tempo, o racismo foi um objeto das ciências sociais e, sob a rubrica das “relações raciais” ou da “questão negra”, diversos estudos sobre o assunto foram realizados pela antropologia e pela sociologia. Os historiadores ficaram relativamente de fora do debate, salvo por algumas incursões na área da história intelectual e das ideias. Talvez o fato possa ser explicado pela intensa politização do tema, geralmente relacionado à necessidade de se responder questões candentes sobre as características da sociedade brasileira ou de relacionar a natureza das relações sociais no Brasil ao desenvolvimento do país. Enquanto os historiadores preocupavam-se mais com o processo de formação dessa sociedade, os estudiosos de outras áreas lidavam com temas candentes e aparentemente mais próximos dos dilemas sociais.

De um modo ou de outro, no entanto, sociólogos e antropólogos recorreram à história para lastrear suas interpretações. Gilberto Freyre, por exemplo, criticou as análises racistas que dominavam a cena política nas décadas iniciais do século XX, mostrando que a “predisposição do português para a miscigenação” e para a “colonização híbrida e escravocrata nos trópicos” havia levado o Brasil a relações raciais menos tensas e a valorizar o mestiço, figura-chave na formação da identidade nacional. Tais ideias, inovadoras nos anos 1930, logo se desdobraram na famosa tese da democracia racial brasileira e fizeram fortuna, lastreando-se sempre numa visão positiva do processo colonizador nessa parte da América. Seus críticos, especialmente aqueles que escreveram na década de 1960, como Florestan Fernandes, deslocaram a avaliação do fenômeno da colonização para as relações de poder inerentes à escravidão: invertendo as conclusões de Freyre, atribuíram à dominação e à exploração escravistas as condicionantes que haviam alijado os negros do mercado de trabalho, impedindo-os de se integrarem à sociedade de classes.

A última posição prevaleceu, e o racismo acabou sendo frequentemente explicado como um “legado da escravidão”: uma herança do passado colonial que sobreviveu por quase todo o século XIX, deixando marcas profundas na sociedade brasileira, como um pecado de origem. Essa visão da história contém pelo menos dois elementos distantes da perspectiva dos artigos que compõem o dossiê “Racismo: história e historiografia”. De um lado, toma a escravidão como um fato único, constituído de características específicas, sem que na sua constituição estejam presentes lutas, tensões e conflitos, sem que haja mudanças em suas características ao longo do tempo. De outro, o próprio racismo perde historicidade: ao se tornar um fato decorrente da escravidão, ganha certa naturalidade, constituindo-se como uma prática a ser denunciada, mas que está sempre remetida a outro tempo – uma incômoda permanência do passado.

Diferentemente, os artigos deste dossiê analisam questões específicas, em busca da compreensão dos embates entre os diversos sujeitos históricos e do modo como eles entendiam as circunstâncias nas quais estavam vivendo. A abordagem, característica da história social, faz com que, para compreensão da história do racismo, seja necessário repensar as relações entre escravidão e liberdade. Três textos ocupam-se desse tema, com contribuições importantes.

Ao abordar a experiência dos libertos ao longo do século XIX, Sidney Chalhoub mostra a dificuldade que senhores de escravos, políticos e autoridades policiais tinham em lidar com a liberdade daqueles que conseguiam a alforria. Se o Brasil possuía maiores taxas de alforria que outras nações escravistas, isso não significou uma distensão nas relações sociais; ao contrário. Na conjuntura da abolição do tráfico atlântico de escravos, o contingente de libertos vivia sob a ameaça da revogação da alforria, da reescravização e da escravização ilegal – práticas que se associavam a diversas restrições dos direitos de cidadania para esses homens e mulheres que haviam conseguido escapar da escravidão. Tais tensões cresceram ainda mais no momento da Abolição e logo depois dela. Walter Fraga e Wlamyra Albuquerque examinam esse período, mostrando como até mesmo as festas em torno da libertação dos escravos estavam repletas de preocupações e disputas a respeito dos destinos dos ex-escravos e como, nesse ambiente de mudanças e incertezas, a ideia de “raça” foi ganhando cada vez mais espaço.

