De metalúrgico a presidente: o Brasil visto a partir da biografia de Lula | John D. French

John D. French Imagem Brasil Popular
John D. French | Imagem: Brasil Popular

Em um momento no qual a construção de perspectivas sobre a história e o destino do Brasil voltam-se novamente para Luiz Inácio Lula da Silva, conhecido como Lula1, representações sobre a vida do ex-presidente trazem questionamentos acerca de sua incessante capacidade de mobilizar afetos e disputas interpretativas. Neste contexto, sua trajetória pública e privada remanesce atual e relevante para a compreensão dos impasses do presente e o que se pode esperar do futuro. Esse é o desafio assumido pelo último livro do brasilianista John D. French, que traz uma abordagem surpreendentemente dinâmica para a biografia: Lula and His Politics of Cunning, publicado em outubro de 2020.

O autor é professor de História na Duke University, com atuação também nas áreas de estudos internacionais comparados, africanos e afro-americanos. Com uma vasta e produtiva carreira, French coordena, nos últimos anos, o Duke Brazil Initiative, tendo sido diretor do Latin American Center, também em Duke, e coeditor da Hispanic American Historical Review por cinco anos. Leia Mais

1989: história da primeira eleição presidencial pós-ditadura | Cássio Augusto Guilherme

O livro intitulado “1989 história da primeira eleição presidencial pós-ditadura”, de Cássio Augusto Guilherme narra os acontecimentos políticos ocorridos no ano de 1989. Inicialmente a obra busca mostrar alguns episódios que a Europa enfrentava, especificamente, a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, o que representava uma nova reconfiguração geopolítica entre os países do Leste europeu e uma reorganização deles, gradualmente em nações capitalistas “livre agora, do perigo comunista” os Estados Unidos passam a ter as Américas central e do Sul como área de influência mais direta impondo o seu modelo neoliberal de política econômica. Isso é o que veremos no livro ora resenhado que apresenta pelas páginas do jornal O Estado de S. Paulo (OESP) a defesa desse tipo político e econômico para o Brasil.

A obra estuda como foi possível um presidente civil, José Sarney, permitir que a abertura política brasileira tenha sido tutelada pelos militares; intelectuais, trabalhadores, artistas, mas também à classe política. Revela que o ex-presidente José Sarney “ganha” a presidência da República dos militares para aos poucos implementar algo como uma democracia, mas sempre vigiada e coercitiva com os tanques às portas dos quartéis e os generais ameaçando a nova ordem. Sarney cumpre seu papel histórico de passar a faixa presidencial a Fernando Collor de Mello, o candidato do jornal OESP. Leia Mais

1989: história da primeira eleição presidencial pós-ditadura | Cássio Augusto Guilherme

O livro intitulado “1989 história da primeira eleição presidencial pós-ditadura”, de Cássio Augusto Guilherme narra os acontecimentos políticos ocorridos no ano de 1989. Inicialmente a obra busca mostrar alguns episódios que a Europa enfrentava, especificamente, a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, o que representava uma nova reconfiguração geopolítica entre os países do Leste europeu e uma reorganização deles, gradualmente em nações capitalistas “livre agora, do perigo comunista” os Estados Unidos passam a ter as Américas central e do Sul como área de influência mais direta impondo o seu modelo neoliberal de política econômica. Isso é o que veremos no livro ora resenhado que apresenta pelas páginas do jornal O Estado de S. Paulo (OESP) a defesa desse tipo político e econômico para o Brasil.

A obra estuda como foi possível um presidente civil, José Sarney, permitir que a abertura política brasileira tenha sido tutelada pelos militares; intelectuais, trabalhadores, artistas, mas também à classe política. Revela que o ex-presidente José Sarney “ganha” a presidência da República dos militares para aos poucos implementar algo como uma democracia, mas sempre vigiada e coercitiva com os tanques às portas dos quartéis e os generais ameaçando a nova ordem. Sarney cumpre seu papel histórico de passar a faixa presidencial a Fernando Collor de Mello, o candidato do jornal OESP. Leia Mais

Prensa tradicional y liderazgos populares en Brasil – GOLDSTEIN (FH)

GOLDSTEIN, Ariel. Prensa tradicional y liderazgos populares en Brasil. Raleigh, NC: Editorial A Contracorriente, 2017. Resenha de: FIDELIS, Thiago. A imprensa brasileira pela ótica argentina: Vargas e Lula nos periódicos liberais. Faces da História, Assis, v.5, n.2, p.322-328, jul./dez., 2018.

Originária da tese defendida em 2015, no Programa de Ciências Sociais na Universidad de Buenos Aires, a obra Prensa tradicional y liderazgos populares en Brasil, de Ariel Goldstein, se propôs a fazer uma dupla comparação, transitando tanto pela temporalidade (governo Vargas, nos anos de 1950, e governo Lula, nos anos 2000) quanto pelos periódicos pesquisados. O objetivo do livro é comparar como dois jornais brasileiros, O Estado de S. Paulo (OESP) e O Globo retrataram dois períodos históricos distintos: o último período do governo de Getúlio Vargas (1951/1954) e o primeiro mandato de Luís Inácio Lula da Silva (2003/2006).

