O que os netos dos vaqueiros me contaram: o domínio oligárquico no Vale do Parnaíba – DOMINGOS NETO (HO)

DOMINGOS NETO, Manuel. O que os netos dos vaqueiros me contaram: o domínio oligárquico no Vale do Parnaíba.  São Paulo: Annablume, 2010. Resenha de: JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Revelações da memória: uma nova trilha nos caminhos da tradicional história política regional e dos consagrados conceitos que a definiram. História Oral, v. 13, n. 1, p. 153-158, jan.-jun. 2010.

O título da obra em apreço espelha um roteiro metodológico plural. À pri­meira vista, ele pode figurar como um tema restrito aos que se sentem atra­ídos pela riqueza metodológica da história oral e/ou pela definição de um velho tema da história política regional.  Entretanto, após uma leitura atenta da introdução e uma observação perspicaz dos cinco capítulos, percebe-se que o autor almeja ir além dessa proposição metodológica e temática, pois remete o leitor a outras áreas de análise acadêmica. Refiro-me à busca de estabelecer uma contínua conexão entre o histórico, o sociológico, o político e o econômico, traço marcante do legado marxista, na busca de uma totalidade histórica, legado ainda perceptí­vel nos novos temas e novas abordagens daqueles que se conscientizaram do valor da interdisciplinaridade.

Manuel Domingos Neto foi um aluno afastado do curso de Licenciatu­ra em História, da Faculdade Estadual de Filosofia do Ceará (Fafice), na tur­bulência dos anos 1960, exilando-se na França, onde cursou o doutorado em História. Para quem o conhece e o acompanhou, na sua formação acadêmica, partilhando da alegria do seu ingresso no magistério superior, na Universida­de Federal do Ceará (UFC), na área de ciência política, a presente obra é uma prestação de contas de uma experiência histórica de “longa duração”.  O seu amadurecimento profissional e o tempo vivido, revelados atra­vés de uma trajetória interdisciplinar, licenciatura em história, doutorado em ciências sociais, professor de ciência política, na pós-graduação em ciências sociais, nos explicam a manutenção, no decurso da feitura do livro, de um elo explicativo do debate historiográfico apresentado, envolvido no viés socioló­gico, político e econômico.  Atualmente, no campo das ciências sociais, a “interdisciplinaridade” é reconhecida e recomendada, mas nem sempre demonstrada. E a questão é agravada quando se recorre a outro conceito, o de “transdisciplinaridade”, mais usado como um simples sinônimo de “disciplinaridade”. Como uma res­posta a essa questão, ao longo da leitura da obra em foco, a aplicação prática desse conceito nos parece evidente.  Nessa perspectiva, a sua preocupação constante em associar passado e futuro dos vaqueiros e dos netos de vaqueiros do Vale do Parnaíba nos faz melhor compreender as contradições do presente, um presente obtuso, en­volto em uma “história em migalhas”, que busca explicar a “era do vazio”. É a era de uma história marcada por um “hibridismo cultural”, melhor revela­do através da coleta de “memórias singulares”, imbricadas em “identidades sociais”.  E tais contradições teórico-metodológicas, agudizadas a partir da “cri­se de 1989”, abalaram a rigidez dos modelos explicativos, que pareciam in­deléveis. Contudo, nas novas versões históricas, como aquela voltada a uma “herança imaterial” (Levi, 1985), que traça a trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII, percebe-se o nexo entre o legado historiográfico marxista e as novas proposições apresentadas.  Assim, a complexidade temática é simplificada pela clareza da análise de um autor, que comenta a fragilidade de determinados conceitos, consagrados no estudo da história nordestina e, mais ainda, nos encanta pela leveza das narrativas coletadas, reveladoras dos depoimentos singulares, que prendem a atenção do leitor desde o primeiro capítulo.

