Cuidado com os poetas ! Literatura e periferia na cidade de São Paulo – TENNINA (A-EN)

TENNINA, L. Cuidado com os poetas ! Literatura e periferia na cidade de São Paulo. Tradução de Ary Pimentel. Porto Alegre: Zouk, 2018. 315p. ¡Cuidado con los poetas! Literatura y periferia en la ciudad de São Paulo. Rosario: Beatriz Viterbo, 2017, 363 p.. Resenha de: PIMENTEL, Ary. Por uma ressignificação da poesia e do lugar do poeta. Alea, Rio de Janeiro, v.21 n.1, jan./apr. 2019.

Certa vez um rapper de São Paulo reescreveu um clássico da MPB, deslocando o lugar de enunciação do discurso para as periferias de São Paulo. E, então, a letra de “Cálice” ganhou uns versos assim:

Os saraus tiveram que invadir os botecos

Pois biblioteca não era lugar de poesia

Biblioteca tinha que ter silêncio,

E uma gente que se acha assim muito sabida

Na letra do rap “Subirusdoistiozin” (segunda faixa do CD Nó na orelha), Criolo, o mesmo autor que antropofagizou e atualizou a poesia de protesto do cantautor Chico Buarque, voltaria a falar de uma cena cultural que, quase imperceptivelmente para os diferentes âmbitos do mundo letrado, começava a tomar conta de certos territórios da cidade:

As criança daqui ‘tão de HK

Leva no sarau, salva essa alma aí

Poucos, muito poucos, na verdade, umas poucas pesquisadoras atentaram para essa produção “fora do retrato” que despontava nas margens do cânone e nas margens da cidade. A um pequeno grupo no qual se destacam Érica Peçanha, Regina Dalcastagnè, Ingrid Hopke e Rafaella Fernandez – as quais por diferentes motivos haviam se aproximado da cena que gestava uma nova literatura nas periferias de São Paulo nos primeiros anos do século XXI -, veio a se somar o nome da argentina Lucía Tennina. Em Cuidado com os poetas! Literatura e periferia na cidade de São Paulo, a professora de Literatura Brasileira na Universidade de Buenos Aires traz para o leitor a possibilidade de um mergulho profundo na produção literária brasileira do presente e o faz com um olhar no qual se reúnem o perto e o longe, no intenso processo de construção de uma terceira dimensão que poderíamos chamar de “entre-lugar” da crítica. E dizer isso não é dizer pouco, se lembramos de Pierre Bourdieu que, em Homo academicus, já assinalava que os dois grandes problemas do discurso científico são o excesso de distância e o excesso de proximidade. Conforme Bourdieu, existe um certo repertório que não se pode acessar (ou saber) a menos que o sujeito consiga fazer parte do universo abordado. Mas é justamente a condição de “fazer parte de…” que implica uma inescapável proximidade onde reside tudo aquilo que não se pode ou não se quer saber. É isso. A escrita exige proximidade. Mas também distância. De fato, um lugar que reúna as duas condições anteriores.

Resultado de uma longa experiência de imersão na periferia e de profundas reflexões teóricas que se desenvolveram ao longo de anos e de várias publicações sobre o tema, este livro de Lucía Tennina traz os rigorosos estudos comparatistas de quem começou a estruturar seu discurso de dentro do próprio circuito de saraus que se organizam nos botecos das quebradas paulistanas depois de 2001.

Entremos aos poucos nesse mundo-tecido-tessitura tão rico, para desfrutar mais da caminhada. A melhor abordagem do objeto encontrada por Lucía Tennina é aquela construída a partir do dispositivo da distância e da proximidade: o olhar estrangeiro, o olhar de quem se aproxima aos poucos, rondando poetas e poemas, para provar, a partir do contato cotidiano com o ambiente dos saraus, diferentes tentativas de intervenção no debate crítico da literatura marginal da periferia. Inevitável é lembrar de um poema que aparece em 21 gramas, terceiro livro de Marcio Vidal Marinho (2016), um dos frequentadores assíduos do Sarau da Cooperifa. O poema “Álvaro de Campos foi à Cooperifa” bem poderia vertebrar o primeiro capítulo de Cuidado com os poetas! Nesse momento do livro, a pesquisadora argentina aprecia o cenário e nos conduz pela cena poética da periferia, destacando os aspectos que marcaram a formação do circuito de saraus nas quebradas paulistanas. E o faz com os mesmos olhos dessa figuração poética de Álvaro de Campos, olhos (aparentemente) desarmados e (profundamente) apaixonados de quem vem de longe, de quem não está, mas que, ao mesmo tempo, é claro que está em seu ambiente quando penetra nesse Sarau da Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa), um movimento cultural que em outubro de 2018 completou 17 anos de atividades poéticas no bar do Zé Batidão, situado no bairro de Piraporinha, Zona Sul de São Paulo:

Chegou cedo e viu o bar vazio […]

Relutara em vir

Quando soube que era na periferia. […]

19h30

Algumas pessoas começam a chegar […]

O local é um bar típico de favela

Pela fama achou que seria mais bonito,

Pinturas desgastadas, mesas grudadas.

