Canudos: novas trilhas / Roberto N. Dantas

DANTAS Roberto Nunes Canudos
Roberto Nunes Dantas / Foto: TV Uneb /

DANTAS R N Canudos novas trilhas CanudosLivro e vídeo Canudos: novas trilhas foram lançados em Sergipe, ano passado. Ambos, resultado do projeto “Cenários e Caminhos Históricos da Guerra de Canudos: Novas Trilhas” coordenado pelo professor Roberto Dantas, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), com o patrocínio da Petrobrás. Por uma feliz coincidência, veio da Bahia, Estado adotado por José Calasans Brandão da Silva, aracajuano falecido em 28 de maio de 2001, que era um grande, senão um dos mais competentes pesquisadores da Guerra de Canudos. Na década de 1950, Calasans revolucionou a interpretação do conflito ocorrido no sertão baiano em 1896/1897, propondo sua releitura a partir do folclore, da oralidade dos sobreviventes e de outras fontes alternativas a obra euclidiana, Os Sertões, de 1902.

Assim, no decênio da morte de José Calasans, assistimos a estréia de uma perspectiva inovadora na cartografia da maior guerra civil da História do Brasil. Do que estamos falando? “Canudos: Novas Trilhas” desvela o trajeto das quatro expedições militares que marcharam para destruir o Arraial do Belo Monte, em Canudos. Em resumo: Primeira Expedição, comandada pelo tenente Manoel da Silva Pires Ferreira, reuniu efetivo de 110 homens e partiu de Juazeiro; Segunda Expedição, comandada pelo major Febrônio de Brito, reuniu efetivo de 561 homens e partiu de Monte Santo; Terceira Expedição, coordenada pelo comandante Moreira Cesar, com efetivo de 1200 homens, partiu das bases de Queimadas e Monte Santo; Quarta Expedição, teve o comando do General Artur Oscar de Andrade Guimarães e reuniu batalhões de 16 estados, quase 10.000 homens, seguindo para Canudos em duas colunas, uma saindo de Monte Santo, outra de Aracaju, Sergipe.

O mérito do projeto vertido em livro “Canudos: Novas Trilhas” foi o de mapear trilhas e lugares de bivaque, estada das tropas, a partir dos documentos e obras de referência. Mas o trabalho não foi realizado somente no Arquivo do Exército, Biblioteca Nacional, Núcleo Sertão – UFBA, CEEC (Centro de Estudos Euclydes da Cunha – UNEB) dentre outros; a equipe foi a campo e, ao passo que produzia aos registros imagéticos (áudios-visuais e fotográficos) empreendeu ao georeferenciamento dos antigos caminhos, desbravando a caatinga, enfrentando alagados, cercas, cancelas, entrevistando e cooptando guias. Dessa forma, visando cumprir seus intentos, o projeto incorporou o geoprocessamento, ou seja, a área do conhecimento que surgiu em meados do século XX e utiliza técnicas matemáticas e computacionais para tratamento da informação geográfica. E assim, combinando dados do Sistema de Informação Geográfica (GIS) e do receptor GPS (Sistema Global de posicionamento), chegou ao produto ora resenhado.

A execução do projeto permitiu ratificar o que dizem as fontes documentais e cartográficas do século XIX; retificar lugares a partir do georefenciamento e dos testemunhos coletados e, ainda, suscitar temas atinentes ao assunto. Sobre último ponto, oportuno tratar da passagem por Sergipe da chamada Coluna Savaget.

A partir do dia 27 de abril de 1897, a Coluna Savaget reuniu em Aracaju seis batalhões (12º, 26º, 32º, 33º, 34º e 35º), iniciando a marcha no dia 22 de maio. Na capital sergipana os batalhões se arrancharam no mercado, no quartel de 1º Linha e no 26º Batalhão. Em São Cristóvão uma parte aquartelou-se no Convento São Francisco, a outra, na Colônia de Patrimônio. A principal polêmica em debate foi quanto à localização da Colônia de Patrimônio. Alguns autores afirmam que o antigo Engenho Patrimônio, onde foi implantada a dita colônia, funcionou no atual Centro de Ensino Técnico Federal de São Cristóvão (IFES). Outros asseveram que a Colônia de Patrimônio funcionou na Tebaída, mais precisamente na fazenda onde religiosos fundaram a Escola Salesiana, em 1902. Mesmo oferecendo as duas opções para análise dos pesquisadores, a última probabilidade agiganta-se diante de nossos estudos e reflexões.

Tópico referente a São Cristóvão, que poderíamos suscitar, independente de não figurar na obra, é a localização do sobrado do Capitão Antônio Miguel do Prado.

Nele, o general Savaget, juntamente com Serra Martins e “todo o Estado-Maior” ficou hospedado. O imóvel não foi identificado e os atuais proprietários de sobrados na cidade desconhecem o fato.

Quanto ao alojamento das tropas no Convento São Francisco, um incêndio ficou registrado do Livro de Tombo paroquial. Consta que o acidente ocorreu por descuido de um soldado ali aquartelado e não fosse o socorro da comunidade ganharia dimensão catastrófica.

Não se deixe enganar, leitor, com o subtítulo “novas trilhas”. A novidade do trabalho se acha no equipamento utilizado para acender as antigas trilhas que conduziram as tropas a Canudos. O projeto revelou a impossibilidade de fazer das trilhas de Canudos um roteiro turístico, como propôs José Calasans em 1996, na conferência ministrada no Encontro de História da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Cercas e cancelas foram transpostas pela equipe visando efetivar a missão. Por uma questão interdisciplinar e salutar para sustentabilidade da ação de extensão universitária, Fernanda Groba e Débora Menezes propuseram então o Roteiro Turístico Sertanejo que terá na cidade de Monte Santo base de explorações de conhecimento.

O texto de parágrafos longos, coesos e rebuscados constitui um item positivo. Apenas um esclarecimento deve servir para sua reedição: “exagerado numerário do efetivo” (p. 46); dicionário explica que numerário é “moeda, respeitante a dinheiro”, (p. 1422).

Georeferenciados os caminhos e lugares que demandaram o antigo Arraial do Belo Monte; definido e planejado o piloto do Roteiro Turístico Sertanejo, sediado em Monte Santo, a obra encerra a pauta e etapa do projeto cultural. Rodrigo Moate observa que “geograficamente, a Guerra de Canudos foi um dos conflitos de grande dimensão territorial” (p. 62), aproveito para sugerir, na órbita da cartografia canudense, o rastro do beato Antônio Conselheiro enquanto etapa a vencer no próximo esforço. O Conselheiro peregrinou pelos sertões do Ceará, Sergipe e Bahia, tendo arrebanhado fiéis por onde passou. Então? Vida longa ao projeto Caminhos e Cenários da Guerra de Canudos: novas trilhas!