O debate, inicialmente levantado em torno das limitações do conceito de modernização, sempre indicada como o anverso do tradicional, é amplia­do com a análise de outras proposições, como coronelismo e clientelismo. Percebendo as conexões e contradições, mercantilismo/escravismo colonial e muitos outros casos de persistência de arcaísmos, presentes no desenvol­vimento capitalista, fica claro que o atraso dos meios de produção também favorece determinados interesses. Por isso, “o moderno e o tradicional (ou ar­caico) sempre andam de mãos dadas, um absorvendo a seu modo, estruturas, valores, práticas e simbologias do outro” (p. 22).  A compreensão das relações de poder, no Piauí, não foi obtida apenas através dos depoimentos coletados. Livros, jornais, documentos e até poesias compuseram o acervo consultado. Na explicação da infausta trajetória do Piauí, extensiva ao Nordeste, o autor rejeita a definição de seu espaço como um espaço sem propensão para atividades consideradas mais complexas, de­dicado exclusivamente à subsistência, ocupado por resistentes à civilização.  A modernidade contraditória, onde o velho e o novo se entrelaçam e as diferenças estabelecidas entre as regiões brasileiras vão muito além de um simples produto do meio geográfico, uma vez que foi o Estado, sempre volta­do às exportações mais rentáveis, que alimentou uma desumana divisão local do trabalho e aprofundou as diversidades de oportunidade entre as regiões.  Nesse parâmetro, em busca de uma melhor compreensão das disparida­des regionais, são reavaliadas classificações consagradas, como as de Euclides da Cunha e Celso Furtado, confirmando a indicação dos indícios dessas dis­paridades, defendidos por Francisco de Oliveira e Wilson Cano.  As narrativas apresentadas pelos netos dos vaqueiros confirmam a mo­dernização sem mudança, registrada em diferentes momentos e espaços da história política regional e nacional. A linha de frente dessa modernidade combinava desenvolvimento com contradições sociais e regionais, destacan­do os coronéis e seus possíveis opositores como agentes desse processo.  Os depoimentos das velhas lideranças políticas contradizem as consa­gradas definições que lhes foram atribuídas. Outras facetas de comporta­mentos políticos, narradas pelas lideranças entrevistadas, desfazem os rígidos perfis, idealizados de forma homogênea, com datas estabelecidas de extinção dessas práticas políticas, o que atesta e contesta a fragilidade de determinados conceitos consagrados, como coronelismo e clientelismo, que o autor consi­dera mais insultuosos que definidores.

