A história nos filmes / Os filmes na história – ROSENSTONE (HH)

ROSENSTONE, Robert. A história nos filmes / Os filmes na história. São Paulo: Paz e Terra, 2010, 264 p. Resenha de: VIANNA, Alexander Martins. Filme, história e narrativa. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7, p.301-304, nov./dez. 2011.

Em 2010, foi lançado o livro de Robert Rosenstone A história nos filmes / Os filmes na história pela editora Paz e Terra. Trata-se de uma reunião das reflexões recentes deste autor sobre a relação entre cinema e história, assim como, uma autorreflexão sobre a sua própria trajetória no tema, havendo instrutivas autocríticas, que são muito significativas sobre a evolução do campo, além de serem muito bem- humoradas. Ao final, há uma relação interessante da produção bibliográfica (predominantemente norte-americana) sobre o tema, que serve como bom medidor da evolução do debate neste campo.

Há considerações pertinentes de ordem teórica e metodológica que firmam a incorporação do debate crítico da “virada linguística” em história, demonstrando como isso afetou (ou deveria afetar) a discussão sobre o filme como fonte histórica e a relação entre narrativa e fato histórico. Além disso, Rosenstone considera, oportunamente, o componente emocional específico de significação da associação som/imagem e performance que caracteriza os “filmes históricos” enquanto mídia, distinguindo a sua forma de narrativa dos “livros acadêmicos de História” enquanto mídia. Por tudo isso, penso que esta obra é, atualmente, um bom ponto de partida teórico e metodológico para quem pretenda discutir e analisar o filme como fonte de época (e como narrativa sobre uma época), com cujo aporte me identifico intelectualmente há uma década.

Ao longo do livro, a intenção recorrente de Rosenstone é demonstrar que o gênero “filme histórico” tem tanto valor (enquanto narrativa sobre o passado) quanto os livros acadêmicos, pois ambos seriam formas midiáticas distintas de propor regimes de verdade sobre o passado. Aliás, Rosenstone lembra que, atualmente, a maioria das pessoas têm visões sobre o passado muito mais marcadas pelo que conheceram através de filmes do que por livros e, portanto, a recepção e a difusão de ideias de passado através de “filmes históricos” definem um status tão importante para a sua narrativa sobre o passado que não pode ser negligenciada pelos “acadêmicos”.

No entanto, se a “virada linguística” foi um marco intelectual importante para o historiador introduzir um componente autoanalítico em (ou adquirir uma consciência metanarrativa a respeito de) seus escritos sobre o passado, Rosenstone lembra que isso é mais recorrente nos livros acadêmicos de história do que em filmes “de história”. Filmes que são conscientemente metanarrativos ou metacríticos em relação ao regime dramático de narração acabam alcançando uma audiência muito diminuta de intelectuais. Portanto, são as narrativas dramáticas que predominam nas produções cinematográficas “sobre história”, ou seja, são elas que alcançam públicos mais amplos e difundem “cânones de passado”. Rosenstone propõe que este tipo de produção cinematográfica seja estudado sem preconceito, devendo o historiador estar atento à sua forma, sentido e regimes narrativos enquanto mídia, em vez de pretender ser normativo sobre qual deveria ser a “forma correta” de narrativa de passado.

Há nisso um pressuposto metodológico importante que serve para qualquer trabalho com fontes históricas (imagéticas ou não): para se entender como um “filme histórico” dá a ver um “tema histórico”, devemos ter um profundo conhecimento do “campo institucional” ou “regimes de gosto e verdades” que definem a sua abordagem em sua época de produção, de modo a entender as escolhas de produtores, roteiristas e diretores. No caso específico de Rosenstone, “tema histórico” se confunde com o gênero que ele analisa: “dramas e documentários históricos”. No entanto, tal pressuposto metodológico pode ser ampliado para qualquer tipo de filme, já que são a pergunta e os interesses temáticos do historiador que transformam um filme em fonte pertinente para análises históricas, desde que este tenha capacidade para responder as suas perguntas.

Em todo caso, devemos estar atento ao modo como as perguntas são feitas e como são respondidas, ou seja, a “virada linguística” foi fundamental para o historiador incluir em sua narrativa um componente autoanalítico, de modo a superar a “ingenuidade positivista”. Afinal, conscientemente ou não, lembra Rosenstone, livros e filmes “de história” expressam ou propõem teses morais a partir de regimes específicos de narrativas e das regularidades internas dos materiais utilizados. No entanto, geralmente no filme fica mais evidente que suas narrativas (dramáticas) têm o interesse de acionar na audiência determinadas emoções, que nos dizem muito a respeito do “campo” em que se inscreve, ou em relação ao qual pretende se diferir, ao tratar de um tema ou conjunto de temas.