José Thiago da Silva Filho – Especialista em História Cultural pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), sócioefetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE), membro do Grupo de Estudos História Popular do Nordeste (GEHPN/CNPq), diretor do Museu Histórico de Sergipe (MHS/Secult). E-mail: [email protected]


DANTAS, Roberto Nunes (Coord.). Canudos: novas trilhas. Salvador, 2011. Resenha de: SILVA FILHO, José Thiago. Embornal, Fortaleza,v.2, n.3, p.1-2, 2011. Acessar publicação original. [IF].

“Catirina, minha Nêga, Tão Querendo te Vendê…”: escravidão, tráfico e negócios no Ceará do século XIX (1850 – 1881) / José H. Ferreira Sobrinho

O cientista social, José Hilário Ferreira Sobrinho, por seu engajamento e pesquisa acerca da cultura e história do negro no Ceará presenteou, em 2011, a comunidade de historiadores que se dedicam a pesquisa da história social da escravidão no Brasil publicando esta obra instigante e sedutora como um imã porque o texto, escrito com maestria, envolve e seduz o leitor. Nesse sentido, dentre os seus inúmeros méritos sublinha-se a sua contribuição para que se superem os efeitos ainda nocivos da ideologia racista que articulou o mito da pouca relevância da escravidão moderna, tendo por objeto povos africanos, na formação histórica do Ceará. Trata-se de mais um dos excelentes textos que, aos poucos, vêm constituindo uma historiografia da escravidão no Ceará. A este respeito sublinha, os “trabalhos sobre os negros cearenses são significativos por mostrarem outra realidade da presença dos mesmos no Ceará. Abre-se então, um caminho para a desconstrução da ideia do cativo ausente ou passivo no processo histórico, que, há tempos é predominante entre nós”. A partir do diálogo com autores locais e de outros que estudam a escravidão, e cotejando uma diversificada documentação como – livros de registros avulsos de compradores de escravos de Itatiba-SP (1861-1880), de registros de meia siza, de compra e venda de escravos para Pirassununga-SP (1877-1878) encontrados no Centro de Memória da Unicamp; livro de investigação da policia do porto do Ceará, livro do Cartório Feijó, livro de Lançamentos de despacho – Requerimento de Passaporte para escravos – 1868; romances, letras de músicas, jornais da época e outros documentos; mas, seguindo a trilha aberta por trabalhos constitutivos de uma nova historiografia da escravidão a partir da década de 1980/90, e orientados por princípios teóricometodológicos recortados no pensamento do historiador Inglês E. P. Thompson, o autor queria analisar “experiências e vivências de escravos, libertos e livres, no Ceará, procurando perceber suas táticas e estratégias nas brechas encontradas na sociedade escravista, que lhes possibilitavam a construção de espaços de liberdade”. Mas, ao aprofundar os seus estudos acerca da escravidão decidiu-se pela análise do movimento de “escravos vindos do Norte para o Sudeste, na segunda metade do século XIX” – o tema central deste livro. Tal como sublinha, “a temática é recorrente no meio acadêmico, mas pouco analisada pela historiografia brasileira, em particular, pela cearense”, inclusive “tomando como ponto de partida as vivências dos atores sociais envolvidos nesse “negócio”, no contexto de uma província, que vê diminuídas, ainda mais, as relações de produção com base na mão de obra escrava”.

O seu pressuposto é que “o tráfico interprovincial foi comum na vida social dos cearenses, com diferentes significados para os envolvidos, em particular, para o cativo”. Desse modo, trata-se de um estudo cuja importância se expressa “pela possibilidade de análise das estratégias de escravos e comerciantes, na consecução dos seus objetivos diante das adversidades e situações que se lhes apresentavam”. Em linhas gerais, para os escravos “a migração, caracterizada no comercio de escravos para outras províncias, representou, de um modo geral, a reelaboração dos horrores produzidos pelo tráfico atlântico como: a separação de famílias, o sequestro de pessoas livres e sua reescravização”.

Com esta perspectiva analítica, o autor indica que o tráfico interprovincial para “as lavouras de cana e de café, no Rio de Janeiro, e a zona de expansão da cafeicultura em terras paulistas”, quanto à especificidade da província do Ceará decorreu da articulação entre diferentes fatores dentre os quais se destacam – epidemias, secas e a Guerra do Paraguai. De sua analise se infere que o mesmo foi um processo complexo, denso e permeado por tensões de múltiplos matizes envolvendo proprietários de escravos, traficantes, escravos, libertos e o Estado. Os negociantes eram pessoas de posses com inserção na vida social da província que agiam mediante empresa ou firma tendo por articulistas mascates e procuradores.

Ao tratar do surto de febre amarela ocorrido em 1851, o autor destaca que “a epidemia abalou, de alguma forma a vida dos proprietários de escravos a ponto de um ano e meio depois, 1853, ter aumentado significativamente em relação aos anos anteriores, e, por bom tempo, nos anos posteriores, a venda de cativos para outras regiões”. No entanto, sublinha – “o período em que mais se exportaram escravos foi o da seca de 1877-1879 (6.559) sendo que aproximadamente 50% deles (2.909) em 1878”.

Em relação à Guerra do Paraguai salienta que “o fluxo de saída de escravos foi bem menor em relação ao período marcado pelas secas. Contudo, esse momento mexeu com o comércio negreiro interno e com o imaginário dos cativos frente a possibilidade de alforria”. Em sua análise tece os meandros da trama que envolvia a Guerra do Paraguai, a escravidão e o tráfico interno de escravos e, nesse contexto, a lógica da ação do Estado incorporando escravos em tropas do Exército. O tráfico interno, por um lado gerava renda para traficantes e proprietários de escravos cearenses porque encontraram no “comércio interno de escravos” “uma forma de continuar sobrevivendo e obtendo ganhos com a venda de cativos”. Por outro, evitava que indivíduos das classes dominantes fossem e ou enviassem os seus para o front da guerra, pois, “muitos proprietários, fugindo ao alistamento, não querendo embarcar na aventura nem ver seus os filhos ou agregados mais chegados embarcarem, decidiam enviar escravos, recebendo por isso uma determinada quantia, a título de indenização…”.

Jornais locais e de outras províncias noticiavam, por meio de seus anúncios, a “liberdade escrava” em troca da participação destes na guerra. Tal como salienta o autor, “noticias assim mexiam com o imaginário do escravo, que visualizava uma brecha para a conquista da liberdade, que o escravo, a seu modo interpretava. E o resultado desse entendimento levou muitos cativos à recusa, do cativeiro, não esperando que os senhores os negociassem e recebessem indenização.” Por isso, muitos deles recorreram à fuga.

