Hobbes e a liberdade republicana – SKINNER (HP)

SKINNER, Quentin. Hobbes e a liberdade republicana. São Paulo: Editora Unesp, 2010 (Tradução de Modesto Florenzano), 214 p. Resenha de: CARVALHO JÚNIOR, Eduardo Teixeira. A metodologia de Quentin Skinner e o conceito de liberdade em Hobes. História & Perspectivas, Uberlândia, v. 26, n. 49, 8 mar. 2014.

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A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845) – ARAUJO (HH)

ARAUJO, Valdei Lopes. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008, 204pp. Resenha de: TURIN, Rodrigo. Experiência, história e modernidade no Brasil oitocentista. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, p.299-305 março 2010.

Experiência, história e modernidade no Brasil oitocentista 300 Apresentado originalmente como tese de doutoramento junto à PUC-Rio, em 2003, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845), de Valdei Lopes de Araújo, não era um trabalho desconhecido aos estudiosos da historiografia brasileira oitocentista. Ainda em seu formato de tese, já havia se tornado uma referência incontornável ao debate acadêmico sobre a formação de um conceito moderno de história no Brasil. Sua publicação pela editora Hucitec, dentro da importante coleção Estudos Históricos, vem, portanto, fazer justiça à valiosa contribuição representada por seu trabalho, cujos desdobramentos se estendem em uma série de artigos e capítulos de livros. Essa publicação vem somar-se, igualmente, aos recentes trabalhos realizados sobre a história dos conceitos, referentes tanto ao Brasil em particular, como também ao mundo Ibérico – com destaque para o Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil (cujos verbetes farão parte de um Diccionario político y social iberoamericano), para o qual Valdei também contribuiu, em parceria com João Paulo Pimenta, escrevendo sobre o conceito de “história”. (FERES JÚNIOR; JASMIN 2007; FERES JÚNIOR 2009; SEBASTIÁN; FUENTES 2002; PADILLA 2002; PADILLA 2008). Aliam-se aqui, com extrema competência, trabalho historiográfico e reflexão teórica, numa definição de historiografia que tem se mostrado cada vez mais necessária e, felizmente, ampliada em nosso campo – para o qual Valdei Araújo, deve-se dizer, tem contribuído como poucos, não apenas com seus trabalhos, como também na organização de espaços que possibilitam a troca e o debate entre os especialistas.

A hipótese central de A experiência do tempo vincula-se às célebres investigações capitaneadas por Reinhart Koselleck acerca da formação dos conceitos fundamentais da Modernidade, cujos resultados encontram-se na monumental obra coletiva Geschichtliche Grundbegriffe. Lexikon zur Politischezocialen Sprache in Deutschland, organizada com Werner Conze e Otto Brunner.

De acordo com a tese de Koselleck, entre 1750 e 1850 houve uma transformação no sentido dos conceitos sócio-políticos no mundo linguístico germânico, assim como a criação de neologismos que denunciavam uma mudança no modo como o passado e o futuro (ou “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”, entendidos como categorias meta-históricas) eram relacionados enquanto “forma” da experiência. A produção de uma crescente assimetria entre essas categorias fez com que as expectativas em relação ao futuro se desvinculassem de tudo quanto as experiências do passado tinham sido capazes de oferecer aos homens no presente. Com isso, o próprio tempo era alçado a “objeto” da experiência, assumindo um caráter reflexivo cujo resultado seria a própria formação do conceito moderno de história como um singular coletivo (KOSELLECK, 2006). Koselleck denomina esse período de forte mudança conceitual como Sattelzeit – uma espécie de antecâmara da Modernidade propriamente dita (Neuzeit). O que as investigações de Valdei Lopes de Araújo sugerem é justamente a existência de um análogo ao Sattelzeit kosellekiano para o Brasil oitocentista.

A hipótese que permeia suas investigações está centrada em uma “real descontinuidade discursiva” e conceitual ocorrida na década de 1830 (pp.19-20). Esta descontinuidade caracteriza-se, como mostra o autor, pela formação de uma experiência moderna do tempo no Brasil, marcada por uma crescente historicização da realidade, frente à experiência dos letrados provenientes do ambiente ilustrado português, ainda presos a modelos cíclicos. Assim, entre a geração que participou do processo de independência e aqueles que se veriam incumbidos da tarefa de construir uma narrativa identitária nacional, uma nova rede semântica foi configurada – ao mesmo tempo índice e fator de um novo espaço de experiência que marcava a inserção do Brasil na Modernidade. No desenvolvimento desta tese central, Valdei Araújo discute uma ampla variedade de tópicos e autores, cuja articulação, além de reforçar o sentido de seu argumento, permite vislumbrar a extensão abarcada por essa mudança conceitual em seus níveis ético, estético, político e intelectual. Não podendo, aqui, fazer jus à riqueza trazida por suas análises desses diversos tópicos, concentrarei minha leitura em torno de duas noções mais gerais que permeiam sua narrativa e que, igualmente, me permitem organizar alguns problemas envolvendo o meu próprio interesse na historiografia oitocentista. Estas noções são as de “descontinuidade” e de “Modernidade”.

