Nine worlds of Seid-Magic: ecstasy and neo-shamanism in North European paganism | Jenny Blain

Em 1854 um dos primeiros estudos acadêmicos sobre religião nórdica foi publicado. Realizado pelo historiador norueguês Rudolph Keyser, o livro The religion of northmen concedia muito pouco espaço para a prática mágica do Seiðr, estrategicamente discutida num capítulo intitulado “feitiçaria”. Segundo este pesquisador, o Seiðr teria um caráter secreto e muito misterioso (KEYSER, 1854). Mesmo a tradução exata da palavra sempre foi muito debatida. Em 1935 D. Strömbäck publicou um estudo clássico sobre o tema, Sejd: Textstudier I nordisk religionhistoria, o primeiro a propor a conexão entre práticas xamanistas lapônico-finlandesas e os cultos Vikings (1), retomada parcialmente por Eliade em 1951 (Le chamanisme) e plenamente por Thomas DuBois em 1999 (Nordic religions in the Viking Age).

Dentro do contexto desse debate, a antropóloga norte-americana Jenny Blain apresenta sua mais recente contribuição: o livro Nine worlds of Seid-Magic. A principal proposta da autora não é realizar um estudo historiográfico ou literário, mas sim entender o desenvolvimento do Seiðr dentro da sociedade moderna, seus valores e sua relação com a prática original da Idade Média. Para entender essa conexão, ela utiliza a metodologia dos estudos de gênero, principalmente as teorias de J. Butler; análise de fontes literárias do século 12 à 14 e observação participante de vários meses com praticantes de neo-xamanismo europeu e indígenas da América do Norte.

Afinal, o que é Seiðr? Para Boyer (1981, p. 144) a palavra significaria tanto “canto” como “união”, ao contrário da maioria das traduções, que entendem a mesma como “feitiçaria” (WARD, 2001). Por sua vez, Jenny Blain prefere utilizar vários conceitos ao longo do livro, testando todos conforme o contexto analítico. O que todos concordam é que o Seiðr teria sido uma prática mágica realizada essencialmente por mulheres (seiðkonas) durante a Era Viking, algumas vezes utilizando cantos, outras vezes utilizando técnicas de adivinhação.

Os primeiros quatro capítulos do livro são dedicados a contextualizar as práticas do Seiðr moderno, questões conceituais e introdutórias, além de descrições de narrativas xamanísticas. É a partir do capítulo 4 (Approaching the spirits), que a obra se torna mais interessante aos estudos historiográficos. Blain retoma o conceito de Mircea Eliade para explicar o fenômeno do xamanismo, isso é, seria toda técnica de êxtase para alcançar experiências em outro mundo. Logo de início a autora tem uma constatação muito interessante: não há nas sagas elementos primordiais ao xamanismo – a supremacia de homens nos cultos, a ocorrência de tambores ritualísticos e a existência do xamanismo como um prática central na comunidade (toda ela aceitando o ritual). Sabemos que no Seiðr Viking as mulheres eram preponderantes, mas era a religião sob a forma de sacerdotes masculinos que prevalecia socialmente (com variações de culto). As seiðkonas eram marginalizadas ou mesmo estrangeiras atuando momentaneamente nas comunidades. E tambores nunca foram encontrados pela arqueologia e são mencionados raramente nas fontes.

A questão social do Seiðr é fundamental para Blain: quando as relações com as praticantes são negativas na comunidade, elas eram denominadas de fordæða (ou mesmo seiðkonas), mas ao contrário, quando estas relações eram positivas, elas eram chamadas de spákona. Outra técnica mágica conhecida na Era Viking, o Spá (profetizar), várias vezes confunde-se nas fontes com o Seiðr. Muitas das situações positivas das mulheres que realizavam magia registradas pelas sagas, refere-se ao papel profético ou de cantos mágicos realizados para benefício de alguns membros ou de toda a comunidade envolvida. Sempre associados com algum caráter de fertilidade e prosperidade. Como na situação em que uma mulher é chamada para resolver o problema da fome de um vilarejo (por meio de cantos obteve peixes…), ou na Groelândia, quando uma spákona foi solicitada para predizer o progresso da comunidade, algo que ela fez por meio da invocação de espíritos (varðlokur).

