Patrimônio Arqueológico, ambiental e inclusão social no Plano Diretor de São Raimundo Nonato-PI: Síntese dos biomas e das sociedades humanas da região do Parque Nacional Serra da Capivara, volume III – MAIOR (CA)

MAIOR, Paulo Martin Souto. Patrimônio Arqueológico, ambiental e inclusão social no Plano Diretor de São Raimundo Nonato-PI: Síntese dos biomas e das sociedades humanas da região do Parque Nacional Serra da Capivara, volume III, Ed. Fundação Museu do Homem Americano, Fumdham, 2015. 206p. Resenha de: PESSIS, Anne Marie. Clio Arqueológica, Recife, v. 31, n.1, p.136-139, 2016.

Imagem da capa da obra resenhada – página136

O livro é o terceiro volume da coleção Os Biomas e as Sociedades Humanas na Pré-História da Região do Parque Nacional Serra da Capivara, Brasil2. Está divido em duas partes e trata, inicialmente, de uma revisão histórica dos conceitos que subsidiaram e fundamentaram leis como o Estatuto da Cidade e as posturas adotadas em relação à arqueologia em intervenções urbanas. A inserção da arqueologia e do ambiente na dinâmica de uma cidade ou em zonas rurais e seu papel na construção de uma mentalidade preservacionista são os temas centrais do texto.

Conhecidas ou sem registro, à mostra ou não, o fato é que o autor identifica duas posturas básicas em intervenções urbanas e rurais em locais com vestígios arqueológicos: uma, produto de exclusão, e, outra, de inclusão. O primeiro conceito é apresentado através de intervenções urbanas nas quais o elemento arqueológico atua de forma excluída, ou seja, produto da interpretação, contextualização e exposição de vestígios materiais. Segundo o autor, trata-se de uma perspectiva meramente arqueológica. Essa postura denota que em análises territoriais, ao se proporem intervenções, a disciplina arqueológica ainda atua de forma difusa e espacialmente pontual.

Como contraponto a essa postura o autor apresenta casos nos quais a antinomia entre conservação e transformação do espaço urbano aponta para uma tendência que vem sendo incorporada em projetos de intervenção. Assim, a conservação, como essência de transformação do espaço e de sua relação com o entorno e o contexto do território, pode e deve repercutir na qualidade do espaço urbano e, essencialmente, na sua preservação. E a percepção desse aspecto pela população, ou seja, do valor cultural do vestígio arqueológico e histórico, torna-se mais eficaz se integrada aos usos e percursos da cidade; portanto, como espaço morfológico arqueológico. Essas foram as premissas básicas e consideradas na construção do Plano Diretor de São Raimundo Nonato-PI.

Na segunda parte apresenta-se a experiência do município de São Raimundo Nonato, através do diagnóstico e das propostas de quatro temas que nortearam a construção do seu Plano Diretor: Inclusão social, patrimônio histórico, patrimônio arqueológico e ambiente natural. Nesse aspecto o texto apresenta um dos elementos fundamentais da proposta do Plano: considerar as ações exitosas de inclusão social na proteção do patrimônio arqueológico e ambiental do Parque Nacional Serra da Capivara.

Diante desse arcabouço a proposta do Plano baseou-se no conhecimento préhistórico, histórico e geomorfológico do município de São Raimundo Nonato através de seu diagnóstico na época em que se coletaram os dados, entre 2006 e 2007, e que forneceram um alto grau de conhecimento das transformações ocorridas nas formas de ocupação, desde a Pré-história até a atualidade. Por outro lado, as ocupações recentes e desordenadas, tanto na sede do município quanto nas áreas rurais, significaram o maior desafio na busca de soluções e propostas que integrassem a arqueologia com as questões urbanas e rurais típicas de um plano diretor.

