Os Açores na História de Portugal – Séculos XIX e XX | Fátima Sequeira Dias

1 A obra em apreço é fundamental para compreender a Economia Açoriana nos séculos XIX e XX. As suas características são dissecadas, em especial, quanto à ilha de São Miguel, principal motor do desenvolvimento económico do arquipélago.

2 A autora, professora catedrática da Universidade dos Açores, reuniu neste volume mais de uma dezena de estudos que evidenciam o seu perfeito domínio da pesquisa arquivística de fontes primárias e constituem peças essenciais à edificação da História Económica dos Açores.

3 A «Nota Liminar», com que abre o livro, constitui uma magnífica síntese da unidade que envolve os artigos, ocupados com a caracterização dos ciclos do modelo agro-exportador, dos serviços de navegação que se lhes associavam, de infra-estruturas como o porto artificial de Ponta Delgada e dos agentes que nalguma fase do processo exportador se destacaram. Dá-nos, ainda, o retrato de dois homens salientes na sociedade micaelense: um, oriundo de Aveiro, que emigrou novo para S. Miguel e veio a distinguir-se como comerciante interessado por actividades pouco desenvolvidas na ilha: banca, seguros, indústria. O outro, um grande historiador micaelense, prendeu a atenção da autora pela dimensão e variedade do património.

4 Porém, a caracterização dos ciclos exportadores da laranja e do ananás, esteios centrais da vida económica açoriana nos dois séculos em análise, é feita com observância da escassa repercussão que tiveram nas populações: a pobreza não foi erradicada.

5 Esta é uma tónica essencial na obra de Fátima Sequeira Dias, desde a sua tese de doutoramento, que ganhou o prémio internacional Recent Doctoral Research in Economic History atribuído à melhor tese apresentada em Universidades de todo o mundo ocidental entre 1993 e 1997: a preocupação com o bem-estar da população açoriana, expressa, tanto no seu labor de cientista como na militante intervenção cívica a pugnar pelo progresso cultural e económico da população do seu arquipélago. Situação exuberantemente reflectida no empenho em prestigiar e ver prestigiada a Universidade dos Açores, e em se manter actuante na terra que a viu nascer.

6 O «ciclo da Laranja», que enforma a Economia Açoriana do século XIX, é objecto de três importantes artigos. No primeiro, há criteriosa análise dos processos de cultivo, comercialização e exportação do citrino, sendo que nas duas últimas fases indicadas o comerciante-exportador estabelecido em Ponta Delgada – classe em que preponderavam cidadãos britânicos – tinha posição fulcral. O final do «período da laranja» – bem evidenciado por escassos 697 mil réis que a sua exportação rendeu em 1909 – é objecto de análise, tornando-se evidente terem os critérios de salvaguarda da qualidade, que impunha o produto no mercado britânico, sido postergados pela cupidez com que se aumentava a quantidade vendida acrescentando citrinos de baixa qualidade. A ganância falou mais alto e ajudou ao processo de deperecimento desta cultura.

7 A pretexto de «A decadência da “Economia da Laranja”» a autora traça um importante quadro da era de oitocentos: «a actividade agrícola constituía a base em que se firmava a riqueza micaelense e insular. A comercialização das produções agrícolas animava o sector import-export, fomentava as navegações de cabotagem, inter-ilhas, nacional e internacional, dinamizava o consumo, pressionava o alargamento e acessibilidade ao crédito, sustentava, enfim, a notabilidade dos terratenentes», mas «as benfeitorias na agricultura feitas pelos gentlemen farmer não conseguiram quebrar nem as inércias, nem os estrangulamentos de uma organização económica arcaica, rotineira e injusta na sua distribuição da riqueza». Findo o ciclo da Laranja, enquanto os proprietários rurais continuavam a exibir o seu «estilo de vida ostensivo, e o seu poder político» e a economia insular se afundava atingida, também, pela crise financeira de 1891/92, foram os comerciantes micaelenses a emergir como os grandes agentes da modernidade!

8 O que dizer da vastidão, variedade e profundidade da pesquisa realizada para escrever o texto «Que foi feito dos “Ingleses” do “Ciclo da Laranja” na ilha de S. Miguel? Factos e Hipóteses»? Fátima Sequeira Dias não se ocupou, apenas, dos mais afamados, estendendo a investigação mesmo àqueles que não chegaram a deixar descendência e a comerciantes de outras nacionalidades.