Disso decorre outro pressuposto metodológico importante: a intencionalidade do diretor/roteirista, embora importante, não deve ser necessariamente predominante para a análise de um filme, pois este deve ser estudado como “obra acabada” vinculada a um habitus de produção, ou seja, o filme deve ser entendido como o “resultado” de um campo de trabalho coletivo e, portanto, deve-se considerar que há uma negociação permanente na construção de significados que somente termina quando a obra é finalmente editada. Por exemplo, quem cuida da edição de som pode inserir entendimento (emocional e cognitivo) ou criar efeito de condensação temática que não fora necessariamente previsto pelo diretor, roteirista e consultor histórico (no caso de “filmes históricos”), mas com o qual puderam concordar a posteriori, dando novo ângulo de entendimento para cenas, tramas e caracterização de personagens. Enfim, conhecer a forma e o sentido da produção de um filme é importante, pois isso interfere – devido ao seu regime próprio de narrativa, interesses e valores – em como o filme é apresentado à audiência.

Nesses termos, quando se analisa um filme, analisa-se um “resultado” que provoca/propõe ideias e valores através de emoções e teses morais. Afinal, para funcionar a partir de suas próprias regularidades internas enquanto mídia, a narrativa fílmica (dramática ou não) necessariamente precisa de teses morais, tal como os livros de história também o fazem a partir de seu regime próprio de narrativa. Tais teses morais podem identificar a posição de um artefato cultural num campo temático de debate.

Enfim, qualquer produção do cinema somente pode ser opção como fonte para estudo histórico quando o historiador se prontificar a conhecer profundamente o campo social e institucional de ideias, gostos, interesses e valores que interferem nas escolhas de uma produção, o que implica também em conhecer os regimes de verdades sobre os temas abarcados no filme, ou seja, o chão de debates intelectuais, políticos, culturais, sociais etc, em que se insere, ou em relação ao qual pretende se diferir.

Por outro lado, analisar um filme é também reduzi-lo, pois é reconduzi-lo do écran à página, sendo que esta não pode traduzir perfeitamente em palavras aquilo que associa som, imagem e performance para produzir efeitos emocionais para teses morais. Todavia, este é o paradoxo da narrativa histórica sobre qualquer objeto, e não somente para o caso da análise de filmes, pois, como lembra Rosenstone, uma narrativa não pode traduzir um “evento” sem imperfeitamente reduzi-lo – e narrar um evento é também produzi-lo.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A distinção. São Paulo: Edusp, 2008.

________________. Ce que parler veut dire. Paris: Arthème Fayard, 1982.

DÉLAGE, Christian. Cinéma, histoire: la réappropriation des récits. Vertigo, n.

16, p.13-23, 1997.

JENKINS, Keith. A história repensada. São Paulo: Contexto, 2001.

LaCAPRA, Dominick. Soundings in critical theory. Ithaca/London: Cornell University Press, 1989.

ROSENSTONE, Robert. JFK: historical fact/historical film. American Historical Review, vol. 97, n. 2, p.506-511, 1995.

SAHLINS, Marshall. Metáforas históricas e realidades míticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

TOEWS, John E. Intellectual history after the linguistic turn: the autonomy of meaning and the irreducibility of experience. American Historical Review, vol. 92, n.4, p. 879-907, 1987.

WHITE, Hayden. Meta-história. São Paulo: Edusp, 2008.

Alexander Martins Vianna Professor adjunto Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro [email protected] Rua Barão de Mesquita, 463/305 – Tijuca 20540-001 – Rio de Janeiro – RJ Brasil.

A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845) – ARAUJO (HH)

ARAUJO, Valdei Lopes. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008, 204pp. Resenha de: TURIN, Rodrigo. Experiência, história e modernidade no Brasil oitocentista. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, p.299-305 março 2010.