Como indicado na introdução da obra, a comparação entre os líderes ocorre não necessariamente pelas similaridades entre eles, mas sim pelas condições de seus governos, tendo em especial destaque a relação com a imprensa. Tanto OESP quanto o Globo foram jornais que, assim como praticamente toda a chamada grande imprensa (jornais de maior tiragem no período), fizeram oposição a ambos os presidentes nesses períodos. As publicações selecionadas, embora opositoras a ambas as lideranças, possuíam suas peculiaridades e, mesmo na crítica, mantiveram as diferenças das linhas editoriais e das abordagens na construção das notícias.

Contextualizando ambos os períodos (em especial o governo Vargas), Goldstein demonstrou vasto domínio da literatura sobre a temática, desenvolvendo um diálogo com os principais autores sobre o período e também, utilizando alguns dados obtidos em entrevistas com personagens de ambos os jornais (embora tais dados não tenham sido decisivos para a análise em si). Além do prólogo (escrito pelo professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo, Lincoln Secco) e da introdução, a obra foi dividida em 5 capítulos, estruturando os tomos pelos períodos dos governos (com a exceção do primeiro, que faz uma análise da relação entre imprensa e política no Brasil), diluindo a comparação entre os jornais nasanálises de ambos os governos.

No primeiro capítulo, após uma análise bastante sucinta sobre a imprensa brasileira (com uma ênfase um pouco maior no fim do século XX e início do XXI), o autor fez uma breve apresentação sobre os dois principais jornais, enfatizando como se posicionaram nos dois períodos, também chamando a atenção para o período da ditadura e do processo de redemocratização. Embora a apresentação dos periódicos seja bem estruturada, houve uma discussão muito rápida em relação às visões e opiniões de seus signatários (no caso do Globo, a trajetória de Roberto Marinho foi um pouco mais explorada), o que dificulta um pouco a compreensão da ideologia dos jornais para os leitores e leitoras que não acompanham o tema. Em linhas gerais, as perspectivas que permeiam as ideologias e a visão de mundo dos periódicos acabaram sendo mais explorados nos capítulos subsequentes.

Os quatro capítulos posteriores seguiram uma mesma estruturação: o dois e o quatro contextualizaram, respectivamente, os governos Vargas e Lula, sendo que o três e o cinco exploraram, diretamente, a visão dos periódicos em relação aos governos.

Principalmente nesses últimos capítulos, as comparações foram bastante equilibradas, chamando a atenção para o fato de que o OESP, tanto nos anos de 1950 quanto no início do século XXI, possuía uma visão mais incisiva e radical contra os mandatários do que o GLOBO, embora esse também tenha aumentado suas críticas conforme os eventos considerados como “crise” se desdobraram.

No segundo capítulo, o autor chamou a atenção para a proximidade entre Vargas e a imprensa, uma vez que o político via a importância de manter uma boa relação com esse campo, aproximando-se de figuras como Assis Chateaubriand, um dos megaempresários da imprensa nos anos de 1930 (p. 81). Outro destaque refere-se à relação feita entre os dois períodos governamentais, já que Getúlio governou o país de 1930 a 1945, sendo os últimos oito anos de maneira extremamente autoritária através do Estado Novo e, para entender melhor a forte oposição feita pelos jornais em geral, é imprescindível levar em conta tal aspecto, uma vez que boa parte dessas publicações foi afetada pela censura no período (p. 84).

Não à toa, nos anos de 1950, OESP referia-se à Vargas não como presidente, mas sim como ex-ditador. Embora o GLOBO não tenha sido afetado diretamente pela censura nos anos de 1940, também estruturou oposição contra o mandatário, embora em uma perspectiva conciliadora (pelo menos, em um primeiro momento). Goldstein também chamou a atenção para a criação da publicação Ultima Hora (UH), capitaneada pelo jornalista Samuel Wainer, até então empregado de Assis Chateaubriand que, após um furo de reportagem, praticamente “lançou” a campanha de Getúlio em 1950, aproximando-se muito do presidente a partir de então e estruturando um diário que buscasse defender o governo e o legado varguista frente às principais publicações da época (p. 81-83).

As diferenças entre os jornais, no início do governo, ficam evidentes no próprio resultado eleitoral e na posse de Vargas: no caso do OESP, o periódico criticou vivamente a população que votou no ex-ditador, indicando que a falta de educação e instrução no país era o principal fator de compreensão do motivo depor que uma figura autoritária e sem preparo ser tão popular, sendo que a publicação paulista pede abertamente para a posse de Vargas ser impedida pelo Exército, explicitando uma visão bastante elitista e autoritária sobre o processo (p. 90); em compensação, o GLOBO criticou tal postura e, mesmo fazendo oposição ao presidente eleito, defendeu o processo eleitoral e o direito de tomar a posse, já que tinha sido eleito democraticamente (p. 90).

O final desse capítulo e início do seguinte foram intercalados por dois aspectos importantes: do ponto de vista da movimentação do governo, Goldstein chamou a atenção para as dificuldades tanto externas quanto internas durante o governo Vargas.