Da postura adotada nas propostas a partir da tríade patrimônio cultural, ambiente e inclusão social, resultaram os parâmetros de proteção e do zoneamento, com o intuito de impedir o crescimento desordenado das duas situações: A urbana, referente à sede do município, e a rural, referente ao Parque Nacional Serra da Capivara. Nesse aspecto a proposta do Plano Diretor aborda diretrizes para uma política municipal voltada para a preservação do patrimônio histórico, do arqueológico, do ambiente natural e na inclusão social. Insere, portanto, o elemento arqueológico em igualdade de condições com questões como, por exemplo, a mobilidade, a educação, o uso do solo e o lixo urbano entre outros.

Nesse contexto, embora um plano diretor aborde temas diversos e variados, o foco do texto que se publicou preocupou-se na inter-relação e na especificidade entre quatro temas básicos (inclusão social, patrimônio histórico, arqueologia e ambiente). É o caso, por exemplo, dos sítios arqueológicos e do patrimônio histórico associados ao ambiente, assim como a relação desses três temas com á inclusão social. Da mesma forma, a evolução física da sede do município traduzse no seu traçado de vias, nas edificações – inclusive as de valor histórico – assim como seus usos estão inseridos no perfil histórico e socioeconômico. Todos esses temas, juntamente com os demais temas do Plano, nortearam uma abordagem participativa na qual se aprimorou a consciência preservacionista dos elementos culturais do município.

Nota

2 Na Clio Arqueológica número 2013-V28N1 publicou-se uma resenha sobre o volume I e na número 2015-V30N2 publicou-se uma resenha sobre os volumes II-A e II-B.

Anne Marie Pessis – Docente, Programa de Pós-graduação em Arqueologia e Preservação Patrimonial, UFPE.

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Os biomas e as sociedades humanas na Pré-História da região do Parque Nacional Serra da Capivara, Brasil. Vol. II A-B – PESSIS et al (CA)

PESSIS, Anne- Marie; MARTIN, Gabriela; GUIDON, Niéde (Org.). Os biomas e as sociedades humanas na Pré-História da região do Parque Nacional Serra da Capivara, Brasil. Vol. II A-B, Fundação Museu do Homem Americano – FUMDHAM: São Paulo: IPSIS Gráfica e Editora, 2014. 852p. Resenha de: MAIOR, Paulo Souto. Clio Arqueológica, Recife, v. 30, n.2, p.241-249, 2015.

O projeto, Síntese dos biomas e sociedades humanas da região do Parque Nacional Serra da Capivara, no Sudeste do Piauí, apoiado e financiado pelo Ministério de Ciência e Tecnologia do Brasil, abre um espaço editorial destinado a divulgar o conhecimento resultante do trabalho dos pesquisadores da Fundação Museu do Homem Americano – Fumdham – e outras entidades científicas associadas em rede no decorrer de três décadas de pesquisa nessa região.

Cabe lembrar que inicialmente as pesquisas no Parque Nacional estiveram centradas nos sítios com pinturas rupestres pré-históricas em razão do seu extraordinário acervo, tanto pelo número de sítios achados, como sua densa concentração e seu estado de conservação. Em 1991, por essa riqueza gráfica e cultural, a Unesco inscreve o Parque Nacional Serra da Capivara na Lista do Patrimônio Mundial de Humanidade. As escavações arqueológicas foram no começo realizadas em função da procura de informações complementares sobre esse patrimônio cultural, mas rapidamente as descobertas extrapolam as metas e as expectativas formuladas. A inesperada antiguidade da presença humana na região requer, para desvendar esse universo desconhecido, uma abordagem de pesquisa interdisciplinar. Desde a criação do Projeto, em 1986, o tema de pesquisa proposto pela Fumdham foi definido como a interação do homem com o ambiente, desde a Pré-História até os dias atuais. Varias gerações de pesquisadores brasileiros e estrangeiros sucederam-se num fluxo contínuo de trabalhos interdisciplinares para configurar um mapa multidisciplinar que enquadrasse o tema central das pesquisas no Parque Nacional. A participação das diversas disciplinas na pesquisa evoluiu de maneira diferenciada, o que se traduz num grau distinto das colaborações. Algumas salientam o estado da arte, outras a evolução da pesquisa, outras, também, os aspectos inovativos e a introdução de novos dispositivos técnicos dentro do dispositivo de pesquisa.

