O pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo: diálogos com Martin Heidegger e Hans Jonas – CARRILHO (RFA)

CARRILHO, M. R. O pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo: diálogos com Martin Heidegger e Hans Jonas. Lisboa: Fundação Cuidar o Futuro, 2019. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.32, n.55, p.322-328, jan./abr, 2020.

O pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo: diálogos com Martin Heidegger e Hans Jonas resulta de um doutoramento em Filosofia na Universidade de Évora, Portugal, sob a orientação das professoras Fernanda Henriques e Irene Borges-Duarte. A obra que agora se tem, porém, não é a tese doutoral tal e qual, como destaca a própria autora, Marília Rosado Carrilho. O que agora se apresenta sob a forma de livro é, por assim dizer, uma dupla introdução: uma em sentido horizontal e outra em sentido vertical.

Esse duplo movimento introdutório é o que título e subtítulo expressam: o primeiro mostra a introdução em sentido horizontal e o segundo em sentido vertical. Em sentido horizontal porque se trata de apresentar o pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo, uma mulher que se destacou, sobretudo, por sua intensa atividade político-social em Portugal, na União Europeia e na Organização das Nações Unidas (ONU). Nesse sentido, trata-se de colocar o(a) leitor(a) a par não somente da contribuição de Maria de Lourdes Pintasilgo para a política, mas de mostrar como a política é desenvolvida e aprimorada em seus textos, que, na maioria das vezes, são conferências, palestras, discursos e/ou entrevistas. Além disso, trata-se de mostrar como ética e política estão conjugadas de tal forma que, em Pintasilgo, não se pode pensar uma sem a outra. Pode-se dizer, portanto, de uma introdução como apresentação do pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo.

A obra é também uma introdução em sentido vertical, pois não se limita somente à apresentação. Trata-se de conduzir o(a) leitor(a) ao interior do próprio pensamento de Pintasilgo, colocando em discussão a sua gênese, formação, desenvolvimento e apontando, ao final, para o legado por ele deixado. Isso torna a obra de Carrilho única: à medida em que coloca o pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo em um panorama, extrai dele aquilo que lhe é mais fundamental. Disso decorre o encontro com os dois pilares de seu pensamento: Martin Heidegger e Hans Jonas. Diz-se, assim, de uma introdução como um adentrar ao núcleo formativo e estruturante do pensamento ético-político de Pintasilgo.

O texto é aberto por dois prefácios: um assinado por André Barata, que destaca a importância da transição do “poder sobre” ao “poder para”, e outro assinado por Maria Antónia Coutinho, que destaca a força da linguagem humana presente em Maria de Lourdes Pintasilgo e dá ênfase à necessária mudança de paradigma político, a saber, de uma ética da justiça a uma ética do cuidado, centrada, sobretudo, na qualidade de vida. À sequência, seguem-se os cinco capítulos trazidos por Carrilho, antecedidos por uma Introdução, cuja função não é somente apresentar a estrutura da obra, mas também trazer alguns dados biográficos de Maria de Lourdes Pintasilgo. Além disso, a Introdução faz e traz um organograma conceitual do percurso de Pintasilgo: ele é fundamental para o posterior andamento da obra, pois o desenvolvimento dos capítulos está finamente associado a tal percurso aí apresentado.

O primeiro capítulo — A indissociabilidade entre ética e política como linha de força do pensamento e ação de Maria de Lourdes Pintasilgo — faz uma abordagem geral do pensamento de Maria de Lourdes Pintasilgo, mostrando como nele não se pode dissociar ética e política, pensamento e ação, palavra e ato. Desde o início também se percebe a importância de Martin Heidegger e Hans Jonas: do primeiro se toma a noção de “cuidado” como fundamento ontológico do ser humano e do segundo o princípio de responsabilidade como determinante para o convívio em comunidade e para a edificação de uma ética holística, preocupada com o futuro e com a qualidade de vida. Aqui também já se entende a proposta de uma “nova política”, à qual está ligada um conjunto de características fundamentais: consciência cívica, poder, “agir a palavra” e “nova cultura política”. Essas características são trabalhadas ao longo do capítulo. Importa perceber como elas estão interligadas.

A sociedade é formada por todos e todos são responsáveis por ela: esse é o ponto de partida de Maria de Lourdes Pintasilgo. Só há responsabilidade onde há liberdade e só há ética onde ambas estão presentes. Assim, a consciência ética implica na capacidade de escolher, tendo em vista o bem comum, e de se tornar responsável por essa escolha. O que Pintasilgo entende por consciência cívica é a possibilidade do cidadão, por um lado, intervir livre e responsavelmente na sociedade e, por outro, ter consciência da importância dessa intervenção. A consciência cívica exige uma “massa crítica” que deverá ser “reflexiva, denunciadora e interventiva” (CARRILHO, 2019, p.36). A consciência cívica como consciência ética implica numa “nova política” onde o poder é exercido “para” e não mais “sobre”. Essa é a singular mudança trazida pela “nova política”: o exercício da autoridade no poder político, assim, é legitimado pela responsabilidade. Poder, liberdade e responsabilidade são termos correlatos, portanto. A ética, então, está aí pensada a partir de uma necessária vinculação entre teoria e prática, à qual Pintasilgo denomina de “agir a palavra”: “o pensar nada muda sem o agir, mas o agir sem rumo poderá levar à errância” (CARRILHO, 2019, p.43). Atenção seja dada ao alerta aí realizado: a ética deve evitar ao máximo o agir sem rumo, cabendo-lhe, portanto, o papel regulador da ação. Esta regulação, porém, não deve ser vista como um empecilho do progresso, mas como uma aliada, pois ela provém de um projeto educador que está à base do projeto da “nova cultura política”. Maria de Lourdes Pintasilgo busca em Paulo Freire as bases desse projeto educacional capaz de pensar a autonomia do cidadão, sua consciência cívica e sua vida política e social. Desse modo, à indissociabilidade entre ética e política se junta um projeto educador, percebido nas entrelinhas desse primeiro capítulo, e pouco explorado por Carrilho.

