Radicalismos políticos / Oficina do Historiador / 2016

O começo do novo milênio refreou já amplamente as esperanças que a história tivesse chegado ao seu fim, ou seja que a derrota do último grande totalitarismo do século XX deixasse as portas abertas à construção de uma ordem internacional regida pelos princípios liberais e pelos modelos democráticos representativos. Ao contrário dessas prospecções, esses primeiros dezesseis anos de Século XXI testemunharam, mais uma vez, o ingresso na história mundial do conceito de crise; crise de longo curso e em diferentes dimensões: ideológica, econômica, geopolítica.

Essa crise tomou, com certeza, novas faces a nível internacional – hoje o radicalismo religioso dentro do paradigma de um alegado choque de civilizações ou a instabilidade financeira global – mas provocou, a nível nacional, fenômenos constantes na história do homem: a entrada de novos atores sociais e políticos, a produção de dinâmicas de conflito, a transferência, de uma parte a outra de um mesmo continente ou até de continentes diferentes, de ideias e práticas políticas frequentemente traduzidas segundo os sabores locais, a construção de memórias e discursos funcionais à transmissão dessas experiências. Como em todos os momentos de crise e de confrontação, essas irrupções tomam a forma do radicalismo face à realidade existente e correm o risco de serem encaixadas nas grandes narrativas históricas, diluindo, assim, as características peculiares que as tornam tão ricas do ponto de vista epistemológico mesmo em referência ao fenómenos mais amplos.

O intuito do dossiê temático Radicalismos Políticos é exatamente o de retomar a longa e prolífica linha historiográfica da crise, do conflito e da radicalização no século XX sem solução de continuidade com o novo milênio. Esse objetivo é perseguido através da apresentação de casos de estudo cuja matriz política é condutível às grandes famílias políticas da modernidade – a direita e a esquerda – mas cujas peculiaridades geográficas e identitárias permitem apurar ainda mais o conhecimento das tão diferentes facetas com que essa dicotomia clássica se encarnou nas duas margens do Atlântico.

Embora os casos selecionados respeitem a divisão dos sujeitos entre direita e esquerda, tanto os organizadores como os autores estão conscientes da hibridação que os diferentes sujeitos políticos sofrem em época de convulsões ideológicas e políticas. Dessas hibridações há sinais claros nos textos apresentados. O acento, contudo, é posto no caráter diacrônico dos casos: uma série de experiências surgidas ao longo de todo o século XX, com particular referência às épocas de maior convulsão: os anos trinta e os anos sessenta, mas também nesse breve começo de novo milénio.

Na frente das direitas, particular destaque é dado ao principal movimento fascista da América Latina, a Ação Integralista Brasileira (AIB). Rodrigo Santos de Oliveira e Michelle Vasconcelos do Nascimento apresentam o processo de construção, por parte da AIB, da própria identidade na contraposição entre valores sociais integralistas e erros ideológicos dos adversários, legitimando, assim, o próprio caráter regenerativo e resolutório da crise nacional. O ímpeto identitário dos integralistas é reforçado pela análise de Alexandre Oliveira e Vinícius Ramos sobre a peculiaridade da AIB como movimento fascista que, à diferença do fascismo italiano, resistiu o mais possível à laicização do Estado, à construção de uma religião civil e à secundarização da religião católica como factor de mobilização das massas.

A ponte entre as duas margens do Atlântico é reconstruída por Pedro Ivo Tanagino que, no seu estudo, apresenta o mito conspiratório da AIB, cujas raízes e utilização como factor de mobilização resultam centrais nos movimentos nacionalistas de massa de entreguerras. Essa diferenciação do fascismo brasileiro face ao modelo original europeu encontra prelúdios nas especificidades doutrinárias dos intelectuais conservadores latino-americanos face aos europeus. Em particular, Luiz Mário Costa apresenta o trabalho dos primeiros anos do século XX de dois destacados intelectuais contra-revolucionários: o brasileiro Gustavo Barroso e o português Alfredo Pimenta. O intuito de desmontar a suposta fraternidade intelectual luso-brasileira, tomando como indicador a polêmica entre os dois mestres de pensamento sobre um tema central para as direitas – o Império – cujas dimensões do heroísmo e da missão civilizadora marcam o discurso dessa família política ao longo de toda a sua trajectória de declínio no século XX.

