O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano / Sandra J. Pesavento

O Imaginário da Cidade é uma obra que se insere no que chamaríamos de história cultural do urbano, que se propõe a estudar a cidade através de suas representações. É através dessas que a autora, Sandra Jatahy Pesavento, professora e historiadora formada pela UFRGS, mestre em História pela PUCRS e doutora em História pela USP, pós-doutora pela Sourbonne e EHESS, na França e ex- professora do departamento de História da UFRGS, busca retratar o “real do passado”.

No caso, Pesavento vai se apropriar das representações literárias como meio de acesso à investigação do passado, percebendo, nas metáforas e nas imagens mergulhadas em seu seio, o imaginário das sensibilidades de uma época que procura se construir a partir do pensar e do agir dentro de um parâmetro de urbano, preso na ideia que chamaríamos de modernidade.

Pois, para ela, a literatura, ao “dizer a cidade”, condensa a experiência do vivido na expressão de uma sensibilidade “feita texto”. Essa é, pois, uma “estratégia de abordagem teóricometodológica que aponta para o cruzamento das imagens e discursos da cidade e que, por sua vez, conduz a um aprofundamento das relações entre história e literatura, além de ter por base o contexto da cidade em transformação” (PESAVENTO, 2002, p.10). Ora, “textos literários e de arquivo não são da mesma natureza, mas fazem parte, ambos, do que chamamos de referencial de contingência, que é socialmente construído e, como tal, histórico” (PESAVENTO, 2002, p.391). Mais do que isso, entendemos que o discurso urbano, o texto literário, a narrativa do historiador, os artigos de jornal, e outros tantos registros de linguagem são todos representações do real e, no caso, recriam a cidade.

Vale salientar que a autora já tem certa experiência nessa linha de pesquisa como pode ser percebido em outras obras de sua autoria, tais como: Os pobres da cidade (1994), Imagens Urbanas (1997), Uma outra cidade: O mundo dos excluídos no final do século XIX (2001), entre outras reflexões.

Por intermédio desse corpus documental, a autora vai investigar e analisar recortes temporais e espaciais diferenciados e significativos na sua espacialidade: “da Paris do final do século XVIII às reformas de Haussmann, na segunda metade do século XIX, o Rio de Janeiro da belle époque e de Pereira Passos do início do século, e a Porto Alegre do final do século às primeiras décadas do século XX, mais precisamente, até a gestão de José Montaury na prefeitura dessa cidade, finda em 1924” (PESAVENTO, 2002, p.22). Nesse percurso, investiga com um olhar literário as construções de perfis e paradigmas de modernidade e de como discursos e imagens construídas sobre o urbano são capazes de migrar no tempo e no espaço. Essas ideias e representações ganham um novo significado ao se mesclarem com as especificidades locais, fazendo com que possamos retratar o padrão identitário dessa cidade e consequentemente termos acesso às sensibilidades e às experiências vividas por seus habitantes.

A obra é composta por 5 capítulos, cujo primeiro, “A pedra e o sonho, os caminhos do imaginário urbano”, apresenta a temática do livro e conceitos aplicados pela linha de pesquisa escolhida pela autora, tais como representação, imaginário e alegoria. Pesavento aborda a cidade como o “lugar do homem”, que se presta à multiplicidade de olhares entrecruzados que, de forma transdisciplinar, busca entender a pluralidade da cidade e o conhecimento sobre essa. Esses discursos e essas visões não se hierarquizam, vão se cruzar e não vão se excluir, vão se justapor e darão ao leitor do urbano uma forma de entender o que chamaríamos de “cidade plural”, fenômeno múltiplo e poliocular.

Nesse capítulo, a autora deixa clara a distinção do oficio do historiador e do escritor: o historiador busca recriar o que teria se passado um dia, e o escritor de literatura cria um enredo que poderia também ter ocorrido. Nesse sentido, “ambas as representações são plausíveis e trata de convencer o leitor e transportá-lo há outro tempo, mas só o historiador empenha-se em demonstrar que a sua versão não é apenas, poderia ter sido, mas efetivamente foi” (PESAVENTO, 2002, p.13).

