Guilherme Mansur – MELLO (HU)

MELLO, S.H. Guilherme Mansur. São Paulo: Edusp/Com-Arte, 2018. 144 p. (Editando o Editor, 9). Resenha de: QUINTA, Hugo. O caleidoscópio telúrico de Guilherme Mansur: tipógrafo-editor-poeta e artista gráfico. História Unisinos 24(1):157-160, Janeiro/Abril 2020.

Editando o Editor é a coleção idealizada por Jerusa Pires Ferreira, dirigida por ela e por Plinio Martins Filho, e editada desde 1989, ano em que a Prol Editora Gráfica e a Com-Arte (editora laboratório dos alunos de Editoração da Escola de Comunicação e Artes da USP) publicaram o primeiro livro da coleção com o relato de Jacó Ginsburg. A partir de 1991, ano de lançamento da segunda obra com o testemunho de Flávio Aderaldo, a Edusp substituiu a Prol e passou a publicar os livros da coleção em parceria com a Com-Arte. Desde a obra inaugural, a proposta que norteia a Editando o Editor parte de um esforço coletivo: os organizadores de cada título da coleção convidam os editores a serem entrevistados e orientam os estudantes de editoração no trabalho “de escutar, gravar, selecionar e, finalmente, editar o pensamento nuclear de cada um desses profissionais, respeitando o fluxo de seu discurso, seu ritmo próprio, seus saberes peculiares, suas formas de expressar a vida, experiência e trabalho” (Ferreira, 2013, p. 10). O livro com o depoimento de Cláudio Giordano (2003) foi editado por Magali Oliveira Fernandes, Sonia Montone, Carla Fernanda Fontana e Fábio Larson. A obra com o testemunho de Samuel Leon (2010) envolveu duas etapas: primeiro utilizaram a entrevista do editor, feita por Raquel Maygton Vicentini, e, depois, a edição do depoimento foi levada a cabo por Jerusa Pires Ferreira e a Com-Arte. O oitavo número foi organizado por Marcelo Yamashitta Salles e apresentou o relato de Plínio Coêlho (2013), o libertário editor de obras anarquistas.

A aura da coleção abarca o trabalho de profissionais que desenvolveram um amplo leque de projetos editoriais, desde a edição de livros populares realizada por Arlindo Pinto de Souza (1995), passando pelas edições de títulos progressistas sob a direção de Ênio Silveira (2003), além da valiosa contribuição de Jorge Zahar (2001), notável editor de livros universitários. Em cada obra, a idealizadora da coleção evidencia as idiossincrasias de editar os depoimentos dos editores, “[…] situar persona, personagens e observar sua inserção na história cultural do nosso país reunindo, sem discriminar, editores de vários tipos” (Ferreira, 2001, p.10). A coleção empregou a história oral com o propósito de esboçar as diversas maneiras como o trabalho do editor contribui para a história do livro no Brasil, são memórias editoriais que dependem do “rigor de quem colhe, interpreta e divulga entrevistas” (Alberti, 2005, p.170). Na abertura do livro sobre Plínio Coêlho, Jerusa Pires Ferreira (2013, p. 16) afirma que a ênfase dos depoimentos pode ser significada pela palavra paixão, “[…] mesmo porque diante de histórias de vida e profissão, de relatos que mergulham na memória reconstruída e na força da vivência presente, não podemos manter o ânimo frio”.

A tônica da paixão é reluzente no último número da Editando o Editor, a obra que ressoa a voz do editor que extrapola o ofício. Guilherme Mansur (2018) executa diversas etapas da cadeia de produção de um livro, trabalha com conhecimentos tradicionais – inaugurado por meio do sistema de Johannes Gutenberg (1398-1468), o impressor que revolucionou a produção editorial por ter desenvolvido um método de cópias iguais e simultâneas de um manuscrito, inovação que provocou maior participação do editor no processo de concepção de um livro (Bragança, 2005, p. 225) – e projetos inovadores de edição e publicação de palavras, poesias, livros, esculturas, instalações e poemas-objeto com lixo tipográfico.