A analise das direitas nas margens lusófonos do Atlântico e na primeira metade do século é acompanhada pela investigação das congêneres e contemporâneas na América hispânica. Em particular, Olga Echeverría apresenta as direitas argentinas e uruguaias perante a consolidação dos regimes fascista e nacional-socialista na Europa. A autora refere, em particular, o efeito de radicalização que o nazi-fascismo exerceu nalgumas dessas direitas latino-americanas, descortinando, assim, aquele processo recorrente de marginalização das facções radicais face às moderadas mais aptas a colaborar com os partidos mainstream do arco da governação. Também nesses casos de estudo, a tônica é posta na diferença e particularidade dos sujeitos analisados, sublinhando a contraposição entre a postura interclassista e de massa do partido uruguaio face ao caráter elitista das direitas argentinas.

A radicalização de parte das direitas Hispano-americanas, em particular das camadas juvenis, é retomada por Ernesto Bohoslavsky e Gabriela Gomes, desta vez no contexto das amplas mobilizações civis dos anos sessenta e setenta. Acerca desse período, o foco é habitualmente posto sobre os meios de esquerda (camponeses, operários, intelectuais). Os autores, pelo contrário, oferecem um panorama da juventude estudantil que se radicaliza num sentido nacionalista e anticomunista na Argentina e no Chile entre 1959 e 1973, através de várias organizações, como a famosa Tacuara, antes da instauração das ditaduras militares.

A relação entre ditadura e direitas é abordado por Eduardo Chaves, com a análise da construção da memória de Dercy Furtado, deputada estadual, nos anos Setenta, do partido de suporte ao regime militar brasileiro: a Aliança Renovadora Nacional (ARENA). A dimensão da militância estudantil como da construção da própria imagem revelam facetas interessantes do ingresso e da saída do radicalismo político durante o ciclo de crise, ou melhor de percepção da crise.

Na frente das esquerdas, as contribuições apresentadas apontam para os três mais importantes períodos de crise dos últimos cem anos: o eclodir do movimento operário entre século XIX e XX, as batalhas sindicais dos anos sessenta e a crise financeira global do século XXI, que afetou duramente os países do Sul. Aqui os sujeitos analisados pertencem principalmente ao meio anarquista na sua alvorada e à extrema-esquerda pós-materialista. O repertório de mobilização do anarcosindicalismo é apreciado por Luiz Felipe Mundim na França do final do século XIX. O objetivo é reconstruir as origens da mobilização e dos métodos escolhidos para descrever o processo de radicalização que tornará o anarcosindicalismo um ator central nos conflitos sociais do princípio do Século XX. A mesma família política é apresentada por Luciano Telles, cuja análise da revista A Lucta Social descortina os processo de radicalização à esquerda dos operários brasileiros da zona de Manaus e a sua aproximação de classe ao tenentismo, à sombra de reivindicações comuns de justiça social.

A peculiaridade do anarquismo como movimento importante mas à margem da crescente onda comunista no século XX é retomada pelo estudo de Maurício Brum. Dentro da célebre experiência de Salvador Allende no Chile, o autor centra a sua análise do radicalismo de esquerda nos anos Sessenta sobre o único partido chileno que não integrou a Unidade Popular: o Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR). O intuito é perceber as razões pelas quais uma organização radical escolhe um determinado posicionamento num momento decisivo de crise e as modalidade que emprega nessa luta política marginal. Finalmente, no novo milénio e no contexto da crise econômica global, o enfoque é dado menos a uma presença e mais a uma ausência: o caso de Portugal contemporâneo, pois, é emblemático para se perceber como os efeitos de uma crise em determinados países não se reproduzam em outros. Nesse sentido e postas as condições similares entre países do Sul de Europa, José Santana Pereira analisa a esquerda radical portuguesa e, em comparação com a emergente esquerda populista grega (Syriza) e espanhola (Podemos), explica as razões do fracasso das tentativas de construção de um novo sujeito “populista” também nas margens do rio Tejo.