O segundo capítulo — A emergência de um novo paradigma como condição para uma governação ético-política — trata, basicamente, da mudança do “paradigma do progresso” para o “paradigma da qualidade de vida”. Essa proposta se inicia com a apresentação daquilo que Maria de Lourdes Pintasilgo chama de “tempo da vergonha”: há progresso, conquista da ciência, aumento da economia mundial e, mesmo assim, ainda há tantas perturbações aos sistemas de suporte da vida. O “tempo da vergonha” é um diagnóstico do final do século XX e início do XXI e, além disso, deve fazer cair o mito do desenvolvimento como um progresso ascendente e que é, na maioria das vezes, um progresso econômico. Propondo a mudança, Maria de Lourdes Pintasilgo afirma a importância do outro para que haja relação ética e, nesse sentido, torna evidente a importância do cuidado: consigo, com as coisas e com os outros. Essa ideia de cuidado é tirada da filosofia de Heidegger, que, além disso, também contribui decisivamente para a caracterização do ser humano como ser relacional, um ser-com-os-outros-no-mundo. Para além de Heidegger, no entanto, Pintasilgo faz convergir o cuidado à dimensão ético-política.

A mudança paradigmática se inicia quando se rompe com o conformismo e com o consenso. Eles são os dois inimigos da mudança: o primeiro por resignar-se com o que está dado e o outro por gerar conforto em vários aspectos, impedindo a mudança, negando-a, na verdade. Para tanto, Carrilho traz aquilo que Pintasilgo denominou como “teoria das brechas”: entrar pelos espaços que são oferecidos e intervir substancialmente no sistema, causando a mudança. A mudança paradigmática, por mais difícil que pareça, nunca deixa de ser realizável para Maria de Lourdes Pintasilgo, que, com isso, resgata politicamente a ideia de utopia, não como algo irrealizável, mas como plenamente realizável desde que seja pensada como horizonte. Trata-se, pois, de olhar para o futuro ao qual a política caminha a partir das decisões adequadas tomadas no presente. Assim, a “qualidade de vida” aparece como uma “utopia política” realizável integralmente: “qualidade de vida é proporcionar patamares mínimos de existência digna, considerados como direitos, uma vez que possibilitam a autossuficiência e independência do indivíduo” (CARRILHO, 2019, p.73). Note-se: o novo paradigma político deve ter como objetivo a autossuficiência e a independência do indivíduo. Para tanto, Pintasilgo propõe um novo contrato social, pautado não mais na subordinação, mas numa comunidade livre e que traz as seguintes características: a instauração de mecanismos de regulação, isto é, uma ética regulatória; uma cidadania com intervenção de homens e mulheres, donde a necessária consciência cívica; e uma soberania alargada e responsável, na qual poder, liberdade e responsabilidade são, de fato, correlatas.

O terceiro capítulo — Cuidar o futuro: fundamento da ética global e imperativo humano — fala sobre a proposta de uma “ética global” a partir daquilo que Pintasilgo chamou de “cuidar o futuro”. O lema traz como seus dois principais objetivos “humanizar a política e possibilitar uma existência digna” (CARRILHO, 2019, p.79). Essa “ética global” proposta por Pintasilgo, ao ser “holística, consequencialista, da responsabilidade e do cuidado” (CARRILHO, 2019, p.81), faz convergir o pensamento de Heidegger e Jonas ao seu projeto ético-político. Além disso, ela ainda propõe alterações fundamentais às éticas tradicionais: o sujeito ético deixa de ser o indivíduo e passa a ser o coletivo, o objeto ético deixa de ser estritamente o humano e passa a abarcar a natureza, a ação moral deixa de estar pautada na intenção e passa a remeter às (possíveis) consequências da ação, a dimensão temporal da ética deixa de avaliar a ação no imediato de sua realização para “se entender que importam as repercussões a médio e longo prazo” (CARRILHO, 2019, p.83). Assim, uma “ética global” está posta porque os problemas se tornaram globais tanto pela extensão quanto pela duração que a ação humana passou a ter. Essa “nova ética” deve, primeiramente, questionar a ação a ser realizada. O papel regulador da ética provém do caráter questionador da filosofia, atestando a importância desta para a “nova política”. Desse modo, a “ética global” de Pintasilgo questiona e regula: “nem tudo o que é cientificamente exato ou tecnologicamente viável é socialmente aceitável; é a pessoa humana [pensada na integridade com a natureza] a primeira e a última finalidade de toda decisão política” (CARRILHO, 2019, p.87). Carrilho, ao final desse capítulo, traz um importante esclarecimento: a ética global proposta por Pintasilgo não é uniforme, tampouco pautada num denominador comum. Ela é a descoberta de um núcleo dos valores éticos compartilhados pelos grandes sistemas do pensamento.