As paredes que vão de encontro à rua

Não existem, são grades, como se fosse uma jaula.

Próximo ao balcão, uma estante de livros

Que se amontoam sem nenhuma ordem. […]

Quando dá por si, não há mais lugares vazios,

O bar está inteiramente ocupado.

Pessoas de todos os tipos […]

Uma pessoa vai ao microfone

Agradece a presença de todos

E relata que todos são bem vindos. […]

Chama um grito de ordem

Todos o acompanham:

Povo lindo, povo inteligente, é tudo nosso,

Uh, Cooperifa! Uh, Cooperifa! Uh, Cooperifa! (MARINHO, 2016, p. 70-72)

No cenário dominante de uma literatura que tem cor, gênero, CEP e um capital cultural longamente acumulado nos âmbitos da cidade letrada, Lucía Tennina lança seu olhar para sujeitos que, oriundos do mundo do trabalho e moradores da periferia, passam semanalmente por esse e por inúmeros outros microfones dos novos saraus organizados nos bares das periferias: Akins Kintê, Alisson da Paz, Binho Padial, Dugueto Shabazz, Fernando Ferrari, Fuzzil, Luan Luando, Marco Pezão, Michel Yakini, Jairo Periafricania, Renan Inquérito, Rodrigo Ciríaco, Serginho Poeta, Sérgio Vaz, Seu Lourival, Zinho Trindade e tantos outros. Trata-se de uma verdadeira tribo que, dispersa pela cidade, povoa o circuito literário marginal da periferia, trazendo novos posicionamentos de sujeitos através da literatura e propiciando um olhar rico sobre os deslocamentos e negociações desse objeto radicalmente plural estudado nos dois primeiros capítulos do livro: os saraus de poesia da periferia de São Paulo.

A crítica acertou na descrição do fenômeno periférico, destacando uma produção que traduz a potência dos novos atores do campo cultural, mas não exime a cena de conflitos e contradições. Apesar da grande quantidade de trabalhos sobre a cultura das periferias, poucos foram os textos que apontaram os problemas derivados do machismo e da misoginia nesse cenário das quebradas, e menos ainda os que se interessaram em reconstruir a presença e o lugar das mulheres nessa nova dimensão do campo literário. Diante disso, cabe enfatizar a importância do terceiro capítulo do livro intitulado “As poetas da periferia: imaginários, coletivos, produções e encenações”. Nessas páginas, Lucía Tennina focaliza o fenômeno da chegada das mulheres aos bares da periferia e, discutindo as estratégias e os modos de produção das “minas”, proporciona uma nova compreensão do lugar diferenciado da mulher no processo de empoderamento dos sujeitos nesse grande quilombo cultural das quebradas paulistanas.

Podemos mesmo dizer que outro mérito de Lucía Tennina é produzir um segundo deslocamento dentro de um tema que já é inovador, trazendo para o centro dos estudos da literatura marginal da periferia a experiência do subalterno dos subalternos. A proposta lança luz sobre a situação específica das poetas num mundo literário que emergia nas periferias e já prenunciava, nesse mal-estar identificado por Tennina, o surgimento de um novo circuito poético que se distanciaria dos saraus de poesia, assumindo características próprias e potencializando as performances e dicções das poetas. O protagonismo feminino foi construído, portanto, em uma outra cena, diferente da anterior, porque, no espaço dos saraus, seu papel era o de “musas” e não o de poetas, ficando o silenciamento oculto sob o disfarce da admiração de sua beleza, o que era também uma forma de apagamento da diferença.