No entanto, outros tantos resistiram ao tráfico. A este respeito o autor sublinha que as festas – de Reis Congos e Cirandas, frequentadas por crioulos, mestiços e africanos, para além de sua dimensão lúdica constituíam-se em ocasiões importantes para as trocas de informações “sobre os embarques, o sofrimento nas caravanas e a vida de trabalho duro, nas fazendas de café”; enfim, de avisos que tratavam “dos perigos e vantagens de determinados acontecimentos, nas cidades, ou nas fazendas, de temas relativos ao tráfico para o Rio de Janeiro.” Devido a esse processo chamado pelo autor de “correio nagô”, “os escravos estavam atentos e tinham conhecimento das discussões políticas referentes às leis emancipacionistas, às discussões políticas sobre a escravidão e o tráfico, em pauta no parlamento, e às quais recorriam para pressionarem as autoridades e senhores, na luta contra a venda indesejada, em particular, contra a exportação. Todavia, quando os tramites legais não funcionavam, as formas radicais, crimes e fugas eram as saídas possíveis.” A partir de histórias dos escravos Bernardo, Anna e Nicolau em sua luta contra o tráfico interprovincial o autor adentra no contexto criado pelas lutas por liberdade convidando-nos a compreendê-la sob a perspectiva dos escravos. Para tanto, é necessário que o leitor desbrave este texto escrito de modo arguto, perspicaz e critico.

Josenildo de J. Pereira – Professor do Programa de Pós-graduação em História – PPGHIS/UFMA – CCH e de História da África no Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão/UFMA.


SOBRINHO, José Hilário Ferreira. “Catirina, minha Nêga, Tão Querendo te Vendê…”: escravidão, tráfico e negócios no Ceará do século XIX (1850 – 1881). Resenha de: PEREIRA, Josenildo de J. Embornal, Fortaleza, v.2, n.4, p.1-4, 2011. Acessar publicação original. [IF].

O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano / Sandra J. Pesavento

O Imaginário da Cidade é uma obra que se insere no que chamaríamos de história cultural do urbano, que se propõe a estudar a cidade através de suas representações. É através dessas que a autora, Sandra Jatahy Pesavento, professora e historiadora formada pela UFRGS, mestre em História pela PUCRS e doutora em História pela USP, pós-doutora pela Sourbonne e EHESS, na França e ex- professora do departamento de História da UFRGS, busca retratar o “real do passado”.

No caso, Pesavento vai se apropriar das representações literárias como meio de acesso à investigação do passado, percebendo, nas metáforas e nas imagens mergulhadas em seu seio, o imaginário das sensibilidades de uma época que procura se construir a partir do pensar e do agir dentro de um parâmetro de urbano, preso na ideia que chamaríamos de modernidade.

Pois, para ela, a literatura, ao “dizer a cidade”, condensa a experiência do vivido na expressão de uma sensibilidade “feita texto”. Essa é, pois, uma “estratégia de abordagem teóricometodológica que aponta para o cruzamento das imagens e discursos da cidade e que, por sua vez, conduz a um aprofundamento das relações entre história e literatura, além de ter por base o contexto da cidade em transformação” (PESAVENTO, 2002, p.10). Ora, “textos literários e de arquivo não são da mesma natureza, mas fazem parte, ambos, do que chamamos de referencial de contingência, que é socialmente construído e, como tal, histórico” (PESAVENTO, 2002, p.391). Mais do que isso, entendemos que o discurso urbano, o texto literário, a narrativa do historiador, os artigos de jornal, e outros tantos registros de linguagem são todos representações do real e, no caso, recriam a cidade.

Vale salientar que a autora já tem certa experiência nessa linha de pesquisa como pode ser percebido em outras obras de sua autoria, tais como: Os pobres da cidade (1994), Imagens Urbanas (1997), Uma outra cidade: O mundo dos excluídos no final do século XIX (2001), entre outras reflexões.

Por intermédio desse corpus documental, a autora vai investigar e analisar recortes temporais e espaciais diferenciados e significativos na sua espacialidade: “da Paris do final do século XVIII às reformas de Haussmann, na segunda metade do século XIX, o Rio de Janeiro da belle époque e de Pereira Passos do início do século, e a Porto Alegre do final do século às primeiras décadas do século XX, mais precisamente, até a gestão de José Montaury na prefeitura dessa cidade, finda em 1924” (PESAVENTO, 2002, p.22). Nesse percurso, investiga com um olhar literário as construções de perfis e paradigmas de modernidade e de como discursos e imagens construídas sobre o urbano são capazes de migrar no tempo e no espaço. Essas ideias e representações ganham um novo significado ao se mesclarem com as especificidades locais, fazendo com que possamos retratar o padrão identitário dessa cidade e consequentemente termos acesso às sensibilidades e às experiências vividas por seus habitantes.

A obra é composta por 5 capítulos, cujo primeiro, “A pedra e o sonho, os caminhos do imaginário urbano”, apresenta a temática do livro e conceitos aplicados pela linha de pesquisa escolhida pela autora, tais como representação, imaginário e alegoria. Pesavento aborda a cidade como o “lugar do homem”, que se presta à multiplicidade de olhares entrecruzados que, de forma transdisciplinar, busca entender a pluralidade da cidade e o conhecimento sobre essa. Esses discursos e essas visões não se hierarquizam, vão se cruzar e não vão se excluir, vão se justapor e darão ao leitor do urbano uma forma de entender o que chamaríamos de “cidade plural”, fenômeno múltiplo e poliocular.

Nesse capítulo, a autora deixa clara a distinção do oficio do historiador e do escritor: o historiador busca recriar o que teria se passado um dia, e o escritor de literatura cria um enredo que poderia também ter ocorrido. Nesse sentido, “ambas as representações são plausíveis e trata de convencer o leitor e transportá-lo há outro tempo, mas só o historiador empenha-se em demonstrar que a sua versão não é apenas, poderia ter sido, mas efetivamente foi” (PESAVENTO, 2002, p.13).

A problemática é apresentada nesse capítulo para evidenciar o modelo de metrópole difundido pelo mito de modernidade da capital da França, em que o imaginário do urbano dessa se universaliza, ultrapassando o além mar, influenciando, assim, os padrões estéticos e arquitetônicos das cidades brasileiras, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Assim, Paris serve como referência de civilidade e progresso.

No segundo capítulo, “O imaginário de Paris – no final do século XVIII ao final do século XIX, procura-se entender as transformações de Paris num contexto marcado pela ascensão da burguesia e pela influência do Iluminismo, em que a cidade acaba sofrendo algumas mutações decorrentes do apelo e do desenvolvimento do capitalismo francês. Em virtude do crescimento exagerado de sua população, essa capital passa por profundas mudanças em sua forma arquitetônica, estética, cultural e moral para atender os anseios dos indivíduos que compõem uma classe privilegiada.