O quarto capítulo — Cuidado e responsabilidade como pilares do agir ético-político — se propõe a mostrar a direta influência de Heidegger e Jonas no pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo. Carrilho inicia mostrando como os termos “cuidado” e “responsabilidade”, principais contributos dos filósofos mencionados, passam a fazer parte do vocabulário de Pintasilgo. Interessante destacar que Carrilho, nesse momento, dedica-se a apresentar o “cuidado” heideggeriano e a “responsabilidade” jonasiana em suas devidas conjunturas. Desse modo, a primeira divisão do capítulo — O cuidado como fundamento ontológico do ser humano — traz uma abordagem geral do cuidado no contexto de Ser e tempo, apresentando-o como caracterização ontológica do ser humano, concretizando-se como ocupação e solicitude. Mesmo levando a noção de cuidado para além da caracterização ontológica apresentada por Heidegger, Pintasilgo concorda estritamente com ele em um aspecto decisivo, como mostra Carrilho: “o cuidado é intenção originária, abertura a si e aos outros” (CARRILHO, 2019, p.94). Carrilho procede da mesma maneira com Jonas na segunda parte do capítulo — A responsabilidade como exigência da condição humana de ser-com. Aí a autora dá destaque ao “imperativo categórico da responsabilidade”, próprio de Jonas e apropriado por Pintasilgo. Além disso, apresenta também a responsabilidade a partir de uma tripla caracterização: enquanto sentimento, enquanto dever-ser e enquanto condição da ação causal. Carrilho perpassa, de fato, o núcleo edificante do princípio da responsabilidade de Hans Jonas, mostrando, ao final, como Pintasilgo o faz convergir à “nova ética global”, logo, à “nova política”.

O capítulo final — O legado de Maria de Lourdes Pintasilgo — não é, como a própria autora afirma, uma conclusão. Trata-se de uma retomada do caminho percorrido, fazendo uma síntese das teses apresentadas e apontando o legado deixado por Maria de Lourdes Pintasilgo. Nesse sentido, trata-se de retomar, primeiramente, os pontos apropriados por Pintasilgo de Heidegger e Jonas para, à sequência, mostrar como a temática do “tempo futuro” deve sua fundamentação também a eles. Para Pintasilgo, o futuro é o horizonte da ação ética, ou seja, a vida está sempre em construção, logo, nunca há uma sociedade plenamente realizada. Daí a importância dos governos pensarem a curto, médio e longo prazo: “à fluidez do tempo, é preciso responder com o exercício da decisão responsável. […] Com os ‘pés’ no presente e os ‘olhos’ no futuro, assim deve ser o ser humano responsável” (CARRILHO, 2019, p.115). Em suma: trata-se de agir a partir do local em que se vive e pensar desde uma perspectiva global. Aos governos competem realizar uma ação que pense a longo prazo e implementar um projeto com metas, prazos, métodos e regras para a execução. Não se trata de fazer apenas vigorar leis, mas de torná-las factíveis, avaliáveis e fundadas na verdade e na vontade de saber, “efetivada através do diálogo com o povo, com os diversos saberes e do diálogo interno no seio do sistema governativo” (CARRILHO, 2019, p.119).

Por fim, por cumprir muito bem o papel de ser uma dupla introdução, o texto de Marília Rosado Carrilho não é somente um comentário, mas, na verdade, um condutor até ao pensamento de Maria de Lourdes Pintasilgo. Seguir o percurso dessa obra, à qual se recomenda a leitura, é, de fato, perceber-se introduzido ao e no pensamento de Pintasilgo e, ao mesmo tempo, sentir-se impulsionado para além dos comentários aqui postos pela autora, permitindo-se encontrar, confrontar e discutir com os textos da própria Maria de Lourdes Pintasilgo.

Luís Gabriel Provinciatto – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil / Universidade de Évora, Évora, Portugal. Mestre em Ciências da Religião. E-mail: [email protected]

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Vocabulário Hans Jonas – OLIVEIRA (RFA)

OLIVEIRA, J. Vocabulário Hans Jonas. Caxias do Sul: EDUCS, 2019. Resenha de: FONSECA, Lilian S. Godoy. Revista de Filosofia Aurora, v.31, n.54, p.979-985, out./dez, 2019.

O Vocabulário Hans Jonas — recentemente publicado pela EDUCS em parceria com o Centro Hans Jonas Brasil, sob a organização de Jelson Oliveira (PUCPR) e Eric Pommier (PUC-Chile), como parte dos eventos comemorativos pelos 40 anos de O Princípio Responsabilidade (1979), obra mais relevante de Jonas — é o resultado de um trabalho realizado a várias mãos, reunindo 31 autores de oito países e 24 diferentes instituições de ensino superior que, embora identificados a diversas vertentes filosóficas, têm em comum o conhecimento e o apreço pela obra jonasiana.