Até agora, foram publicados três volumes, sendo que é no volume II, dividido nos tomos A e B, que se resenha aqui e integra artigos com uma diversidade temática salientando a importância da interdisciplinaridade entre as ciências que interagem na formulação de um objetivo comum. O volume II reúne trabalhos inéditos de 42 autores em artigos individuais ou em equipe, apresentando uma amostragem representativa do trabalho realizado naquela região.

Dividido em oito temas, a obra abre com um breve histórico introdutório, desde a chegada dos primeiros pesquisadores numa região praticamente desconhecida.

Niède Guidon relata essa trajetória, de forma sucinta e quase coloquial, com o texto: A Fundação Museu do Homem Americano e o Parque Nacional Serra da Capivara. Relato sucinto de três décadas de pesquisa.

O primeiro tema tratado considera o ambiente e paleoambiente na região do Parque Nacional Serra da Capivara com as contribuições de três artigos.

Apresentam-se os resultados de pesquisas paleoambientais que tiveram um sólido avanço, ampliando o conhecimento das drenagens e dos vales arcaicos. As escavações arqueológicas e paleontológicas evidenciaram perfis estratigráficos, viabilizando a extração de amostras de sedimentos que forneceram informações palinológicas e antracológicas, datações que permitiram compreender os processos deposicionais e contextualizar os vestígios arqueológicos subsedimentares nos sítios. Para entender a interação entre os grupos humanos e a paisagem no decorrer do tempo, requer inserir os vestígios arqueológicos e paleontológicos nos contextos estratigráfico, cronológico e cultural da paisagem.

A reconstituição dos contextos faz com que as pesquisas arqueológicas e paleoambientais sejam interdependentes. Dados obtidos nas escavações das lagoas fósseis e sondagens realizadas nas redes de drenagem permitiram demonstrar que o clima da região foi tropical úmido até há cerca de 10.000 anos. No alto da planície, dominava a floresta amazônica e, na planície, a mata atlântica. Hoje, apesar de a caatinga ter coberto a região, nos vales mais úmidos, ainda existem espécies animais e vegetais desses dois biomas.

O segundo tema apresenta, com duas contribuições, os resultados da pesquisa em Paleontologia. Os fósseis da região da Serra da Capivara foram descobertos ao longo das últimas décadas através das escavações e sondagens realizadas nas numerosas lagoas da região. As datações absolutas permitiram posicionar as associações fossilíferas dentro do limite Pleistoceno final/Holoceno. Uma síntese do conhecimento atual dessas associações apresenta-se nos dois capítulos. Novas espécies foram descritas pelos paleontólogos que participam das pesquisas desde os anos oitenta do século XX.

A Biologia e Antropologia Física compõem o terceiro tema apresentado. No decorrer de décadas de pesquisa, os dados coletados permitiram realizar importantes contribuições ao conhecimento nas áreas da Biologia, Zoologia e Botânica graças à estreita colaboração entre pesquisadores da Fiocruz e da Fumdham. A descoberta de vestígios de ancilostomídeo nas populações préhistóricas do Piauí, há pelo menos 7.000 anos, rompeu o paradigma de que a ancilostomíase havia sido trazida da Europa e da África para América pelos colonizadores. Também ficou evidenciado que os piolhos chegaram a América com seus hospedeiros humanos muito antes dos europeus. A pesquisa de parasitos de animais em coprólitos humanos revelou os hábitos alimentares do Homo sapiens pré-histórico a partir da identificação, nas fezes humanas, de parasitos específicos de animais, utilizados como alimento. São quatro os artigos que apresentam o estado da arte da Biologia.

Em Antropologia Física, foi revelada a diversidade morfocraniana dos remanescentes ósseos humanos, acrescentando dados significativos ao estudo da evolução humana e da origem do homem americano. Na dimensão de biodiversidade de fauna existente com os resultados da pesquisa, foi possível identificar uma fauna de vertebrados composta aproximadamente de 370 espécies.