Aos poucos, a capital da França vai ganhando nova forma. Renunciará a tradição, as muralhas e entrará em um processo rumo à modernidade. Paris ganha, portanto, uma nova concepção de “cidade aberta” e é nesse sentido que se colocam os discursos literários em busca de mostrar uma cidade em pleno progresso econômico e social, um símbolo de civilização. Dessa forma, autores como Mecier, Bretonne e Vitor Hugo, por exemplo, vão retratar, através de metáforas, a nação de urbanidade, ora identificada com um alto grau de civilização e cultura, ora de barbárie e repúdio.

No capítulo 3, Rio de Janeiro uma cidade no espelho, a autora busca investigar a cidade carioca à cultura ocidental moderna. A ideia do “mito de Paris”, como referência emblemática, incentiva o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, nas transformações urbanísticas dessa urbe. Ao longo do século XIX, o Brasil passará por algumas mudanças no âmbito político, econômico e social. De uma monarquia, passará para um regime republicano.

As cidades com perfis de “cidade colonial brasileira, com suas ruas estreitas, seu casario baixo entremeado de alguns sobrados, com um traçado irregular de ruas, ruelas e becos, entremeados de paços, praças e chafarizes” (PESAVENTO, 2002, p.164) começariam a ser substituídos, no século XIX, pela proposta européia de metrópole moderna, de uma urbe ideal, ordenada e planejada. Assim, “a Paris mística não é só a capital da França, mas a de um século, como definiu Walter Benjamin, além de se tornar a referência imagética, o porto de ancoragem para os sonhos da cidade almejada” (PESAVENTO, 2002, p.392). Sendo assim, a remodelagem da cidade do Rio de Janeiro atenderia os anseios de apresentar esse centro urbano como o cartão postal de um país que aspirava ser civilizado; essa imagem, porém, não agradava a todos, principalmente os literatos da época como João do Rio e Lima Barreto, sendo, o segundo, quem mais criticou e debochou da “capital das aparências” e declarava, nessa época, que essa ainda era “uma velha e feia cidade, de ruas estreitas e mal calçadas, mas, não sei porque, mais interessante, mais sincera, do que esse Rio binocular que temos agora, Rio trompe d`oeil, com avenidas e palácios de fachadas, só cascas de casa, espécie de portentos cinematográficos” (PESAVENTO, 2002, p.222). O Rio de Janeiro foi o microcosmo de análise para a reflexão de Lima Barreto sobre o Brasil e sobre esse poder mágico dos nacionais de se conceberem de forma diferente daquilo que eram. Daí “o país se enxergar da maneira como desejava ser e viver essa transfiguração do real como verdadeira.

Todos se julgavam lordes, mistificando um país de mestiços e miseráveis” (PESAVENTO, 2002, p.227). A imagem do espelho era, em tudo, melhor do que o mundo do lado de cá. “Por que resistir à tentação do imaginário? As pessoas acreditavam naquilo que queriam ver, e o Rio apresentava aquela situação de fachada, de teatralização da vida, distorcendo o real ou, então, ignorando o lado incômodo da existência” (PESAVENTO, 2002, p.227). A obra de Lima Barreto é, nesse caso, pejada de figuras e situações metafóricas, cujo significado último encontraria na capacidade do homem de se conceber diferente daquilo que é. Os Bruzundangas é o texto no qual a paródia atinge a dimensão global: neste “país das maravilhas”, os cidadãos da elite cultivada se julgavam outros, distantes daquilo que são”.

(PESAVENTO, 2002, p.227). Com essa via literária, Lima Barreto tinha à intenção, segundo a autora, “de criticar o governo republicano, sua burocracia e seus métodos violentos como o meio literário medíocre e, sobretudo, o preconceito de cor que leva à discriminação social” (PESAVENTO, 2002, p.227).

Mas seria a cidade apenas com vícios ou uma cidade com virtudes? Pesavento nos leva a compreender que a urbe é o espaço que se situa acima do bem e do mal, amoral e relativa. A cidade é sempre um desafio, “uma personificação da modernidade, que atrai e seduz, mas, ao mesmo tempo, que aterroriza e faz recuar” (PESAVENTO, 2002, p.231), portanto, ela deve ser analisada a partir daquilo que ela representa para cada indivíduo. O Rio de Janeiro, para alguém do interior, era, “sobretudo conforto e facilidades da vida moderna, elementos que davam beleza e encanto à vida, e até mesmo no seu lado pernicioso tinha uma capacidade de envolver”( PESAVENTO, 2002, p.230).

Vendo o desenvolvimento da capital do país, outros lugares do Brasil, como Porto Alegre, começaram a se espelhar no Rio de Janeiro. As oscilações valorativas da cidade-vício e da cidade-virtude, o desencantamento com o mundo e do reencantamento proporcionado pela modernidade urbana vão implicar em uma requalificação do campo. E, sendo assim, o Rio Grande do Sul, mais especificamente Porto Alegre, aufere a atenção da autora no 4º Capítulo – Os Ecos do Sul- Porto Alegre e seu duplo (1890-1924).

As visões do desenvolvimento da capital gaúcha vão oscilar entre o viver modernourbano, agitado pelo crescimento acelerado de sua população e por audaciosas boemias, e no oposto, mais visível, a inércia e a vida simples de campo ou aldeia. Assim, Porto Alegre fica em um dilema: seguir o progresso proposto pela positividade das referências identitárias transmitido por Paris e pelo Rio de Janeiro, para assim se configurar enquanto metrópole ou preservar as tradições e os hábitos de aldeia que trazem a sensação de nostalgia.

Através do olhar literário que também se expandia sobre o urbano dessa cidade, podemos perceber o confronto dessas imagens do passado com as do presente. O olhar se volta para o positivo do rural voltado para o passado, num trabalho de recuperar, pelo imaginário, um tempo e um espaço preciso. Assim, a visão que se tem da cidade supracitada é bipolar, “que transita pelos paradigmas da metrópole, com o seu agito, a multidão, as atrações da rua, o luxo, a ostentação, o prazer fácil, o povo apreensivo e nervoso” (PESAVENTO, 2002, p.310) e uma cidade tranquila e cheia de lembranças.

No último capítulo, Um Fim e um Começo, mas sempre cidade, a autora mostra todo o estudo feito durante a obra, resumindo, portanto, cada um dos textos que a compõem e evidenciando a problemática central, trazendo uma conclusão que nos faz enxergar na literatura um palco repleto de possibilidades para o historiador se debruçar. Ao usar o seu olhar investigativo sobre esse campo, os “mestres da história”, sobre essa determinada fonte, poderão enxergar um “real” de um mundo trazido por essas imagens pictóricas e metáforicas enraizadas nesse tipo de documento, para assim confirmar, ou não, um sonho almejado por uma época, no caso exemplificado nessa obra, as cidades que procuravam se tornar urbanomodernas e seguir certos padrões de civilidade.