Desde a proposta de organizar o Vocabulário, feita durante a reunião do GT Hans Jonas, realizada no XVII encontro da ANPOF, em Aracaju, até a sua publicação, foram necessários três anos, para elaborar, reunir e traduzir todos os verbetes; o que demonstra o rigoroso processo de preparação e empenho exigidos para oferecer aos leitores essa pequena, mas expressiva, compilação composta por 33 vocábulos retirados do extenso e pluritemático arcabouço teórico de Jonas. Autor que, até pouco mais de uma década, era praticamente desconhecido no meio acadêmico brasileiro e hoje, dada a importância de sua reflexão filosófica para a atualidade, vem, felizmente, conquistando cada vez mais interessados em conhecer e se aprofundar em seu pensamento.

Jonas nasceu em 1903, na cidade alemã de Mönchenglandbach, em uma família judia, razão pela qual sua primeira formação humanística foi marcada pela rigorosa leitura dos profetas hebreus. Ele próprio resumiu sua rica trajetória intelectual, em três diferentes momentos. O primeiro teve início em 1921, ano em que iniciou sua graduação na Universidade de Freiburg, escolhida por lá lecionar o já célebre filósofo Edmund Husserl (1859-1938). Ali, assistiu também às aulas de um jovem e brilhante professor, Martin Heidegger (1889-1976), até então pouco conhecido. Jonas admite que, por muito tempo, Heidegger foi seu mentor intelectual1, tanto que, quando o mestre se transferiu para a Universidade de Marburg, ele o seguiu sem hesitar. Fato importante em seu percurso, pois foi lá que Jonas conheceu o seu segundo mentor: Rudolf Bultmann (1884-1976), quem o despertou para o tema sobre o qual versou sua tese — Gnose e o cristianismo primitivo —, defendida em 1931, sob a orientação de Heidegger. Desse trabalho inicial resultou, em 1934, a sua primeira publicação: o notável Gnosis und spätantiker Geist (Gnose e o espírito antigo tardio), em que apresenta importantes e originais contribuições ao estudo sobre a gnose e que ele considerou como seu primeiro grande passo como filósofo.

O segundo mais relevante momento de sua vida intelectual, cuja inspiração ele atribuiu à sua participação na Segunda Grande Guerra — como soldado das brigadas judias do exército britânico contra Hitler —, foi marcado pela publicação, em 1966, de sua segunda grande obra, o célebre The Phenomenon of Life, Toward a Philosophical Biology (O fenômeno da Vida, Rumo a uma Biologia Filosófica), reunindo artigos nos quais busca estabelecer os parâmetros para uma abordagem fenomenológica da vida, que ele denominou de “uma biologia filosófica”. Inaugurouse, assim, um novo campo de sua reflexão voltado para a precariedade da vida, assinalando o enorme alcance filosófico da abordagem das questões biológicas. Desse modo, Jonas restituiu à vida sua posição de destaque, afastando-se a uma só vez das duas tendências então vigentes e igualmente extremas: o irreal idealismo e o limitado materialismo. Ele ainda advertiu quanto ao perigoso equívoco de se separar o homem da natureza e de imaginá-lo isolado das demais formas de vida. No epílogo dessa obra, Jonas delineia, de forma geral, o seu projeto ao escrever que “com a continuidade entre o espírito2 e o organismo, entre o organismo e a natureza, a ética se torna parte da filosofia da natureza […]. Somente uma ética fundada na amplitude do ser […] pode ter significado na ordem das coisas”3.

Com tal conclusão, Jonas anunciou o terceiro e último momento de seu trajeto intelectual e, logo em seguida, tem início a elaboração de uma ética específica para nossa civilização tecnológica. Assim, sua ética da responsabilidade, reconhecida como sua principal formulação, foi publicada em 1979, em sua língua materna, sob o título: Das Prinzip Verantwortung — Versuch einer Ethic für die technologische Zivilisation (O princípio responsabilidade — um ensaio ético para a civilização tecnológica), traduzida para o inglês em 1984, para o francês em 1990, para o espanhol em 1994 e para o português, apenas em 2006. Algo que, talvez, explique a tardia descoberta pelo público brasileiro dessa obra que, com justiça, o notabilizou mundialmente.

Ademais, é preciso assinalar que Jonas foi um dos primeiros, senão o primeiro a se deter sobre as implicações éticas da técnica moderna e acrescentar que, mesmo antes de publicar O Princípio Responsabilidade, ele já se ocupava de questões identificadas à Bioética. Cabe destacar que, na verdade, seu primeiro artigo dedicado explicitamente a essa área data de 1969 e tem por título “Philosophical Reflections on Experimenting with Human Subjects” (“Reflexões filosóficas sobre experiências com seres humanos”)4. Isso revela que sua preocupação prática antecedeu a necessidade de elaboração teórica concretizada posteriormente, por meio de vários artigos5 que ao longo dos anos 70 prepararam a publicação, ao final dessa mesma década, do Princípio Responsabilidade, no qual expõe sua concepção ética definitiva e cuja aplicação é apresentada em seu Technik, Medizin und Ethik (Técnica, Medicina e Ética), publicado em 1985, reunindo artigos escritos entre 1969 e 1984, cuja tradução para português do Brasil foi realizada pelo GT Hans Jonas e publicada em 2013, pela Editora Paulus.

Como o próprio título sugere e Jonas explicita no prefácio, Technik, Medizin und Ethik tem por objetivo “partir daquilo que é mais próximo a nós, ali onde a técnica tem diretamente por objeto o próprio homem e onde o conhecimento de nós mesmos, a ideia de nosso bem e nosso mal tem uma responsabilidade direta, ou seja: no âmbito da biologia humana e da medicina” (1985, p.19).