As duas partes que dividem A experiência do tempo estruturam a forma narrativa e analítica através da qual o autor apresenta esse processo de descontinuidade conceitual. Na primeira, centrada nos textos de José Bonifácio, Valdei Araújo realiza uma apurada análise semântica dos termos através dos quais Bonifácio, expressando uma consciência de crise do Império lusitano, procurava orientar as ações necessárias para sua solução. Seus projetos de reformas ilustradas, definidas em momentos sucessivos, apoiavam-se nos conceitos de “restauração” e “regeneração” – o primeiro indicando a expectativa de restaurar o velho Portugal e, assim, “anular” a aceleração do tempo (p.36); enquanto o segundo já guardava em si uma maior abertura à temporalidade, ao movimento, apesar de manter-se ainda ligado a uma compreensão “cíclica e fechada do desenvolvimento das civilizações” (p. 59), vendo na emancipação do Brasil a possibilidade de um novo começo pautado por princípios imutáveis, em conformidade com a Razão iluminista. A análise dos textos de Bonifácio indica, assim, um movimento direcionado a uma crescente temporalização dos conceitos políticos, sociais e estéticos, mas cujas limitações, além de carregarem seus escritos com algumas ambiguidades, como afirma Valdei, seriam explicitadas pela própria marcha dos eventos. Para a geração que se ocuparia do processo de organização de um Estado Nacional, a continuidade de um mundo lusobrasileiro inscrita no sistema andradiano mostrar-se-ia cada vez mais problemática. Uma das contribuições mais valiosas da tese de Valdei Araújo está justamente em mostrar como esse processo levaria à elaboração de um sentido da história brasileira centrada nos termos “metrópole” e “colônia”, garantindo sua individualidade histórica.

Na segunda parte do livro, o autor nos apresenta o movimento de ruptura com a rede semântica herdada dessa geração de Bonifácio; uma ruptura que, como parece sugerir, também se expressaria numa oposição entre conceitos ilustrados e conceitos românticos. Enquanto para Bonifácio a história se vinculava ainda a um trabalho “fundamentalmente descritivo” e a diversidade dos fenômenos poderia ser organizada “com base nas leis gerais da natureza”, para a geração de Gonçalves de Magalhães e dos sócios do IHGB os conceitos centrais vão revestir-se de “uma espessura histórico-cultural” (p.104). Mesmo quando um autor como o Visconde de São Leopoldo vincula o IHGB às ideias da “ilustração”, para Valdei Araújo essa noção de ilustração se mostra distante do “quadro fechado e cíclico” da geração anterior (p.149). Assim, diferentemente de outras interpretações que vêem a tradição ilustrada presente nos trabalhos do IHGB, como também um de seus fundamentos (GUIMARÃES 2006), o autor associa a formação de uma consciência histórica moderna no Brasil mais diretamente ao romantismo e sua ruptura com os conceitos iluministas – daí o lugar central que destina ao texto de Gonçalves de Magalhães publicado na Revista Nitheroy, no qual a noção de literatura assumiria os atributos do conceito moderno de história (p. 121). Mais do que um processo de historicização, Valdei destaca assim o caráter de quebra e ruptura que caracteriza essa descontinuidade conceitual entre as duas gerações. Desse modo, como afirma, “o fundamental é perceber como conceitos centrais adquirem uma nova qualidade”, e, portanto, a “permanência de uma retórica da nação esconde o fato de já não se falar mais da mesma coisa” (p.104). De fato, como salienta com propriedade o autor, a continuidade de um mesmo vocabulário não pode ser tomada como índice de uma identidade conceitual entre períodos históricos distintos. As análises de Valdei Araújo, nesse sentido, são primorosas em detectar o caráter das mudanças na forma de experimentar o tempo abertas com o processo de emancipação, direcionando as expectativas daquela geração à necessidade de conceitualizar um sentido propriamente histórico para a nação brasileira em sua individualidade. Contudo, me parece igualmente que uma demarcação rígida, seja cronológica ou conceitual, entre o “antigo” e o “moderno” a partir de determinadas oposições pode gerar algumas dificuldades na compreensão das dinâmicas específicas que essa nova forma de experimentar o tempo assume nos textos desses autores.