Internamente, o presidente buscou proximidade com seus opositores (em especial com a UDN, principal partido contrário ao legado varguista, do qual OESP era muito próximo) para uma maior governabilidade, indicando enormes dificuldades para medidas de conciliação (como a criação de órgãos estatais, como a PETROBRÁS); externamente, a consolidação da Guerra Fria com o confronto na Coréia e a não participação do Brasil acabou deteriorando as relações com os EUA, que aumentaram a desconfiança em relação ao estatismo e nacionalismos de Vargas (p. 94-95).

Além disso, o autor também chamou a atenção para uma personagem de extrema importância no período, Carlos Lacerda. Proprietário do jornal Tribuna da Imprensa, o jornalista não possuía cargo parlamentar, mas era o principal opositor de Vargas na imprensa e o nome de maior influência dentro da UDN, utilizando seu periódico para ataques frontais ao presidente e também à UH, que manteve sua postura de defesa do governo durante todo seu mandato (p. 94-95).

O terceiro capítulo começou indicando como Lacerda, dono de uma ótima oratória, ganhou espaço nas redes da rádio Globo e Tupi (também de posse de Assis Chateaubriand, que voltara-se contra Vargas) para verbalizar o que fazia em seu jornal, aumentando a virulência contra o governo (p. 102). Entre os vários acontecimentos que despertavam a oposição de ambos os jornais, a nomeação de João Goulart como ministro do Trabalho, em 1953, aumentou a fervura oposicionista contra Vargas, já que Jango (como era popularmente conhecido) era apontado como o herdeiro político do presidente, sendo uma espécie de perpetuador do varguismo no futuro, ideia considerada imperdoável pelo GLOBO e, principalmente, pelo OESP(p. 103).

Em relação ao governo Vargas, Goldstein não seguiu a ordem cronológica dos acontecimentos, fazendo vários cortes temporais, ainda que quando analisou os jornais e suas coberturas, estruturou os fatos conforme eles ocorreram. Entre os tópicos analisados, é importante destacar a constante ideia do OESP de que o presidente ameaçava, a todo o momento, um novo golpe de Estado nos moldes do Estado Novo (seu diretor, Júlio de Mesquita Filho, fora preso e exilado durante o primeiro período do governo Vargas) e indicava que qualquer ação do Executivo tinha, como plano de fundo, tal perspectiva (p. 108). O GLOBO também demonstrava certa desconfiança em relação às possíveis ações de Vargas, mas em uma escala bem menor (p. 108).

Principalmente no início do ano de 1954, ambos os jornais aumentaram ataques contra o governo, sendo que Goldstein destacou que a maior mudança na abordagem dos periódicos ocorreu por conta do GLOBO, que passou a radicalizar mais em seus editoriais e notícias contra Vargas, enquanto OESP manteve a postura extremamente crítica contra o presidente e seus defensores (p. 126-128). Um outro aspecto importante é a movimentação do GLOBO contra a UH, uma vez que, conforme as críticas da imprensa, em geral, contra Vargas aumentavam, a defesa do periódico de Samuel Wainer também intensificava-se a favor do presidente. Como OESP era de São Paulo, não havia textos tão intensos contra o diário de Wainer uma vez que, embora fosse defensor do presidente, não era um concorrente. No entanto, essa publicação oferecia perigo real para a publicação carioca, uma vez que ambos os jornais eram os de maior circulação no Rio de Janeiro (p. 129-130).

Em linhas gerais, Goldstein indicou que, em ambas as publicações, os três termos mais utilizados para fazer críticas a Vargas por ambos os jornais teriam sido: “comunismo, subversión y república sindicalista” (p. 156). Em relação ao primeiro ponto, as medidas nacionalistas do governo Vargas pesavam de maneira negativa, indicando que ele próprio era um comunista (questão mais explícita ainda no caso de Jango) ou que, se ele não era um, abria espaço para o país para os verdadeiros comunistas com suas ações irresponsáveis (p. 168).

O fantasma da subversão estava presente a todo o tempo, segundo ambos os jornais (em especial OESP), para instigar a população contra as instituições, seja pelo aumento de 100% do salário mínimo no início de 1954, seja pelos discursos de proximidade de Jango com as sindicais e movimentos populares (p. 159).

Por fim, o fantasma da República Sindicalista era construído a partir da movimentação de João Goulart com algumas lideranças trabalhistas, bem como das semelhanças entre ações varguistas e do presidente da Argentina, Juan Carlos Perón, que era um dos expoentes de perspectivas utilizadas no governo e que aterrorizavam ambas as publicações, em especial OESP (p. 160).

Além disso, OESP, por vezes, incitou o Exército a agir para impedir as manobras de Vargas e Jango, indicando que o primeiro deveria deixar o poder e, caso não quisesse, os militares deveriam intervir para que isso acontecesse (p. 182). Embora o GLOBO não fosse tão explícito, nos últimos meses do governo a publicação carioca também passou a radicalizar seu discurso nesse sentido (p. 183).