A floral local formada por vegetação xerofítica é decídua e adaptada à seca. A flora de caatinga atual e os restos da mata atlântica e de espécies amazônicas permitiram identificar os diferentes ambientes em que os grupos humanos viveram durante milênios.

A caracterização do ambiente apresentado nos três primeiros temas é fundamental para contextualizar os temas relativos às populações pré-históricas, que se estruturam em torno da sua evolução tecnológica e que aparecem nas manufaturas líticas, nos grupos ceramistas, nos registros gráficos rupestres, nas escolhas dos espaços ocupados e nos processos rituais fúnebres.

O Homem na Pré-História do Parque Nacional Serra da Capivara é o título do tema 4, que aborda assim a longa sequência cultural que caracteriza as ocupações humanas pré-históricas da região, desde o Pleistoceno Superior até a extinção das etnias indígenas. Um longo caminho de adaptação às limitações imposta pela evolução ambiental, para o qual as populações humanas inovaram tecnologicamente para se defender, coexistir e se afastar dos perigos como os da presença da megafauna, com a qual coexistiram cronologicamente. Eram observadores da mudança climática e da extinção da fauna de grande porte, multiplicando-se a fauna de pequeno porte, roedores, pequenos mamíferos, peixes que passaram a participar da suas novas dietas. A inovação na manufatura cerâmica, as primeiras roças de subsistência, o aumento das terras disponíveis para seus assentamentos provocados pela seca e sua consequente diminuição do volume das águas.

A pesquisa sobre a manufatura cerâmica não se formula para analisar os detalhes do procedimento técnico de sua elaboração, mas como meio de chegar ao conhecimento das populações que a fabricaram e utilizaram; interessa a funcionalidade e o uso da cerâmica pré-histórica. Nas análises dos perfis técnicos das cerâmicas é seguramente onde mais se tem avançado a nível regional.

Constata-se que a cerâmica utilitária em nada difere da utilizada nos rituais fúnebres.

O tema 5 trata dos materiais líticos pré-históricos, e as pesquisas contam com duas colaborações que coincidem com dois momentos metodológicos. O primeiro elaborado para o estudo da Toca do Sítio do Boqueirão da Pedra Furada, em que se estuda e relaciona os produtos líticos finalizados, com ou sem marcas de uso.

Utiliza-se uma classificação analítica dos implementos desse sítio segundo a estratigrafia do Pleistoceno superior ao Holoceno antigo. O segundo tempo metodológico trabalha com os processos de realização dos produtos líticos a partir de um grupo de sítios apresentando a evolução dos implementos líticos nas diferentes fases, por níveis estratigráficos da ocupação pré-histórica.

O sexto tema trata dos registros gráficos rupestres do Parque Nacional, que foram objeto do primeiro volume dessa Síntese, apresentando os primeiros resultados dos sítios descobertos e fornecendo uma proposta preliminar classificatória do acervo de pinturas e de gravuras. O número de sítios pintados ou gravados documentados experimentou, nas últimas décadas, um crescimento surpreendente permitindo dispor de um acervo de registros gráficos maior para uma mesma área e enriquecer o banco de dados imagéticos do Parque Nacional. Hoje, os novos aportes da pesquisa sobre as pinturas e gravuras rupestres, que fazem a diferença na última década, são de natureza técnico-metodológica. Sua aplicação atinge o grau de precisão do registro documentário imagético, permitindo obter um documento final, exaustivo e preciso dos sítios. Viabiliza a criação de bancos de dados imagéticos georreferenciados, tanto bidimensionais como tridimensionais.