Nos escritos de Bonifácio, como mencionado, já ocorria uma sensível temporalização dos conceitos (ainda que limitada), manifestada, por exemplo, no uso ambíguo da palavra “modernidade”(p. 82). Do mesmo modo, no trabalho de historicização da realidade levada a cabo pela geração seguinte não estariam ausentes, como nota o autor, elementos característicos de uma rede conceitual anterior, a exemplo da manutenção dos “antigos” enquanto clássicos e modelos de emulação, certas noções ligadas a uma concepção “cíclica” da história ou, ainda, ideias universais iluministas. É na constatação dessas permanências – e não no conjunto das transformações semânticas apresentadas no livro – que a interpretação de Valdei nos encaminha a uma reflexão teórica. Para o autor, a permanência das referências a autores da tradição clássica, por exemplo, não poderia ser confundida com algum tipo de continuidade conceitual com a geração de Bonifácio (p. 150). Essa aparente permanência se explicaria, antes, por uma “metaforização”. Ainda que o autor não explore o sentido desse termo, não podemos esquecer que as metáforas, como os conceitos e mesmo os lugarescomuns, também exercem um papel estruturante (BLUMENBERG 1995). Se, por um lado, Valdei mostra de maneira convincente a formação de um novo campo de experiência que se abre como “desenvolvimento progressivo de uma identidade”, logo, da historicidade; por outro lado, certas permanências como a do uso dos clássicos como figuras de autoridade, seja estética, seja moral, dentro da fórmula da historia magistra vitae, não deixam de colocar alguns problemas a esse quadro de análise. Entender essas presenças como “estratégia compensatória” (p. 97), “metaforização” (p. 150), “hesitações iniciais” (p. 147) ou como falta de uma “compreensão sintética” das forças que compunham um entendimento moderno da história (p. 144), talvez signifique desconsiderar a efetividade que elas realmente desempenhavam na representação histórica desses autores e, desse modo, erigir obstáculos para a compreensão da singularidade dos modos como a história foi conceitualizada e experimentada no Brasil oitocentista. Ao final do livro, o autor salienta essas ambiguidades expressas por permanências, vinculando-as à ausência do conceito de “evolução” – cujo aparecimento só se daria na década de 1870 e sem o qual os autores da geração romântica não poderiam “juntar passado, presente e futuro em um progresso linear e sem ruptura” (p. 184). O problema é que a explicação, nesse ponto específico, concentra-se em um “ainda não”, caracterizando essas permanências de modo negativo, como resquícios ou atavismos de uma outra época conceitual. O entendimento da positividade dessas permanências dentro de um processo de transformação da rede semântica, no entanto, só viria reforçar e enriquecer o dinâmico panorama de reformulação conceitual apresentado em a Experiência do tempo.

Nesse sentido, algumas das ambiguidades que se mostram nesses autores talvez possam ser esclarecidas num esforço constante de nós, historiadores, esclarecermos as perguntas que nos fazem ver tais ambiguidades. O próprio uso do modelo koselleckiano de Modernidade, universalizado a partir de certas oposições, pode acabar gerando distorções, arcaísmos e ambiguidades que, antes de serem inerentes aos próprios textos estudados, são projeções das lentes através das quais os enxergamos. Preocupação semelhante foi colocada por Elias Palti: “Na medida em que modernidade e tradição aparecem como blocos perfeitamente coerentes e opostos entre si, as contradições na história intelectual aparecerão necessariamente como resultado de uma espécie de assincronia conceitual, isto é, a superposição de duas épocas históricas diversas” (PALTI 2007a, p. 64; PALTI 2007b). O desafio para a realização de uma história dos conceitos em espaços culturais distintos daquele analisado por Koselleck, portanto, é manter sempre esse instrumento heurístico aberto, como algo que nos permite interrogar os textos, mas sem deixar, ao mesmo tempo, de fazer o movimento de retorno, revendo e refigurando os instrumentos de nossas indagações. Só assim, acredito, seria possível abrir uma dimensão verdadeiramente comparativa não apenas dos regimes de historicidade, mas também das diversas configurações do que o conceito de Modernidade pretende ou pode abarcar. A permanência dos antigos enquanto fonte de autoridade, para usar o exemplo já citado, não poderia ser entendido, talvez, como um índice do lugar fundamental que as concepções hierárquicas desempenhavam no Império do Brasil, levando ao reconhecimento e à valorização da assimetria implícita na noção mesma de autoridade (D’ALLONNES 2006)? Independente da validade dessa hipótese, o desafio, me parece, é reconstruir a efetividade desses elementos na estruturação da rede conceitual onde aparecem. Se o modelo nos permite ver certas semelhanças e diferenças, a questão, enfim, é entender como essas diferenças ganham sentido na forma como esses letrados e políticos experimentavam o tempo – naquilo que toda experiência tem de singular e geral, de continuidade e inovação. Com isso, outros momentos importantes desse processo de historicização poderiam ser articulados às valiosas descobertas de A experiência do tempo, seja em recuo, como a década de 1770, com o ambiente erudito ilustrado português, seja avançando, caso da década de 1870, cujas expectativas específicas levaram a um movimento forte de democratização, ideologização e secularização dos conceitos históricos e políticos. Somente futuras investigações, contudo, poderiam verificar a pertinência e validade dessas articulações.

O livro de Valdei Lopes de Araújo, enfim, é decisivo justamente em nos encaminhar esses e outros problemas fundamentais para a compreensão do processo de formação de um conceito moderno de história no Brasil, nos mostrando a importância da década de 1830 enquanto momento chave do processo de historicização da realidade e como esse processo esteve fortemente vinculado, no Brasil, à organização do Estado Nacional. A cirúrgica escolha do material, a maturidade da reflexão teórica e o vigor de sua interpretação estendem-se por todo o livro, garantindo uma exposição clara e segura, colocando-se de maneira franca ao leitor e ao mesmo tempo instigando-o a reagir ao texto. Como mencionei, A experiência do tempo abre inúmeras outras questões a serem desenvolvidas, firmando-se como uma referência central aos estudiosos de historiografia brasileira. E o melhor que se pode esperar de uma obra dessa natureza é justamente que suscite sempre novas indagações, gerando, com o prazer da pesquisa, novas intersecções entre presente, passado e futuro.