O caleidoscópio telúrico de Guilherme Mansur simboliza a nossa percepção das entrevistas que ele concedeu a Simone Homem de Mello (2018), uma das responsáveis por também editar os depoimentos do tipógrafo- editor-poeta e artista gráfico. A fala de Mansur corrobora a força artística do editor que atua em distintas camadas de ofícios e saberes, aproveitando sucatas de tipos gráficos descartáveis, manuseando impressoras com o rigor de tipógrafo-editor, integrando o movimento Arte Correio, publicando poemas em cartões aos 18 anos de idade. A trajetória profissional de Mansur abarca diversas pessoas do campo intelectual, artístico e editorial, como os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari, José Mindlin, Alice Ruiz, Paulo Leminski, Arnaldo Antunes, Laís Correia de Araújo, e personalidades míticas de sua terra natal, como Bené da Flauta e o pintor Takaoka.

Ao longo do livro é notória a capacidade do personagem em atrair pessoas na formulação e criação de seus trabalhos, bem como atesta a internacional loquacidade ouro-pretana fundida à versatilidade de sua obra. A Ouro Preto de Guilherme Mansur nos remete às cidades invisíveis arquitetadas por Ítalo Calvino (1990, p. 14) e descritas por Marco Polo: “A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado.

[…] A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata”. O livro sobre o editor é um amálgama de suas descrições sobre o passado, a cidade, as parcerias e as imagens de sua produção artística, retratos que sugerem a dimensão imagética de seu trabalho.

Guilherme Mansur (2018) é dividido em 14 capítulos. O primeiro traça um breve comentário sobre a coleção e o segundo, de autoria de Jerusa Pires Ferreira, apresenta um esboço desse mineiro editor de múltiplas faces. Palavras em trânsito: a arte editorial de Guilherme Mansur é o título do terceiro capítulo, um ensaio escrito por Simone Homem de Mello (2018), a escritora e tradutora que conviveu e dialogou com Mansur entre os anos de 2012 e 2015, e que depois selecionou os trechos do depoimento, definindo os capítulos e a ordem do livro. Ela não somente o descreve como um editor e artista gráfico, tipógrafo, autor, inventor, como também sustenta que “[…] a estrutura deste livro procura espelhar a multidirecionalidade de sua atuação como editor. Como editor? Sim, pois sua arte da palavra […] sempre prioriza a veiculação da palavra, seja qual for o meio e o suporte” (Mello, 2018, p. 20). A atitude polivalente do editor tem a ver com sua prática e seus saberes de tipografias de caixa, conhecimentos que fazem parte de seus trabalhos digitais e são responsáveis por criar uma ampla gama de produtos editoriais, a exemplo de uma revista-saco e das chuvas de poesia. A partir do “[…] trânsito da palavra como eixo de concepção da obra […]” (Mello, 2018, p. 21), Mansur multiplicou os meios e as formas de publicação, o que não se contrapõe à proposta da coleção, idealizada como uma via de memória oral.

O quarto e o quinto capítulo traçam a polivalência do mineiro nascido em 1958 na cidade de Ouro Preto. No quarto capítulo, o editor relata as vivências inventivas da infância e adolescência, como trabalhar na pequena oficina tipográfica de seus pais, a única tipografia de Outro Preto entre 1965 e meados dos anos 1970, local que emana uma memória afetiva e onde ele foi alfabetizado por uma miríade de tipos gráficos. Nesse período, ele conta que estabeleceu uma relação lúdica com as letras e estranhava o modo como “[…] as palavras eram apresentadas pela professora no quadro negro, com giz. Fiquei chocado com aquilo, porque no meu universo, as palavras tinham volume, tinham peso, tinham cheiro. Letra para mim era tipo móvel, não era letra feita com giz” (Mello, 2018, p.27). Arte e Correio é título do quinto capítulo e o nome do movimento que deu início à primeira publicação de Mansur em 1976, construída por meio de uma intensa troca de experiências cujas práticas envolveram artistas de diversas localidades do Brasil, além de proporcionar a participação do editor, em 1980, na primeira Bienal Internacional de Arte Correio na Itália. O trabalho apresentado na Bienal se integra ao conjunto de pequenos poemas impressos em cartões e enviados via correios entre 1980 e 1983.