A riqueza plural de cada uma das entrevistas realizadas abre perspectivas de análise que ultrapassariam as 400 páginas do livro. Os títulos de cada um dos cinco capítulos constituem um estímulo ao leitor.  O primeiro, “Os netos dos vaqueiros”, é uma apresentação de cada um dos entrevistados, de acordo com a seguinte subdivisão:  1) “O Coronel”, Pedro Freitas, que fez negócios e política a vida inteira. Nesse primeiro tópico, a definição de coronelismo, segundo José Murilo de Carvalho, que tem por base a opinião de Victor Nunes Leal, é contestada. Para ambos, o abalo sofrido por alguns coronéis baianos, presos em 1930, teria sido finalizado com o golpe de 1937. Entretanto, segundo Manuel Domingos Neto, o coronel entrevistado exerceu o seu poder de mando da adolescência à velhice: não manteve o seu poder apenas na República Velha, uma vez que não enfrentou um declínio econômico e o seu poder pessoal o beneficiava no trato com o eleitorado urbano.  2) “O Doutor”, José da Rocha Furtado, um conceituado médico, na classificação de uma ampla clientela, que foi nomeado pelo centralismo político de 1930, mas cujo governo foi considerado um desastre de acordo com a memória dos entrevistados.  3) “O Engenheiro”, Luís Mendes Ribeiro Gonçalves, a quem foi confiada a administração das finanças e as obras do estado, durante o governo do engenheiro João Luís Ferreira, no período 1920-1924. Esse último, quando da sua estada na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, desfrutara da amizade de Lima Barreto, nas noites boêmias ali vividas. Luís Mendes, além de senador, pela União Democrática Nacional (UDN), de 1934 a 1937 e de 1947 a 1951, foi uma das testemunhas da passagem da Coluna Prestes.  O segundo capítulo, “A herança dos netos dos vaqueiros”, é subdividi­do em cinco temáticas, desde a que trata da criação do gado, nascendo para o mercado, entendida não apenas como alternativa para o povoamento do interior, mas como uma mercadoria produzida, integrada à dinâmica inter­continental do sistema capitalista, como fica expresso nas narrativas sobre a ação dos netos dos vaqueiros na política.  A expansão do processo criatório, iniciado com seus “confrontos sangrentos” e consolidado com a utilização da mão de obra escrava nessa atividade, explica o porquê do charque, nas “oficinas” de Parnaíba, e da ação dos proprietários não ausentes de suas fazendas, beneficiários de grande ren­tabilidade da pecuária nordestina.  A inviabilização da pecuária extensiva anulou o velho argumento de que o ouro das Gerais matou as charqueadas do Norte. Ela foi marcada pelas complicadas partilhas de terras por herança e pela autolocomoção do gado, definidora do rio Parnaíba como uma via de acesso sem importância.  As “falsas promissões” foram desfeitas pelo declínio da pecuária, sobre­tudo a partir de meados do século XIX, mesmo com a mudança da capital da província, de Oeiras para Teresina. Paulatinamente, o extrativismo vegetal, incentivado pelo comércio internacional, passou a ser a atividade econômica mais promissora e, desde as primeiras décadas do século XX, as poucas opor­tunidades de emprego e os conflitos de terra explicavam os elevados gastos governamentais com “segurança” e “justiça”.  Os netos dos vaqueiros na política, em suas falas, mesmo confirmando alguns traços definidores do coronelismo, descritos por Nunes Leal, põem por terra as explicações segundo as quais os grandes proprietários usufruíam do atraso econômico, pois a projeção política dos mesmos decorria da manei­ra peculiar de assumirem a propriedade da terra.  Se nos dois primeiros capítulos do livro a escrita do autor delineia o pano de fundo da peça apresentada, nos três últimos capítulos, intitulados “A fala do Coronel”, “A fala do Doutor” e a “A fala do Engenheiro”, os atores selecionados apresentam o seu enredo básico.  Na realidade, o livro não é uma produção de um pesquisador dedicado à “história oral”, mas de um cientista político que a ela recorreu como uma técnica de pesquisa que lhe pareceu promissora. Se fosse uma opção metodo­lógica, certamente as perguntas apresentadas, nas referidas falas, teriam sido eliminadas e o conteúdo analisado seria embasado com alguns conceitos re­veladores, como “memória social”, “história e memória” e “histórias de vida”.  Mas o importante é que essa escrita do autor, explicativa da problemá­tica enunciada, concentrada em 103 páginas, deixa o leitor ansioso pelo que consideramos a segunda parte do trabalho: as três falas apresentadas, que somam mais de 300 páginas. Com certeza, não é o número de páginas que define o peso maior à validade do que foi escrito, mas a opulência de temas e comentários, presentes nos depoimentos apresentados, por esses atores se­lecionados, nos induz a uma série de indagações, que ampliam o curso das análises apresentadas.

Se vários são os rios que figuram no mapa do Piauí, múltiplas são as pro­posições tratadas nas entrevistas à espera de diferentes interpretações. Que outras narrativas sigam as sinuosas trilhas abertas pelo autor, que tão bem soube ouvir e comentar acerca do que os netos dos vaqueiros lhe contaram.  Referências  LEVI, G. L’eredità immateriale: carriera di um exorcista nel Piemonte del Seicento. Torino: Einaudi, 1985.

Gisafran Nazareno Mota Jucá – Professor titular de História do Brasil e do Mestrado em História (Mahis) da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e professor da Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará (UFC).