Referências

BLUMENBERG, Hans. Naufragio con espectador. Madrid: Visor, 1995.

D’ALLONNES, Myriam Revault. Le pouvoir des commencements. Essai sur l’autorité. Paris : Seuil, 2006.

FERES JÚNIOR, João; JASMIN, Marcelo (orgs). História dos conceitos.

Diálogos transatlânticos. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio/Loyola/IUPERJ, 2007.

FERES JÚNIOR, João (org). Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009.

GUIMARÃES, Manoel L. Salgado. “Entre as luzes e o romantismo: as tensões da escrita da história no Brasil oitocentista”, in: Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006a.

PADILLA, Guillermo Zermeño. “História, experiência e Modernidade na América Ibérica, 1750-1850”, Almanack Braziliense, n. 7, maio de 2008.

PADILLA, Guillermo Zermeño. La cultura moderna de la historia. Una aproximación teórica e historiográfica. México: El Colegio del México, 2002.

PALTI, Elias. “Temporalidade e refutabilidade dos conceitos políticos”, in: FERES JÚNIOR, João; JASMIN, Marcelo (orgs). História dos conceitos. Diálogos transatlânticos. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio/Loyola/IUPERJ, 2007a.

PALTI, Elias. El tiempo de la política. El siglo XIX reconsiderado. Buenos Aires: Siglo Veiuntuno, 2007b.

SEBASTIÁN, Javier Fernández, FUENTES, Juan Francisco (Eds). Diccionario Político y Social del Siglo XIX Español. Madrid: Alianza Editorial, 2002.

Rodrigo Turin – Pós-doutorando Universidade de São Paulo (USP) [email protected] Av. Prof. Lineu Prestes, 338 São Paulo – SP 05508-000 Brasil.

A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos – FERES JR (AN)

FERES JR., João. A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos. Bauru: Edusc, 2005, 317 p. Resenha de: BOVO, Cláudia Regina. Anos 90, Porto Alegre, v. 16, n. 29, p. 351-355, jul. 2009.

Nos últimos dois séculos, os debates em torno do significado de ser americano não possibilitaram a edificação de uma definição comum que fosse aceita e partilhada pelas três partes do continente Americano. A partir de uma mesma origem cultural ibérica, as porções centro e sul desenvolveram uma complexa relação de aproximação que, ao cabo, legou-lhes a designação integradora e, às vezes, generalizante de latino-americanos. Enquanto isso, devido a uma maior aproximação com os referenciais do velho mundo, a porção norte construiu sua autodefinição, tolhendo-se de qualquer vinculação identificadora com o centro-sul americano.

Diante deste quadro, a obra A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos, do cientista político João Feres Jr., traz à cena um exercício laborioso de reflexão sobre a construção histórica do conceito de Latin America. A partir da tentativa de entender os contornos apreciativos e pejorativos que Latin America adquire nos Estados Unidos, o autor dedica-se à pesquisa dos contornos semânticos que o conceito adquiriu tanto entre os textos acadêmicos, quanto no uso da linguagem cotidiana. Feres parte do princípio que a expressão

Latin America empregada pelos norte-americanos foi, e continua sendo, definida como uma imagem antagônica da America do Norte gloriosa.

Neste exercício histórico e também filosófico, Feres Jr. retoma ícones da Teoria do Reconhecimento, como Hegel, Charles Taylor e Axel Honneth, na tentativa de encontrar respaldo entre as ideias de constituição reflexiva da identidade e a negação radical do reconhecimento, promovida pelos norte-americanos, quando se comparam aos americanos do centro-sul. De acordo com as palavras do próprio Feres Jr., sua obra define-se por um “paradigma hegeliano de etnicidade em direção a uma moral negativa, quase kantiana”.

A divergência entre Feres Jr. e os teóricos do Reconhecimento reside no seu interesse pelo estudo das expressões linguísticas e, substancialmente, por conceber que a construção conceitual da expressão Latin America nega qualquer possibilidade de reconhecimento entre o “Eu” americano e o “Outro” latino-americano.

Atento à questão metodológica, Feres Jr. dialoga com outras referências a fim de evitar a sobreposição pura e simples de teorias.

Neste sentido, a partir da crítica à tipologia das formas de desrespeito de Axel Honneth e, com o auxílio da teoria semântica dos contraconceitos assimétricos de Reinhart Koselleck, Feres Jr. desenvolve uma nova categoria de análise que tipifica as formas de desrespeito praticadas pelos usos linguísticos norte-americanos.