O sexto capítulo trata da Poesia Livre, a revista- saco que ele criou no final dos anos 1970. Em uma trivial manhã de 1977, o poeta foi comprar pães para os funcionários da tipografia e se deu conta de que o saco de papel pardo a abrigar os pãezinhos poderia ser um recipiente para uma revista de poesias. Segundo Mansur, “o saco resolvia economicamente duas questões: a capa e a encadernação. Dei o nome de Poesia Livre2, porque pensava numa revista com estilos diversos de poemas” (2018, p. 43). Esse projeto se inseria no bojo de um movimento independente intitulado Poesia Marginal, uma publicação à margem das grandes editoras. Durante o desenvolvimento desses trabalhos, Mansur conheceu amigos e pessoas que o auxiliaram na autoria, edição e divulgação da revista-saco, impressa em tiragem de mil exemplares.

O projeto ampliou o horizonte do mineiro a ponto de ele desenvolver habilidades ligadas à artesania tipográfica, publicando, em 1985, o primeiro empreendimento como editor de livros, nomeado Hai Tropikai: “[…] um estojo com folhas soltas de papel Canson […], uma edição de haicais de Paulo Leminski e Alice Ruiz” (2018, p. 51).

Tipografia do Fundo de Ouro Preto é o sétimo (e mais longo) capítulo do livro, o nome do estabelecimento fundado por Guilherme Mansur em 1986. A tipografia foi um meio para ele publicar livros no formato tradicional e ampliar o arco de personalidades que publicaram poesias através do estabelecimento do tipógrafo-editor. Para ele, o livro é um objeto no sentido próprio e semântico: “Quando pego originais para que sejam transformados em livro, os textos me provocam a fazer uma releitura na forma tipográfica, na forma do livro como objeto” (2018, p. 55), o que revela a sua preocupação com a materialidade do livro (definição do formato, peso, volume e papel escolhido). Ele também fala sobre o labor como artista gráfico, possível graças à confiança dos poetas em seu trabalho, autores que deram liberdade para ele definir a concepção da edição. Às vezes Mansur recebia a visita do bibliófilo José Mindlin, como no momento em que ele editava “[…] o Caderno de Traduções, de Laís Corrêa de Araújo: o miolo em linotipo e a capa com lixo tipográfico. Doutor Mindlin se encantou pela capa e eu dei a ele a matriz de presente” (2018, p.58). Cada livro idealizado pelo editor mineiro considera a forma presente em cada poesia, seja horizontal ou vertical, e esse era o ponto de partida para ele definir o formato do livro. Além de Mindlin, merece destaque a relação longa e profícua entre Haroldo de Campos e Mansur. O poeta concreto apareceu na tipografia pela primeira vez em 1987, acompanhado do poeta Carlos Ávila. Em uma das visitas, Haroldo contou sobre o projeto que estava a desenvolver sobre a viagem de Ulisses, intitulado Finismundo. Decidiram que o tipógrafo-editor ficaria responsável pela edição da obra, o que aconteceu em 1990, ano em que Haroldo enviou os originais e Mansur criou um poema visual no centro da capa, nomeado Quadriláxia e produzido com lixo tipográfico. Em seguida, o ouro-pretano narrou não apenas a saga para encontrar a vinheta tipográfica que queria inserir no centro da folha de rosto de Finismundo, como também sobre os lançamentos do livro em Belo Horizonte, Curitiba e São Paulo, onde teve a oportunidade de conhecer Arnaldo Antunes, Antônio Risério, Augusto de Campos e o casal Jerusa Pires Ferreira e Boris Schnaiderman. A multifuncionalidade de Mansur é percebida através de outros relatos, parcerias e projetos concluídos no decorrer da década de 1990, como a ocasião em que conheceu Cléber Teixeira, editor da Noa Noa: “Divido com o Cléber o ofício de poeta-tipógrafo-editor, e isso é diferente de ser apenas um editor. O que interessa a mim, e naturalmente ao Cléber, é o processo do trabalho à frente do livro acabado […]” (2018, p. 81). O mineiro deixa claro a sua opção por editar o trabalho de poetas com os quais se identifica, optando por investir na poesia de vanguarda e em artistas populares, como Bené da Flauta e Takaoka. Nos momentos em que Mansur se sentia em transe diante da falta de ideias, ele subia (na companhia da cachorra Rebeca) ao cume dos morros de Ouro Preto para se “[…] desligar completamente da ideia fixa em tipografia” (2018, p. 85).