No plano analítico dos registros rupestres, a introdução de novas técnicas de medição permite aceder a um espaço analítico ampliado para o estudo e a interpretação dos registros imagéticos. Essas contribuições são verdadeiros instrumentos para formular diagnósticos, planejar intervenções preventivas para a conservação das primeiras obras gráficas da humanidade O sétimo tema trata das pesquisas em Metrologia Arqueológica e Patrimonial desenvolvidas pelo grupo de pesquisa (UFPE/CNPq), que está especializado na análise de elementos-traços em amostras arqueológicas e geológicas e na datação de sedimentos, vestígios cerâmicos e dentes através de métodos de Termoluminescência (TL), Luminescência Opticamente Estimulada (LOE) e Ressonância Paramagnética Eletrônica (EPR). As técnicas apresentadas estão acompanhadas por um estudo de caso, sendo que um deles trata das análises dos pigmentos das pinturas rupestres do Parque Nacional Serra da Capivara. Esse grupo de pesquisa trabalha de forma articulada com as equipes arqueológicas da Fumdham no desenvolvimento de novas metodologias, buscando uma maior precisão nos resultados e adequação ás necessidades da pesquisa.

Finalmente, no oitavo tema, abre-se um espaço para a consideração do fim do mundo indígena e o começo dos tempos históricos. Nele, são apresentadas duas colaborações evidenciando a carência de documentos históricos que tratem do fenômeno indígena ou a existência de documentos históricos deturpados, apresentados pelo filtro dos valores dos três primeiros séculos da presença de europeus no Brasil. A imagem do indígena construída segundo a funcionalidade às necessidades da conquista, da colônia e do valor da produtividade. O indígena sem valor algum em relação ao escravo africano, que tem um preço de compra e um potencial de produtor de bens. O indígena protegido em certa forma da escravidão e do sistema desaparece gradativa e silenciosamente.

Os resultados de trabalhos de impacto social, desenvolvidos paralelamente à pesquisa científica, estão incluídos no volume III da Síntese, que, sob o título Arqueologia, Ambiente e Inclusão Social no Plano Diretor de São Raimundo Nonato, PI, estará disponível no decorrer do ano 2015.__

Paulo Souto Maior – Departamento de Arqueologia, UFPE.

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Imagens da Pré-história. Parque Nacional Serra da Capivara – PESSIS (CA)

PESSIS, Anne-Marie. Imagens da Pré-história. Parque Nacional Serra da Capivara. Images de la Prèhistorie; Images from Pre-History. 2ed. (Edição ampliada e atualizada). São Paulo: Fumdham, 2013. 320p. Resenha de: MARTIN, Gabriela. Clio Arqueológica, Recife, v.28, n.1, 2013.

A nova edição do livro de Anne-Marie Pessis Imagens da Pré-História significa também o primeiro volume da Síntese dos biomas e sociedades humanas do Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, obra em vários volumes apoiada e financiada pelo ministério de Ciência e Tecnologia do Brasil – MCT, que reúne o conhecimento obtido do trabalho dos pesquisadores da Fundação Museu do Homem Americano ao longo de três décadas de pesquisas interdisciplinares na região.

Não há duvida de que o carro chefe das pesquisas no Parque Nacional Serra da Capivara fora desde o início o estudo dos registros rupestres pré-históricos seguido da constatação da presença humana na região desde o Pleistoceno Superior. O Parque foi declarado Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO em 1991, em virtude da diversidade dos seus sítios arqueológicos e, muito especialmente, pela extraordinária riqueza das pinturas rupestres existentes nos seus abrigos sob-rocha que reúnem um dos maiores acervos arqueológicos do mundo, numa concentração ímpar.

Dada a acumulação de dados obtidos na última década em torno das pinturas e gravuras rupestres e, principalmente, a aplicação de novas técnicas de registro digital, justifica-se plenamente uma segunda edição atualizada do livro Imagens da Pré-história, já de longo esgotado e que, dez anos depois da sua exitosa publicação se apresenta como o primeiro volume da Síntese sobre a região. Uma parte importante desta segunda edição da obra de Anne-Marie Pessis é o capitulo inicial colocado como adenda à primeira edição. Nele se relacionam as novas técnicas desenvolvidas e empregadas no registro dos grafismos, tanto para se obter melhores imagens como relatando as técnicas que permitirão a preservação digital desse grande acervo gráfico pré-histórico destinado a desaparecer vítima dos intemperismos e da intervenção predatória humana. Para a autora, a história do registro dos
acervos rupestres é a historia da procura de recursos técnicos para obter uma documentação completa e inalterada do estado de conservação do sítio no momento em que ela foi realizada. Assim, nos últimos anos, as pesquisas sobre as pinturas e gravuras rupestres foram especialmente de natureza técnico metodológica, atingindo maior precisão no registro documentário permitindo se obter uma documentação final exaustiva e precisa dos sítios e a criação de bancos de dados imagéticos georeferenciados bidimensionais e tridimensionais. A autora salienta também que a introdução de modelos digitais tridimensionais no dispositivo da pesquisa não exclui outros métodos de registro e análise dos grafismos rupestres. A digitalização das pinturas e gravuras torna-se uma poderosa ferramenta complementar se utilizada conjuntamente com fotografias de alta resolução, microscópios digitais, espectrofotômetros e equipamentos para determinar a composição dos pigmentos.