Posto isso, torna-se possível a identificação de uma mesma expressão linguística, como Latin America, com os vários tipos de oposições assimétricas usadas no cotidiano. “O termo rural, ou mesmo o termo católico, dependendo do contexto onde é usado pode sugerir atraso” (oposição assimétrica temporal) “e inferioridade” (oposição assimétrica cultural ou até racial). Como a intenção de Feres Jr. é verificar as consequências ético-morais da linguagem de identificação praticada pelos americanos no ato de designar os latino-americanos, ele precisa resguardar a pluralidade de formas de denegrir a imagem do outro, as quais se encontram presentes nesses usos linguísticos.

Ao longo do capítulo dois, Feres demonstra que as referências pejorativas destinadas à identificação dos americanos das porções centro-sul aparecem em dicionários, jornais e até em discursos presidenciais desde o final do século XIX. Tais menções apresentam a expressão Latin America como herdeira de um conjunto de características que os norte-americanos julgavam negativas, como a religião católica, a mestiçagem étnica, o tradicionalismo das instituições político-sociais, o machismo, a acomodação em relação ao trabalho, entre outras. Latin America sedimenta-se como um território sem organização e ordem, seja esta cultural, política ou mesmo econômica.

A produção acadêmica do Latin American Studies também não se eximiu de colaborar com a extensão e a divulgação de visões pré-concebidas sobre a Latin America. Dialogando com as obras de Samuel Huntington, Lyle Maclister e Teodore Wyckoff, Feres apresenta no terceiro e quarto capítulos as análises acadêmicas sobre a modernização da Latin America e a literatura da estabilidade política latino-americana, reconhecendo-a como promotora dos interesses da política externa norte-americana durante os anos 60.

De acordo com Feres, estes cientistas sociais colaboraram para justificar, junto à opinião pública dos EUA, a intervenção e o treinamento militares em projetos de coibição do desenvolvimento do comunismo no continente. Atrás do discurso da estabilidade política e da modernização latino-americana, eles sustentaram a fraqueza política, militar e econômica da região. Segundo o argumento de Feres, “salvar a Latin America do comunismo representava também um meio de garantir a continuação da influência e rentabilidade do capitalismo na região”. É importante destacar que, muitas vezes, devido a interesses econômicos e territoriais na região centrosul americana, os norte-americanos supervalorizavam as depreciações como forma de justificar o seu domínio natural na condução do progresso continental.

Até mesmo a produção de livros-textos para a introdução ao estudo de Latin America nas universidades dos EUA, ainda hoje, contribuem com a reprodução de estereótipos negativos sobre a cultura latino-americana. Feres finaliza sua construção argumentativa, apresentando alguns best-sellers utilizados nas graduações americanas: dentre os principais estão Modern Latin America, History of Latin America, Latin America: a concise interpretative history e Latin American politics and development. O que se percebe, ao longo da leitura do sétimo capítulo, é a preocupação de Feres em destacar, por meio das capas das referidas obras, a questão da depreciação racial que aparece velada no texto escrito. Em tais capas, obras de artistas sul-americanos são apresentadas fora do seu contexto de produção, sendo utilizadas para corroborar duas visões bem preocupantes sobre a Latin America: “um objeto a ser apropriado ou usado, ou um perigo a ser gerenciado ou evitado”.

Ao longo de mais de trezentas páginas, Feres Jr. nos conduz a um universo de hostilidade justificada, que nos choca num primeiro momento, enfurece-nos em seguida e, finalmente, sensibiliza- nos. Choca-nos, pois, diante da construção conceitual de mais de um século, fomos diminuídos e identificados, sob os mais diversos aspectos, como homens fora do tempo da prosperidade do Novo Mundo. Enfurece-nos, porque, através da medida de valor norte-americana, incorporamos uma incapacidade natural de superar nossos próprios desafios, deixando aparentar que nascemos e crescemos tortos por nos desviarmos da ajuda e, principalmente por invejarmos o estilo de vida americano (American way of life). E, finalmente, sensibiliza-nos, pois não queremos ter para com eles a mesma atitude de desprezo, receio ou preconceito.

Porém, o trabalho de Feres merece duas ressalvas. A primeira diz respeito à ideia de que os Estados Unidos manipularam o continente Americano livremente, como se agissem isoladamente, sem o apoio e mesmo a cumplicidade das autoridades políticas latinoamericanas.

Na realidade, muitos eventos se desenrolaram seguindo interesses de grupos políticos e financeiros pertencentes aos próprios países latino-americanos.

A segunda ressalva refere-se ao perigo do leitor, munido das análises oferecidas por Feres Jr., tornar os Estados Unidos o algoz latino-americano, como o Caliban de Rodó, culpando-o por nossos próprios tropeços.

Apesar dessas observações, não podemos deixar de salientar o cuidado de João Feres Jr. em situar claramente suas referências teóricas, desenvolvendo seus argumentos de modo a não tornar absoluto o discurso da alteridade, justificando o enaltecimento do “outro” americano (latino-americanos). Além disso, A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos nos permite mais uma indagação a respeito de como concebemos nossa própria identidade e o pertencimento ao continente Americano.