A situação mais complexa para análise são os momentos em que a magia feminina foi considerada maléfica, não importando a classe social da praticante. O caso mais famoso é a rainha Gunnhildr da Noruega, uma seiðkona, acusada de feitiçaria e atos malévolos. Para Blain, essa rainha encarnaria o protótipo do mal e da mulher vingadora no mundo nórdico, manifestado pela misoginia das fontes. Gunnhildr foi inimiga do célebre Viking Egil Sakalla-Grímsson.

O capítulo 7 (Ergi seiðmen, queer transformations?) analisa a polêmica relação entre homens e a magia Seiðr. A maior parte das fontes tratou os praticantes masculinos como Ergi, passivos sexuais ou efeminados. O problema é que nos dias atuais existem muitos homens que se envolvem com esse tipo de ritual nórdico e contestam esta visão (2). As fontes que tratam dessa circunstância são de dois tipos: as que se referem aos deuses e as que citam situações históricas. No primeiro tipo, temos as famosas passagens do Lokasenna 23, 24 e Ynglingasaga 7, onde o deus Óðinn foi acusado de ser Ergi, justamente por ter se envolvido com o Seiðr. Lembramos que esse tipo de magia era associada aos deuses Vanires, especialmente à deusa Freyja e existem registros de cultos ligados a sacerdotes efeminados (3).

No contexto histórico, existem dois episódios muito populares. Rögnvald, filho do rei norueguês Haraldr Finehair, com mais 80 homens acusados de praticar Seiðr, foram queimados – um ato totalmente aprovado pela comunidade (Haralds saga hárfagra 36). Outro rei, Óláfr Tryggvason, também mandou executar 80 seiðmaðrs (BLAIN, 2002: 112). Para analisar esses e outros episódios violentos, Blain recorre à teoria do chamado “terceiro gênero”, homens que encarnariam papéis tanto masculinos quanto femininos na sociedade nórdica. A principal sustentação para esse ponto de vista pela autora, é uma passagem do poema Hyndluljóð 32, que cita os três principais tipos de praticantes de magia nórdica: völvas (videntes, outro termo para spákonas e seiðkonas), vitkis (homens que praticavam a magia rúnica, Galldr, também chamados de galdramaður) e Seiðberender. Neste último, teríamos um exemplo de terceiro gênero – homens efeminados com papéis as vezes tolerados, as vezes reprimidos pela sociedade escandinava. Baseada na teórica inglesa J. Butler, a autora realiza uma interessante discussão sobre gênero, que não reside apenas no sexo biológico e nem confinado na oposição binária dos papéis coletivos, mas sim numa noção de performance: a atividade dos homens efeminados na comunidade e os limites de sua transgressão nas fronteiras fixas dos códigos e leis sociais sobre comportamento sexual.

Ainda nesse mesmo capítulo, influenciada pelas novas perspectivas da antropologia (como a obra de A. Salmond), Blain trabalha o conceito de religião como algo sempre mutável nas sociedades, recebendo influências externas, ao mesmo tempo que se modifica internamente no decorrer da História. O momento mais interessante é a discussão dos termos Ergi e Nið, dentro do contexto das fontes. Deixando sempre claro o uso dessas palavras como insultos, e seguindo reflexões do historiador sueco Meulengracht Sørensen, a autora envereda para o conceito de Nið com conotações políticas e sociais. Ela consegue vislumbrar (p. 131), que a acusação de Óðinn por Loki e os conflitos históricos mencionados, não se baseavam apenas nas categorias de gênero, mas faziam parte de uma oposição interna entre “os guerreiros de Óðinn” e os “praticantes de Seiðr”. E é justamente nesse instante que percebemos a maior deficiência do livro: poderia ter analisado muito mais a fundo essa perspectiva. Talvez se tivesse consultado o clássico Du mythe au roman, 1970, de Georges Dumézil, a autora teria elementos analíticos muito mais eficientes. Em um trecho rápido, mas extremamente denso, o famoso mitólogo explora o insulto a Óðinn e a queima histórica dos seiðmaðrs como reflexo de uma rivalidade religiosa interna ao mundo Viking, uma “magia nobre” – identificada ao deus caolho, e outra “menos nobre ou baixa”, vinculada à deusa Freyja e aos vanires (DUMÉZIL, 1992: 79-96).