Assim, mais que a escravidão ou a exploração escravista, era a liberdade, durante a vigência da escravidão e depois da abolição, que provocava tensões: as conquistas dos ex-escravos e suas reivindicações colocavam em causa as políticas tradicionais do domínio senhorial. Como se vê, há aqui uma nova maneira de se abordar a história da escravidão. Ao mesmo tempo, e por decorrência, o racismo deixa de ser um conjunto de ideias ou um “fato”, que pode ser linearmente explicado, para enraizar-se no terreno das relações conflituosas entre sujeitos historicamente situados, mudando ao longo do tempo. Deixa, portanto, de ser algo que ocorre depois da escravidão, ou está mecanicamente associado ao processo da abolição, para ser um processo inerente às tensões entre escravidão e liberdade.

O dossiê é composto ainda por três outros artigos, que exploram dimensões das abordagens mais recentes da história do racismo e seus desdobramentos. Petrônio Domingues ataca outro aspecto da “naturalização” do racismo – o que pressupõe que os negros são um grupo homogêneo, naturalmente irmanado, sem dissensos internos. Ao examinar as associações afro-paulistas de Rio Claro que lutavam contra o preconceito e a discriminação num contexto em que as políticas públicas fundavam-se no racismo científico, o texto nos mostra como o enfrentamento do racismo nem sempre se fez de um mesmo modo, com os mesmos objetivos. O texto de Jerry Dávila aborda um tema diametralmente diverso, ao analisar a inflexão do pensamento de Gilberto Freyre, quando foi chamado a se pronunciar sobre o apartheid sul-africano na década de 1950. A análise de um relatório produzido por Freyre e do modo como foi lido e avaliado naquele contexto internacional permite mostrar nuances na formulação das teses que se recusam a reconhecer a existência do racismo no Brasil. Por fim, mas não em último lugar, Robert Slenes atualiza o tema, ao mostrar o quanto a incorporação dos estudos africanistas é capaz de proporcionar uma alteração nos paradigmas tradicionais dos estudos na área das ciências humanas e sociais.

Esses três textos tratam de facetas diversas dos movimentos sociais ligados ao racismo. O exame mais cuidadoso das modalidades de luta contra a discriminação em contextos específicos é tão importante quanto a análise cuidadosa do modo como se desenvolveram as ideias que defendem a existência de uma harmonia racial no Brasil: é só por meio de estudos circunstanciados que conseguiremos entender como pensamentos, valores e projetos ganharam corpo e mobilizaram pessoas ao longo do tempo. É essa disposição de esmiuçar o tema em seus diferentes matizes, à procura dos pilares capazes de fundar diferentes propostas para a conformação das relações sociais no Brasil, que renova o estudo do tema e pode levar, também, a redimensionar o modo como compreendemos o quadro de disciplinas que compõe a área das ciências humanas.

A leitura de todos esses textos mostra o quanto é preciso desnaturalizar o racismo e as noções que muitas vezes têm servido para sua análise. A abordagem da história social, ao levar em conta os interesses em confronto e procurar examinar os sujeitos em seus contextos específicos, indica um novo caminho para o entendimento do tema, e propõe uma nova maneira de conceber a relação entre as várias áreas das ciências humanas. Como se pode ver, um tema instigante, tratado de forma bem pouco corriqueira. Aqui, a história não é um baú no qual se escondem explicações simplistas para as mazelas da sociedade brasileira, mas a matéria mesma que a constitui: por isso, o estudo de um tema como o do racismo é sempre uma atitude política – no passado, e no presente.

Silvia Hunold Lara – Professora Titular, Departamento de História, UNICAMP.


LARA, Silvia Hunold. Introdução. História Social. Campinas, n.19, 2010. Acessar publicação original [DR]

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