Côa e Seridó, dois rios na Pré-História – MARTINHO et al (CA)

MARTINHO, António; MARTIN, Gabriela; PESSIS, Anne-Marie. Côa e Seridó, dois rios na Pré-História. Recife: Editora da UFPE, 2017. Disponível em:  https://www3.ufpe.br/editora/ufpebooks/serie_extensao/coa_serid/html5forwebkit.html?page=0 . Resenha de: CISNEIROS, Daniela. Clio Arqueológica, Recife, v.2, n.2, p.247-252, 2017.

Este livro é uma idéia original que liga Portugal ao Brasil de uma maneira nova e que tem um alcance que ultrapassa o seu conteúdo. Forma parte de uma série de publicações realizadas sob o lema Movimento Recife Porto na Arte, criado em 1992 e caracterizado como um espaço de articulação entre artistas e pesquisadores brasileiros e portugueses procedentes de várias universidades e centros culturais de Portugal e Brasil no intuito de constituir uma rede de relações culturais de amplo espectro. Nesse âmbito, já foram publicados vários livros de conteudo diverso, embora no denominador comúm da cultura luso-brasileira sob a coordenação de Maria Betânia Borges Barros.

O livro Côa e Seridó, Dois Rios na Pré-História é dedicado à arte rupestre préhistórica do Brasil e de Portugal, centrado na apresentação de dois rios e duas culturas num futuro comum. Seguindo-se o roteiro da ocupação humana préhistórica nos vales de dois rios: Côa, em Portugal, e Seridó, no Brasil, apresentam-se as raizes de dois povos que, milênios depois, o destino uniria numa cultura semelhante: as dos caçadores-coletores pré-históricos.

Descrevem-se e analisam as gravuras rupestres existentes no vale do rio Côa, afluente do rio Douro, e as gravuras e pinturas rupestres do vale do Rio Seridó no Rio Grande do Norte. Duas regiões muito distantes, sem contacto possível numa época longinqua. O contexto arqueológico e ecológico das respectivas áreas tem em comum os vales de dois rios nos quais assentaram-se grupos humanos que deixaram as marcas do seu passo, representadas nas gravuras e pinturas rupestres.

A sobriedade das representações rupestres paleolíticas de Foz Côa, contrastam com a riqueza das informações antropológicas e as manifestações da vida cotidiana das pinturas do Seridó.

A primeira parte do livro é da autoria de António Martinho Baptista que há décadas estuda as gravuras rupestres do vale do Côa e que, como diretor do Parque Arqueológico do Côa, criado em 1996, empenhou-se no reconhecimento do mesmo como Patrimônio Mundial (1998).

Além do enorme valor intrínseco das gravuras do Côa, a sua descoberta modificou o conceito de que a “arte das grutas” seria a manifestação artística quase exclusiva dos tempos paleolíticos. Mais, a partir de 1994, com a revelação das primeiras gravuras paleolíticas na Canada do Inferno, na margem esquerda do Côa, perto do local onde se pretendia construir uma grande barragem, mudou a forma de entender a arte do homem fóssil. Foram identificados 26 sítios com arte paleolítica num total de 234 rochas gravadas ao ar livre, embora algumas estejam permanentemente submersas pela construção de uma barragem da década de 1980. Os sítios estão integrados na área do Parque Arqueológico do Vale do Côa (PAVC), criado em 10 de Agosto de 1996, com sede em Vila Nova de Foz Côa.

Gabriela Martin e Anne-Marie Pessis assinam em parceria a segunda parte da obra dedicada às pinturas e gravuras localizadas no vale do Seridó e de seus afluentes, no Rio Grande do Norte. As duas autoras, professoras da Universidade Federal de Pernambuco e membros da Fundação Museu do Homem Americano e da Fundação Seridó, pesquisam há décadas a Arte Rupestre nas diferentes regiões do Nordeste Brasileiro, onde está situado o Parque Nacional Serra da Capivara, Patrimônio Mundial desde 1991.

As pesquisas arqueológicas iniciadas na região do Seridó a partir da década de 1980 demonstraram a semelhança das pinturas rupestres de mais de um centenar de sítios daquela região, com as registradas na Serra da Capivara. A diversidade das figuras, as características técnicas e a existência de figuras emblemáticas permitiram identificar o padrão gráfico de um tronco cultural, conhecido como Tradição Nordeste. Há cerca de 9.000 anos começou o processo de mudança climática que vai radicalizar as condições de existência na região. Ocorre uma diminuição das chuvas, iniciando-se uma gradativa transformação do clima tropical-úmido em semiárido, época em que se inicia a diáspora das comunidades humanas pertencentes à Tradição Nordeste a partir de um epicentro localizado no SE do Piauí. Pelos dados disponíveis podemos estabelecer que, em torno do nono milênio BP, grupos originários da área do atual Parque Nacional Serra da Capivara, dispersaram-se por outras regiões do Nordeste brasileiro, abandonando seu primitivo habitat. Uma das levas da diáspora se instala na região de Seridó.