9 No artigo «A redescoberta das ilhas: a construção de um imaginário (a visão nem sempre “politicamente correcta” do viajante nas ilhas)» volta a manifestar-se a grande capacidade de investigação da autora, que, pacientemente, articulou as múltiplas observações de visitantes ilustres, de forma geral, depreciativas para a população micaelense e, mesmo, para a sua elite.

10 Ainda foi o «Ciclo da Laranja» – que percorre todo o século XIX açoriano – a animar os transportes marítimos e a contribuir para o financiamento das obras da importante infra-estrutura que foi o porto artificial de Ponta Delgada, cuja construção se iniciou em 1861 mas só veio a concluir-se em 1940. Dois interessantes artigos são-lhes consagrados.

11 A prosperidade permitida pela exportação da laranja e pela dinamização de tantos sectores, desde a produção do citrino até às várias tarefas associadas à preparação do produto a exportar, não foi suficiente para fazer despontar um sector industrial digno desse nome. Esta problemática é analisada em importante estudo que demonstra como apenas as actividades artesanais domésticas quase só alimentavam o auto-consumo, até que, já no final de oitocentos, surgiram as «fábricas de tabaco, de produção de álcool e de açúcar, de chá, de lacticínios e de cerveja», sectores que permanecem actuantes.

12 O «ciclo do Ananás» inicia-se, ainda, em meados do século XIX, sobrepondo-se, em parte, ao «da Laranja». Cultura forçada, obrigada a desenvolver-se em estufas para proporcionar à planta as condições próprias do clima tropical das regiões de origem, entrou pelo século XX, defrontando as adversidades de duas guerras mundiais, que, praticamente, lhe retiraram os mercados estrangeiros de exportação, os quais, no século XIX, eram os seus destinos de eleição. O artigo «O Ananás dos Açores: ascensão e declínio de uma “cultura forçada” que, de crise em crise, forçadamente tem sobrevivido» apresenta completa panorâmica desta produção agrícola vocacionada para a venda ao exterior, e que, além da «Economia» do gado bovino, foi o motor da vida económica micaelense de novecentos.

13 Outro artigo com projecção temporal no século XX é o que, ocupando-se das «Alfândegas nos Açores», caracteriza os vários períodos que, no arquipélago, conheceram desde o tempo do Marquês de Pombal até aos nossos dias.

14 «Algumas reflexões sobre a difusão da Instrução no concelho de Ponta Delgada, no século XIX» inicia-se com um denso ensaio sobre a História do Crescimento Económico, em que emerge a desenvoltura com que Fátima Sequeira Dias, formada na Escola Historiográfica, se move nos domínios da Ciência Económica e do Pensamento Económico. O quadro apresentado para a Instrução em Portugal, em geral, para os Açores, em particular e, mais em particular, ainda, para São Miguel, no século XIX, tem o negrume próprio das causas perdidas. O subdesenvolvimento gera o subdesenvolvimento e era impossível esperar algo de grandioso de uma sociedade em que a elite não ia além de «quinhentas pessoas»! No entanto, talvez o ensino no Liceu Nacional de Ponta Delgada não fosse tão mau como tudo leva a crer, quando se verifica a quantidade e qualidade de alunos que forneceu à Universidade de Coimbra. Aliás, a autora incentiva a que se faça a competente pesquisa aprofundada.

15 A maioria dos artigos conta com abundante informação quantitativa, correctamente interpretada. Estudiosa voraz, a autora disponibiliza manancial imenso de bibliografia de qualidade, associada à variada temática abordada na obra.

16 Last but not least, o artigo inaugural – «”Ponta Delgada: de ermo a cidade”. Agenda para uma reflexão sobre a História dos Açores com particular incidência no exemplo micaelense» – apresenta notável programa de acção para a abordagem científica do estudo da História Económica dos Açores.

17 Fátima Sequeira Dias, com a autoridade de principal especialista desta matéria, suscita um vasto conjunto de questões a radicar no dualismo da sociedade insular, apenas um pouco mais notório do que o verificado no continente português, na mesma época. É certo existirem algumas especificidades aberrantes, como a da proibição da livre circulação de mercadorias, no arquipélago e deste para o continente, que só foi revogada por uma lei de 1970!