Com efeito, Technik, Medizin und Ethik é, sobretudo, destinado à reflexão acerca da biotecnologia e sua relação com o ser humano, tanto no âmbito experimental quanto no da aplicação. Cabe explicitar que dos doze ensaios que o compõem, os cinco primeiros6 podem ser considerados como propedêuticos, enquanto os demais se voltam ao exame “prático”, propriamente dito, das questões que decorrem do fato de o homem ter se convertido em objeto das biotecnologias, como o sujeito de experimentação ou o alvo de sua aplicação.

Feita essa concisa apresentação de uma pequena parte da vasta e diversa produção filosófica de Jonas, cabe frisar que o Vocabulário buscou contemplar relevantes conceitos presentes nos principais momentos de seu pensamento. Dentre os quais, destacamos: o conceito de gnose, cujo verbete foi elaborado por Nathalie Frogneux, professora da Universidade Católica de Louvain (UCLouvain), localizada na região francofone da Bélgica, autora de vários artigos e de um excepcional estudo sobre a obra jonasiana, intitulado Hans Jonas ou la vie dans le monde (Hans Jonas ou a vida no mundo), publicado em 2001, pela De Boeck Université, de Bruxelas. Cabe notar que o termo gnose merece destaque devido a sua importância por, como vimos, inaugurar a produção filosófica de Jonas e pelo fato de, com sua pesquisa, ele ter apresentado contribuições significativas, ainda hoje reconhecidas pelos estudiosos da área.

Outro conceito a ressaltar é o de mortalidade, cujo verbete foi elaborado por Lawrence Vogel, professor do Connecticut College (EUA), laureado com diversos prêmios, autor de vários textos sobre Jonas, em alguns dos quais propõe um diálogo entre o pensamento jonasiano e o de autores como Heidegger, Hannah Arendt, Leo Strauss, Leon Kass e Levinas. Vogel foi editor de um volume em que foram publicados os dois últimos ensaios de Jonas, com o título de Mortality and morality: a search for the good after Aushwitz (Mortalidade e moralidade: uma busca pelo bem depois de Auschwitz), publicado pela Northwestern University Press, em 1996, e também escreveu o prefácio para a reedição do The Phenomenon of Life, publicado pela mesma Northwestern, em 2001. O termo mortalidade atravessa, sob diferentes aspectos, toda a obra de Jonas. Na verdade, foi graças a seu confronto com o tema que teve início sua reflexão sobre a vida, resultando no que denominou de biologia filosófica. A mortalidade é um tema subjacente até à sua reflexão ética, já que é a vulnerabilidade da vida o que exige a responsabilidade. Mas essa é uma questão ainda mais relevante em sua reflexão bioética, sobretudo devido à sua relação com a redefinição de morte e assuntos como a eutanásia e o prolongamento da vida.

Cabe assinalar, a seguir, o conceito de responsabilidade, cujo verbete foi elaborado por Oswaldo Giacoia Junior, professor do Departamento de Filosofia da Unicamp que, embora estudioso de pensadores como Augusto Comte, Friedrich Nietzsche e Arthur Shopenhauer, desde 1989, publicou diversos artigos sobre Jonas e foi tradutor de vários textos do autor para o português, feitos que o colocam como um dos precursores estudiosos e divulgadores da obra jonasiana no Brasil. O termo responsabilidade, com toda certeza, é o que confere destaque a Jonas e a seu pensamento. Sem a menor dúvida, foi a sua ética da responsabilidade que o tornou mundialmente conhecido, até mesmo fora do meio acadêmico, e o que constitui a sua obra como tão atual e necessária ao nosso momento.

Além dos verbetes referentes aos termos citados, o leitor encontrará outros 30, alguns dos quais remetem a temas bem recorrentes ao longo da tradição filosófica, como os de bem, consciência, corpo, Deus, para mencionar apenas alguns dos mais introdutórios. Ainda assim, a leitura oferecerá a abordagem singular que Jonas propõe para cada um dos conceitos que, embora já bem debatidos pela tradição, recebem, no texto jonasiano, uma roupagem própria e, muitas vezes, inusitada; como é o caso, por exemplo, do conceito de liberdade.

Por tudo o que foi dito, o Vocabulário Hans Jonas tem a oferecer, com grande diversidade de estilos, uma modesta, porém, significativa mostra dos temas tratados por esse pensador que viveu e pensou o século XX com intensidade e profundidade, antevendo problemas que o nosso século tem e terá, cada vez mais, de enfrentar.

Por sua atualidade e urgência das temáticas que aborda, Jonas é um autor que precisa ser conhecido para além das fronteiras da Filosofia e dos muros da Academia. Por esse motivo, o Vocabulário Hans Jonas cumpre a necessária missão de divulgar e tornar ainda mais acessível o pensamento jonasiano. É uma obra escrita por muitos especialistas, mas destinada não só a estudantes e professores de Filosofia ou universitários, mas ao público em geral que tem interesse em conhecer um pouco dos temas com os quais se ocupou esse autor, cuja vida e obra tanto marcaram o século passado, mas que tem muito ainda a oferecer a nós que, em pleno século XXI, ainda não assimilamos aquilo que ele, no final da década de 1970, já declarava:

O futuro da humanidade é o primeiro dever do comportamento coletivo humano na idade da civilização técnica, que se tornou ‘todo-poderosa’ no que tange ao seu potencial de destruição. Esse futuro da humanidade inclui, obviamente, o futuro da natureza como sua condição sine qua non . Mas, independentemente desse fato, o futuro da natureza constitui sua responsabilidade metafísica, na medida em que o homem se tornou perigoso não só para si, mas para toda a biosfera (PR. p. 229).