Experiência, história e modernidade no Brasil oitocentista 300 Apresentado originalmente como tese de doutoramento junto à PUC-Rio, em 2003, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845), de Valdei Lopes de Araújo, não era um trabalho desconhecido aos estudiosos da historiografia brasileira oitocentista. Ainda em seu formato de tese, já havia se tornado uma referência incontornável ao debate acadêmico sobre a formação de um conceito moderno de história no Brasil. Sua publicação pela editora Hucitec, dentro da importante coleção Estudos Históricos, vem, portanto, fazer justiça à valiosa contribuição representada por seu trabalho, cujos desdobramentos se estendem em uma série de artigos e capítulos de livros. Essa publicação vem somar-se, igualmente, aos recentes trabalhos realizados sobre a história dos conceitos, referentes tanto ao Brasil em particular, como também ao mundo Ibérico – com destaque para o Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil (cujos verbetes farão parte de um Diccionario político y social iberoamericano), para o qual Valdei também contribuiu, em parceria com João Paulo Pimenta, escrevendo sobre o conceito de “história”. (FERES JÚNIOR; JASMIN 2007; FERES JÚNIOR 2009; SEBASTIÁN; FUENTES 2002; PADILLA 2002; PADILLA 2008). Aliam-se aqui, com extrema competência, trabalho historiográfico e reflexão teórica, numa definição de historiografia que tem se mostrado cada vez mais necessária e, felizmente, ampliada em nosso campo – para o qual Valdei Araújo, deve-se dizer, tem contribuído como poucos, não apenas com seus trabalhos, como também na organização de espaços que possibilitam a troca e o debate entre os especialistas.

A hipótese central de A experiência do tempo vincula-se às célebres investigações capitaneadas por Reinhart Koselleck acerca da formação dos conceitos fundamentais da Modernidade, cujos resultados encontram-se na monumental obra coletiva Geschichtliche Grundbegriffe. Lexikon zur Politischezocialen Sprache in Deutschland, organizada com Werner Conze e Otto Brunner.

De acordo com a tese de Koselleck, entre 1750 e 1850 houve uma transformação no sentido dos conceitos sócio-políticos no mundo linguístico germânico, assim como a criação de neologismos que denunciavam uma mudança no modo como o passado e o futuro (ou “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”, entendidos como categorias meta-históricas) eram relacionados enquanto “forma” da experiência. A produção de uma crescente assimetria entre essas categorias fez com que as expectativas em relação ao futuro se desvinculassem de tudo quanto as experiências do passado tinham sido capazes de oferecer aos homens no presente. Com isso, o próprio tempo era alçado a “objeto” da experiência, assumindo um caráter reflexivo cujo resultado seria a própria formação do conceito moderno de história como um singular coletivo (KOSELLECK, 2006). Koselleck denomina esse período de forte mudança conceitual como Sattelzeit – uma espécie de antecâmara da Modernidade propriamente dita (Neuzeit). O que as investigações de Valdei Lopes de Araújo sugerem é justamente a existência de um análogo ao Sattelzeit kosellekiano para o Brasil oitocentista.

A hipótese que permeia suas investigações está centrada em uma “real descontinuidade discursiva” e conceitual ocorrida na década de 1830 (pp.19-20). Esta descontinuidade caracteriza-se, como mostra o autor, pela formação de uma experiência moderna do tempo no Brasil, marcada por uma crescente historicização da realidade, frente à experiência dos letrados provenientes do ambiente ilustrado português, ainda presos a modelos cíclicos. Assim, entre a geração que participou do processo de independência e aqueles que se veriam incumbidos da tarefa de construir uma narrativa identitária nacional, uma nova rede semântica foi configurada – ao mesmo tempo índice e fator de um novo espaço de experiência que marcava a inserção do Brasil na Modernidade. No desenvolvimento desta tese central, Valdei Araújo discute uma ampla variedade de tópicos e autores, cuja articulação, além de reforçar o sentido de seu argumento, permite vislumbrar a extensão abarcada por essa mudança conceitual em seus níveis ético, estético, político e intelectual. Não podendo, aqui, fazer jus à riqueza trazida por suas análises desses diversos tópicos, concentrarei minha leitura em torno de duas noções mais gerais que permeiam sua narrativa e que, igualmente, me permitem organizar alguns problemas envolvendo o meu próprio interesse na historiografia oitocentista. Estas noções são as de “descontinuidade” e de “Modernidade”.