Por fim, no início de agosto de 1954, Carlos Lacerda sofreu um atentado em frente à sua residência, sendo que um militar que o acompanhava, Rubens Vaz, morreu na ação. Embora, a primeiro momento, não ficou claro quem era o mandante, toda a culpa recaiu sobre Vargas, e ambos os jornais radicalizaram (ainda mais) o discurso contra o presidente: OESP, desde o dia do atentado, acusou frontalmente o mandatário de ser o responsável; já o GLOBO foi mais cauteloso, aumentando as críticas apenas na medida em que as investigações caminhavam para o envolvimento de membros da guarda pessoal de Getúlio no assassinato (p. 191-196).

Momentos antes do suicídio, ambos os jornais insistiam na renúncia de Vargas como o único caminho a ser seguido (p.203-204). Após a morte do mandatário, o GLOBO mudou a abordagem em relação ao presidente, suavizando as críticas e valorizando os aspectos positivos que ele tinha (p. 213-214); já o OESP, em compensação, fez uma análise bastante objetiva do desaparecimento de Getúlio e manteve a linha ácida ao governante, fazendo críticas ao seu legado e dando ampla cobertura ao novo governo, formado pelo então vice, Café Filho (p. 217).

No capítulo quatro, há uma breve abordagem sobre o histórico de Lula, indicando sua origem de migrante nordestino e sua estruturação política no sindicalismo, bem como o crescimento de sua imagem no processo de redemocratização brasileira, nos anos 1980 (p. 241). Levando em conta o pleito em 2002, Goldstein chamou a atenção para o fato de que, principalmente, com a mudança apresentada no processo eleitoral (no qual Lula, diferentemente dos três pleitos anteriores, apresentou uma face mais conciliadora e racional, buscando amenizar sua imagem anterior, que seria mais “radical”), ambas as publicações mantiveram as fortes críticas que estruturavam ao Partido dos Trabalhadores (PT), desde sua fundação, nos anos de 1980, mas relativizaram as críticas a Lula e passaram a elogiar, sobretudo, seu caráter conciliador, colocando-o como alguém capaz de trazer os segmentos sociais que seu partido representava para o poder sem promover uma ruptura na ordem social (p. 246-252).

A nomeação de Antonio Palocci como ministro da Fazenda também foi bastante elogiada, uma vez que o político demonstrava interesse em realizar uma política de austeridade econômica, sem gastos excessivos (sobretudo, com as questões sociais) e procurando manter as contas em dia (p. 249-250).

Dentre os assuntos de grande vulto debatidos durante o primeiro mandato de Lula no capítulo 5, Goldstein chamou a atenção para os seguintes: a votação da Reforma da Previdência, o caso do Mensalão e o processo eleitoral de 2006. Em relação ao primeiro ponto, a ação de Lula foi bastante elogiada por ambos os jornais, uma vez que a reforma possuía uma perspectiva bastante próxima às políticas econômicas ortodoxas dos anos de 1990, acabando com “regalias” (como indicaram ambas as publicações) tais como a aposentadoria de servidores públicos com valores integrais, o pagamento de impostos de aposentados, o estabelecimento de tetos de salários para os servidores federais, entre outras (p. 264).

Ao capitanear essas mudanças e levá-las ao Congresso, tanto OESP quanto GLOBO elogiaram imensamente Lula, indicando que, de fato, a imagem de um líder radical ficou para trás no processo eleitoral e que, no início do governo, demonstrava sua face conciliatória e bastante positiva para o país (p. 264-266). No entanto, mantiveram a postura crítica ao PT, sobretudo por um grupo do partido não ter concordado com a reforma, sendo que esses membros (nomes como a senadora Heloísa Helena e os deputados João Fontes, Babá e Luciana Genro) foram expulsos da agremiação. Logo, a dissociação entre Lula e PT continuou marcando as páginas de ambas as publicações (p. 266-267).

No entanto, essa perspectiva encerrou-se em 2005, com a denúncia feita pelo presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Roberto Jefferson, sobre um esquema de corrupção liderado por membros do Executivo para a compra de votos de componentes do Legislativo. Goldstein não fez uma discussão ampla de como as publicações retrataram o chamado Mensalão em si, mas sim na forma como as publicações retrataram Lula durante e após o processo. Ambos os jornais (em especial OESP) romperam com a ideia estruturada, no processo eleitoral e início do governo, de Lula como um líder conciliatório e acima das divergências e dos possíveis “dogmas” de seu partido, passando a aproximá-lo com as qualidades negativas do PT e, conforme o processo eleitoral aproximou-se, as publicações representaram-no como uma liderança ainda pior do que vinham pintando-o (p. 272-274). Chamando-o de populista e de chavista (explorando intensamente a associação com Hugo Chávez, presidente da Venezuela e um dos principais expoentes da esquerda latino-americana), OESP e GLOBO, cada um ao seu modo, passaram a estruturar uma visão bastante negativa do presidente: a publicação paulista, desde as primeiras denúncias do Mensalão, passou a caracterizar Lula de maneira extremamente negativa, enquanto que GLOBO tratou o processo com mais cautela em um primeiro momento para, em fins de 2005 e início de 2006, passar a também atacar constantemente o mandatário nacional (p. 275-279).