A radicalização dos movimentos sociais tanto a direita como a esquerda determinada pelas crises é também focalizada por Tatiana Poggi, na dimensão particular do contraste legislativo aos chamados crimes de ódio na Europa ocidental. Nesse sentido, a autora analisa o processo que levou ao reconhecimento e defesa legal dos direitos humanos (civis, políticos e sociais) constantemente ameaçados pelas dinâmicas de conflito.

A variedade temática, geográfica, cronológica e metodológica do número monográfico apresentado é mais que uma escolha, é uma escolha justificada pela necessidade sobre um tema como o dos movimentos políticos e sociais em conflito que merece, há anos, uma atenção crescente pela literatura científica. Como demonstram as resenhas de Tiago Carvalho e Tiago Moreira Ramalho sobre duas recentes obras de relevo acerca desse tema, a interdisciplinaridade e pluralidade é fundamental para satisfazer cada vez mais o caráter cumulativo da ciência.

Por fim, algumas questões de grande relevância para as ciências sociais estão dispostas na entrevista realizada com os investigadores António Costa Pinto (Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa) e André Freire (Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa). Nela, podemos verificar diferentes caminhos de pesquisas, questões interpretativas e, especialmente, contribuições para temáticas tão urgentes.

Como organizadores, temos a certeza que os trabalhos aqui apresentados são de grande ajuda não só para a investigação comparativa sobre radicalização de movimentos políticos e sociais, mas também para as áreas específicas temáticas, temporais ou regionais. Agradecemos ao corpo editorial da revista Oficina do Historiador, aos autores, pareceristas e entrevistados, por este dossiê temático. Desejamos a todos uma boa leitura!

Odilon Caldeira Neto (UFRGS)

Leandro Pereira Gonçalves (PUCRS)

Riccardo Marchi (ISCTE-IUL)


CALDEIRA NETO, Odilon; GONÇALVES, Leandro Pereira; MARCHI, Riccardo. Apresentação. Oficina do Historiador. Porto Alegre, v. 9, n. 1, jan. / jun., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Laços Sociais, Laços Transnacionais – da construção de vínculos na história / Estudos Ibero-Americanos / 2015

Laços sociais, familiares, geracionais, de amizade; laços de grupo, laços políticos, ideológicos, laços legais e laços diplomáticos. A história se movimenta com base em conjuntos e interações, onde mesmo o herói hegeliano, ainda que guiado pelo Espírito do Mundo, encontrará sua sustentação e palco de ação no coletivo – para o próprio Hegel, no Estado (HEGEL, 2001). Nas bases de todo poder está uma coletividade, pois, como nos ensina Hannah Arendt (1970, p. 44), ninguém, nem mesmo o tirano mais absoluto, governa realmente sozinho. Da mesma forma, ideias são formadas e aperfeiçoadas em conversas, sentimentos são desenvolvidos a partir do convívio, para cada aprendizado um professor ou um modelo é necessário. O ser humano não prescinde de seu semelhante, e o estabelecimento de laços surge como um desenvolvimento natural, uma condição inerente a esse animal social.

A escrita da História, os estudos e análises de períodos, fatos e conjunturas as mais distintas apontam para o protagonismo dos laços sociais, ainda que eles sejam por vezes tomados como autoevidentes. Tomemos o caso dos laços entre jovens europeus no século XVI, quando se observa a formação daquilo que se convencionou chamar de adolescência. Essa fase da vida dos jovens adultos passa a ganhar uma nova dimensão diante da reforma dos costumes, do aumento da idade para se contrair matrimônio e da diminuição das liberações. Criam-se assim elos entre os membros dessa faixa etária, acuados que são pela nova realidade. Tais laços resultarão em uma identidade de grupo / geração com consequências sociais de longa duração, dentre as quais a identificação desses jovens com um comportamento errático, rebelde, por vezes violento, “tipicamente adolescente”, em especial entre os jovens “machos” (MUCHEMBLED, 2012). As estruturas de dominação, por sinal, costumam ser gatilhos e reforços privilegiados para a criação e manutenção de laços. É nesse sentido que, no mesmo século XVI, o “ímpeto civilizador” age pela coibição do infanticídio na difusão de um discurso e de um imaginário moralizadores, reforçando a importância dos laços maternos. Isso se mostrou uma estratégia voltada não apenas para a contenção do assassínio das proles, mas também para inculcar uma responsabilidade materna nas mulheres e perpetuar estruturas de dominação masculinas naquela sociedade (LIEBEL, 2013).

