História Social do Trabalho / Revista Trilhas da História / 2018

Em seu mais recente livro, “O Privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era digital” (lançado pela Boitempo em 2018), o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes faz a genuína pergunta a respeito de quem seja a classe trabalhadora hoje, enfrentando o que considera dois mitos. Ele discorda, inicialmente, de que a classe trabalhadora seja a mesma daquela que emergiu no bojo da Revolução Industrial e se desenvolveu no século XX. Na sequência, Antunes invalida a ideia propagada de que tais mudanças do operariado, embora muito significativas, sejam sinônimos da perda da centralidade e da sua potência transformadora. Para ele, o trabalho se mantém como força propulsora do ser social e a classe trabalhadora “não se restringe somente aos trabalhadores manuais diretos, mas incorpora a totalidade do trabalho social, a totalidade do trabalho coletivo que vende a sua força de trabalho como mercadoria” (2018, p. 88). Na sua 14ª edição, a Revista Trilhas da História, com o dossiê História Social do Trabalho, assevera essa concepção, porque apresenta o trabalho como fio condutor da história, ao passo que evidencia a diversidade com que ele se expressa na contemporaneidade.

Não se trata de um debate importante e exclusivo ao campo intelectual. Na recente greve dos caminhoneiros, em maio de 2018, colocamos à prova a fluidez das concepções e a fragilidade das perspectivas pós-modernas ao experimentarmos o caos econômico gerado pela paralisação de um setor da produção material, a distribuição de mercadorias, com consequências sociais e políticas imediatas que, ao mesmo tempo, perturbaram as idiossincrasias de classe, pelo caráter policlassista do movimento e dos seus apoiadores, fazendo-nos perguntar o mesmo que Ricardo Antunes. Afinal, quem é a classe trabalhadora hoje e quais suas potencialidades históricas? Em plena organização do dossiê, naquele momento, em meio ao recebimento de um número considerável de textos, comemoramos a latência e atualidade do debate e vislumbramos seu largo alcance, entendendo que a contribuição historiográfica seja primordial para o seu fortalecimento, ainda que, sendo portadores de poucas repostas, lançamos luz às novas perguntas. Manter a centralidade do trabalho se revela, aqui, como essência inovadora para os questionamentos e para reinvenções que atendam a já velha necessidade de superação da exploração do trabalho, e do próprio capital.

Adotando uma ordem cronológica às temporalidades dos objetos presentes nos artigos, o dossiê possui seis textos e tem início com o trabalho de Camila Menegardo Mendes Jogas, “Mutualismo e fronteira racial: Sociedades de trabalhadores negros e Conselho de Estado no Rio de Janeiro do século XIX”. O referido texto inaugura esta edição com o exemplar da ampliação das abordagens dos estudiosos do trabalho, uma vez que apresenta as interfaces dos critérios raciais no tocante aos processos de legalização das sociedades mutualistas de trabalhadores no século XIX.

Em seguida, compõe o dossiê um ensaio de graduação intitulado “Pela educação e pelo trabalho: anarquistas e o ensino racionalista na Primeira República brasileira” de Israel de Silva Miranda, trazendo ao debate a educação anarquista e o uso de opúsculos como meios de comunicação utilizados pelos militantes no contexto das duas primeiras décadas do século XX. Não obstante o apresentarmos nesta sequência, o texto está situado na sessão dos ensaios de graduação.

O texto “A ‘campanha contra o desperdício’ nas páginas da Revista do Serviço Público: trabalhadores e administração pública no Estado Novo (1937- 1945)”, de Fernanda Lima Rabelo, apresenta o processo de disciplinarização de trabalhadores do serviço público na política varguista, operada no bojo do discurso de modernidade e de eficiência, tendo como fonte a Revista do Serviço Público.

Outro ensaio de graduação presente no dossiê é de Michele Pires Lima, intitulado “Mulheres de Trottoir: Trabalhadoras do sexo nos jornais de Manaus (1967-1970)” que nos revela, a partir da análise do jornal “A Crítica”, a articulação do discurso moralista e higienizador que acompanhou os novos arranjos de ocupação urbana na Manaus do final dos anos 1960. Assim como o texto de Israel Miranda, este ensaio se enquadrou no dossiê, mas está localizado na sessão de ensaios de graduação.

No quinto texto a compor o dossiê, “Trabalho como fundamento de cidadania e aprendizado político: O operariado português no propulsar da Revolução dos Cravos (1968-1974)”, Pamela Peres Cabreira revela a dinamicidade do operariado português no contexto do Estado Novo e anterior à revolução dos Cravos, lançando mão de reflexões thompsonianas e das ocorrências de greves e paralisações no período para contrapor-se à ideia de que a classe trabalhadora portuguesa esteve passiva durante o regime autoritário.

Maria Celma Borges e Vitor Wagner Neto de Oliveira encerram a sessão do Dossiê História Social do Trabalho com o artigo “E.P. Thompson e a História Social: contribuições para o estudo da questão agrária no Pontal do Paranapanema -SP”, propondo um diálogo entre os conceitos teóricos discutidos pelo historiador britânico, como “consciência de classe” e ”experiência”, com as lutas de trabalhadores sem-terra já no início do presente século, utilizando-se de entrevistas orais.