Várias comparações foram relembradas, por Goldstein, entre as temporalidades distintas. No processo eleitoral de 2006, OESP retomou o discurso crítico da qualidade do voto no Brasil, indicando que a falta de instrução e de qualidade nas opções do eleitorado brasileiro era um problema bastante sério para o país, uma vez que essa falta de um olhar mais sofisticado para o processo eleitoral poderia ser uma arma para a reeleição de Lula (p. 290). Já GLOBO também seguiu perspectiva parecida com o período Vargas, realizando, em um primeiro momento, uma análise mais moderada, buscando os dois lados da notícia e dando espaços parecidos para ambos. No entanto, a proximidade do processo eleitoral fez com que o jornal carioca aumentasse suas críticas ao presidente, equiparando seus textos ao do OESP (p. 300). Além disso, também utilizou de forma vasta o elemento das caricaturas, com ênfase para as publicações de Chico Caruso.

Ainda em relação ao processo eleitoral, com a liderança de Lula nas pesquisas, os ataques dos jornais ficaram mais frontais, sobretudo, após a divulgação de um dossiê, que teria sido organizado por membros do PT, em São Paulo, contra o candidato ao governo do Estado, José Serra. Após tal movimentação, a associação entre Lula, PT e corrupção ficou ainda mais forte em ambas as publicações, além da maior valorização de seu principal oponente, o ex-governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (p. 299-300).

Nos tópicos finais do último capítulo, Goldstein retomou as três temáticas exploradas e passou a aprofundar alguns pontos. No caso da Reforma da Previdência (p.306-307), em um primeiro momento, ambas as publicações elogiaram o “pulso firme” do PT nas expulsões dos parlamentares, ainda que mantivessem os ataques ao partido.

No tocante ao caso do Mensalão e ao processo eleitoral, a abordagem contra Lula e o PT foi muito intensa do ponto de vista negativo. No caso do OESP, como salientado por Goldstein, a linha acusatória foi mantida desde o começo: sempre com textos superlativos e fatalistas (assim como no período Vargas), em alguns textos os editoriais do jornal paulista indicavam o governo Lula como o mais corrupto da história do país (p. 319).

Já em relação ao GLOBO, as mudanças já indicadas foram bastante visíveis, além de chamar a atenção de um outro ponto: a diversidade de opiniões entre os colunistas.

Embora a maioria desses colunistas seguisse a linha do jornal carioca (Goldstein citou, algumas vezes durante o livro, as colunas do jornalista Merval Pereira como exemplo para demonstrar esse aspecto), havia nomes que também apontavam pontos distintos da linha editorial (nesse ponto, o autor citou as colunas de Luís Fernando Veríssimo como exemplo), relativizando e muitas vezes discordando da opinião majoritária da publicação.

Por fim, destacamos dois pontos abordados pelo autor para reforçar alguns princípios não estruturados no restante do texto: a relação entre o PT e o Movimento dos Sem Terra (MST), e a questão do programa Bolsa Família. Em relação ao primeiro, houve uma objeção mais forte por conta do OESP, associando o MST ao terrorismo (p. 329), sendo que GLOBO tratou de maneira um pouco mais amena, embora também aumentasse as críticas conforme o caso do Mensalão foi se desenrolando (p. 332). Já em relação ao Bolsa Família, ambos os jornais estruturaram a ideia de que o governo utilizou essa política pública como forma de compra de votos para a manutenção não somente de Lula, mas do projeto de poder do próprio PT (p. 355).

Concluindo, a obra do argentino Ariel Goldstein, ao fazer a comparação entre temporalidades distintas e com dois jornais bastante próximos do ponto de vista ideológico, indicou as características em comum que podem ser avaliadas a partir dessa trajetória. Fazendo uma reflexão mais ampla, é possível identificar aspectos distintos: no tocante às temporalidades distintas, embora com aspectos divergentes, o autor assinalou que ambas as publicações viam governos de caráter popular como um problema, uma vez que essas perspectivas costumam “quebrar” a tradição de mandatos com caráter eminentemente elitistas (p. 376).

Embora, nos dois governos, GLOBO tenha tido uma postura mais benevolente com ambos os políticos, em um primeiro momento, OESP possuía uma ideia extremamente crítica, sobretudo com Vargas. Nos dois governos existiram acusações de corrupção e ações consideradas nacionalistas e até comunistas, mas com desfechos distintos: enquanto o desenrolar do governo Vargas terminou de maneira trágica e com a morte do presidente, no caso do primeiro mandato de Lula a movimentação, mesmo que truncada, levou à reeleição do mandatário.

Além disso, é importante pontuar o papel da imprensa nesse processo: enquanto no governo Lula não houve intenso conflito entre as publicações e nenhum escândalo envolvendo membros da mídia em si (sendo a maioria voltada contra o presidente e com poucas opções com grande tiragem), durante o mandato de Vargas a tensão na imprensa foi grande, sendo que o principal opositor ao mandatário foi Carlos Lacerda, protagonista do ato final do mandato do político gaúcho, além das questões envolvendo a UH (na qual o GLOBO esteve mais envolvido).

Por fim, a obra Prensa tradicional y liderazgos populares en Brasil é de extrema importância para pensar não somente sobre as perspectivas históricas, mas também sobre o papel da imprensa na política, bem como as problemáticas de ações de cunho populares, sendo implantadas em uma sociedade profundamente marcada pela desigualdade social e pela criação de mecanismos para que essas sejam mantidas.