A natureza dos laços sociais, assim se verifica, está estreitamente vinculada ao desenvolvimento de sentimentos e de emoções. Não por acaso, é em torno do sentimento de empatia que Lynn Hunt (2009) vai encontrar o sentido propulsor para a redação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, talvez a tentativa mais sólida da história de pensar o laço mais primordial que nos une a todos: a natureza humana. Não se trata, é claro, de localizar no século XVIII as origens da empatia. Como Ute Frevert (2013) argumenta, a própria bíblia, na parábola do bom samaritano, já mostra não ser esse sentimento uma novidade setecentista. Entretanto, é no século XVIII que se humaniza e se discute a positividade da empatia. Não é por acaso que filósofos como Schopenhauer, já na virada do século XIX, podem pensar o humanismo em sentido amplo, com reflexos, por exemplo, nas relações entre humanos e animais1. Tais laços são fundamentados em termos éticos, e Schopenhauer (2006, p. 128 et seq.) acaba por declarar: quem faz mal a um animal não pode ser boa pessoa (könne kein guter Mensch sein).

Não por acaso, tais reflexões fornecerão aos séculos XIX e XX boa parte do combustível para novas teorias, ideologias e revoluções. Ao mesmo tempo em que se “descobrem” novos laços, os mesmos laços são responsáveis pela formatação de identidades cada vez mais fragmentadas. Com exceção dos laços generalizantes (universalismo, cosmopolitismo, humanismo), cada novo elemento que se agrega à identidade (coletiva ou individual) deixa de formar pontes para começar a criar muros cada vez maiores2. Dessa forma, laços nacionais, transnacionais, religiosos, raciais, ideológicos ou de classe assumem lugar central e cada vez maior como motores da história, levando o século XX a ser descrito, como tantas vezes o foi, o século da violência.

O dossiê que o leitor tem em mãos tenta lidar com essa estranha dicotomia existente quando pensamos os laços sociais: suas forças centrífuga e centrípeta, seus princípios agregadores e delimitadores. O mesmo laço que une pode também servir para separar, e a formação de grupos, identidades e imaginários acaba sendo seu produto mais evidente – e fonte de estudo e interpretação dos historiadores. Na composição do presente dossiê, os textos foram separados em duas seções: Laços Políticos e Laços Sociais. Ainda que elementos sociais e políticos tenham a tendência a se mesclar e se confundir, optou-se por essa distinção que privilegia o campo do político, do pensamento e da ação conjunta e institucional, das paixões e ideologias políticas, frente a temas diversos, como os laços familiares, os laços culturais e os laços corporativistas.

Abrindo o primeiro grupo de artigos, a professora Claudia Viscardi traça um importante panorama conceitual envolto às ideias de república e de democracia na primeira década do período republicano brasileiro. Período ainda conturbado, marcado pela insegurança dos próprios republicanos quanto ao sucesso do novo regime, os anos que se seguem a 1889 assistem a uma constante busca por uma nova identidade e formatação da estrutura política. Nesse contexto, a definição conceitual se torna um imperativo, e a construção e remodelação do discurso andam de mãos dadas com a própria construção das novas instituições. É nesse sentido que Viscardi toma a Constituição de 1891 como base de estudo, analisando as estruturas discursivas envoltas em sua promulgação e as subsequentes modificações e (re)interpretações conceituais que vão possibilitar a manutenção do poder das elites – em uma demonstração sutil dos muros que alguns laços podem construir – e resguardá-las de sua “demofobia”. É também a formatação – filosófica, conceitual e ideológica – do movimento fascista espanhol e do Primeiro Franquismo que é objeto de análise de Xosé Manoel Núñez Seixas. Sua abordagem, entretanto, é marcada fortemente por uma perspectiva transnacionalista, buscando vislumbrar os reflexos germânicos que despontam, entre 1930 e 1940, em terras espanholas. Os laços intelectuais, ideológicos e diplomáticos ganham espaço no texto de Seixas. É a influência da Academia alemã, da ideologia nacional-socialista e da estrutura – e propaganda – do Terceiro Reich sobre jornalistas e intelectuais conservadores espanhóis que se converte no tema central do artigo do professor galego da Universidade Ludwig-Maximilians, de Munique.