A sessão de artigos livres é composta por cinco textos. O primeiro, de Bruna Morrana, “‘Costumes em Comum’, de Edward Thompson: perspectivas de abordagem”, dialoga com o dossiê, embora não trate especificamente de conceitos relativos ao trabalho e trabalhadores. A autora aponta os debates teóricos que compõem esta obra de Thompson e destaca a contribuição do historiador. Em seguida, o artigo de Daniel Caires, “A respeito de maneiras de falar e ver o Maranhão: paradigmas em disputa e seus reflexos na historiografia” apresenta as disputas de narrativas e identidades regionais, bem como os embates paradigmáticos sobre a prática historiográfica maranhense. Em “Chiquinha Gonzaga e o teatro musical brasileiro no século XIX”, Mona Bento analisa aspectos importantes das obras produzidas pela musicista, relacionando seu projeto de constituição da música popular brasileira ao contexto oitocentista, por meio da análise da opereta A corte na roça. Na sequência, o artigo de Cledivaldo Donzelli e Alessandra Nadai, “Local de memória e ensino superior: as possibilidades educacionais” demonstra a necessária a aproximação acadêmica com os espaços de memória a partir da análise de resultados de oficinas pedagógicas em um museu da cidade de Penápolis / SP, bem como de narrativas resultantes das experiências de estágios dos alunos do Curso de Pedagogia, tocantes aos temas e espaços de memória. A sessão de artigos livres se encerra com o texto “Possibilidades para o Professor de História quando atua no Ensino Religioso”. Nele, Marcelo Pires apresenta o cenário da educação pública brasileira destacando a situação do professor de História que atua no Ensino Religioso e a partir da experiência do estado do Rio Grande do Sul. Para isso, lança mão de documentos oficiais do estado, bem como de decisões jurídicas do STF que expressam as disputas ideológicas presentes nas decisões que permitiram a disciplina de forma confessional.

Na sessão de ensaios de graduação, apresentamos mais quatro textos. Em “Miguel Hidalgo: um homem e seus significados” Rebeca Capozzi analisa dois murais pintados por artistas mexicanos que retratam a figura de Miguel Hidalgo: Mural Independencia (1937) de Jose Clemente Orozco, e o Retábulo de la Independência (1960-1961) de Juan O’Gorman. No segundo ensaio, “O sonho por uma República: considerações acerca do movimento separatista da Província da Bahia”, Luan Silveira aponta aspectos da Sabinada, movimento separatista ocorrido em Salvador entre 1837 e 1838. Em sequência, no texto “Um olhar peculiar para a natureza: os Guarani e suas crenças”, Renata Silva aborda algumas concepções do povo Guarani em relação à natureza, por meio do documentário “Flor Brilhante e as cicatrizes da pedra” (2010), de Jade Rainho. A sessão de ensaios de graduação ainda possui o texto de Matheus Silva, “Do início da República até os anos 30: como traçar o perfil do ensino de História?”, em que apresenta um comparativo de narrativas da história ensinada, no período entre 1889 e 1930.

Esta edição da Revista Trilhas da História conta ainda com a resenha de Carlile Lanzieri e Francieli Marinato, da obra de Gilberto Crispino, “Disputa de un cristiano con un gentil sobre la fe cristiana”. Buenos Aires: Centro de Investigaciones Filosóficas, 2017, 50p (Prólogo, tradução e notas por Natalia Jakubecki)

Desejamos, a todos e todas, uma boa leitura.

Mariana Esteves de Oliveira – UFMS / CPTL

Paulo Pinheiro Machado – UFSC


OLIVEIRA, Mariana Esteves de; MACHADO, Paulo Pinheiro. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.7, n.14, jan. / jun., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Terra, trabalho e conflitos | Mundos do Trabalho | 2012

Em 1981, foi publicado o livro História da agricultura: combates e controvérsias, de autoria de Maria Yedda Leite Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, que se tornou um divisor de águas nos estudos sobre a história agrária no Brasil. A obra era o resultado de um projeto de pesquisa sobre a história da agricultura brasileira desenvolvido por Linhares, a partir de 1976, no curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrícola da Fundação Getúlio Vargas. Na década do período mais difícil da Ditadura, Linhares havia instituído um programa de estudos acerca da realidade agrária do país. A publicação de História da agricultura, em 1981, coincidiria com o início do processo de abertura política, durante o governo do último presidente militar, João Figueiredo. O livro era, assim, o resultado de uma trajetória marcada pelo engajamento político e por um otimismo manifesto em relação às questões que envolviam o problema agrário do país. Linhares e da Silva buscavam mostrar as múltiplas possiblidades de investigar o campo brasileiro, ajudando o leitor com informações – hoje tão acessíveis – sobre as características e as possibilidades de pesquisa dos documentos diretamente relacionados à estrutura fundiária, e sobre as fontes para o estudo das estruturas sociais, as de natureza cartorial, as de natureza econômica e políticoinstitucional, e os documentos oficiais, como atas, correspondências e legislações. O livro era ,desse modo, uma janela que se abria para o universo rural, desconhecido da grande maioria dos jovens universitários que haviam sido criados na Ditadura. Inseridos num período historiográfico cuja marca era a utilização do método quantitativo, eles desejavam contribuir para a consolidação de metodologias e modelos capazes de estimular os estudos sobre o tema no Brasil. Passados muitos anos após a criação daquele campo científico, ainda estão presentes muitas das questões inauguradas pelos autores. Leia Mais