Os grupos étnicos que pintaram os abrigos do Seridó, enriquecerem a sua arte originaria com elementos novos, entre os quais destacam maior riqueza nos ornamentos, na pintura corporal e nos objetos que as figuras humanas carregam.

Cenas violentas de luta e de atividade sexual estão também presentes. A escolha da região do Seridó deve-se primeiramente à existência de numerosos pontos d’água e ao fato de constituir uma área de Brejo, que teria características climáticas mais favoráveis e melhores condições de sobrevivência.

Niède Guidon, Presidente da Fundação Museu do Homem Americano, instituição que cela pelo acervo cultural do Parque Nacional Serra da Capivara, tece no Prefácio uma série de comentários oportunos e que merecem uma reflexão no dizer da própria autora ao refletir sobre a Arte Rupestre de dois mundos tão diversos e distantes, tanto no clima como nos biomas e nas representações rupestres das figuras humanas e animais. Mas, como pano de fundo dessa diversidade existe, também, um bloco cerrado de semelhanças. As populações autoras dessa arte tinham um mesmo estilo de vida de caçadores e coletores.

O Parque Nacional Serra da Capivara e a área arqueológica do Seridó na região Nordeste do Brasil abrigam centenas de sítios com pinturas rupestres notáveis por seu caráter narrativo, realizados no decorrer de milênios. É fonte inesgotável de dados para a reconstituição da vida das populações que habitaram o Nordeste do Brasil na Pré-história.

Como em Foz Côa, as gravuras do Nordeste brasileiro são sempre ligadas à presença da água, geralmente foram realizadas nas vizinhanças de corredeiras, quedas de água, ou poços profundos nos leitos dos rios. Hoje, em Foz Côa, o rio corre no fundo de um canyon estreito e profundo, na Serra da Capivara os rios secaram faz cerca de 8.000 anos e no Seridó, o rio é um fio de água.

Praticamente em todo o mundo, no mesmo momento o Homem iniciou a prática rupestre, e, na aparente diversidade de suas manifestações, encontramos sempre o mesmo fundo espiritual, a forte ligação entre essas representações e o universo mítico e estético dos homens do paleolítico que externa suas ligações com os ecossistemas no qual viviam.

Outro ponto de convergência entre as duas provincias rupestres, neste caso relativo ao mundo das relações humanas, os intereses políticos e economicos e do reconhcimento científico é que a descoberta da Arte do Côa nasceu envolta em polémica, da mesma maneira que mais de um século antes acontecera com a revelação de Altamira, embora na atualidade o Vale do Côa é hoje reconhecido como um dos primeiros e mais notáveis centros da arte paleolítica da Europa.

Da mesma forma, encontramos também que a resistencia ao cambio e ao reconhecimento do que poderia ser mais antigo e impactante do ponto de vista estético, criou polêmicas sobra a importância e a antiguidade dos registros rupestres do Nordeste do Brasil, com é também o caso do Seridó em franca fase de destruição pelos interesses das mineiradoras e da ocupação das terras.

Este livro mostra que a globalização não é um fenômeno novo. O Homem moderno vem de uma só raiz pré-histórica e sua evolução seguiu um mesmo caminho em todo o mundo, embora as manifestações do fenomeno gráfico sejam tão diferentes. O livro apresenta, também, numerosas fotografias de ambas regiões que ilustram os respectivos textos dos autores.

Daniela Cisneiros – Departamento de Arqueologia, UFPE. E-mail: [email protected]

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Imagens da Pré-história. Parque Nacional Serra da Capivara – PESSIS (CA)

PESSIS, Anne-Marie. Imagens da Pré-história. Parque Nacional Serra da Capivara. Images de la Prèhistorie; Images from Pre-History. 2ed. (Edição ampliada e atualizada). São Paulo: Fumdham, 2013. 320p. Resenha de: MARTIN, Gabriela. Clio Arqueológica, Recife, v.28, n.1, 2013.

A nova edição do livro de Anne-Marie Pessis Imagens da Pré-História significa também o primeiro volume da Síntese dos biomas e sociedades humanas do Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, obra em vários volumes apoiada e financiada pelo ministério de Ciência e Tecnologia do Brasil – MCT, que reúne o conhecimento obtido do trabalho dos pesquisadores da Fundação Museu do Homem Americano ao longo de três décadas de pesquisas interdisciplinares na região.

Não há duvida de que o carro chefe das pesquisas no Parque Nacional Serra da Capivara fora desde o início o estudo dos registros rupestres pré-históricos seguido da constatação da presença humana na região desde o Pleistoceno Superior. O Parque foi declarado Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO em 1991, em virtude da diversidade dos seus sítios arqueológicos e, muito especialmente, pela extraordinária riqueza das pinturas rupestres existentes nos seus abrigos sob-rocha que reúnem um dos maiores acervos arqueológicos do mundo, numa concentração ímpar.