Adson Rodrigo Silva Pinheiro – Graduando em História – Uece e bolsista FUNCAP. E-mail: [email protected].


PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. 400p. Resenha de: PINHEIRO, Adson Rodrigo Silva. Embornal, Fortaleza, v.1, n.1, p.1-5, 2010. Acessar publicação original. [IF].

Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição / Ronaldo Vainfas

A chamada microstoria – versão italiana onde nascera este movimento nos anos 1970-80 – já deitou suas raízes no Brasil, definitivamente. Seus defensores, em distintas partes do mundo acadêmico ocidental, nos principais centros científicos de produção em História e nas Ciências Sociais deixaram delineadas as linhas-mestras da arrojada perspectiva da mudança de escala nas análises sociais e da rejeição aos aportes macroanalíticos que se pretendiam unívocos e inflexíveis; enfim, mesmo que de forma variada, a micro-história e seus defensores “se esforçam para dar à experiência dos atores sociais (o ‘cotidiano’ dos historiadores alemães, o ‘vivido’ de seus homólogos italianos) uma significação e uma importância frente ao jogo das estruturas e à eficácia dos processos sociais maciços, anônimos, inconscientes” [2]; que, por muito tempo, pareciam ser os únicos a chamar a atenção dos pesquisadores.

É no âmago dessa discussão, no Brasil, que o trabalho de Ronaldo Vainfas – professor titular do departamento de História da Universidade Federal Fluminense – com o sugestivo título “Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição” deve ser apreciado. Aliás, este autor já havia deixado claro, em momentos anteriores, a sua simpatia e abertura teórico-metodológica para o microssocial [3].

Traição desvenda a história de uma biografia nada comum, mas nem por isso inverossímil em um império lusófono de um território entrecortado por mares e oceanos e ainda em processo definitivo de integração sob o governo de um único rei pós- Restauração portuguesa (1580-1640). O protagonista desta história é Manoel de Moraes, mameluco nascido em São Paulo de Piratininga, filho de um outro mameluco “destro na arte da canoagem” e irmão de bandeirantes apresadores de índios. Teria pelo ambiente onde nascera o destino de seus parentes, se não fosse a outra faceta do mundo colonial brasílico a lhe arrebatar desde criança: a religiosidade católica. Com isso, fez votos solenes no Colégio da Bahia, tornando-se jesuíta professo de três votos, em 1623.

Por pouco não convivera com o mais ilustre filho do colégio jesuítico baiano, padre Antônio Vieira.

O livro, diga-se de passagem, sem introdução, é desenvolvido ao longo de quarenta capítulos com títulos bem sugestivos e que parece indicar de forma clara a intenção do autor em demonstrar a fluidez e a dinâmica das identidades: “Mameluco de São Paulo” (cap. 2); “Jesuíta na Bahia” (cap. 3); “Missionário em Pernambuco” (cap 4); “Capitão do gentio” (cap. 6); “Soberba do padre” (cap. 8); “A traição do jesuíta” (cap. 10); “O fantasma de Manoel” (cap. 13); “A vanglória do traidor” (cap. 14); “A serviço da WIC” (cap. 15); “Licenciado em Leiden” (cap. 16); “Paixões flamengas” (cap. 18); “Manoel calvinista” (cap. 19); “De volta a Pernambuco” (cap. 26); “Manoel brasileiro” (cap. 27); “Regresso ao catolicismo” (cap. 29); “Capelão da guerra divina” (cap. 30); “Manoel delator” (cap. 32); “Manoel pertinaz” (cap. 35); “Manoel valentão” (cap. 39); “Réquiem para Manoel” (cap. 40).

Mas, o que parecia ser o início de uma vida ascética trabalhando entre os índios como missionário e “língua” – ofício de tradutor que, sem dúvida, era uma das heranças de sua família mameluca – logo se mostrou apenas o princípio de uma vida conturbada; pois ela fora vivida dilacerada entre o desejo de acumular riquezas através de mercês régias e a ortodoxia de sua religião que simplesmente não deixava espaços para qualquer tipo de heresia.

Ainda jesuíta em Pernambuco, Manoel de Moraes foi um dos missionários da Companhia de Jesus que logo aceitara a convocação do governador, Matias de Albuquerque, para a defesa das capitanias do Norte contra o iminente ataque holandês.

Os cronistas da guerra o chamavam “capitão de emboscada”, liderando até mesmo as forças indígenas de Antônio Felipe Camarão – seu antigo neófito na aldeia de Meritibi – no Arraial do Bom Jesus, um dos baluartes da resistência após a derrocada do Recife, em 1630. Mas o padre guerreiro, “capitão do gentio” (cap. 6), nunca poderia ter sido um capitão oficial de guerra, pois era então jesuíta, deixando perplexos e enciumados pela sua ação os outros oficiais militares da restauração pernambucana, entre eles, o conhecido personagem dos pesquisadores da história cearense, Martim Soares Moreno, também ele comandante de forças potiguaras.

Ronaldo Vainfas descortina, a meu ver, um dos aspectos da guerra pernambucana ainda pouco discutido na historiografia: as rivalidades entre os oficiais (cap. 7 e 8). Da relação entre o capitão jesuíta e o capitão por ofício, “não seria absurdo dizer, sobre Manoel e Martim, que um era o espelho do outro” (p. 52). Entretanto, Soares Moreno era por ofício o capitão do jesuíta comandante de índios, sendo que aquele “tornar-se-ia, na verdade, inimigo figadal de Manoel de Moraes. O pior de todos” (p. 53). Com a conquista da Paraíba, em 1634, Manoel de Moraes se entregara as forças holandesas, sendo acusado por traição pelos oficiais militares luso-portugueses; em sua defesa no Tribunal do Santo Ofício, as rivalidades ganharam uma nova ressonância, ao afirmar ele que Martim Soares Moreno o havia abandonado à própria sorte em uma das mais importantes batalhas na Paraíba: “Martim Soares não tolerava o jesuíta metido a capitão” (cap. 9, p. 67).

A conquista da Paraíba, como diz o autor, trouxera uma inflexão não apenas quanto à dominação holandesa no andamento dos recontros, mas também na vida de muitos, entre eles, o jesuíta comandante de índios. Manoel de Moraes de prisioneiro de guerra, logo passou a informante precioso, nomeando todas as aldeias de índios e suas respectivas lideranças, uma das mais relevantes informações naquele contexto de batalhas. Mas não apenas isso. Em Recife, chegou mesmo a lutar ao lado dos holandeses contra os filhos da terra, vestido como “flamengo” em “traje de gente militar”, portando um “vistoso uniforme escarlate dos soldados holandeses”. Na mudança dos trajes – o que não era pouca coisa naquele mundo instavelmente perigoso – a partir de então o ex-jesuíta havia mudado mesmo de identidade: “Garboso e cheio de si, Manoel não trazia mais a tonsura que sempre tinha usado, mesmo quando lutava contra os holandeses na defesa da capitania, senão cabelo comprido e barba crescida” (cap. 10, p. 75).