As duas partes que dividem A experiência do tempo estruturam a forma narrativa e analítica através da qual o autor apresenta esse processo de descontinuidade conceitual. Na primeira, centrada nos textos de José Bonifácio, Valdei Araújo realiza uma apurada análise semântica dos termos através dos quais Bonifácio, expressando uma consciência de crise do Império lusitano, procurava orientar as ações necessárias para sua solução. Seus projetos de reformas ilustradas, definidas em momentos sucessivos, apoiavam-se nos conceitos de “restauração” e “regeneração” – o primeiro indicando a expectativa de restaurar o velho Portugal e, assim, “anular” a aceleração do tempo (p.36); enquanto o segundo já guardava em si uma maior abertura à temporalidade, ao movimento, apesar de manter-se ainda ligado a uma compreensão “cíclica e fechada do desenvolvimento das civilizações” (p. 59), vendo na emancipação do Brasil a possibilidade de um novo começo pautado por princípios imutáveis, em conformidade com a Razão iluminista. A análise dos textos de Bonifácio indica, assim, um movimento direcionado a uma crescente temporalização dos conceitos políticos, sociais e estéticos, mas cujas limitações, além de carregarem seus escritos com algumas ambiguidades, como afirma Valdei, seriam explicitadas pela própria marcha dos eventos. Para a geração que se ocuparia do processo de organização de um Estado Nacional, a continuidade de um mundo lusobrasileiro inscrita no sistema andradiano mostrar-se-ia cada vez mais problemática. Uma das contribuições mais valiosas da tese de Valdei Araújo está justamente em mostrar como esse processo levaria à elaboração de um sentido da história brasileira centrada nos termos “metrópole” e “colônia”, garantindo sua individualidade histórica.

Na segunda parte do livro, o autor nos apresenta o movimento de ruptura com a rede semântica herdada dessa geração de Bonifácio; uma ruptura que, como parece sugerir, também se expressaria numa oposição entre conceitos ilustrados e conceitos românticos. Enquanto para Bonifácio a história se vinculava ainda a um trabalho “fundamentalmente descritivo” e a diversidade dos fenômenos poderia ser organizada “com base nas leis gerais da natureza”, para a geração de Gonçalves de Magalhães e dos sócios do IHGB os conceitos centrais vão revestir-se de “uma espessura histórico-cultural” (p.104). Mesmo quando um autor como o Visconde de São Leopoldo vincula o IHGB às ideias da “ilustração”, para Valdei Araújo essa noção de ilustração se mostra distante do “quadro fechado e cíclico” da geração anterior (p.149). Assim, diferentemente de outras interpretações que vêem a tradição ilustrada presente nos trabalhos do IHGB, como também um de seus fundamentos (GUIMARÃES 2006), o autor associa a formação de uma consciência histórica moderna no Brasil mais diretamente ao romantismo e sua ruptura com os conceitos iluministas – daí o lugar central que destina ao texto de Gonçalves de Magalhães publicado na Revista Nitheroy, no qual a noção de literatura assumiria os atributos do conceito moderno de história (p. 121). Mais do que um processo de historicização, Valdei destaca assim o caráter de quebra e ruptura que caracteriza essa descontinuidade conceitual entre as duas gerações. Desse modo, como afirma, “o fundamental é perceber como conceitos centrais adquirem uma nova qualidade”, e, portanto, a “permanência de uma retórica da nação esconde o fato de já não se falar mais da mesma coisa” (p.104). De fato, como salienta com propriedade o autor, a continuidade de um mesmo vocabulário não pode ser tomada como índice de uma identidade conceitual entre períodos históricos distintos. As análises de Valdei Araújo, nesse sentido, são primorosas em detectar o caráter das mudanças na forma de experimentar o tempo abertas com o processo de emancipação, direcionando as expectativas daquela geração à necessidade de conceitualizar um sentido propriamente histórico para a nação brasileira em sua individualidade. Contudo, me parece igualmente que uma demarcação rígida, seja cronológica ou conceitual, entre o “antigo” e o “moderno” a partir de determinadas oposições pode gerar algumas dificuldades na compreensão das dinâmicas específicas que essa nova forma de experimentar o tempo assume nos textos desses autores.