Seguindo o mote da temática das ditaduras, Augusto Nascimento toma São Tomé e Príncipe, um dos PALOP que sofreram a dominação colonial salazarista, e o jornal “A Voz de S. Tomé” como objetos de seu estudo. Mais especificamente, o autor analisa a configuração do espaço e a dinâmica da opinião pública em um país que, apesar de colonizado, encontrava-se longe, em variados sentidos, da realidade da metrópole. Longe e perto são adjetivos importantes também na leitura do texto de Maria Letícia Mazzuchi Ferreira e Francisca Ferreira Michelon, que escrevem sobre a exposição de fotografias de vítimas de ditaduras sul-americanas em acervos de museus. A distância temporal para os regimes opressivos é encurtada pela imagem, trazendo para o observador o que as autoras bem descrevem no título de sua contribuição como “cicatriz da memória”. A sensibilidade, a empatia e os laços humanos da memória se mostram elementos fundamentais na reflexão que as autoras instigam sobre as relações entre retrato e presentificação, ou, em um sentido warburguiano, sobre as relações fantasmáticas da imagem. Finalizando a primeira seção da revista, o texto de Fábio Chang de Almeida reflete sobre a nova direita política de Portugal, enfatizando seu caráter grupuscular (GRIFFIN). Tal aspecto tem uma dupla consequência em termos de laços políticos: a primeira é o caráter diminuto desses novos agrupamentos políticos extremistas, que não ganham representatividade por seu caráter massivo; a segunda é a sua capacidade extrema de comunicação (com as novas mídias sociais) e de coligação, proporcionando oportunidades para que sua influência e relevância aumentem.

A segunda seção, Laços Sociais, conta ainda com quatro artigos que focam suas análises em questões diversas dos relacionamentos interpessoais e grupais, bem como nas tramas tecidas na organização e ordenamento de diferentes campos e aspectos do tecido social. Rodrigo Ceballos, em sua contribuição, apresenta uma análise dos laços (familiares e comerciais) e das heranças deixadas pelos portugueses na região do Rio da Prata, de onde foram expulsos no século XVII. Dois séculos adiante é situada a baliza temporal fixada por Mateus Fernandes de Oliveira Almeida para analisar os laços corporativistas i.e. associativistas durante o Segundo Reinado brasileiro. O texto de Almeida, situado no grande campo da História do Trabalho, abrange o tema fundamental da identidade dos trabalhadores, a concepção de unidade e reconhecimento dentro de um métier, além da subjetividade inerente a esses laços, como a noção da moralidade e da solidariedade para com seus pares. A identidade e a solidariedade são também temas centrais do texto de Érica Sarmiento e Lená Medeiros de Menezes, que tomam o caso dos imigrantes ibéricos no Brasil da Primeira República para analisar aspectos variados da vivência na capital nacional do período. A complexidade da identidade servia, a um só tempo, para aproximar e afastar lusitanos e galegos, formando redes intrincadas de relações de apoio e de hostilidade. A condição de imigrante favorecia também, em alguns casos, a entrada no mundo dos pequenos delitos, dentre os quais as autoras destacam os jogos de azar (especialmente o jogo do bicho). Tais atividades colocam os imigrantes ibéricos na mira da polícia brasileira, revelando alguns de seus mecanismos e táticas de repressão. Finaliza a seção de artigos o texto de Daniel Melo, que também trata de aspectos identitários ao destacar, enquanto peças basilares das identidades culturais brasileira e portuguesa, as marchas populares de Lisboa e o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Em um exercício de História Comparada, aspectos transnacionais de mútua influência são destacados pelo autor, que faz ainda inferências acerca do papel dos regimes ditatoriais na configuração dessas festas.