Ao renegar a tonsura sacerdotal – marca característica dos inacianos – e vestir os trajes do vencedor, Manoel de Moraes aumentou a fúria que já lhe era devida pelos militares e religiosos. Para os primeiros, ele era mais um traidor à sombra de Calabar, “patriarca dos traidores” (cap.11), para os últimos, todavia, um herege que merecia a fogueira expiatória. A bem da verdade, nem um nem outro o deixaria em paz por essa afronta pública naquele mundo brasílico.

Ainda em 1635, o provincial da Companhia de Jesus, padre Domingos Coelho toma as providências para a expulsão de Moraes que, à época, mesmo antes de passar ao lado dos holandeses, diziam alguns, “já andava de chamego com as índias”. Acusado de fornicação, apostasia, heresia, e ainda por cima, de traidor dos portugueses, em junho deste ano, Manoel de Moraes fora avisado de sua expulsão dos quadros da Companhia de Jesus. A essa altura, contudo, o destino lhe traçara uma nova vida e, porque não dizer, uma nova identidade: no mesmo mês de 1635, Manoel de Moraes estava na Holanda, vivendo como consultor da Companhia das Índias Ocidentais (WIC).

Nos oito anos em que vivera nos Países Baixos calvinistas, entre 1635 e 1643, o ex-jesuíta casou duas vezes, contraindo as segundas núpcias à moda de Calvino após enviuvar-se. Protegido do humanista Joannes de Laet – renomado intelectual e diretor da WIC – a quem auxiliava em seus escritos sobre o Brasil, conseguiu entrar na prestigiada Universidade de Leiden e obter o grau de Licenciado em Teologia (cap. 16).

Dentre as suas produções, a mais importante foi um “plano para o bom governo dos índios”, documento desconhecido, mas citado em uma carta dos Dezenove Senhores ao Conselho Político do Recife, em 1635. Nela se previa o reconhecimento das lideranças indígenas leais e o reforço do trabalho dos missionários calvinistas e, como atentou o autor, tratava-se de “um modelo de catequese calvinista com metodologia inaciana” (p.121).

O Manoel ex-jesuíta não esquecera, como nunca esqueceria ao longo da vida, sua vinculação católica. A repercussão dessa maneira holandesa de governar com os índios pode ser constatada na troca de correspondência entre Pedro Poti e Felipe Camarão, índios potiguaras que defendiam lados distintos na guerra, já bem conhecida dos pesquisadores do Brasil colonial (cap.7 – Imbróglio indígena).

Mas o lado brasileiro de Manoel de Moraes não o deixava sossegado, sua ânsia era voltar ao Brasil. Contraiu um empréstimo com a WIC e voltou a Pernambuco, em 1643, onde se tornou um explorador de pau-brasil. Juntou cabedal e logo se tornou senhor escravista, auxiliado por uma feitora: a negra Beatriz. Logo, a luxúria do exjesuíta, aliás, esse era seu único pecado como sustentará por algum tempo no Tribunal da Inquisição, novamente era aflorada e Beatriz passa a ser sua amante. Vainfas, mais uma vez, sintetiza em poucas linhas os meandros da vida de seu biografado: “Manoel tornou-se um senhor de escravos como tantos outros, tinha escrava em casa, sua mulher estava na Holanda, e de padre ele já não tinha nem o hábito” (p. 233).

Em Recife, o ex-jesuíta e então ex-calvinista passa a freqüentar as igrejas e capelas; afinal, seu passado era católico e mesmo sob a pecha de traidor lhe era movido um sentimento de se reconciliar com a Igreja, quem sabe defender-se no próprio Tribunal do Santo Ofício, em Lisboa, que nos idos de 1642 já o havia queimado em estátua pelos agravos públicos de 1635. Seja como for, “Manoel vivia com a consciência pesada. Identidade fragmentada”. (p. 245).

Para o leitor absorvido na intrigante vida dessa personagem, o ponto alto do livro Traição é, sem dúvida, a luta de Manoel de Moraes diante dos inquisidores. Sua intenção antecipada de se reconciliar com a Igreja e sua participação na “guerra da liberdade divina”, novamente empossado como capelão de tropa por ninguém menos que o general da restauração pernambucana, João Fernandes Vieira, não foi impeditivo para ele ser preso e remetido a Lisboa, a dar conta de sua vida ao Santo Ofício. (Cf. cap. 30 e 31).

A partir da documentação inquisitorial, Ronaldo Vainfas vai pouco a pouco desvendando os enredos construídos entre os acusadores e o réu. Para os inquisidores do Tribunal, traição e heresia eram lados da mesma moeda, por isso a relutância de Manoel de Moraes em esconder tanto quanto possível sua vida de traidor no ano de 1635.

Acusado de heresia pelo tempo em que vivera na Holanda, onde contraiu dois casamentos à moda calvinista, o réu insistirá que não conhecia nem mesmo a língua de seus anfitriões, e que casara apenas por luxúria, ou seja, pecado grave, mas que fugia da alçada da inquisição, preocupada com os crimes de fé: “Por causa da luxúria, era sua alma que arderia eternamente no inferno. Por causa da heresia, ele mesmo poderia arder na fogueira” (p. 287).

Entre 13 de abril e 23 de outubro de 1646, Manoel de Moraes preso nos cárceres de Lisboa, sustentará sua versão “catolicizante” de que, no Brasil e na Holanda, dera provas de sua identidade católica. Mas nada disso parecia reter um palmo sequer a convicção de seus acusadores. Sem confessar o que queriam ouvir os ministros do Tribunal, o ex-jesuíta foi mandado ao suplício na “sala do tormento” (cap.36), com o fim de ser içado pelos pulsos até o teto e de lá ser despencado ao chão numa polé.

Diante do instrumento de tortura, o bravo “capitão de emboscada” tremeu, e a imaginar o tempo de sua reclusão naquela atmosfera de ser queimado vivo, não viu outra alternativa e confessou.

Em Traição, o autor consegue realizar aquilo que se considera mais importante numa biografia ao estilo da micro-história: ajudar seus leitores a compreender um pouco melhor um mundo distanciado pelo tempo cronológico, mas trazido a tona percorrendo as pegadas de uma única vida jogada entre as estruturas e as conjunturas de um tempo historio pretérito4.