Thiago Fidelis –Doutor em Ciências Sociais pela Unesp, campus Araraquara e pela Universidade de Coimbra (Portugal).

Doutorando em História pela Unesp, campus Assis. E-mail: [email protected]  Acessar publicação original

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Sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador – SINGER (NE-C)

SINGER, André. Sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Resenha de: MIGUEL, Luis Felipe Limites da transformação social no Brasil. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.95, Mar 2013.

No primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006), o cientista político e jornalista André Singer ocupou a função de porta-voz da presidência da República. No segundo mandato, de volta ao mundo acadêmico, colocou-se na posição de intérprete do “lulismo”, buscando entender algo que, para ele, é mais do que a simples adesão a um líder carismático: é um projeto político complexo, baseado no apoio da massa de excluídos e voltado para a superação da miséria sem o enfrentamento dos privilégios. Apresentado em artigos que causaram razoável polêmica, o argumento está agora consolidado no livro Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador, que reúne os três textos antes publicados e acrescenta a eles uma introdução e um capítulo inéditos. Como posfácio, o autor inclui uma versão modificada do memorial que apresentou ao concurso para livre-docência na Universidade de São Paulo, mas que – à parte desvelar sua relação afetiva com o ideário original do Partido dos Trabalhadores – pouco soma ao livro.

Essa vinculação, no entanto, não é irrelevante. No início do livro, Singer faz o elogio ritual da “objetividade científica”, garantindo que o trabalho não é contaminado por suas preferências e afetos políticos. Evidentemente, não é assim – e não há nenhum demérito nisso. Os sentidos do lulismo tem a ambição de mostrar que, no PT de hoje, que abraça Paulo Maluf e se entrega gostosamente às práticas da política tradicional brasileira, ainda sobrevive o compromisso popular e mesmo socialista dos primeiros anos. Não se trata de negar as mudanças sofridas pelo partido, nem o caráter conservador delas, mas de enquadrá-las numa narrativa em que aquilo que, à primeira vista, parecia ser oportunismo ou capitulação se torna peça de um projeto, muito moderado, é verdade, mas orientado decididamente na direção da mudança do país.

A tese principal do livro é que o “reformismo fraco” do lulismo não é o abandono, muito menos a traição, e sim a “diluição” do “reformismo forte” do petismo de antes. O reformismo diluído lulista evita a todo custo o confronto com a burguesia, optando por políticas que, na aparência, não afetam quaisquer interesses estabelecidos. Tal opção não se deve, ou não se deve principalmente, ao jeito matreiro e ao pendor acomodatício do ex-presidente, como a imprensa gosta de afirmar. É fruto, por um lado, da chantagem que os proprietários fizeram nas campanhas presidenciais do pt, desde a ameaça aberta de desinvestimento em 1989 até a elevação exagerada do câmbio em 2002. Lula aprendeu que não deve mexer com o capital. Por outro lado, a diluição do reformismo reflete a compreensão de que o maior contingente do eleitorado brasileiro – o “subproletariado”, segundo o conceito que o livro busca na obra de Paul Singer – deseja um Estado ativo no combate à pobreza, mas que não ponha em risco a manutenção da “ordem”.

O subproletariado reúne aqueles que não conseguem vender sua força de trabalho pelo valor necessário para sua própria reprodução e que formariam cerca de metade da população economicamente ativa do Brasil. Singer discute, com algum cuidado, a opção pelo conceito, em vez de falar em “excluídos” ou mesmo na “ralé” dos livros de Jessé Souza. É o gancho para sua defesa de uma análise das disputas políticas focada nas classes sociais, que parte da observação – correta – de que, ao deixar esse eixo de lado, a ciência política se torna insensível a elementos centrais do conflito de interesses na sociedade. A ambição é mostrar que as decisões eleitorais acompanham as clivagens de classes. No entanto, o argumento é enfraquecido pelo fato de que, em boa parte da análise, voto classista é tratado como equivalente de voto econômico.

O ponto é intrincado porque, na percepção de Singer, o subproletariado tem como único projeto deixar de existir, isto é, transformar-se em proletariado. Ele deseja ser incorporado ao mercado formal de trabalho, receber salários que garantam um padrão mínimo de consumo e gozar das garantias que o Estado concede a esses trabalhadores. O livro observa, com razão, que a “nova classe média”, tão badalada, é na verdade formada por neoproletários, sejam eles operários tradicionais da indústria ou empregados dos escalões inferiores do crescente setor de serviços. São setores intermediários, sim, porque abaixo deles permanece o subproletariado, mas estão longe de possuir as características associadas às classes médias propriamente ditas.

No meio disso tudo, as classes, protagonistas da narrativa do livro, não se caracterizam por quaisquer antagonismos – que é o que permite a mágica do lulismo, de dar aos pobres sem tirar dos ricos. Como se fosse o avesso da percepção de E. P. Thompson, de que as classes sociais se formam como efeito das lutas que ocorrem no interior da sociedade, aqui a classe surge pela identificação que algum outro agente político faz dos desejos e necessidades de um aglomerado de pessoas. Essa visão explica porque Singer problematiza tão pouco o apego à “ordem” por parte do subproletariado. A ojeriza à desordem, que significa na verdade qualquer política de enfrentamento do capital, explica por que o subproletariado foi historicamente a base eleitoral da direita, por que ele se converteu ao lulismo ao longo do primeiro mandato de Lula e por que tentativas de mobilizá-lo de outra forma, como a buscada pelo MST, não obtiveram êxito mais do que parcial. Mas permanece, ela mesma, inexplicada.