Dada a acumulação de dados obtidos na última década em torno das pinturas e gravuras rupestres e, principalmente, a aplicação de novas técnicas de registro digital, justifica-se plenamente uma segunda edição atualizada do livro Imagens da Pré-história, já de longo esgotado e que, dez anos depois da sua exitosa publicação se apresenta como o primeiro volume da Síntese sobre a região. Uma parte importante desta segunda edição da obra de Anne-Marie Pessis é o capitulo inicial colocado como adenda à primeira edição. Nele se relacionam as novas técnicas desenvolvidas e empregadas no registro dos grafismos, tanto para se obter melhores imagens como relatando as técnicas que permitirão a preservação digital desse grande acervo gráfico pré-histórico destinado a desaparecer vítima dos intemperismos e da intervenção predatória humana. Para a autora, a história do registro dos
acervos rupestres é a historia da procura de recursos técnicos para obter uma documentação completa e inalterada do estado de conservação do sítio no momento em que ela foi realizada. Assim, nos últimos anos, as pesquisas sobre as pinturas e gravuras rupestres foram especialmente de natureza técnico metodológica, atingindo maior precisão no registro documentário permitindo se obter uma documentação final exaustiva e precisa dos sítios e a criação de bancos de dados imagéticos georeferenciados bidimensionais e tridimensionais. A autora salienta também que a introdução de modelos digitais tridimensionais no dispositivo da pesquisa não exclui outros métodos de registro e análise dos grafismos rupestres. A digitalização das pinturas e gravuras torna-se uma poderosa ferramenta complementar se utilizada conjuntamente com fotografias de alta resolução, microscópios digitais, espectrofotômetros e equipamentos para determinar a composição dos pigmentos.

No estado atual das pesquisas fica evidenciado que além do estudo das variáveis estilísticas que caracterizam as diversas tradições rupestres ao longo do tempo e do espaço regional, se faz imprescindível o aporte de novos conhecimentos obtidos com procedimentos científicos confiáveis. Esses procedimentos conduzem pelo rumo da física e da química, da geoarqueologia e da metrologia arqueológica mais que das ciências humanas, onde o desmedido entusiasmo pela compreensão do fenômeno rupestre pode enganar não raramente com explicações infundadas. A utilização de procedimentos de análise cada vez mais seguros, a cronologia relativa através do estudo detalhado das sobreposições e as diferentes composições dos pigmentos utilizados para a confecção dos grafismos rupestres são as novas apartações que, a autora, considera imprescindíveis na preservação e o estudo desses registros rupestres que são Patrimônio Cultural Mundial da Humanidade.

Embora Anne-Marie Pessis informe que o centro do seu trabalho neste livro segue sendo o Parque Nacional da Capivara e o estudo da classe conhecida como Tradição Nordeste, reconhece, nesta segunda edição da obra, que nos anos transcorridos desde a publicação da primeira edição foram pesquisadas com marcada intensidade outras regiões no semiárido nordestino onde foi possível registrar um número suficiente de sítios que permitiram inferir um universo rupestre diferente em amplas áreas do vale médio do São Francisco, aparentado com as tradições rupestres do alto São Francisco de Minas Gerais e com a tradição Agreste de Pernambuco. Paralelamente, a descoberta de abrigos pintados no Parque Nacional Serra das Confusões, situado também no SE do Piauí a 60 km do Parque Nacional Serra da Capivara nos sugere a possibilidade de que a dispersão da Tradição Nordeste seguiu rotas diferentes às das populações da grande bacia sanfraciscana, cujos remanescentes mais afastados podem ter-se refugiado nas brenhas da Serra das Confusões.

A confiabilidade nas interpretações arqueológicas dos registros rupestres da pré-história é tema sempre presente nesta e noutras obras de Anne-Marie Pessis, na procura do conhecimento dos diferentes perfis gráficos e de sua contribuição às reconstruções pré-históricas, mas sem concessões a interpretações subjetivas e muito menos fantasiosas do fenômeno rupestre. Para a autora, os registros rupestres precisam ser tratados como mais um elemento da base de dados das pesquisas arqueológicas e submetidos aos mesmos procedimentos de pesquisa aplicados a todos os vestígios arqueológicos. Em outros termos, para que exista a confiabilidade mínima em qualquer interpretação, é necessário o fundamento fatual que apresente o benefício da prova. Os grafismos realizados sobre um
suporte rochoso são o produto final de uma prática milenar, resultado da acumulação de imagens realizadas quase sempre em períodos que ignoramos. Entre uma imagem e outra, desconhecemos o tempo que decorreu, assim como as diferentes autorias. Portanto, é necessário aplicar um procedimento de segregação de conjuntos gráficos para fundamentar e delimitar as unidades de análise.

O livro Imagens de Pré-história demonstra, também, um esforço inovador na compreensão do imaginário visual das sociedades indígenas brasileiras com uma abordagem teórica que conduz a análises rigorosas das imagens rupestres da pré-história.

Gabriela Martin

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