Aqui, peço licença ao leitor para usar uma das sutilezas argumentativas do escritor-historiador Ronaldo Vainfas que insiste em deixar para o próximo capítulo aquilo que procura demonstrar no anterior. No mais, os dois últimos capítulos de Traição nos apontam o destino dessa personagem excepcional. Contudo, na parte da cronologia, ao final do livro, há uma pista instigante e bem ao estilo do autor: “1651. Manoel de Moraes morre, provavelmente em Lisboa. Amém” (p. 342).

Notas

1. Cf. “Apresentação”. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Tradução de Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 10. Vide também o capítulo primeiro.

2. Vale a pena uma leitura demorada da discussão elaborada entre Ronaldo Vainfas e Ciro Cardoso, paradoxalmente, num mesmo livro que organizam juntos. Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. Especialmente a introdução e a conclusão, na mesma obra. Ainda do autor, vide: VAINFAS, Ronaldo & SANTOS, Georgina S. & NEVES, Guilherme P. Retratos do império – trajetórias individuais no mundo português nos séculos XVI a XIX. Niterói: EdUFF, 2006.

3. Cf. LORIGA, Sabina. “A biografia como problema”. In: REVEL, Jacques (org.). Op. Cit., pp. 225-249.

Ligio José de Oliveira Maia


VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 384p. Resenha de: Embornal, Fortaleza, v.1, n.2, p.1-6, 2010. Acessar publicação original. [IF].

Intrépidos Romeiros do Progresso: maçons cearenses no Império / Berenice Abreu

Visões e revisões já foram empreendidas no campo historiográfico, mesmo assim ainda se podem encontrar certos temas à margem destas produções, temas que não se ousaram elucidar devidamente. Cada vez mais historiadores vêm atentando-se para estas questões e produzindo estudos que abarquem estas áreas. É neste contexto que podemos inserir a obra Intrépidos Romeiros do Progresso: Maçons cearenses no Império da historiadora cearense e atual professora da UECE Berenice Abreu.

Fruto de sua dissertação de mestrado apresentada em 1998, Intrépidos Romeiros do Progresso foi publicado no ano de 2009, integrando a coleção Outras Histórias, organizada pelo Museu do Ceará. A autora também possui a obra Do Mar ao Museu: a saga da Jangada São Pedro (parte de sua tese de doutorado) publicada nesta coleção em 2001.

O livro aqui abordado trás à tona um tema que frequentemente passa, ou passou, ao largo das análises historiográficas brasileiras: a Maçonaria. Composto por quatro capítulos, o livro Intrépidos Romeiros do Progresso nos mostra como se desenvolveu a Maçonaria na província cearense durante o período imperial. Motivada pela atmosfera de mistério que envolve até hoje a instituição maçônica, Berenice resolveu analisar a sociabilidade maçônica nos anos de 1870, período de disputas travadas no campo político e intelectual entre maçons e membros da Igreja Católica cearense, como fruto da chamada Questão Religiosa.

Logicamente que ao analisar os aspectos que envolvem estas disputas, o estudo também engloba as práticas de inserção na sociedade e de divulgação de seus ideários, frutos da já mencionada sociabilidade vivenciada pelos membros da instituição maçônica, tendo como ponto partida (ou melhor, de chegada) a análise sobre o jornal Fraternidade, que veiculava em suas linhas as idéias defendidas pela Maçonaria. Berenice também analisa as representações simbólicas e ritualísticas nas lojas maçônicas por ela abordadas (a Fraternidade Cearense e a Igualdade e Caridade).

No primeiro capítulo, intitulado A Maçonaria alimentando utopias de liberdade e fraternidade universais, a autora nos apresenta o cenário em que se desenvolve a Maçonaria cearense no século XIX, onde encontramos a composição social dos maçons locais, caracterizados como um grupo de intelectuais emergentes que passaram a enxergar na imprensa um meio de propagar seus ideários, sua visão de sociedade e o papel da Maçonaria, inserindo-se aí a criação do periódico Fraternidade. Esta época também foi marcada pelo conflito desencadeado pela Questão Religiosa, eclodindo a luta entre maçons (divulgadores das idéias progressistas) e ultramontanos (membros da Igreja Católica e mantenedores do pensamento conservador). Destacamos aqui a peculiaridade, ressaltada pela autora, do contexto cearense desta disputa, tendo em vista vários clérigos católicos pertencerem à Maçonaria, onde apreendemos que esta disputa, mesmo tendo uma dimensão nacional, processou-se diferentemente em cada região.

Berenice nos fala ainda sobre as origens da Maçonaria (que surgiu com as corporações de ofício medievais), onde nos remete às vinculações que são feitas pelos maçons a um passado mítico, um passado inventado, tendo como função a legitimação de práticas, rituais e formas de pensar presentes. E aqui a autora nos lança uma idéia que irá desenvolver no último capítulo: o fato desta instituição propagar um discurso liberal-ilustrado e em seu seio ter uma carga de valores e práticas que a tradição impõe como absolutas.

O contato dos intelectuais brasileiros com a Maçonaria e seus ideais iluministas baseados na Razão aconteceu na Europa, junto ao vários locais de sociabilidade que por lá se espalhavam: cafés, salões, sociedades secretas, universidades etc. Trazidas ao Brasil, tais idéias configuraram-se na luta pela emancipação política de Portugal, tendo membros da instituição maçônica atuando em algumas revoltas contra a Coroa. No entanto, Berenice vai além desta função ideológica da Maçonaria como difusora do ideário iluminista. Esta instituição representaria um local privilegiado de sociabilidade entre estes homens que ansiavam pôr em prática aquilo que haviam vivenciado em outras localidades. No cenário regional podemos situar a Faculdade de Direito de Pernambuco e o Seminário de Olinda como centros difusores das idéias liberais-iluministas e onde se formaram vários membros da intelectualidade cearense. Berenice ainda nos apresenta como se desenvolveram as primeiras lojas maçônicas brasileiras, bem como os momentos de cisões do Grande Oriente do Brasil.

O segundo capítulo, chamado A Maçonaria no Ceará e as Novas Elites urbanas, Berenice inicia relatando o processo de desenvolvimento das primeiras lojas maçônicas cearenses, onde tal surgimento atrelou-se ao próprio desenvolvimento econômico e urbano das cidades pioneiras: Aracati (com sua economia ligada à pecuária e ao charque) e posteriormente Fortaleza (cujo desenvolvimento se dá ligado ao comércio). Porém, o ponto principal para a criação das primeiras lojas está associado ao fato de ambas as cidades apresentarem uma vanguarda intelectual e política emergente, cuja formação se deu principalmente em Pernambuco. Esta vanguarda buscava um espaço de sociabilidade para a afirmação das idéias de progresso e civilização e para o debate político.