No estado atual das pesquisas fica evidenciado que além do estudo das variáveis estilísticas que caracterizam as diversas tradições rupestres ao longo do tempo e do espaço regional, se faz imprescindível o aporte de novos conhecimentos obtidos com procedimentos científicos confiáveis. Esses procedimentos conduzem pelo rumo da física e da química, da geoarqueologia e da metrologia arqueológica mais que das ciências humanas, onde o desmedido entusiasmo pela compreensão do fenômeno rupestre pode enganar não raramente com explicações infundadas. A utilização de procedimentos de análise cada vez mais seguros, a cronologia relativa através do estudo detalhado das sobreposições e as diferentes composições dos pigmentos utilizados para a confecção dos grafismos rupestres são as novas apartações que, a autora, considera imprescindíveis na preservação e o estudo desses registros rupestres que são Patrimônio Cultural Mundial da Humanidade.

Embora Anne-Marie Pessis informe que o centro do seu trabalho neste livro segue sendo o Parque Nacional da Capivara e o estudo da classe conhecida como Tradição Nordeste, reconhece, nesta segunda edição da obra, que nos anos transcorridos desde a publicação da primeira edição foram pesquisadas com marcada intensidade outras regiões no semiárido nordestino onde foi possível registrar um número suficiente de sítios que permitiram inferir um universo rupestre diferente em amplas áreas do vale médio do São Francisco, aparentado com as tradições rupestres do alto São Francisco de Minas Gerais e com a tradição Agreste de Pernambuco. Paralelamente, a descoberta de abrigos pintados no Parque Nacional Serra das Confusões, situado também no SE do Piauí a 60 km do Parque Nacional Serra da Capivara nos sugere a possibilidade de que a dispersão da Tradição Nordeste seguiu rotas diferentes às das populações da grande bacia sanfraciscana, cujos remanescentes mais afastados podem ter-se refugiado nas brenhas da Serra das Confusões.

A confiabilidade nas interpretações arqueológicas dos registros rupestres da pré-história é tema sempre presente nesta e noutras obras de Anne-Marie Pessis, na procura do conhecimento dos diferentes perfis gráficos e de sua contribuição às reconstruções pré-históricas, mas sem concessões a interpretações subjetivas e muito menos fantasiosas do fenômeno rupestre. Para a autora, os registros rupestres precisam ser tratados como mais um elemento da base de dados das pesquisas arqueológicas e submetidos aos mesmos procedimentos de pesquisa aplicados a todos os vestígios arqueológicos. Em outros termos, para que exista a confiabilidade mínima em qualquer interpretação, é necessário o fundamento fatual que apresente o benefício da prova. Os grafismos realizados sobre um
suporte rochoso são o produto final de uma prática milenar, resultado da acumulação de imagens realizadas quase sempre em períodos que ignoramos. Entre uma imagem e outra, desconhecemos o tempo que decorreu, assim como as diferentes autorias. Portanto, é necessário aplicar um procedimento de segregação de conjuntos gráficos para fundamentar e delimitar as unidades de análise.

O livro Imagens de Pré-história demonstra, também, um esforço inovador na compreensão do imaginário visual das sociedades indígenas brasileiras com uma abordagem teórica que conduz a análises rigorosas das imagens rupestres da pré-história.

Gabriela Martin

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