O dossiê conta ainda com uma resenha, escrita por Rodrigo Santos de Oliveira, da obra La trama autoritária. Derechas y violência en Uruguay (1958-1966). O livro de Magdalena Broquetas é, ele também, um estudo sobre as construções de laços políticos e a atuação das alas conservadoras uruguaias até o momento anterior à implantação da ditadura militar no país. Por fim, o presente dossiê traz o lançamento de uma nova seção na EIA com a publicação de entrevista, conduzida e traduzida por Vinícius Liebel, com o professor Wolfgang Heuer, da Freie Universität Berlin (FU-Berlin). Nela o pesquisador alemão responde a perguntas pertinentes ao dossiê e a discussões historiográficas atuais, falando sobre a ascensão das direitas no mundo, movimentos contestatórios e ações coletivas e individuais no cultivo e preservação de nossa dignidade humana.

Notas

1 Sobre o processo de constituição desses laços entre homens e animais, ver: Thomas, 2010.

2 Lembremos do estudo de Norbert Elias e John Scotson (2000) que analisa, no microcosmo da cidade de Winston Parva, o lugar dos laços sociais na constituição de uma dinâmica opressora e delimitadora. Com bases na tradição e no carisma, configuram-se dois grupos essenciais de cidadãos que os autores denominam estabelecidos e outsiders. É com base nessa caracterização que toda a carga envolvida nos valores de pertencimento e de exclusão servirá ao domínio e à conservação do status quo na comunidade.

Referências

ARENDT, Hannah. On Violence. New York: Harvest, 1970.

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

FREVERT, Ute. Vergängliche Gefühle. Göttingen: Wallstein, 2013.

GRIFFIN, Roger. From slime mould to rhizome: introduction to the groupuscular right. Patterns of Prejudice, Londres, Routledge, v. 37, n. 1, 2003.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Razão na História: uma introdução geral à filosofia da História. São Paulo: Centauro, 2001.

HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos. São Paulo: Cia. das Letras, 2009.

LIEBEL, Silvia. Les Médées Modernes: la cruauté féminine d’après les canards imprimés (1574-1651). Rennes: P.U. Rennes, 2013.

MUCHEMBLED, Robert. Uma História da Violência – do fim da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

SCHOPENHAUER, Arthur. Preisschrift über die Grundlage der Moral. Hamburg: Felix Meiner, 2006.

THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural – mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Cia. das Letras, 2010.

WARBURG, Aby. Histórias de Fantasmas para Gente Grande. São Paulo: Cia. das Letras, 2015.

Equipe Editorial – Formada por: Leandro Pereira Gonçalves (editor); Charles Monteiro (editor executivo); Vinícius Liebel e Luciana da Costa de Oliveira (gestão editorial); Daniela Garces de Oliveira, Geandra Denardi Munareto e Waldemar Dalenogare Neto (assistentes editoriais).


GONÇALVES, Leandro Pereira; MONTEIRO, Charles; LIEBEL, Vinícius; OLIVEIRA, Luciana da Costa de; OLIVEIRA, Daniela Garces de; MUNARETO, Geandra Denardi; DALENOGARE NETO, Waldemar. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 41, n. 1, jan. / jun., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Identidades e representações: pensamentos e práticas históricas / Oficina do Historiador / 2014

O século passado foi o mais mortífero de toda a história documentada, o número de mortes causadas pelas guerras foi estimado em 187 milhões de pessoas e mesmo tendo essa consciência o que o homem faz para conter? Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores contemporâneos, questiona como haveremos de viver neste mundo perigoso, desequilibrado e explosivo, em meio a grandes deslizamentos das placas tectônicas nacionais e internacionais, sociais e políticas? Tendo como centro do mundo uma política megalomaníaca dos Estados Unidos, principalmente após o 11 de setembro.[1]

Segundo o mesmo historiador: todo ser humano tem consciência do passado e na maioria das vezes lidamos com sociedades para as quais o passado é essencialmente o padrão para o presente. Para Hobsbawm, o historiador não pode ser apenas um simples reprodutor, deve ser criador. [2]

Em busca de criações e interpretações historiográficas, a Equipe Editorial da Oficina do Historiador: revista discente do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, apresenta ao público acadêmico a edição Identidades e representações: pensamentos e práticas históricas.