A problemática é apresentada nesse capítulo para evidenciar o modelo de metrópole difundido pelo mito de modernidade da capital da França, em que o imaginário do urbano dessa se universaliza, ultrapassando o além mar, influenciando, assim, os padrões estéticos e arquitetônicos das cidades brasileiras, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Assim, Paris serve como referência de civilidade e progresso.

No segundo capítulo, “O imaginário de Paris – no final do século XVIII ao final do século XIX, procura-se entender as transformações de Paris num contexto marcado pela ascensão da burguesia e pela influência do Iluminismo, em que a cidade acaba sofrendo algumas mutações decorrentes do apelo e do desenvolvimento do capitalismo francês. Em virtude do crescimento exagerado de sua população, essa capital passa por profundas mudanças em sua forma arquitetônica, estética, cultural e moral para atender os anseios dos indivíduos que compõem uma classe privilegiada.

Aos poucos, a capital da França vai ganhando nova forma. Renunciará a tradição, as muralhas e entrará em um processo rumo à modernidade. Paris ganha, portanto, uma nova concepção de “cidade aberta” e é nesse sentido que se colocam os discursos literários em busca de mostrar uma cidade em pleno progresso econômico e social, um símbolo de civilização. Dessa forma, autores como Mecier, Bretonne e Vitor Hugo, por exemplo, vão retratar, através de metáforas, a nação de urbanidade, ora identificada com um alto grau de civilização e cultura, ora de barbárie e repúdio.

No capítulo 3, Rio de Janeiro uma cidade no espelho, a autora busca investigar a cidade carioca à cultura ocidental moderna. A ideia do “mito de Paris”, como referência emblemática, incentiva o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, nas transformações urbanísticas dessa urbe. Ao longo do século XIX, o Brasil passará por algumas mudanças no âmbito político, econômico e social. De uma monarquia, passará para um regime republicano.

As cidades com perfis de “cidade colonial brasileira, com suas ruas estreitas, seu casario baixo entremeado de alguns sobrados, com um traçado irregular de ruas, ruelas e becos, entremeados de paços, praças e chafarizes” (PESAVENTO, 2002, p.164) começariam a ser substituídos, no século XIX, pela proposta européia de metrópole moderna, de uma urbe ideal, ordenada e planejada. Assim, “a Paris mística não é só a capital da França, mas a de um século, como definiu Walter Benjamin, além de se tornar a referência imagética, o porto de ancoragem para os sonhos da cidade almejada” (PESAVENTO, 2002, p.392). Sendo assim, a remodelagem da cidade do Rio de Janeiro atenderia os anseios de apresentar esse centro urbano como o cartão postal de um país que aspirava ser civilizado; essa imagem, porém, não agradava a todos, principalmente os literatos da época como João do Rio e Lima Barreto, sendo, o segundo, quem mais criticou e debochou da “capital das aparências” e declarava, nessa época, que essa ainda era “uma velha e feia cidade, de ruas estreitas e mal calçadas, mas, não sei porque, mais interessante, mais sincera, do que esse Rio binocular que temos agora, Rio trompe d`oeil, com avenidas e palácios de fachadas, só cascas de casa, espécie de portentos cinematográficos” (PESAVENTO, 2002, p.222). O Rio de Janeiro foi o microcosmo de análise para a reflexão de Lima Barreto sobre o Brasil e sobre esse poder mágico dos nacionais de se conceberem de forma diferente daquilo que eram. Daí “o país se enxergar da maneira como desejava ser e viver essa transfiguração do real como verdadeira.

Todos se julgavam lordes, mistificando um país de mestiços e miseráveis” (PESAVENTO, 2002, p.227). A imagem do espelho era, em tudo, melhor do que o mundo do lado de cá. “Por que resistir à tentação do imaginário? As pessoas acreditavam naquilo que queriam ver, e o Rio apresentava aquela situação de fachada, de teatralização da vida, distorcendo o real ou, então, ignorando o lado incômodo da existência” (PESAVENTO, 2002, p.227). A obra de Lima Barreto é, nesse caso, pejada de figuras e situações metafóricas, cujo significado último encontraria na capacidade do homem de se conceber diferente daquilo que é. Os Bruzundangas é o texto no qual a paródia atinge a dimensão global: neste “país das maravilhas”, os cidadãos da elite cultivada se julgavam outros, distantes daquilo que são”.