O oitavo e o nono capítulo destrincham a relação que ele estabeleceu com a tipografia e a poesia em diferentes suportes. No oitavo, Poesia em papel, Mansur relata que a tipografia de caixa não permite malabarismos durante o processo de criação e edição da poesia, pois a impressão dos tipos gráficos é cercada por um retângulo de ferro, o que provoca uma escrita enxuta, de versos curtos, sintéticos, breves, uma poesia adequada à fôrma tipográfica. Seus trabalhos indicam essa permanente preocupação com a materialidade do livro, como Bahia Baleia: “Esse caderno com espiral e capa de papelão impressa em serigrafia surgiu da realização do desejo que eu tinha desde criança de ver uma baleia ao vivo” (2018, p. 91). Outro exemplo é o poema Barcolagem, “[…] que era uma encomenda para a peça Erwartung, de Schönberg, executada pela Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, no teatro do Palácio de Belas Artes em Belo Horizonte, em dezembro de 2009” (2018, p.92). O projeto Bandeiras, Territórios e Imaginários, de 2008, reforça a adaptação de Mansur a diferentes suportes, um trabalho inteiramente digital, ainda que as bandeiras tenham sido desenhadas em 1997 e posteriormente redesenhadas no computador, que para ele significa “[…] um encontro, o cruzamento de um país rico com um pobre, para surgir um terceiro território mais equilibrado” (2018, p. 93-94). Poesia em outros suportes é o tema do nono capítulo, instante em que ele narra o modo como aproveita pedaços de tipos para compor os poemas-objeto, a exemplo da série Quadriláxia: “A instalação consistia numa lona preta quadriculada de 4 x 4 m esticada no chão, 49 folhas de papel branco, com o lixo tipográfico impresso, dispostas simetricamente sobre a lona de meia tonelada de hematita […] espalhada em cima” (2018, p. 98). Mansur diz que existem situações em que o poema abandona o papel, vira escultura, objeto e projeta-se no asfalto, como é o caso de Batuque, um poema-escultura montado no Instituto Federal de Minas Gerais, localizado em Outro Preto. O fecho do capítulo trata as chuvas de poesia que ele promove desde o Carnaval de 1993, um evento onde pequenos livros de poesias são arremessados a partir das torres das igrejas, invadem as casas e proporcionam uma atividade lúdica que se tornou famosa na sua cidade.

Do décimo ao último capítulo, o editor manifesta as suas influências, suas reflexões sobre tipografia e seus projetos na contemporaneidade. O entendimento tipográfico de Mansur foi influenciado por Amilcar de Castro, escultor e artista gráfico que o auxiliou a perceber o quanto uma peça gráfica deve ser agradável aos olhos.

Ele foi aluno de Amilcar na Fundação de Arte de Outro Preto e recebeu as orientações do mestre no Suplemento Literário de Minas Gerais, onde trabalhou como paginador e participou da reforma ortográfica realizada durante os anos 1990. Essas experiências ocorreram em paralelo com outros projetos, tais como o Tipocines, obra que conjugou títulos de filmes às fontes tipográficas que tivessem alguma semelhança com as películas. Bamboletras é a designação do trabalho desenvolvido em parceria com Ivar Siewers, designer de móveis e objetos que transformou o bambolê de letras em descanso de mesa. E desde 2012 ele está a expor o Tipogrampo, obra realizada por intermédio de um grampeador de mão e uma folha de papel, “[…] uma espécie de exercício de tipografia ao alcance das mãos” (2018, p. 114).

Para Guilherme Mansur, um livro bem editado é aprazível ao olhar: “Tipografia é letra reunida. E letra é um desenho que se lê e não que se apenas vê” (2018, p. 120). Ele considera a tipografia uma arte da tradição e o tipógrafo um trabalhador que tem o propósito exclusivo de atender o leitor: “A elegância e harmonia de uma fonte tipográfica estão na simplicidade e no rigor do desenho de cada letra.