Em certa medida, o norte construiu sua identificação como americanos, enquanto ao centro-sul coube, ora de forma imposta, ora de maneira endógena, a designação de latino-americanos. Fica difícil não reconhecer que o norte soube construir sua herança derivada diretamente do nome continental; ao passo que o centro-sul recebeu um nome adjetivado a partir do designativo étnico “latino”, cuja procedência é externa ao continente Americano. Dentro dessa perspectiva, eles seriam os americanos, “filhos legítimos” do Novo Mundo, enquanto os outros povos que vivem no continente se transformariam em “filhos bastardos”, frutos de uma mistura mal identificada e, portanto, mal resolvida.

Assim, enquanto a América Latina não conseguir estabelecer sua identidade a partir do que ela realmente quer ser, continuará sendo alvo de estereótipos e definições generalizantes como aqueles apresentados pela obra de João Feres Jr.

Cláudia Regina BovoProfessora do Departamento de História da Universidade Federal do Mato Grosso, doutoranda em História/Unicamp. Endereço Eletrônico: [email protected].

A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos – FERES JR (EH)

FERES JÚNIOR, João. A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos. Bauru: Edusc-Anpocs, 2005, 317p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. “Latin America”: entre o politicamente correto e o conceitualmente inadequado. Estudos Históricos, v.22 n.44 Rio de Janeiro July/Dec. 2009.

Apenas recentemente a história conceitual começou a ser um campo de investigação promissor na pesquisa histórica brasileira. Prova disso, mesmo que parcial, é que apenas em 2001 se fez a tradução do livro Crítica e crise de Reinhart Koselleck, a famosa tese do autor publicada originalmente em 1959, e em 2006, de seu grande livro Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, originalmente um conjunto de ensaios reunidos em livro em 1979, com os quais o autor se tornou uma referência internacional nos estudos sobre a história conceitual. Tudo indica que o momento tem sido fértil para que ocorram as primeiras apropriações deste importante autor nos estudos históricos desenvolvidos no Brasil neste campo de pesquisa.

Muito embora João Feres Jr. tenha defendido seu PhD nos Estados Unidos (pesquisa equivalente ao doutoramento no Brasil), a partir de sua estadia de oito anos em Nova York, após defender sua dissertação de mestrado em filosofia política na Unicamp, seu trabalho foi um exemplo de uso bem-sucedido da obra de Reinhart Koselleck para fazer uma história conceitual do termo Latin America.

Desde 2003 Feres Jr. é professor de ciência política no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), e em 2004 sua tese recebeu o prêmio de melhores teses do ano no concurso da Edusc-Anpocs, na área de Ciência Política, cuja função é tornar públicas as pesquisas com o financiamento integral de sua publicação. No Brasil, é um dos coordenadores do projeto de História Conceitual Comparada do Mundo Ibérico, que inclui quatro outros países (Espanha, Argentina, Colômbia e México), e há cinco anos coordena, com Marcelo Jasmin, o grupo de História das Ideias e Conceitos Políticos, que tem promovido encontros regulares para a discussão de aspectos metodológicos e de questões cruciais da história conceitual.

Por essa e por outras razões, seu texto é um bem-sucedido exemplo de uso crítico da obra de Reinhart Koselleck para elaborar uma história conceitual de Latin America. Diz ele, para justificar tal estudo, que:

Os termos usados para identificar povos, culturas e regiões do mundo têm sido, nos últimos tempos, sujeitos à revisão crítica. Isso é particularmente verdadeiro na sociedade americana, em que os temas do multiculturalismo e do respeito à diferença se tornaram candentes (…). É interessante notar, contudo, que algumas denominações étnicas escapam dessa onda revisionista. Provavelmente isso se deu porque elas não são explicitamente insultantes. Esse é o caso de Latin America, um termo amplamente usado no inglês contemporâneo e que, portanto, parece ter passado no teste do politicamente correto da sociedade americana. Entretanto, acredito que o conceito de Latin America tem sido de fato um instrumento de representação distorcida daqueles que os americanos percebem como Latin Americans e, consequentemente, um meio que contribui para o tratamento assaz desigual historicamente dispensado a essa gente, tanto àqueles que vivem no sul do Rio Grande quanto àqueles que vivem nos EUA como imigrantes “latinos”. (p. 9-10)

Nesse sentido, sua pesquisa procurou circunscrever o que quer dizer Latin America e quais seus usos no inglês americano. Com base na análise dos principais significados atribuídos ao termo, tanto na linguagem comum quanto “nos textos produzidos por especialistas das ciências sociais”, definiu a seguinte tese para a sua proposta de investigação:

(…) de que Latin America tem sido definida no inglês americano, tanto na linguagem comum quanto nos textos especializados, como o oposto de uma autoimagem glorificada da America (…) demonstrarei essa tese através de um experimento semântico parcimonioso que requer apenas um mínimo de informação histórica (…) tratarei de mostrar que, no inglês usado hoje em dia, há uma assimetria fundamental entre a percepção do Eu coletivo americano e do Outro Latino Americano. (p. 10)