Nos escritos de Bonifácio, como mencionado, já ocorria uma sensível temporalização dos conceitos (ainda que limitada), manifestada, por exemplo, no uso ambíguo da palavra “modernidade”(p. 82). Do mesmo modo, no trabalho de historicização da realidade levada a cabo pela geração seguinte não estariam ausentes, como nota o autor, elementos característicos de uma rede conceitual anterior, a exemplo da manutenção dos “antigos” enquanto clássicos e modelos de emulação, certas noções ligadas a uma concepção “cíclica” da história ou, ainda, ideias universais iluministas. É na constatação dessas permanências – e não no conjunto das transformações semânticas apresentadas no livro – que a interpretação de Valdei nos encaminha a uma reflexão teórica. Para o autor, a permanência das referências a autores da tradição clássica, por exemplo, não poderia ser confundida com algum tipo de continuidade conceitual com a geração de Bonifácio (p. 150). Essa aparente permanência se explicaria, antes, por uma “metaforização”. Ainda que o autor não explore o sentido desse termo, não podemos esquecer que as metáforas, como os conceitos e mesmo os lugarescomuns, também exercem um papel estruturante (BLUMENBERG 1995). Se, por um lado, Valdei mostra de maneira convincente a formação de um novo campo de experiência que se abre como “desenvolvimento progressivo de uma identidade”, logo, da historicidade; por outro lado, certas permanências como a do uso dos clássicos como figuras de autoridade, seja estética, seja moral, dentro da fórmula da historia magistra vitae, não deixam de colocar alguns problemas a esse quadro de análise. Entender essas presenças como “estratégia compensatória” (p. 97), “metaforização” (p. 150), “hesitações iniciais” (p. 147) ou como falta de uma “compreensão sintética” das forças que compunham um entendimento moderno da história (p. 144), talvez signifique desconsiderar a efetividade que elas realmente desempenhavam na representação histórica desses autores e, desse modo, erigir obstáculos para a compreensão da singularidade dos modos como a história foi conceitualizada e experimentada no Brasil oitocentista. Ao final do livro, o autor salienta essas ambiguidades expressas por permanências, vinculando-as à ausência do conceito de “evolução” – cujo aparecimento só se daria na década de 1870 e sem o qual os autores da geração romântica não poderiam “juntar passado, presente e futuro em um progresso linear e sem ruptura” (p. 184). O problema é que a explicação, nesse ponto específico, concentra-se em um “ainda não”, caracterizando essas permanências de modo negativo, como resquícios ou atavismos de uma outra época conceitual. O entendimento da positividade dessas permanências dentro de um processo de transformação da rede semântica, no entanto, só viria reforçar e enriquecer o dinâmico panorama de reformulação conceitual apresentado em a Experiência do tempo.

Nesse sentido, algumas das ambiguidades que se mostram nesses autores talvez possam ser esclarecidas num esforço constante de nós, historiadores, esclarecermos as perguntas que nos fazem ver tais ambiguidades. O próprio uso do modelo koselleckiano de Modernidade, universalizado a partir de certas oposições, pode acabar gerando distorções, arcaísmos e ambiguidades que, antes de serem inerentes aos próprios textos estudados, são projeções das lentes através das quais os enxergamos. Preocupação semelhante foi colocada por Elias Palti: “Na medida em que modernidade e tradição aparecem como blocos perfeitamente coerentes e opostos entre si, as contradições na história intelectual aparecerão necessariamente como resultado de uma espécie de assincronia conceitual, isto é, a superposição de duas épocas históricas diversas” (PALTI 2007a, p. 64; PALTI 2007b). O desafio para a realização de uma história dos conceitos em espaços culturais distintos daquele analisado por Koselleck, portanto, é manter sempre esse instrumento heurístico aberto, como algo que nos permite interrogar os textos, mas sem deixar, ao mesmo tempo, de fazer o movimento de retorno, revendo e refigurando os instrumentos de nossas indagações. Só assim, acredito, seria possível abrir uma dimensão verdadeiramente comparativa não apenas dos regimes de historicidade, mas também das diversas configurações do que o conceito de Modernidade pretende ou pode abarcar. A permanência dos antigos enquanto fonte de autoridade, para usar o exemplo já citado, não poderia ser entendido, talvez, como um índice do lugar fundamental que as concepções hierárquicas desempenhavam no Império do Brasil, levando ao reconhecimento e à valorização da assimetria implícita na noção mesma de autoridade (D’ALLONNES 2006)? Independente da validade dessa hipótese, o desafio, me parece, é reconstruir a efetividade desses elementos na estruturação da rede conceitual onde aparecem. Se o modelo nos permite ver certas semelhanças e diferenças, a questão, enfim, é entender como essas diferenças ganham sentido na forma como esses letrados e políticos experimentavam o tempo – naquilo que toda experiência tem de singular e geral, de continuidade e inovação. Com isso, outros momentos importantes desse processo de historicização poderiam ser articulados às valiosas descobertas de A experiência do tempo, seja em recuo, como a década de 1770, com o ambiente erudito ilustrado português, seja avançando, caso da década de 1870, cujas expectativas específicas levaram a um movimento forte de democratização, ideologização e secularização dos conceitos históricos e políticos. Somente futuras investigações, contudo, poderiam verificar a pertinência e validade dessas articulações.

O livro de Valdei Lopes de Araújo, enfim, é decisivo justamente em nos encaminhar esses e outros problemas fundamentais para a compreensão do processo de formação de um conceito moderno de história no Brasil, nos mostrando a importância da década de 1830 enquanto momento chave do processo de historicização da realidade e como esse processo esteve fortemente vinculado, no Brasil, à organização do Estado Nacional. A cirúrgica escolha do material, a maturidade da reflexão teórica e o vigor de sua interpretação estendem-se por todo o livro, garantindo uma exposição clara e segura, colocando-se de maneira franca ao leitor e ao mesmo tempo instigando-o a reagir ao texto. Como mencionei, A experiência do tempo abre inúmeras outras questões a serem desenvolvidas, firmando-se como uma referência central aos estudiosos de historiografia brasileira. E o melhor que se pode esperar de uma obra dessa natureza é justamente que suscite sempre novas indagações, gerando, com o prazer da pesquisa, novas intersecções entre presente, passado e futuro.