Referências

JONAS, H. Philosophical Essays. Chicago: University of Chicago Press, 1980. 349 p.

JONAS, H. The Phenomenon of Life: Toward a Philosophical Biology. University of Chicago Press: Phoenix Books, 1982. 303 p.

JONAS, H. Le Principe Responsabilité. Paris: Flammarion, 1990. 470 p.

JONAS, H. Técnica, medicina y ética – la práctica del principio de responsabilidad. Barcelona: Paidós, 1997. 206 p.

JONAS, H. Le Phénomène de la Vie – Vers une biologie philosophique. Traduit de l’anglais par Danielle Lories. Bruxelles: De Boeck Université, 2001. 288 p.

JONAS, H. O Princípio Responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução do original alemão Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Editora PUC Rio, 2006. 354 p.

JONAS, H. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio de responsabilidade. Trad. Grupo de Trabalho Hans Jonas da ANPOF. São Paulo: Paulus, 2013. 328 p.

Notas

1 Pois, posteriormente, devido ao envolvimento de Heidegger com o nazismo, Jonas dele se afastou até quase o fim da vida de seu antigo professor.

2 No original o termo é Geistes e na versão francesa esprit . A tradução espanhola segue a tradição anglo-saxã de traduzir tais termos por mind e adota o termo mente .

3 H. Jonas. Das Prinzip Leben. pp. 401 e 403. Versão francesa: Le phénomène de la vie. pp. 281 e 282.

4 Versão original publicada em Dædalus e versões posteriores em periódicos especializados ou coletâneas, por exemplo, Philosophical Essays — From Ancient Creed to Technological Man . Chicago: The University Chicago Press, 1974. Midway Reprint, 1980, pp. 105-131. Republicado também em TME como o ensaio de número 6.

5 Vale mencionar: “The Scientific and Technological Revolutions”, in Philosophy Today , 15, 1971, pp. 79-101”; “Testimony Before Subcommittee on Health, United States Senate: Hearings on Health, Science, and Human Rights”, Nov, 9, 1971, The National Advisory Commission on Health S cie n c e a n S o cie t y R e s olu tio n , (…) (73-191-0), 1972, pp. 119-123.; “Technology and Responsibility: Reflections on the New Tasks of Ethics”, in Social Research , 40, 1973, pp. 31-54; “Responsibility Today: The Ethics of an Endangered Future”, in Social Research , 43, 1976, pp. 77-97; “Freedom of Scientific Inquiry and the Public Interest”, in The Hastings Center Report , 6, 1976, pp. 15-17; “The Right to Die”, in The Hastings Center Report , 8, 1978, pp. 31-36; e, por fim, “Toward a Philosophy of Technology”, in The Hastings Center Report , 9, 1979, pp. 34-43. Alguns desses artigos foram escritos a convite e parte deles republicada em TME.

6 No ensaio 1, Jonas justifica (formal e materialmente) o fato de a filosofia tomar a técnica por objeto. No ensaio 2, ele expõe 5 motivos para justificar o fato de a técnica ter se convertido em objeto (também) da reflexão ética. No ensaio 3, ele faz uma espécie de “balanço axiológico”, refletindo sobre os valores passados e antecipando alguns valores futuros (apesar da crise atual de valores). No ensaio 4, ele propõe uma questão acerca da compatibilidade entre a ciência destituída de valores e a responsabilidade referente à autocensura da pesquisa. No ensaio 5, ele discute a relação entre liberdade da pesquisa e a noção de bem público, além de propor a questão: pode a moral ofuscar a ciência?

Lilian S. Godoy Fonseca – Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Diamantina, MG, Brasil. Doutora em Filosofia. E-mail: [email protected]

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La rivoluzione ontologica di Hans Jonas: uno studio sulla genesi e il significato di “Organismo e libertà” – TIBALDEO (RFA)

TIBALDEO, Roberto F. La rivoluzione ontologica di Hans Jonas: uno studio sulla genesi e il significato di “Organismo e libertà”. Milano: Mimesis Edizioni, 2009. Resenha de: OLIVEIRA, Jelson. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.27, n.41, p.629-634, maio/ago., 2015.

A obra The Phenomenon of life: toward a Philosophical Biology, do filósofo alemão Hans Jonas, publicada em 1966, vem despertando cada vez mais o interesse da comunidade filosófica na medida em que projeta novas luzes sobre a filosofia da natureza e a antropologia filosófica, servindo de base para a reflexão ética em torno de questões tão pertinentes quanto polêmicas, entre as quais a crise ambiental, os avanços da biotecnologia e os perigos da técnica. Jonas, bastante conhecido por sua obra de 1979, O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, oferece, com a obra de 1966 e os vários artigos e conferências que circulam em seu entorno, uma nova interpretação do fenômeno da vida.