Para demonstrar adequadamente sua tese, Feres Jr. preocupou-se inicialmente “com a procura de um termo semanticamente assimétrico ao conceito de Latin America em inglês”. Como ele explica, nem North America, que possui um caráter mais geográfico, nem Anglo-Saxon America, com maior ligação linguística, formavam correspondentes assimétricos adequados à comparação com Latin America, o que foi averiguado com o termo Germanic America, ou Teutonic America. Mesmo que de uso corrente no século XIX, após as guerras mundiais das primeiras décadas do século XX este termo entrou em desuso. No entanto, ele é um termo assimétrico mais pertinente que Anglo-Saxon America (que é de uso mais corrente na língua norte-americana hoje) por trazer “conotações racistas claras”. “Mas se essa intuição está correta, se Latin America também é um termo chave de um discurso racista, esse discurso deve ter uma natureza diferente do pangermanismo ou do anglo-saxonismo, pois não aparece de maneira explícita”. De modo que uma “tese auxiliar desse trabalho é a de que o discurso das ciências sociais contribui para esse ocultamento” (p. 13).

A forma clara e direta com que o autor faz a exposição de sua tese na pesquisa talvez oculte, num primeiro olhar, o trabalho árduo e cansativo que sua comprovação acarretou, ainda que a maneira com que ele demonstra seus argumentos possa parecer “óbvia”. Tal como ele indica:

O leitor atento já deve ter corretamente adivinhado que muitos dos significados pejorativos identificados na análise dos verbetes do OED e nos textos de Martin e Smith serão revelados pela análise do significado do conceito, seja na linguagem comum, seja nos discursos sociocientíficos (…). Contudo, mais interessante e revelador não é saber que eles lá estão, mas compreender em que momento histórico eles aparecem ou são deixados de lado, entender as conexões entre uma determinada definição histórica de Latin America e as ações dos homens que dela se serviram, verificar quais significados resistiram ao passar do tempo e através de qual retórica, e saber quais as implicações do uso do termo no passado e nos dias de hoje. São esses conhecimentos que o percurso do trabalho presente pretende revelar (p. 27).

O que o leitor tem, assim, “em suas mãos” é um livro sério e criterioso, muito bem pensado e formulado. Não há como negar, desde já, que a sua contribuição é dupla e evidente: contribui diretamente, de um lado, para o avanço dos estudos sobre a história conceitual produzidos no Brasil, e, de outro, para que possamos constatar que a aparente conotação politicamente correta atribuída pelos norte-americanos a Latin America e a Latin Americans, na verdade, camufla e condiciona a uma suavização as concepções racistas inerentes, que os termos inicialmente ocultam na linguagem comum e nos estudos especializados, e que servem de base para os textos usados nas universidades norte-americanas ensinarem a história da América Latina a seus alunos. De acordo com ele:

Esse não é, contudo, simplesmente um livro de história. A história conceitual praticada aqui está intimamente imbricada com um projeto crítico de desvendamento do mundo presente com vistas a transformá-lo. Portanto, a questão do significado moral da definição do Outro como mera negação da autoimagem de um Eu coletivo deve preceder a própria análise histórica do caso em questão. A teoria do reconhecimento me parece ser um bom ponto de partida para a discussão das implicações morais do problema em questão, uma vez que seu tema é a constituição reflexiva da identidade através da análise fenomenológica do encontro entre Eu e Outro (p. 23-4).

Num trabalho de ciência política dividido em sete capítulos muito bem articulados e escritos, não é de se estranhar que o autor comece por estudar e por definir, no primeiro capítulo, uma tipologia das formas de desrespeito do “Eu coletivo norte-americano” para com o “Outro latino americano”. E isso é feito a partir de uma reformulação e ampliação crítica da história conceitual preconizada por Reinhart Koselleck em seu livro Futuro passado (1979), no qual este discutiu a noção de contraconceito assimétrico, e de uma síntese crítica da teoria do reconhecimento de Axel Honneth, apresentada em sua obra The struggle for recognition: the moral grammar of social conflicts (1995).

Essa tipologia se caracteriza, desse modo, por analisar: a) a oposição assimétrica cultural; b) a oposição assimétrica temporal; c) e a oposição assimétrica racial. Para Feres Jr., a “oposição assimétrica é uma das formas semânticas que o desrespeito pode assumir quando articulado através da linguagem, e uma das mais radicais, pois o Eu vê no Outro somente reflexões invertidas de sua própria autoimagem. Portanto, essa tipologia de formas de oposição assimétrica é também uma tipologia de formas de desrespeito”, com as quais, seja no senso comum, seja nos estudos especializados, avaliam, mesmo que implicitamente, os latino-americanos como inferiores aos norte-americanos.

Para comprovar essa dedução, no capítulo seguinte, o autor evidencia como surgiram tais conceitos na história dos Estados Unidos, promovendo um estudo do senso comum, para demonstrar quais usos de Latin America Latin Americans foram e ainda são feitos. Com base em sua tipologia, ressalta como as oposições assimétricas cultural, temporal e racial se desenvolveram e, às vezes, coexistiram no decorrer dos séculos XIX e XX, expressando formas de desrespeito ora explícitas, ora implícitas, à Latin America e aos Latin Americans. Nesse aspecto, não se limita às expressões linguísticas e aos seus significados, mas também analisa a iconografia que foi produzida no período. Pode-se argumentar aqui que, embora o autor não tenha verificado como os EUA, nas primeiras décadas do século XX, já impunham esses discursos e imagens aos países latino-americanos, muitas pesquisas produzidas no Brasil (e em outros países) têm se preocupado em demonstrar que tipos de discurso, artigos e imagens eram projetados em jornais e revistas, pelos norte-americanos (enquanto civilização racional, protestante, desenvolvida e imperialista), sobre os latino-americanos (na maioria das vezes identificados como uma civilização irracional, católica, ibérica e subdesenvolvida).