A boa tipografia pode ser vista na economia do uso de fontes” (2018, p. 123). A profissão de editor-tipógrafo é solitária, demanda um alto nível de concentração e de luta contra o mercado: “Numa mínima editora tipográfica, a tiragem das edições é pequena e o tempo que se gasta é grande” (2018, p. 126). Ao final do livro ele comenta sobre sua reinvenção tipográfica em face da distrofia muscular que o impediu de compor tipos móveis. A tecnologia tem sido aliada de suas últimas criações, a exemplo de Poemas Estalactites, obra cuja concepção partiu de dez poemas do alemão August Stramm (traduzidos por Augusto de Campos) e da utilização tipos art nouveau, posteriormente fotografados e digitalizados por Cláudio Santos e Leonardo Dutra. O profícuo trabalho de Guilherme Mansur está em marcha e almeja novas veredas, como o desejo de fundar um instituto tipográfico em Ouro Preto.

A escritora e tradutora Simone Homem de Mello colheu o relato de um editor que vivenciou as transformações da cultura em nível nacional, desde a década de 1970 até o tempo de agora. Ela comenta que o grande trunfo do livro é a capacidade de “[…] reunir materiais e informações que não estão acessíveis em nenhuma outra fonte […]” (Mello, 2018, p. 22). Nesse sentido, acreditamos que a obra em tela é importante para os pesquisadores da história do livro no Brasil, uma contribuição para futuros trabalhos que dissequem a peculiar trajetória do versátil mineiro, um profissional que trabalha em diversas paralelas do ofício, da tipografia à autoria, um personagem que afirma nunca ter sido um artesão das palavras e da edição, a despeito de seu depoimento comprovar o contrário.

Referências

ALBERTI, V. 2005. Fontes orais: histórias dentro da História. In: C.

PINSKY (org.), Fontes históricas. São Paulo, Contexto, p. 155-202.

AMORIM, S.M.; TREMEL, H. F. (org.). 1989. Jacó Ginsburg. São Paulo, Prol/Com-Arte, 80 p. (Editando o Editor, 1).

BRAGANÇA, A. 2005. Sobre o editor: notas para a sua história. Em Questão, 11(2):219-237.

CABRINI, C.A.; GUEDES, M.C. (org.). 1991. Flávio Aderaldo. São Paulo, Edusp/Com-Arte, 64 p. (Editando o Editor, 2).

CALVINO, I. 1990. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo, Companhia das Letras, 150 p.

FERREIRA, J.P. (org.). ALMEIDA, M.A.; FERNANDES, M.O.; SENRA, M. (editoras). 2003. Ênio Silveira. 1ª reimpr. São Paulo, Edusp/Com-Arte, 168 p. (Editando o Editor, 3).

FERREIRA, J.P. (org.). LIMA, A. O.; GONÇALVES, J.I.; AKIYOSHI, M. (editores).. 1995. Arlindo Pinto de Souza. São Paulo, Edusp/ Com-Arte, 168 p. (Editando o Editor, 4).

FERREIRA, J.P. (org.). 2001. Jorge Zahar. São Paulo, Edusp/Com-Arte, 96 p. (Editando o Editor, 5).

FERNANDES, M.O.; MONTONE, S.; FONTANA, C.F.; LARSON, F. (editores). 2003. Cláudio Giordano. São Paulo, Edusp/ Com-Arte, 96 p. (Editando o Editor, 6).

MELLO, S.H. 2018. Guilherme Mansur. São Paulo, Edusp/Com-Arte, 144 p. (Editando o Editor, 9).

SALLES, M.Y. (org.). 2013. Plínio Coêlho. São Paulo, Edusp/Com-Arte, 112 p. (Editando o Editor, 8).

VICENTINI, R.M. 2010. Samuel Leon. São Paulo, Edusp/Com-Arte, 88 p. (Editando o Editor, 7).

Hugo Quinta – Universidade Estadual Paulista(UNESP), campus de Assis, Avenida
Dom Antonio, 2100 – Parque Universitário. 19.806-900 Assis, São Paulo,
Brasil. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP).Email: [email protected].