Seja como for, foi a sensibilidade de Lula para o programa dessa camada (um Estado atuando em favor dos mais pobres, sem confrontar a ordem) que permitiu o realinhamento eleitoral de 2006, quando o presidente trocou parte do eleitorado petista tradicional, baseado nas classes médias urbanas mais escolarizadas, pela massa de subproletários. A tese do realinhamento é polêmica, como Singer mesmo indica no livro, mas os dados são eloquentes quando mostram a mudança na base eleitoral dos candidatos presidenciais do PT em 2006 e 2010, em comparação com as disputas anteriores.

A necessidade de manter a ação governamental dentro dos limites da “ordem” tem consequências quanto ao ajuste do foco das políticas. Singer observa, com razão, que o reformismo fraco tem como meta a superação da pobreza, ao passo que o reformismo forte buscava a superação da desigualdade – e que as duas coisas não confluem necessariamente. É essa observação que permite colocar em sUSPeita a tese, central ao livro, da continuidade do programa petista, apesar da diluição de seu componente reformista. A diluição implicou a substituição do horizonte almejado, que deixa de ser um país sem desigualdade para ser um país sem pobreza, como diz o slogan do governo Dilma Rousseff.

Muito mais do que a convivência e o amálgama entre as duas “almas” do pt, como diz Singer, a socialista aguerrida dos primórdios e a moderada de agora, é possível ver a consolidação de uma hegemonia interna, com a marginalização dos setores mais principistas do partido – por mais que, como aponta o livro, muitas de suas teses permaneçam brilhando nas resoluções dos congressos petistas. É uma mudança que se refere ao abandono do projeto não só de transformação socialista das relações de produção, mas também de renovação das práticas políticas, com o aprofundamento da democracia e a revalorização da experiência popular. Quanto a esse quesito, o autor evoca a realização das conferências nacionais de políticas públicas, embora se veja constrangido a reconhecer que seus resultados práticos são “discutíveis”1. Mas é indiscutível a adesão do PT ao “toma lá, dá cá” que caracteriza o jogo político brasileiro.

O questionamento da tese da continuidade entre o petismo inicial e o lulismo não significa que a obra de Singer não faça uma análise competente da gestão do Estado brasileiro desde 2002. A redução da miséria e da pobreza, fruto de uma ação política que a priorizou, por meio de medidas como Bolsa Família, aumentos reais do salário mínimo e ampliação do crédito consignado, além de programas que evitaram ativamente o desaquecimento da economia, como o Minha Casa, Minha Vida, é um fato de enorme relevância política e social, valioso por si só. Mas Os sentidos do lulismo não avança na investigação sobre o impacto da diminuição da pobreza nos padrões de distribuição da riqueza.

De fato, os dados têm mostrado uma redução significativa da desigualdade de renda no Brasil desde o início do governo Lula. Mas os números dizem respeito apenas aos rendimentos do trabalho; dito de outra forma, as disparidades salariais estão diminuindo, sobretudo pela redução do contingente dos que são severamente sub-remunerados – o que já é uma vitória em si, já que a discrepância entre maiores e menores salários, no Brasil, sempre foi obscena. Para críticos das administrações petistas, entre os quais Francisco de Oliveira, o dado esconde o fato de que, ao mesmo tempo, a parcela abocanhada pelo capital, na riqueza nacional, estaria crescendo. Ou seja, os mais pobres seriam beneficiados por políticas compensatórias, ao mesmo tempo que a burguesia auferiria lucros recordes. Singer cita brevemente dados que contradizem essa interpretação e mostram que, na verdade, a participação do trabalho na renda nacional estaria aumentando. Em nota de rodapé, admite que os dados são controversos e que é possível que esteja ocorrendo o contrário. Uma interpretação razoável, baseada nas contas nacionais, parece ficar no meio termo: a repartição da renda entre capital e trabalho tem ficado estável desde o início do século XXI, com o rendimento do capital correspondendo a cerca de três quintos do total.

Se é mesmo assim, os limites da política lulista são bem mais claros do que a narrativa de Singer acaba por indicar. Fato que ecoa uma das ausências importantes do livro, que é a plataforma política do capital. O subproletariado é, evidentemente, personagem importante, tendo encontrado quem realize por ele seu programa. O proletariado seria beneficiado objetivamente com a redução do exército industrial de reserva, o que lhe colocaria em condições mais vantajosas nas disputas salariais. E as classes médias aparecem como as antagonistas, perdendo tanto o sentimento subjetivo de distinção social, que a distância em relação aos mais pobres concedia, quanto as vantagens objetivas advindas do acesso a uma multidão de pessoas dispostas ao subemprego, uma realidade apreendida pela infeliz boutade do ex-ministro Delfim Netto sobre a empregada doméstica como “animal em extinção”. Pouco se fala, porém, de como os interesses da burguesia se expressam. Seguramente porque, no jogo político brasileiro de hoje, que o lulismo não questiona, os interesses do capital são intocáveis.