Referências

BLUMENBERG, Hans. Naufragio con espectador. Madrid: Visor, 1995.

D’ALLONNES, Myriam Revault. Le pouvoir des commencements. Essai sur l’autorité. Paris : Seuil, 2006.

FERES JÚNIOR, João; JASMIN, Marcelo (orgs). História dos conceitos.

Diálogos transatlânticos. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio/Loyola/IUPERJ, 2007.

FERES JÚNIOR, João (org). Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009.

GUIMARÃES, Manoel L. Salgado. “Entre as luzes e o romantismo: as tensões da escrita da história no Brasil oitocentista”, in: Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006a.

PADILLA, Guillermo Zermeño. “História, experiência e Modernidade na América Ibérica, 1750-1850”, Almanack Braziliense, n. 7, maio de 2008.

PADILLA, Guillermo Zermeño. La cultura moderna de la historia. Una aproximación teórica e historiográfica. México: El Colegio del México, 2002.

PALTI, Elias. “Temporalidade e refutabilidade dos conceitos políticos”, in: FERES JÚNIOR, João; JASMIN, Marcelo (orgs). História dos conceitos. Diálogos transatlânticos. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio/Loyola/IUPERJ, 2007a.

PALTI, Elias. El tiempo de la política. El siglo XIX reconsiderado. Buenos Aires: Siglo Veiuntuno, 2007b.

SEBASTIÁN, Javier Fernández, FUENTES, Juan Francisco (Eds). Diccionario Político y Social del Siglo XIX Español. Madrid: Alianza Editorial, 2002.

Rodrigo Turin – Pós-doutorando Universidade de São Paulo (USP) [email protected] Av. Prof. Lineu Prestes, 338 São Paulo – SP 05508-000 Brasil.

A história nos filmes, os filmes na história – ROSENSTONE (RBH)

ROSENSTONE, Robert. A história nos filmes, os filmes na história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010. 262p. Resenha de: SANTIAGO JÚNIOR, Francisco das Chagas Fernandes. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, no.60, 2010.

Há pouco mais de dez anos, quando comecei a pesquisar sobre a relação história e cinema, havia pouca coisa publicada no Brasil: pouquíssimas obras traduzidas, alguns textos introdutórios teórico-metodológicos e uns poucos artigos. Lembro que, mesmo para um pesquisador iniciante, as considerações dos historiadores sobre o cinema e os filmes pareciam travadas, até “medrosas”, quando não hostis à reflexão histórica contida na imagem fílmica. Considerei, na época, que devia ser um “mal brasileiro”, que nos Estados Unidos e na França os historiadores já haviam resolvido algumas das questões referentes à existência da visão cinematográfica da história. A falta de traduções e a qualidade das reflexões seriam reflexos de nosso provincianismo.1 Estava enganado.

O novo livro do historiador canadense Robert Rosenstone, A história nos filmes, os filmes na história, lançado no Brasil em 2010, trouxe velhas questões sobre a visão cinematográfica da história para o primeiro plano. O texto oferece um painel das dificuldades que os historiadores criam quando lidam com cinema. Esta resenha pretende expor a importância do livro e, ao mesmo tempo, apontar a “hesitação” que ainda acompanha a reflexão sobre as relações entre história e cinema.

Rosenstone era um historiador das revoluções sociais quando, desenvolvendo um trabalho sobre o jornalista John Reed,2 tornou-se “consultor histórico” (numa época em que essa expressão não tinha significado firmado) na realização da cinebiografia Reds (1981), sobre a vida do autor de Os dez dias que abalaram o mundo. Foi quando o canadense começou a se inteirar das discussões sobre cinema e história. Seus trabalhos posteriores tornaram-se conhecidos no Brasil por meio de algumas poucas traduções em periódicos como Olho da História,3 e pelos comentários de estudiosos como Mônica Almeida Kornis, Cristiane Nova e Jorge Nóvoa.4 A história nos filmes, os filmes na história é a primeira tradução brasileira de uma obra completa desse importante e polêmico autor.5

Embora o livro chegue com atraso, como quase sempre ocorre com publicações sobre o tema no Brasil, o que surpreende é perceber que em 2006, quando History on Film/Film on History foi publicado nos Estados Unidos, Rosenstone ainda se via obrigado a defender a legitimidade das interpretações cinematográficas da história. Hoje, em dissertações, teses, artigos e capítulos de livros, o filme é tido como importante temática do campo historiográfico, mas a leitura cinematográfica da história parece ter sido tragada, segundo o autor, pela associação do filme com o que os historiadores escreviam em seus escritos. A tese subjacente do canadense é que a “correspondência” à fidelidade histórica viciou a reflexão historiográfica sobre cinema.