Para o autor, o “estudo dessa modalidade discursiva, tão importante para as sociedades de hoje, não tem merecido grande atenção por parte da história conceitual”, mas “a comparação entre a semântica do conceito no discurso das ciências sociais e na linguagem comum constitui uma oportunidade ímpar de análise e crítica” (p. 77-8). Não foi, então, por acaso que nos quatro capítulos seguintes Feres Jr. passou em revista a semântica do conceito de Latin America e os seus diferentes usos nas ciências sociais, percorrendo o imperativo da modernização, as discussões sobre a estabilização política, os estudos sobre dependência (mesmo considerando que neste caso houve uma apropriação, principalmente, das obras de Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faleto e André Gunder Frank pelos estudiosos norte-americanos) e os estudos do corporativismo (com atenção especial para a obra de Howard Wiarda). Da mesma forma, usou sua tipologia, constatando formas semelhantes de desrespeito, antes já expressos na linguagem comum e agora visualizados também na modalidade discursiva sociocientífica. Destaca que houve uma explosão desses estudos, após a Revolução Cubana de 1959, que, despertando os norte-americanos para o “perigo do comunismo” na América Latina, permitiu a formação de grupos de pesquisa e centros especializados nesses estudos nos EUA. De acordo com seu apêndice número 1 (apresentado à página 287), enquanto entre 1951 e 1960 houve 91 publicações no gênero, na década seguinte, entre 1961 e1970, o número passou para 328, e entre 1991 e 2000, para 502.

No último capítulo do livro, Feres Jr. se preocupou em saber quais eram os livros-texto mais lidos e usados nas disciplinas sobre a história da América Latina oferecidas nos cursos de graduação das universidades norte-americanas. Ele observa, principalmente, as obras que figuravam na bibliografia básica das disciplinas, dando ênfase aos mais citados. O capítulo é verdadeiramente primoroso, pois além de fazer um recenseamento exaustivo, ocupa-se também dos principais usos atribuídos por esses livros-texto aos termos Latin America e Latin Americans. Desse modo, a “história do conceito de Latin America no inglês americano revela a presença persistente de oposições assimétricas estruturando seu campo semântico”, tendo sido definida “implícita ou explicitamente, em oposição a uma imagem idealizada da America (Estados Unidos)”. E, ainda “que o foco central do livro tenha sido o discurso sociocientífico, o campo semântico do conceito na linguagem comum foi estabelecido, entre outras finalidades, para servir-lhe de parâmetro de comparação”, até porque, ao “passo que as oposições assimétricas temporal e cultural foram mantidas ou até mesmo amplificadas, a oposição assimétrica racial foi, no mais das vezes, silenciada” (p. 280-1). Por fim:

(…) temos a longa história das relações políticas dos EUA com seus vizinhos do sul (…). O problema mais sério e profundo do discurso dos Latin American Studies está na própria semântica do conceito, estruturado pelas oposições assimétricas que definem Latin Americans como seres destituídos de agência e de razão, como coisas (…). Assim percebemos que a negação do reconhecimento denotada pela semântica do conceito vai muito além do mero uso de uma linguagem insultosa, ela traduz-se em ações das mais concretas de negação da autonomia desse outro da America na América. Essa negação do reconhecimento só é amplificada pelo raciocínio sinedóquico que consistentemente ignora a maneira como as pessoas experimentam suas vidas como membros de uma comunidade política, de uma sociedade (p. 286).

Esse livro oferece, consequentemente, uma interpretação consistente e articulada da maneira como a América Latina e os latino-americanos foram historicamente analisados pela linguagem comum e pelos estudos norte-americanos especializados. Mostra como uma terminologia, ainda que considerada politicamente correta pela sociedade que a utiliza, pode ser conceitualmente inadequada, por guiar um conjunto de formas de desrespeito (cultural e racial) inerentes às suas acepções semânticas. Pode-se até questionar a amostra selecionada, por não cobrir todas as ciências sociais ou todos os textos das áreas selecionadas e analisadas na pesquisa, assim como se pode alegar que sua interpretação do senso comum não revela a totalidade do processo, nem todos os seus diferentes significados. Mas não há como negar que este é um livro pioneiro sobre o tema, sendo ao mesmo tempo sugestivo e instigante. Sem dúvida alguma, ele será uma referência, por rever um conhecimento herdado e permitir ao leitor (também) transformá-lo.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil, bolsista do CNPq e professor dos cursos de História e de Ciências Sociais na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Campus de Amambai, em afastamento integral para estudos ([email protected]).