18 Mas o elenco de linhas de pesquisa que apresenta é muito estimulante e assegura que, havendo vontade de prosseguir as suas directivas, a História Económica dos Açores pode vir a ser, a muito breve prazo, um dos domínios mais frutuosamente estudados na historiografia nacional.

António Alves Caetano – Economista.


DIAS, Fátima Sequeira. Os Açores na História de Portugal – Séculos XIX e XX. Lisboa: Livros Horizonte, 2008. Resenha de: CAETANO, António Alves. Ler História, n.59, p. 225-228, 2010. Consultar a publicação original

História Comparada das Mulheres – COVA (LH)

COVA, Anne (Dir.). História Comparada das Mulheres. Lisboa: Livros Horizonte, 2008. Resenha de: BALTAZAR, Isabel. Ler História, n.57, p. 159-161, 2009.

1 A História das Mulheres tem merecido a atenção dos historiadores, conscientes do muito trabalho a realizar. Muitos centros de investigação, no estrangeiro, um pouco por todo o mundo, como também em Portugal, dedicam-se a esta área, preenchendo lacunas na história que o tempo veio mostrar essenciais para mostrar a verdadeira identidade humana, composta de homens e de mulheres. Num verdadeiro impulso investigativo, as mulheres, que já eram protagonistas da História, ganharam, agora, maior visibilidade. Como escreveu Gisela Bock «Uma história que ignora metade da humanidade, não é sequer meia história, pois sem as mulheres a história não faria justiça tão-pouco aos homens» (p.8).

2 Para divulgar esta história muito contribuem, também, as editoras que permitem veicular o resultado das investigações académicas, muitas vezes, pouco divulgadas. É, por isso, de elogiar, no caso concreto, os Livros Horizonte, que tiveram a ousadia de correr contra uma cultura de massas, proporcionando livros de inquestionável qualidade. Trata-se da colecção A Mulher e a Sociedade, que acaba de publicar a História Comparada das Mulheres, na sequência de outros interessantes e apelativos títulos como, por exemplo, Nem Gatas Borralheiras, nem Bonecas de Luxo. As mulheres portuguesas sob o olhar da História (séculos XIX-XX), da autoria de Irene Vaquinhas, o primeiro da colecção, e outra “Cabelos à Joãozinho”. A Garçonne em Portugal nos anos Vinte, de Gabriela Mota Marques, o que antecede este agora apresentado.

3 Esta obra, tradução em português de um livro publicado originalmente em inglês nos Estados Unidos, sob a direcção de Anne Cova com o título Comparative Women’s History: New Approaches, editado por Columbia University Press (2006), mereceu a actualização bibliográfica na edição portuguesa. Curiosamente, a História Comparada das Mulheres: Novas Abordagens é o resultado de um workshop realizado na Universidade Aberta intitulado «Como escrever uma História Comparada das Mulheres?», com o propósito de «estimular o debate e dar um novo ímpeto à História das Mulheres» (p.11).

4 Anne Cova revela que «a ideia deste livro surgiu à medida que me envolvia num estudo comparado das federações feministas em França (Conseil national des femmes françaises), Itália (Consiglio nazionale delle donne italiane), e Portugal (Conselho nacional das mulheres portuguesas) durante a primeira metade do século XX» (p.11).

5 A introdução tem o sugestivo título «As promessas da História Comparada das Mulheres». Que promessas? Diz Anne Cova: «Este volume pretende abrir novas perspectivas sobre a escrita da História comparada das mulheres. Procura examinar as promessas que tal empreendimento encerra sob pontos de vista diferenciados, ao mesmo tempo que confronta as dificuldades que se lhe deparam. O ponto de partida e cerne deste livro é a questão: Como escrever uma História comparada das mulheres?» (p. 13). Estas linhas programáticas avisam o leitor do objectivo deste estudo: a necessidade de comparação na História das Mulheres.