Incorporando contribuições de Hayden White, Rosenstone se apresenta como historiador pós-moderno interessado na renovação da narrativa e das perspectivas teóricas da historiografia por meio da incorporação de novos estilos de argumentação e escrita. Porém, em vez de qualquer defesa do relativismo sua ideia é demonstrar como a existência de diferentes discursos sobre o passado (como os presentes nas películas), mais do que dinamitar verdades, criam versões alternativas da história.

O livro visa compreender se é possível um filme oferecer uma reflexão histórica comparável à da historiografia, se um cineasta pode ser considerado um historiador e se o cinema é uma forma alternativa de articular o passado. Na sua perspectiva, assim como o conhecimento histórico possui regras, estilos e investigação específicos, a mídia visual também tem seus próprios critérios e circunstâncias de produção da história – ao historiador cabe reconhecer a existência, legitimidade, diferença e influência das representações da história produzidas pelas fitas.

O volume é composto de nove ensaios dedicados a vários tópicos. Após um capítulo breve de introdução, o segundo texto realiza preciosa revisão bibliográfica sobre como, na comunidade histórica norte-americana (e um pouco na francesa), a representação cinematográfica da histórica começou a ser pensada pelos historiadores. O início do livro é dedicado a evidenciar a formação de um campo de investigação que teria surgido comprometido com a preocupação dos historiadores em relação à fidelidade histórica nos filmes. A maioria dos textos resenhados tende a recusar às fitas a possibilidade de articular reflexões históricas (exceção principalmente de Marc Ferro e Natalie Zemon Davis). Rosenstone aponta que é preciso reconhecer que o filme, diferente da historiografia, não possui a fidelidade entre suas regras de produção, mas isso não prejudica a capacidade fílmica de condensar, nas suas formas plásticas, a história. O autor defende o entendimento das “regras de interação do longa-metragem dramático com os vestígios do passado – e começar a vislumbrar o que isso acrescenta ao nosso entendimento histórico”.6

O canadense lembra que a película trabalha por invenções, condensações, compressões, alterações e deslocamentos de elementos do passado para montar a própria interpretação do passado. Esse raciocínio conduz todas as reflexões do livro nos capítulos seguintes, explorando a construção de interpretações cinematográficas do passado nos dramas comerciais, dramas inovadores, cinebiografias, documentários etc. Talvez o capítulo mais instigante seja o sétimo, com o tema do cineasta como historiador. Refletindo sobre realizadores como Oliver Stone, o historiador ressalta que alguns cineastas obcecados e oprimidos pela pressão do passado “continuam voltando a tratar do assunto fazendo filmes históricos, não como fonte simples de escapismo ou entretenimento, mas como uma maneira de entender como as questões e os problemas levantados continuam vivos para nós no presente” (p.172-174). Não seria difícil encontrar tal qualidade de realizador no Brasil, de Silvio Tendler a Carlos Diegues, demonstrando que a memória e a história envolvem questionamentos sociais atuantes no cinema também.

Para defender sua tese, Rosenstone opera dois deslocamentos: primeiro distingue o filme histórico do filme cuja trama se ambienta em um período histórico qualquer (os dramas de época), afirmando que aquele constrói interpretações sobre a história que rivalizam com a da historiografia. Segundo, evidencia que as películas, de fato, lidam com os vestígios do passado de maneira singular. A representação cinematográfica da história não é uma questão de fidelidade ao passado, mas de uma forma midiática que cria com aquele sua própria relação.

A história nos filmes, os filmes na história, porém, não conclui a reflexão iniciada. Preocupado com a construção da legitimidade do objeto, deixa seu discurso num nível superficial, executando um livro importante, mas que rejeita o passo seguinte a ser tomado. Para defender que a questão da “história nos filmes” diz respeito à forma como a linguagem visual lida com o passado, Rosenstone acaba reduzindo a relação com o passado e seus vestígios à construção de interpretações articuláveis num enredo – aqui se vê seu débito com

o conceito de “historiofotia” de Hayden White, grosso modo a representação da história no discurso imagético e fílmico (p.44). Entretanto, o que fica evidente em seu texto é que compreender como o cinema se relaciona com o passado e o constrói é passível de se tornar um tópico da própria teoria da história, envolvendo além das interpretações enredadas, a configuração de orientações na experiência do tempo.