Essa questão transcendia a cena na medida em que implicava valores e imaginários há muito reproduzidos pelos que tentaram, por séculos, disciplinar e se apropriar do corpo feminino. Nesse sentido, o livro amplia seu alcance descritivo-histórico, o que torna mais complexa a mirada para o mundo dos saraus da periferia, tendo em vista que esse olhar permite repensar as lutas das mulheres em diferentes contextos sociais ou culturais nos quais elas foram o Outro do Outro, conforme assinala Lucía Tennina, antecipando-se a um dos subtítulos de O que é lugar de fala?, de Djamila Ribeiro. Nessa medida, a leitura nos envolve no debate sobre a história da representação e da autorrepresentação das mulheres em geral e das mulheres negras e de origem nordestina em particular. Não restam dúvidas quanto ao papel que nessas disputas tiveram nomes como Elizandra Souza e Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota), com publicações marcantes como Águas da cabaça (Edição do Autor, 2012) e De passagem mas não a passeio (Global, 2008). Se o surgimento dos três números especiais da revista Caros Amigos e a organização do Sarau da Cooperifa foram determinantes para que pudesse emergir um novo sujeito nas margens da literatura, as vozes de Elizandra e Dinha seriam precursoras de uma nova geração que se expressaria a partir do seu lugar de fala, elemento central para a emergência de outra cena ainda muito incipiente no final da primeira década do século XXI, a dos campeonatos de poesia falada ou Poetry Slam.

No quarto e último capítulo, o livro aborda uma série de questões não trabalhadas anteriormente, passando, quase que em um livro à parte, a abordar os casos específicos de Ferréz e Alessandro Buzo, narradores que conseguiram ser lidos e reconhecidos fora das fronteiras do território. Uma das questões centrais que Cuidado com os poetas! enfrenta nesse capítulo é a de quais seriam as negociações necessárias aos subalternizados para construir um lugar no campo literário e como, a partir de uma nova rede de relações, se dá o ativamento de certas estratégias a fim de dominar uma posição de autor. Esse capítulo procura respostas para estas perguntas. Para além das diferenças entre os dois nomes, sobressaem as operações agenciadas por cada um deles para construir o que Tennina chama de “lugar de autor”. Para isso, a autora guia o leitor através de um percurso pela vida de Ferréz e Buzo no qual ficam aparentes as respectivas estratégias de construção da figura do escritor. Transcendendo aquilo que Feréz sinaliza na introdução da edição Tusquets de Capão pecado, onde propõe as páginas de seu primeiro romance como uma vestimenta de palavras que lhe dá um lugar de autor, os dois mobilizam diferentes recursos, operações e procedimentos para conquistar um lugar no campo cultural, indo da criação de um nome artístico (Ferréz) à manutenção de um blog no qual se registram as leituras que vão gradativamente formando a imagem pública do escritor (Buzo).

Narradores como Ferréz ou Buzo, poetas como os da Cooperifa ou os que integram os demais saraus de poesia das quebradas paulistanas transformam de dentro as instituições que definem a consagração e o pertencimento ao campo literário, lutando para trazer o protagonismo para a periferia. Esses escritores já não estão falando só entre eles. Trata-se da formação de redes complexas, às quais são incorporados os grupos mais jovens formados por sujeitos oriundos de outros lugares da cultura. O que está em jogo é o que a gente entende como arte, como literatura ou como poesia.

Assim, os conceitos estéticos são reestruturados sob nova forma e a partir de novas regras, constituindo uma esfera formada para além das normas e capitais convencionais. O livro de Tennina aporta um novo lugar de mirada para a poesia. E, a partir desse olhar que conduz o nosso, conseguimos nos dar conta do brotar de uma nova produção e de uma cena cultural centrada no papel da “poesia” e na figura do “poeta”, as quais contribuem de modo muito particular para a ressignificação desses vocábulos.

Sergio Vaz, criador da Cooperifa, insiste em que “a periferia é um país”. O que faz Lucía Tennina é uma bela, profunda e necessária cartografia da literatura desse novo país.

Assim, essa jovem professora argentina oferece uma contribuição fundamental para a crítica literária brasileira. Ler a obra de Lucía Tennina é poder viver intensamente a cena pulsante da literatura marginal da periferia. Nesse sentido, não seria excessivo afirmar que ela consegue escrever o livro que pretendia, uma obra potente que nos impacta e transforma o olhar que nós brasileiros lançamos para as culturas das nossas periferias.

Esperamos a publicação de mais textos como esse, que lança uma nova luz sobre o desenvolvimento de nossa primavera periférica.

Referências

MARINHO, M.V. 21 gramas. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2016. [ Links ]

Ary Pimentel. Professor de Literaturas Hispano-Americanas no Departamento de Letras Neolatinas da Faculdade de Letras (UFRJ). Mestre (1995) e Doutor (2001) em Literatura Comparada pela UFRJ e realizou estágios de Pós-doutorado no PACC (Programa Avançado de Cultura Contemporânea) – UFRJ, em 2016, e na Universidad de Buenos Aires, em 2017. E-mail: [email protected]

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