Neste contexto, a autora passa a analisar o surgimento, em Fortaleza, desta classe de indivíduos (comerciantes locais e estrangeiros, farmacêuticos, advogados, médicos etc.) que iria compor os segmentos da Maçonaria; indivíduos estes, possuidores de certo capital cultural, que pertenciam à elite e atuavam em vários âmbitos da vida pública local, vendo na irmandade maçônica um lócus para exercerem o debate político e estar em contato com os ideais iluministas. Neste ínterim, Berenice destaca a atuação de jornalistas e advogados que encontravam na Maçonaria um sentido (acima exposto) que posteriormente foi complementado por clubes e agremiações literárias. Tais profissionais tiveram sua atuação cristalizada principalmente na imprensa, local de disputas ideológicas e de divulgação de idéias, onde se insere o jornal Fraternidade, que segundo a autora surgia como um complemento do debate travado na loja maçônica.

O terceiro capítulo é nomeado Maçons e ultramontanos: o campo de combates, e trará com maior profundidade o embate que envolveu maçons e católicos no anos 70 do século XIX. Segundo Berenice, com eclosão deste conflito, que ocorria no campo intelectual, ambos os adversários viram a necessidade de uma demarcação bem definida de suas posições.

A Maçonaria, através do Fraternidade, enxergava-se como a guardiã dos ideais de liberdade, progresso e civilidade, sendo a única capaz de levar a humanidade à sua plenitude e de levar o Brasil à civilização; em contrapartida, atacava os membros da Igreja sob as pechas do conservadorismo, do fanatismo e do retrocesso; eram considerados os símbolos do absolutismo, sua presença em certas esferas da sociedade (administração de cemitérios, do casamento) era tida como perniciosa, por isso os maçons defendiam uma reforma jurídica da sociedade.

O eixo católico também tratou de delinear sua posição nesta luta, rebatendo as provocações e acusações veiculadas no Fraternidade através do periódico Tribuna Católica, jornal onde se defendiam os preceitos católicos. Neste último, os redatores criticavam as idéias “modernas” pregadas pelos maçons e apontavam contradições existentes naquela instituição, onde atacavam principalmente seu caráter secreto, em detrimento ao ideal de liberdade pregado. Relacionavam, também, a Maçonaria a movimentos conspiratórios e revolucionários e alertavam que esta instituição era contra a religião. Ora, em uma cidade que ainda resguardava características provincianas, com população ainda arraigada a uma mentalidade extremamente tradicional e católica, podemos ter a noção do peso de tais acusações.

Tal combate, como nos mostra Berenice, não se restringiu somente ao campo das idéias. A autora nos reporta às disputas que passaram ao âmbito das Irmandades Religiosas do Ceará, principalmente quando do início do processo de romanização e da eclosão da Questão Religiosa, onde a Igreja passou a vetar a participação de maçons na administração destas Irmandades. Os maiores embates foram travados nas Irmandades de São José e do Santíssimo Sacramento, que aglutinavam os membros mais ricos da capital da província.

Outro campo a se destacar foi a política, onde no caso da Maçonaria, a defesa de partidos não acontecia abertamente, dada a heterogeneidade de seus membros. No caso dos católicos, acabou-se criando um partido próprio (Partido Católico no Ceará).

A educação (campo comumente de gerência da Igreja) também foi tema de discórdia entre católicos e maçons. Estes criticavam a educação realizada pelos ultramontanos por reforçarem a ignorância, os maus costumes e o fanatismo do povo cearense. Tal crítica insere-se no modo de pensar iluminista que os fazia acreditar que para a emancipação da humanidade era necessária a instrução da população. Percebemos que viam a educação, assim como os católicos, como modeladora da mentalidade do povo. Os maçons afirmavam seu caráter de vanguarda na instrução da sociedade através das escolas apoiadas ou criadas pela Maçonaria, das bibliotecas das lojas maçônicas e da participação em agremiações literáriocientíficas como a Academia Francesa.

O quarto e último capítulo intitula-se A cidade e a Loja maçônica. Ele nos trás uma discussão a respeito da simbologia resguardada pela Maçonaria. Aqui, Berenice enxerga a loja maçônica como um local de sociabilidade burguesa, local de promoção da Razão. E é justamente nestas lojas que se processaram as idéias emancipacionistas (no período colonial) e posteriormente os ideais de luta contra a Monarquia e a Igreja, ancoradas em seu caráter secreto. No entanto, ao lado dos debates e exercícios políticos e intelectuais, a loja possuía um forte caráter ritualístico (que ainda hoje existe). A ritualística perpassa desde a arquitetura e as salas existentes até reuniões, trabalhos, peças de arquitetura (discursos proferidos pelos irmãos maçons), vestimentas e gestos. Berenice vê tal ritualística como um meio coercitivo de que se utiliza a Maçonaria para moldar os indivíduos que ingressam em seus quadros, uma tradição que se cria com o objetivo de formar o cidadão ideal e legitimar as práticas utilizadas.

A autora encerra sua obra retomando toda a discussão desenvolvida nos capítulos anteriores com o intuito de reafirmar sua posição em relação à participação e atuação da Maçonaria nas principais questões políticas e sociais que se travaram no Ceará e especificamente na capital Fortaleza. Nesta cidade, a Maçonaria nos é apresentada como espaço fundamental dentro do processo histórico cearense no século XIX, cuja importância encontrava-se, sobretudo, na sua utilização enquanto local de sociabilidade que permitisse o debate político e a vivência dos valores iluministas e liberais.

Berenice nos remete, a partir da utilização do conceito de sociabilidade, a questões que remontam à atuação dos sujeitos no cotidiano dentro do processo histórico. É a partir deste conceito que a autora trabalha a difusão e o recebimento dos ideais maçônicos pelos membros da elite intelectual cearense.

Intrépidos Romeiros do Progresso é uma obra que se insere num contexto de renovação historiográfica (como já mencionei anteriormente) e que dá a devida credibilidade a uma instituição tão presente na sociedade e, paradoxalmente, tão pouco enxergada.

Possivelmente isto se deve ao seu caráter secreto e às pechas que lhe são atribuídas, muitas delas advindas dos embates travados contra a Igreja Católica a partir do final período Imperial. As disparidades entre estas instituições podem ser percebidas nas linhas do jornal Fraternidade citadas por Berenice (p. 99): neste trecho, os membros da Igreja são chamados de “Morcegos da Sachristia”, ou seja, seres que habitavam as sombras do pensamento intelectual, em oposição às “luzes” do pensamento iluminista veiculado pela Maçonaria; em contraposição, os maçons se definem como “Batalhadores das Idéias”, ou seja, uma vanguarda que luta pelo progresso moral e intelectual dos homens.

Gustavo Magno Barbosa Alencar


ABREU, Berenice. Intrépidos Romeiros do Progresso: maçons cearenses no Império. Fortaleza: Museu do Ceará/Secult, 2009. 187 p. Resenha de: Embornal, Fortaleza, v.1, n.2, p.1-5, 2010. Acessar publicação original. [IF].

 

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