Entre os estudos que vêm sendo publicados sobre o tema, merece destaque o livro do professor Roberto Franzini Tibaldeo, da Scuola Internazionale di Alti Studi dela Fondazione Collegio San Carlo di Modena. Com o perspicaz título La Rivoluzione Ontologica di Hans Jonas: uno studio sulla genesi e il significato di “Organismo e libertà”, Tibaldeo recupera a fertilidade da obra de Jonas e demonstra sua importância filosófica e o clima cultural favorável que tem possibilitado uma nova luz sobre a temática enfrentada por Jonas. Além disso, o livro recupera a tese de que o tema da vida representa uma chave de leitura unitária para o pensamento de Jonas, primeiro porque fornece possibilidades de uma interpretação mais rica da questão histórico-filosófica do dualismo, já tratado nos textos iniciais do filósofo; segundo porque testemunha a maturidade filosófica com a qual Jonas se aproxima corajosamente do problema da vida como fundamento de sua proposta ética. A “revolução ontológica” de Jonas, nessa medida, evoca a tentativa de interpretar o fenômeno da vida para além do dualismo reinante na cultura ocidental (e presente, conforme a tese de Jonas, na própria ciência moderna) e como objeto central da responsabilidade, além de fornecer as bases de uma nova antropologia.

O livro de Tibaldeo está dividido em três partes: na primeira delas, apresenta os pressupostos da biologia filosófica jonasiana; na segunda, trata das relações entre a obra Organismo e liberdade (título do escrito originário de Jonas a respeito da temática da vida, cuja primeira versão veio à luz em 1954) e a questão do que é específico do ser humano; e, finalmente, na terceira parte, trata da biologia filosófica de Jonas analisando-a do ponto de vista da revolução ontológica e ética que ela produz. Apoiado em documentos originais e em informações biográficas relevantes (que são relatadas na primeira parte da obra), Tibaldeo faz um trabalho filosófico exemplar, fornecendo um retrato ao mesmo tempo completo e didático, com seriedade filosófica e astúcia interpretativa. O livro, por isso, merece ser lido por especialistas em Jonas, mas também por todos os que se interessam pela filosofia da biologia e pelo terrível dilema (e, não raro, os grandes equívocos) que percorre a nossa cultura quando se trata de estudar a relação entre espírito e matéria no que tange à definição da vida. Tibaldeo mostra que, segundo Jonas, desde o movimento gnóstico que está nas bases do cristianismo primitivo, a vida tem sido interpretada de forma errônea e que a modernidade não conseguiu escapar da redução ontológica na forma de um monismo materialista ou de um monismo idealista.

Ao identificar a revolta de Jonas contra o dualismo como um eixo central de sua filosofia, Tibaldeo também demonstra como esse tema está nas bases da interpretação jonasiana do problema do niilismo: o gnosticismo, nesse caso, como um conjunto variado de seitas e movimentos religiosos que, vindos do Oriente, tiveram forte influência sobre o cristianismo nascente, é o primeiro movimento niilista da história e, como tal, lança as bases de uma visão que desvaloriza a experiência terrena e mundana (incluída aí a corporal), abrindo caminho para o sentimento de estrangeirismo do ser humano no mundo, típico dos movimentos niilistas modernos. Nesse caso, como dualismo, o niilismo atravessa a história ocidental testemunhando o estranhamento do ser humano diante de si mesmo e do ambiente no qual ele está lançado.

Tibaldeo demonstra que tal diagnóstico (próprio, portanto, da primeira parte da obra de Jonas) está intimamente ligado às concepções centrais da ciência moderna. Aparece, assim, o problema da vida como derivação do problema do dualismo, já que o vivente tem sido interpretado segundo a mesma tradição: de um lado a matéria corpórea, de outro a matéria espiritual própria do humano. O extremo prejuízo de tal leitura é, sem dúvida, a má compreensão do fenômeno da vida e sua redução às categorias de uma ontologia que prioriza a matéria morta em detrimento da compreensão da atividade espiritual que, em diferentes graus, é partilhada por todo o reino dos viventes. Tibaldeo destaca que é no espetáculo da guerra, ocasião na qual Jonas experimenta a morte dos seres, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo (com o advento da bomba atômica), que tal problemática ganha corpo na obra jonasiana, principalmente por meio de suas Lehrbriefe, as cartas formativas escritas do campo de batalha, entre 1944 e 1945, para a sua esposa Lore. Eis o embrião da obra que nasceria anos mais tarde como uma série de ensaios sobre o fenômeno da vida. A análise atilada de Tibaldeo faz emergir o sentido profundo dessa nova interpretação, por meio de conceitos como a individualidade e a liberdade dos seres viventes, a estrutura e a aventura dessa liberdade ao longo da história evolutiva, até aquelas que podem ser consideradas as características próprias da vida humana, como o desenvolvimento da racionalidade e da atividade metafísica.