Se o objetivo da teoria da história é refletir sobre o que os historiadores fazem quando fazem história,7 o livro de Rosenstone hesita ao não explorar a relação do campo historiográfico com o campo cinematográfico no que se refere à construção de relações com os vestígios do passado e com a concepção de passado e de tempo. Esse tema tem sido explorado por teóricos do cinema, mas ignorado pela maioria dos historiadores.8 O canadense até menciona a questão rapidamente, mas logo abandona o assunto (p.233).

Obviamente, não era o objetivo do autor aprofundar os quesitos aqui levantados. Ao final da leitura de A história nos filmes, os filmes na história fica o desejo pela constituição de um tópico de investigação que contemple as relações do campo historiográfico com as formas visuais de experimentações, orientações e interpretações socialmente atuantes do passado, principalmente quando alimentadas pela energia investigativa de espíritos como Oliver Stone, Sergei Eisenstein ou Silvio Tendler. Elas apontam relações diretas com a indagação do tempo histórico numa perspectiva visual, a maneira pela qual ocorre a distinção entre passado e futuro em sua relação com o presente, dos quais nos falam teóricos como Reinhart Koselleck.9

Hoje há uma considerável reflexão sobre os filmes como fonte e meio de pesquisa, no entanto, a proeza maior de Rosenstone é apontar a inclusão, entre os tópicos da teoria da história (e não apenas da metodologia) de uma sistematização da relação história-cinema-passado. Essa importante reflexão, que já gerou excelentes frutos na problematização literatura-história, ainda aguarda desenvolvimento para o cinema. Estaria essa lacuna relacionada com a dificuldade dos historiadores em enfrentar o que significa ter concorrentes nas construções da memória e da história sociais, quando estes são poderosos como as mídias visuais das quais o cinema é apenas um exemplo? A questão fica em aberto.

Notas

1 FERRO, Marc. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993,         [ Links ] era praticamente a única tradução significativa, embora houvesse textos nacionais. Outras obras importantes permanecem longe do mercado editorial, desde textos de Rosenstone e Ferro até Michel Lagny, Pierre Sorlin, Natalie Zemon Davis, Tom Gunning, Andre Gaudreault, Richard Allen, Thomas Elsaesser etc.

2 ROSENSTONE, Robert. Romantic revolutionary: a biography of John Reed. New York: Alfred A. Knopf, 1975.         [ Links ]

3 ROSENSTONE, Robert. História em imagens, história em palavras: reflexões sobre as possibilidades de plasmar a história em imagens. O olho da história, Salvador, v.1, n.5, p.105-116, 1997.         [ Links ]

4 Ver KORNIS, Mônica Almeida. História e cinema: um debate metodológico. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v.5, n.10, p.237-250, 1992;         [ Links ] NOVA, Cristiane. O cinema e o conhecimento da história. O olho da história, Salvador, v.2, n.3, p.217-234, 1996;         [ Links ] NOVA, Cristiane. A história diante dos desafios imagéticos. Projeto história, São Paulo: PUC/SP, v.21, p.141-162, 2000.         [ Links ]

5 Em 2009 foi traduzido mais um artigo: ROSENSTONE, Robert. Oliver Stone: historiador da América recente. In: FEIGELSON, Kristian; FRESSATO, Soleni Biscouto; NOVOA, Jorge (Org.). Cinematógrafo: um olhar sobre a história. São Paulo: Ed. Unesp; Salvador: Ed. UFBA, 2009, p.393-408.         [ Links ]

6 ROSENSTONE, Robert. A história nos filmes, os filmes na história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010, p.54.         [ Links ]

7 Alusão ao título da dissertação: ASSIS, Arthur O. A. O que fazem os historiadores quando fazem história? A teoria da história de Jörn Rüsen e Do Império à República, de Sérgio Buarque de Holanda. Dissertação (Mestrado) – UnB. Brasília, 2004.         [ Links ] Ver, ainda, RÜSEN, Jörn. A razão histórica: teoria da história, os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Ed. UnB, 2001.         [ Links ]

8 Exemplar nesse sentido é a reflexão algo pessimista de JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997. O autor cita Jameson rapidamente na página 23.         [ Links ]

9 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-RIO, 2006.         [ Links ]

Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior – Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Departamento de História. BR 101, Km 01, Lagoa Nova. 59078-970 Natal – RN. [email protected].