6 Estamos perante uma história cruzada, uma história transnacional, perspectivas complementares na abordagem da História das Mulheres ou da História do Género, designações para o mesmo tipo de abordagem. Por outro lado, está, ainda, pressuposta a ideia de que a História das Mulheres «é essencial para uma correcta compreensão da História em geral» (p. 13). Por fim, a tentativa de empreender «novas abordagens», sugerindo a ideia que «a globalização exige o desenvolvimento de novas perspectivas na História comparada das mulheres, que permitam melhorar a nossa compreensão do passado, e reescrever uma História comparada que inclua as mulheres» (p.14). A este propósito refira-se a excelente e paradigmática obra sobre o assunto da autoria de Gisela Bock, Women in European History, ou a já clássica História das Mulheres no Ocidente, coordenada por Georges Duby e Michelle Perrot, que nortearam os paradigmas desta agora apresentada. Françoise Thébaud tem insistido na utilidade da perspectiva comparada ou «numa História que faça uma análise cruzada com práticas e debates estrangeiros; a História das mulheres como um fenómeno internacional, tem beneficiado tanto de trocas interculturais» (p.16).

7 Outros estudos comparativos são apresentados por Anne Cova sobre o estado da arte nesta temática, tanto na Europa como numa perspectiva mais global, tornando esta introdução verdadeiramente indispensável como ponto de partida para novas abordagens. Para além dos estudos sobre o assunto, não podemos deixar de elogiar a excelente teorização sobre a questão das fontes e os problemas inerentes a qualquer estudo comparado. Adverte a autora: «Como se faz comparação? Se qualquer projecto de pesquisa deve começar por justificar as delimitações geográfica e cronológicas, então este exercício pode ser mais complicado nos estudos comparados em virtude das dificuldades que a comparação levanta. É essencial estar muito atenta(o) à contextualização de qualquer fenómeno, quaisquer que sejam as sociedades que irão ser comparadas. Analisar as semelhanças e as diferenças é comum a todo o trabalho comparativo. Estabelecer as convergências, pontos comuns, e semelhanças que existem entre os casos sob comparação, ao mesmo tempo que se analisam diferenças, divergências, singularidades, e especificidades, leva-nos a dar mais importância a quê? Ou dito de outro modo, as diferenças são mais esclarecedoras do que as semelhanças, ou vice-versa?» (p.25).

8 O primeiro estudo, da autoria de Karen Offen, é sobre «Erupções e Fluxos: reflexões sobre a escrita de uma história comparada dos feminismos europeus, 1700-1950», mostrando a ausência do feminismo no estudo ou no ensino da História. Pretende a autora que esta situação seja alterada: «Esta História negligenciada ou esquecida – ou o que é pior, reprimida –, que a(o)s estudiosa (o)s feministas agora reclamam, é central para a nossa compreensão da história política e intelectual, assim como da história social, económica e cultural de praticamente todas as sociedades europeias» (p. 29). Porquê? A história dos feminismos vem preencher uma lacuna na História, dando visibilidade ao que existia na sociedade, sem passar à História o que, afinal, está na essência da sociedade. Trata-se de recuperar fontes primárias de documentação escrita, ou seja, de olhar de dentro para fora. Fazer a história dos feminismos é diferente de fazer a História das Mulheres ou das Organizações femininas; é tentar decifrar a face oculta dos factos, ler o que está implícito na História.

9 Bonnie S. Anderson conta-nos a história vivida na década de 1970 quando trabalhava numa História narrativa das mulheres na Europa. Era a história de mulheres que pretendiam uma igualdade cívica, política e social. Com a consciência da dificuldade em captar toda a realidade, a «História comparada vale bem o esforço. Sem ela, nunca descobriríamos as semelhanças e as diferenças que são essenciais para saber se iremos viver toda(o)s junta(o)s em harmonia e de forma produtiva neste próximo século» (p. 59).

10 Em «Erro de tradução? A História das Mulheres numa perspectiva transnacional e comparada», Ann Taylor Allen chama a atenção para o facto da história comparada estar, ainda, a dar os primeiros passos e para a sua real importância, também para a História do Género. Tanto para o investigador como para o professor de História global. Por último, Susan Pedersen explica as convergências e divergência da História comparada e a História das Mulheres. Um estudo que problematiza e faz pensar: «Haverá uma afinidade particular entre o método comparativo e a área da História das Mulheres? Acredito que sim e que essa relação tem a sua própria história» (p. 79). É necessário cruzar saberes e construir pontes para perceber melhor a realidade.

11 Eis uma verdadeira lição sobre o método de fazer História comparada, útil a qualquer aprendiz, mas que também faz pensar, pelos problemas que levanta, o especialista. Uma obra de referência.

Isabel Baltazar – FCSH – UNL

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