Essa relação entre organismo e liberdade é o tema central da segunda parte da obra de Roberto Tibaldeo. Mais uma vez, os dados biográficos fornecem ao leitor a possibilidade de compreender em detalhes a gênese da reflexão jonasiana, conforme era a pretensão do texto, constante já no título do livro. O acesso ao manuscrito inicial da obra, que hoje se encontra nos arquivos da Universidade de Konstanza, e aos demais Nachlass de Jonas, possibilitou a Tibaldeo formular um texto claro e instigante do ponto de vista filosófico e também histórico. A comparação entre o manuscrito inicial, o texto publicado em inglês em 1966 e aquele outro, publicado em alemão no ano de 1973 sob o título de Organismus und Freiheit formam algumas páginas especialmente densas e interessantes no livro de Tibaldeo. Além disso, seu trabalho remonta a questões de cunho metodológico e histórico: por exemplo, ao apresentar como a questão do vivente e do organismo era entendido pelo pensamento alemão da primeira metade do século XIX, envolvendo nomes como Dilthey, Scheler, Eucken, Bergson e mesmo Heidegger, entre vários outros. Jonas, à medida que conhece as teses de tais autores, elabora também sua própria interpretação do fenômeno da vida, dando destaque para o tema do metabolismo: para ele, é pela vida da troca metabólica de um ser com o meio que a vida se torna um enigma a ser desvendado, posto que, nessa perspectiva, a matéria inteira de um corpo é mudada ao longo do tempo e, mesmo assim, algum tipo de identidade permanece como característica desse organismo. A ontologia do organismo de Jonas, como bem mostra Tibaldeo, encontra na fenomenologia um aparato metodológico bastante útil e sua análise se efetiva como uma redefinição da relação entre liberdade e necessidade: a vida, ao se desprender do reino não vivo, realiza um movimento de liberdade precária, visto que continua dependente da matéria inerte e, ao mesmo tempo, ameaçada pela morte. A liberdade, nesse caso, é dialética porque se consolida como uma tentativa de autonomia que é, ao mesmo tempo, necessária: ou isso, ou a vida seria tomada pelo não ser. Todas essas questões levam à relação entre si mesmo e mundo, ou ainda, entre interioridade e exterioridade e ao caráter opositivo e polar da própria vida, algo que, segundo Tibaldeo, passa a caracterizar a essência da vida e, nesse sentido, o mote central da revolução ontológica proposta por Jonas: a materialidade e a espiritualidade da vida caminham juntas, como partes relacionais de um mesmo acontecimento direcionado teleologicamente, cujas bases são reconhecíveis na história evolutiva dos seres, tal como demonstrado pelo próprio darwinismo, do qual Jonas retira consequências filosóficas importantes no reconhecimento do fenômeno da vida.

Ainda que tal proposta tenha parecido inatual ao ambiente anglo-saxão no qual Jonas estava inserido, a tese ganhou aprovação de inúmeros especialistas e pensadores da época. Tibaldeo toma o cuidado de mostrar, entretanto, como Jonas quis distinguir as suas teses de outras que estavam vigorando em sua época, principalmente no que tange à questão da teleologia da vida: a Cybernetics de Norbert Wiener e a General System Theory de Ludwig von Bertalanffy. Além disso, Tibaldeo analisa também as posições de Jonas em relação à ontologia do vivente de seu mestre Martin Heidegger. Outro capítulo especialmente interessante e original da obra de Tibaldeo é aquele no qual ele analisa a relação de Jonas com Aristóteles, Spinosa e Whitehead. Para essa análise, ele se utiliza de vários Nachlass, entre os quais uma série de manuscritos que formam lições proferidas por Jonas na New School for Social Research, entre dezembro de 1962 e janeiro de 1963, reunidos sob o título de O problema da vida e do organismo. A segunda parte do livro termina com um item no qual Tibaldeo realiza uma rica análise do que significa a revolução ontológica em relação à peculiaridade animal e outro item no qual ele analisa o que significa falar em revolução ontológica do ponto de vista da peculiaridade humana.

Na última parte de seu livro, Tibaldeo analisa a biologia filosófica de Jonas sob a perspectiva da ontologia e da ética, nela analisa as repercussões das teses ontológicas sobre as temáticas que ganharão corpo na obra de 1979, O princípio responsabilidade. Nesse último capítulo o autor italiano demonstra como Jonas retira da reflexão sobre a biologia, as premissas de sua ética da responsabilidade, ou seja, demostrando como a responsabilidade, enquanto princípio, está fundada numa ontologia tanto robusta quanto realmente revolucionária no que diz respeito à interpretação da vida. Em outras palavras, é pela revisão ontológica da vida que Jonas chega a um fundamento para sua proposta ética. Para isso, o eixo articulador da reflexão de Tibaldeo é o tema da teleologia.

Tibaldeo, nas 430 páginas de sua obra, oferece uma análise acurada e completa, clara e estimulante, da filosofia da vida proposta por Hans Jonas e, como se isso não bastasse, fornece a chave de leitura de toda a obra jonasiana. Tal perspectiva seria suficiente para tornar o seu livro de leitura obrigatória para quem se interessa por Jonas e/ou pelos temas sobre os quais ele se dedicou ao longo de sua vida. Mas isso não é tudo: Tibaldeo teve a gentileza de acrescentar inúmeras notas de rodapé, absolutamente oportunas, que ajudam a aprofundar a compreensão dos temas tratados. Também pudera: sua pesquisa levou em conta o que de melhor se escreveu sobre e em torno de Jonas nos últimos anos ao redor do mundo, além da totalidade dos textos jonasianos. Prova disso são as cinquenta páginas de referências acrescentadas ao final do livro.

Tibaldeo, com sua obra, possibilita a seus leitores uma rica e verdadeira experiência filosófica, digna daquela que, segundo Jonas, era a parte mais propriamente “filosófica” de sua produção intelectual.

Jelson Oliveira – Doutor em Filosofia. Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR, Brasil. E-mail: [email protected]

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