Criada em setembro de 2009 como resultado de um projeto coordenado pela Doutora Janete Silveira Abrão, a primeira edição foi lançada no 1º semestre de 2010 e desde então, contou com edições regulares a cada 6 meses. Posteriormente, o Doutor Marçal de Menezes Paredes, ocupou o cargo de editor até o 1º semestre de 2014, momento em que assumi a direção do periódico. Mantendo a tradição da autonomia discente, a OH que é classificada pela Qualis / CAPES como B1, define-se como um espaço de veiculação de produção científica e pesquisas desenvolvidas por docentes e principalmente, por alunos dos diversos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em História do país.

Com a nova gestão editorial algumas mudanças foram implementadas na intenção de aprimorar a qualidade da revista em busca da internacionalização. A partir de agora os artigos em formato eletrônico da revista OH estão indexados no Directory of Open Access Journals (DOAJ), para acesso pela comunidade científica internacional. Com uma nova composição do Conselho Consultivo, formada por pesquisadores da Alemanha, Argentina, Brasil, França, Hungria, Portugal e Uruguai, o periódico possui uma excelente Equipe Editorial que é formada por doutorandos e mestrandos do PPGH / PUCS. Através da árdua dedicação acadêmica dos discentes a revista é mantida e projetos futuros são organizados de forma cada vez mais ativa. Dessa forma, parabenizo a equipe composta pelos doutorandos (as): Daniela Garces de Oliveira, Fernanda de Santos Nascimento, Geandra Denardi Munareto, Geneci Guimarães Oliveira, José Oliveira da Silva Filho, Leonardo Oliveira Conedera, Luciana da Costa de Oliveira e Priscila Weber, além da mestranda Egiselda Charão e do mestrando Waldemar Dalenogare.

A edição desse semestre apresenta algumas mudanças, como a ampliação do número de artigos, totalizando 12 sérios estudos que são resultado de pesquisas acadêmicas de vários institutos de investigação do Brasil (FEEVALE, PUCRS, UEG, UFMG, UFPE, UFPR, UFRJ, UFRN e UFSJ) e da Europa (Université Paris Diderot – Paris 7 – Università di Bologna). A diversificação das instituições demonstra o impacto do periódico e a aceitação entre os acadêmicos, contribuindo assim, com a possibilidade de ter acesso a pesquisas recentes e cada vez mais atualizadas no âmbito historiográfico. A nova edição da OH apresenta ao leitor duas resenhas, oriundas de pesquisadores da UFRGS e UNICAMP que trazem à baila reflexões de novas publicações editoriais.

A principal novidade está na última seção da revista. Em todos os números, haverá um espaço destinado à divulgação de um material extra que contribua com o debate e pesquisas universitárias. No v. 7, n. 2, temos a satisfação de contar com uma excelente entrevista do Presidente da Associação Nacional dos Historiadores (ANPUH), Doutor Rodrigo Patto de Sá Motta, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que esclarece uma série de questões sobre a profissionalização do historiador, que é ainda hoje umas das poucas atividades sem regulamentação. Desde a década de 1960, o assunto é debatido no Congresso Nacional e sempre caiu no esquecimento.[3] A retomada do debate ocorre após um intenso envolvimento dos historiadores no processo de regulamentação através da ANPUH, principalmente na gestão dos últimos presidentes da associação, Doutor Durval Muniz de Albuquerque Júnior (UFRN), Doutor Benito Bisso Schmidt (UFRGS) e agora com o nosso atual representante, que mantém viva a esperança da profissionalização.

Agradecemos a todos os que fizeram possível mais este número, em especial aos autores que escolheram a OH para exporem suas pesquisas, à equipe editorial, à coordenação do PPGH / PUCRS por todo apoio e principalmente aos leitores, que correspondem ao principal objetivo da revista.

Notas

1. HOBSBAWM, Eric. O terror. In: ______. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

2. HOBSBAWM, Eric. Tempos Interessantes: uma vida no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

3. GONÇALVES, Leandro Pereira. Historiador. In: SCHWARZ, Rodrigo Garcia. (Org.). Dicionário de Direito do Trabalho, de Direito Processual do Trabalho e de Direito Previdenciário aplicado ao Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2012, p. 517-519.

Leandro Pereira Gonçalves – Professor do PPGH / PUCRS e Editor da Oficina do Historiador


GONÇALVES, Leandro Pereira. Apresentação. Oficina do Historiador. Porto Alegre, v. 7, n. 2, jul. / dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

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