Em nosso ponto de vista, o que estava em jogo na antiga sociedade escandinava não eram apenas relações de gênero e padrões de comportamento sexual, mas tensões entre diferentes formas de culto (4). A elite (Jarls), maiores cultuadores de Óðinn – onde presenciamos os casos de execução pública de homens praticantes de Seiðr; e ao contrário, as menções às mulheres do Seiðr nas fontes, nem sempre bem vistas, mas quase sempre necessárias nas comunidades de fazendeiros (bóndis) – justamente, a classe dos Karls, a exemplo do caso mencionado dos fazendeiros da Groelândia. Existiria um conflito direto entre formas religiosas públicas da elite (dominadas pelo referencial masculino/odinista) e a magia privada dominada por mulheres (cultuadoras de vanires)? Enquanto que nas comunidades de fazendeiros essas tensões seriam suplantadas pelas necessidades cotidianas, atendidas pelo Seiðr? E a misoginia das fontes é apenas influência do período cristão ou reflexo direto do pensamento Viking?

Essa é a perspectiva que acreditamos que sejam necessárias novas investigações, um caminho multi-disciplinar: o estudo entre as variações das formas de cultos + classes sociais + gênero + sexualidade, que geraram tanto as tensões sociais quanto os referenciais sobre homem e mulher na Era Viking. E também novos estudos linguísticos e historiográficos para entender com mais profundidade as noções de Seiðr, Nið e Ergi nas sociedades escandinavas cristãs dos séculos 12 a 14 (a época em que foram redigidas as fontes).

Sem ter a densidade analítica de autores acadêmicos como Boyer (1981), Davidson (1993) e DuBois (1999), o livro de Jenny Blain ainda assim será uma referência muito importante para todos aqueles que querem entender melhor o papel da magia e da religião no mundo nórdico medieval.

Agradecimentos: à historiadora Luciana de Campos, pelas informações sobre teoria de gênero e história das mulheres.

Notas

1. Infelizmente esse livro de D. Strömbäck permanece inédito em inglês, francês e espanhol.

2. Um exemplo é o artigo esotérico de Ed Richardson, Seiðr Magic, publicado na internet. Segundo esse autor, os rituais dos guerreiros Berserkers e Ulfhednar utilizariam a magia Seiðr. Mas isso não é corroborado por nenhuma fonte literáriohistórica nem referencial bibliográfico acadêmico. Na realidade, Richardson utilizou outros autores esotéricos (como Jan Fries e Nigel Pennick) para referenciar essa informação. Como os Berserkers são identificados com elementos extremamente viris dentro da cultura Viking, não seria uma forma de alguns neo-paganistas tentarem legitimar a prática do Seiðr para homens em nossos dias? Esse artigo também possui outros erros: o uso do Seiðr para guerras e batalhas; a descrição dos deuses Vanires como sendo um antigo povo escandinavo (algo nunca confirmado pela arqueologia ou historiografia). Os melhores e mais documentados textos na Web sobre Seiðr são os de Paxson (1997), Blain & Wallis (2000), Berlet (2000) e Ward (2001). Segundo o excelente estudo de Berlet (2000), homens viris na Era Viking seriam adeptos da prática do Galldr (magia rúnica, a exemplo do herói Sigurðr da Völsunga Saga e do poetaguerreiro Egil Sakalla-Grímsson, este último filho de um Berserker).