As vantagens do operariado sob o lulismo também merecem uma atenção maior. André Singer concentra toda a interpretação no efeito que a redução do subemprego tem na correlação de forças dos embates por melhores salários e condições de trabalho. Cita, como sustentação, a elevada proporção de greves que têm obtido reajustes reais para suas categorias profissionais. Mas não leva em conta o fato de que o perfil das categorias paradas mudou, com uma concentração no setor público, bem como o alcance de suas reivindicações. Embora a mudança do perfil da economia brasileira seja apontada, com o peso crescente das commodities e decrescente da produção industrial, o reflexo desse fato na ação política da classe operária não é discutido.

Ao tratar dos governos anteriores, é lembrado o esforço de Fernando Henrique Cardoso para quebrar a espinha do sindicalismo, com sua atuação na greve dos petroleiros de 1995, que seguiu a melhor cartilha thatcherista. Mas o PT também trabalhou na direção do esvaziamento do movimento sindical – e dos movimentos sociais em geral – com políticas de cooptação de suas lideranças, engessamento de suas agendas e sufocamento de suas demandas. Conforme o célebre conselho de François Andrieux a Napoleão, “on ne s’appuie que sur ce qui résiste“: só nos apoiamos sobre o que resiste. Ao dobrar a resistência dos movimentos sociais no Brasil, o PT enfraqueceu sua própria base de apoio. Sua atual incapacidade de mobilização ficou patente no recente julgamento do chamado “mensalão”. Mas não se trata de um efeito colateral ou inesperado. O enfraquecimento dos movimentos sociais que alimentaram a experiência do PT em sua fase heroica representou a garantia dada ao capital de que a inflexão moderada, pragmática ou conservadora, expressa em documentos como a “Carta aos brasileiros” da campanha de Lula em 2002, não seria letra morta. Minando a possibilidade de ação efetiva dos setores que sustentariam um projeto de transformação mais radical, garantiu-se a credibilidade das promessas feitas de manutenção das linhas gerais do modelo de acumulação vigente. Por isso, a afirmação de que o lulismo é vantajoso para a classe operária precisa ser matizada com outros elementos.

Da mesma forma, o entendimento de que os programas de inclusão social do período lulista se tornaram um componente inarredável do consenso político no Brasil parece ter muito de wishful thinking. É verdade que o lulismo avançou sobre as bases eleitorais tradicionais dos partidos de direita e os obriga a uma reorganização do próprio discurso. Nem por isso é preciso aceitar ao pé da letra as afirmações – anódinas e inconvincentes – dos candidatos do psdb, de que vão ampliar os benefícios do Programa Bolsa Família. A verdade efetiva por trás delas só será verificada quando retornarem ao poder. É mais significativa sua guinada para um discurso moralista, que, quando voltado para as classes médias urbanas, ganha um matiz udenista e foco na probidade administrativa, e, quando voltado para os mais pobres, assume a forma do fundamentalismo cristão, voltando-se contra os direitos das mulheres e dos homossexuais. As campanhas de José Serra em 2010 e 2012 são exemplos eloquentes.

A mobilização eleitoral desse tipo de discurso ainda não rendeu os frutos esperados e restam dúvidas sobre o êxito da “americanização” da disputa política no Brasil. Mas é um elemento importante para entender os processos em curso, na redefinição das posições dos principais partidos. Da forma que Singer coloca, o lulismo também teria promovido uma elevação do patamar do consenso político, incluindo o compromisso com a superação da pobreza, o que de alguma maneira até poderia compensar a perda da promessa de uma nova forma de fazer política, que o PT representava. Levando em conta a guinada reacionária no discurso do psdb, os termos da equação se alteram. E nada disso é incompatível com uma proposta de fazer a análise dando centralidade à clivagem de classes: a disputa ideológica faz parte da luta de classes, que não se resume ao aspecto econômico.

Ao final do livro, o leitor não fica inteiramente convencido de que o lulismo é um projeto, realmente, e não a expressão apenas de sensibilidade política e senso de oportunidade. A noção de cesarismo ou bonapartismo, que Singer mobiliza mais de uma vez ao longo da obra, encontra dificuldades para se adaptar a uma democracia eleitoral moderna, mas apresenta vias de interpretação interessantes, sobretudo se lembramos que são soluções conservadoras para impasses na reprodução da dominação.

Escrito com clareza – e justamente por isso se abrindo de maneira franca ao debate -, Os sentidos do lulismo é uma contribuição valiosa para o entendimento da política atual no Brasil. Trata-se de um processo complexo, eivado de ambiguidades e ainda em curso. André Singer ajuda a pensá-lo para além das oposições esquemáticas e dicotomias grosseiras que se apresentam em muitas das análises mais correntes. Entre ganhos sociais que não podem ser negados e o abandono, também inegável, de ideais mais exigentes de sociedade, permanece em aberto o saldo do experimento lulista.

Nota

1 SINGER, A. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 122.         [ Links ]

Luis Felipe Miguel – Professor titular de ciência política na Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê).

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