(PESAVENTO, 2002, p.227). Com essa via literária, Lima Barreto tinha à intenção, segundo a autora, “de criticar o governo republicano, sua burocracia e seus métodos violentos como o meio literário medíocre e, sobretudo, o preconceito de cor que leva à discriminação social” (PESAVENTO, 2002, p.227).

Mas seria a cidade apenas com vícios ou uma cidade com virtudes? Pesavento nos leva a compreender que a urbe é o espaço que se situa acima do bem e do mal, amoral e relativa. A cidade é sempre um desafio, “uma personificação da modernidade, que atrai e seduz, mas, ao mesmo tempo, que aterroriza e faz recuar” (PESAVENTO, 2002, p.231), portanto, ela deve ser analisada a partir daquilo que ela representa para cada indivíduo. O Rio de Janeiro, para alguém do interior, era, “sobretudo conforto e facilidades da vida moderna, elementos que davam beleza e encanto à vida, e até mesmo no seu lado pernicioso tinha uma capacidade de envolver”( PESAVENTO, 2002, p.230).

Vendo o desenvolvimento da capital do país, outros lugares do Brasil, como Porto Alegre, começaram a se espelhar no Rio de Janeiro. As oscilações valorativas da cidade-vício e da cidade-virtude, o desencantamento com o mundo e do reencantamento proporcionado pela modernidade urbana vão implicar em uma requalificação do campo. E, sendo assim, o Rio Grande do Sul, mais especificamente Porto Alegre, aufere a atenção da autora no 4º Capítulo – Os Ecos do Sul- Porto Alegre e seu duplo (1890-1924).

As visões do desenvolvimento da capital gaúcha vão oscilar entre o viver modernourbano, agitado pelo crescimento acelerado de sua população e por audaciosas boemias, e no oposto, mais visível, a inércia e a vida simples de campo ou aldeia. Assim, Porto Alegre fica em um dilema: seguir o progresso proposto pela positividade das referências identitárias transmitido por Paris e pelo Rio de Janeiro, para assim se configurar enquanto metrópole ou preservar as tradições e os hábitos de aldeia que trazem a sensação de nostalgia.

Através do olhar literário que também se expandia sobre o urbano dessa cidade, podemos perceber o confronto dessas imagens do passado com as do presente. O olhar se volta para o positivo do rural voltado para o passado, num trabalho de recuperar, pelo imaginário, um tempo e um espaço preciso. Assim, a visão que se tem da cidade supracitada é bipolar, “que transita pelos paradigmas da metrópole, com o seu agito, a multidão, as atrações da rua, o luxo, a ostentação, o prazer fácil, o povo apreensivo e nervoso” (PESAVENTO, 2002, p.310) e uma cidade tranquila e cheia de lembranças.

No último capítulo, Um Fim e um Começo, mas sempre cidade, a autora mostra todo o estudo feito durante a obra, resumindo, portanto, cada um dos textos que a compõem e evidenciando a problemática central, trazendo uma conclusão que nos faz enxergar na literatura um palco repleto de possibilidades para o historiador se debruçar. Ao usar o seu olhar investigativo sobre esse campo, os “mestres da história”, sobre essa determinada fonte, poderão enxergar um “real” de um mundo trazido por essas imagens pictóricas e metáforicas enraizadas nesse tipo de documento, para assim confirmar, ou não, um sonho almejado por uma época, no caso exemplificado nessa obra, as cidades que procuravam se tornar urbanomodernas e seguir certos padrões de civilidade.

Adson Rodrigo Silva Pinheiro – Graduando em História – Uece e bolsista FUNCAP. E-mail: [email protected].


PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. 400p. Resenha de: PINHEIRO, Adson Rodrigo Silva. Embornal, Fortaleza, v.1, n.1, p.1-5, 2010. Acessar publicação original. [IF].