3. Saxo Grammaticus (Gesta Danorum VI, v, 10), cita que o herói varonil Starkatherus ficou horrorizado quando presenciou cultos para o deus Freyr realizados na Suécia Viking: os homens realizariam danças efeminadas (effeminatos corporum motus) e teriam “trejeitos mimosos” (DUMÉZIL, 1992: 140). Os Lapões realizavam cultos onde os homens se travestiam de mulheres (idem, p. 141). Tácito citou a tribo germânica dos Naharvalos, onde existia um sacerdote que presidia os cultos vestidos de mulher (Germânia 44). Segundo Heródoto (História), entre os Citas ocorria uma casta de sacerdotes efeminados chamados de Enarees (homem-mulher). O antropólogo Timothy Taylor cita vários casos de sacerdotes xamanistas que mutilavam ritualísticamente a região genital, na Europa, Ásia e Índia. O mesmo pesquisador apresenta uma análise de certas figuras do caldeirão de Gundestrup (originário da Dinamarca do século II a.C.), apresentando androginia ritualística, onde as figuras andróginas portam espadas, com pelos nos ombros e seios (TAYLOR, 1997: 203-211). Mircea Eliade menciona sacerdotes xamanistas que se vestem de mulheres entre os tchuktche asiáticos, esquimós, índios da América do Sul e Norte (berdaches: homens-mulheres). A explicação do mitólogo para esse fenômeno universal é clássica: “A transformação simbólica e ritual explica-se provavelmente por uma ideologia derivada do matriarcado arcaico”. (ELIADE, 1998: 286). A respeito do homossexualismo na cultura Viking, o trabalho mais documentado é o da historiadora Christie Ward (2002).

4. Em seu excelente artigo Galldr and Seiðr, Robert Berlet apresenta uma perspectiva muito próxima de nossas problemáticas. Para ele, existiria a prática do Seiðr – dominada por mulheres e com técnicas muitas vezes agressivas/malévolas, quebrando as convenções sociais; e a magia rúnica (Galldr) – totalmente dominado por homens viris, especialmente voltada para proteção e com caráter nobre. Odinistas míticos (Sigurðr) e históricos (Egil Skallagrimssom) foram treinados nessa última arte mágica. Assim, para Berlet, Seiðr e Galldr seriam essencialmente diferentes em seus resultados (Berlet 2000).

Referências

BLAIN, Jenny & WALLIS, Robert. Seiðr, Gender and Transformation, 2000. http://www.thetroth.org/resources/jenny/nfldpaper.html

BERLET, Robert. Galldr and Seiðr: Two Sides of the Same Coin. Gender & Identity in Viking Magic, 2000. http://www.publiceye.org/racism/Nordic/viking-magic.htm

BOYER, Régis. Yggdrasill: la religion des anciens scandinaves. Paris: Payot, 1981.

DAVIDSON, Hild Roderick Ellis. The lost beliefs of Northern Europe. New York: Paperback, 1993.

DUBOIS, Thomas A. The intercultural dimensions of the Seiðr ritual. In: _____ Nordic religions in the Viking Age. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1999.

DUMÉZIL, Georges. A magia má dos Vanes. In: _____ Do mito ao romance. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

ELIADE, Mircea. Técnicas de êxtase entre os antigos germânicos. In: _____ O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

KEYSER, Rudolph. Sorcery. In: _____ The religion of the northmen. New York, 1854. http://www.northvegr.org/lore/northmen/016.php

MONTEIRO, Paula. Magia e pensamento mágico. São Paulo: Ática, 1986.

PAXSON, Diana L. Sex, Status and Seidh: homosexuality and Germanic Religion. Idunna n. 31, 1997. http://www.hrafnar.org/seidh/Sex-status-seidh.html

RICHARDSON, Ed. Seiðr Magic, 1998. http://www.phhine.ndirect.co.uk/archives/ess_seidr.hytm

TAYLOR, Timothy. Xamãs travestidos/Sexo tântrico na Dinamarca da Idade do Ferro. In: _____ A pré-história do sexo. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

WARD, Christie L. Women and magic in the Sagas, 2001. http://www.vikinganswerlady.com

_____ Homosexuality in the Viking Age, 2002. http://www.vikinganswerlady.com

Johnni Langer – Departamento de História/ UNC. E-mail: [email protected]


BLAIN, Jenny. Nine worlds of Seid-Magic: ecstasy and neo-shamanism in North European paganism. London/New York: Routledge, 2002. Resenha de: LANGER, Johnni. Poder feminino, poder mágico. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.4, n.1, p. 98-102, 2004. Acessar publicação original [DR]