Cuidado com os poetas ! Literatura e periferia na cidade de São Paulo – TENNINA (A-EN)

TENNINA, L. Cuidado com os poetas ! Literatura e periferia na cidade de São Paulo. Tradução de Ary Pimentel. Porto Alegre: Zouk, 2018. 315p. ¡Cuidado con los poetas! Literatura y periferia en la ciudad de São Paulo. Rosario: Beatriz Viterbo, 2017, 363 p.. Resenha de: PIMENTEL, Ary. Por uma ressignificação da poesia e do lugar do poeta. Alea, Rio de Janeiro, v.21 n.1, jan./apr. 2019.

Certa vez um rapper de São Paulo reescreveu um clássico da MPB, deslocando o lugar de enunciação do discurso para as periferias de São Paulo. E, então, a letra de “Cálice” ganhou uns versos assim:

Os saraus tiveram que invadir os botecos

Pois biblioteca não era lugar de poesia

Biblioteca tinha que ter silêncio,

E uma gente que se acha assim muito sabida

Na letra do rap “Subirusdoistiozin” (segunda faixa do CD Nó na orelha), Criolo, o mesmo autor que antropofagizou e atualizou a poesia de protesto do cantautor Chico Buarque, voltaria a falar de uma cena cultural que, quase imperceptivelmente para os diferentes âmbitos do mundo letrado, começava a tomar conta de certos territórios da cidade:

As criança daqui ‘tão de HK

Leva no sarau, salva essa alma aí

Poucos, muito poucos, na verdade, umas poucas pesquisadoras atentaram para essa produção “fora do retrato” que despontava nas margens do cânone e nas margens da cidade. A um pequeno grupo no qual se destacam Érica Peçanha, Regina Dalcastagnè, Ingrid Hopke e Rafaella Fernandez – as quais por diferentes motivos haviam se aproximado da cena que gestava uma nova literatura nas periferias de São Paulo nos primeiros anos do século XXI -, veio a se somar o nome da argentina Lucía Tennina. Em Cuidado com os poetas! Literatura e periferia na cidade de São Paulo, a professora de Literatura Brasileira na Universidade de Buenos Aires traz para o leitor a possibilidade de um mergulho profundo na produção literária brasileira do presente e o faz com um olhar no qual se reúnem o perto e o longe, no intenso processo de construção de uma terceira dimensão que poderíamos chamar de “entre-lugar” da crítica. E dizer isso não é dizer pouco, se lembramos de Pierre Bourdieu que, em Homo academicus, já assinalava que os dois grandes problemas do discurso científico são o excesso de distância e o excesso de proximidade. Conforme Bourdieu, existe um certo repertório que não se pode acessar (ou saber) a menos que o sujeito consiga fazer parte do universo abordado. Mas é justamente a condição de “fazer parte de…” que implica uma inescapável proximidade onde reside tudo aquilo que não se pode ou não se quer saber. É isso. A escrita exige proximidade. Mas também distância. De fato, um lugar que reúna as duas condições anteriores.

Resultado de uma longa experiência de imersão na periferia e de profundas reflexões teóricas que se desenvolveram ao longo de anos e de várias publicações sobre o tema, este livro de Lucía Tennina traz os rigorosos estudos comparatistas de quem começou a estruturar seu discurso de dentro do próprio circuito de saraus que se organizam nos botecos das quebradas paulistanas depois de 2001.

Entremos aos poucos nesse mundo-tecido-tessitura tão rico, para desfrutar mais da caminhada. A melhor abordagem do objeto encontrada por Lucía Tennina é aquela construída a partir do dispositivo da distância e da proximidade: o olhar estrangeiro, o olhar de quem se aproxima aos poucos, rondando poetas e poemas, para provar, a partir do contato cotidiano com o ambiente dos saraus, diferentes tentativas de intervenção no debate crítico da literatura marginal da periferia. Inevitável é lembrar de um poema que aparece em 21 gramas, terceiro livro de Marcio Vidal Marinho (2016), um dos frequentadores assíduos do Sarau da Cooperifa. O poema “Álvaro de Campos foi à Cooperifa” bem poderia vertebrar o primeiro capítulo de Cuidado com os poetas! Nesse momento do livro, a pesquisadora argentina aprecia o cenário e nos conduz pela cena poética da periferia, destacando os aspectos que marcaram a formação do circuito de saraus nas quebradas paulistanas. E o faz com os mesmos olhos dessa figuração poética de Álvaro de Campos, olhos (aparentemente) desarmados e (profundamente) apaixonados de quem vem de longe, de quem não está, mas que, ao mesmo tempo, é claro que está em seu ambiente quando penetra nesse Sarau da Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa), um movimento cultural que em outubro de 2018 completou 17 anos de atividades poéticas no bar do Zé Batidão, situado no bairro de Piraporinha, Zona Sul de São Paulo:

Chegou cedo e viu o bar vazio […]

Relutara em vir

Quando soube que era na periferia. […]

19h30

Algumas pessoas começam a chegar […]

O local é um bar típico de favela

Pela fama achou que seria mais bonito,

Pinturas desgastadas, mesas grudadas.

As paredes que vão de encontro à rua

Não existem, são grades, como se fosse uma jaula.

Próximo ao balcão, uma estante de livros

Que se amontoam sem nenhuma ordem. […]

Quando dá por si, não há mais lugares vazios,

O bar está inteiramente ocupado.

Pessoas de todos os tipos […]

Uma pessoa vai ao microfone

Agradece a presença de todos

E relata que todos são bem vindos. […]

Chama um grito de ordem

Todos o acompanham:

Povo lindo, povo inteligente, é tudo nosso,

Uh, Cooperifa! Uh, Cooperifa! Uh, Cooperifa! (MARINHO, 2016, p. 70-72)

No cenário dominante de uma literatura que tem cor, gênero, CEP e um capital cultural longamente acumulado nos âmbitos da cidade letrada, Lucía Tennina lança seu olhar para sujeitos que, oriundos do mundo do trabalho e moradores da periferia, passam semanalmente por esse e por inúmeros outros microfones dos novos saraus organizados nos bares das periferias: Akins Kintê, Alisson da Paz, Binho Padial, Dugueto Shabazz, Fernando Ferrari, Fuzzil, Luan Luando, Marco Pezão, Michel Yakini, Jairo Periafricania, Renan Inquérito, Rodrigo Ciríaco, Serginho Poeta, Sérgio Vaz, Seu Lourival, Zinho Trindade e tantos outros. Trata-se de uma verdadeira tribo que, dispersa pela cidade, povoa o circuito literário marginal da periferia, trazendo novos posicionamentos de sujeitos através da literatura e propiciando um olhar rico sobre os deslocamentos e negociações desse objeto radicalmente plural estudado nos dois primeiros capítulos do livro: os saraus de poesia da periferia de São Paulo.

A crítica acertou na descrição do fenômeno periférico, destacando uma produção que traduz a potência dos novos atores do campo cultural, mas não exime a cena de conflitos e contradições. Apesar da grande quantidade de trabalhos sobre a cultura das periferias, poucos foram os textos que apontaram os problemas derivados do machismo e da misoginia nesse cenário das quebradas, e menos ainda os que se interessaram em reconstruir a presença e o lugar das mulheres nessa nova dimensão do campo literário. Diante disso, cabe enfatizar a importância do terceiro capítulo do livro intitulado “As poetas da periferia: imaginários, coletivos, produções e encenações”. Nessas páginas, Lucía Tennina focaliza o fenômeno da chegada das mulheres aos bares da periferia e, discutindo as estratégias e os modos de produção das “minas”, proporciona uma nova compreensão do lugar diferenciado da mulher no processo de empoderamento dos sujeitos nesse grande quilombo cultural das quebradas paulistanas.

Podemos mesmo dizer que outro mérito de Lucía Tennina é produzir um segundo deslocamento dentro de um tema que já é inovador, trazendo para o centro dos estudos da literatura marginal da periferia a experiência do subalterno dos subalternos. A proposta lança luz sobre a situação específica das poetas num mundo literário que emergia nas periferias e já prenunciava, nesse mal-estar identificado por Tennina, o surgimento de um novo circuito poético que se distanciaria dos saraus de poesia, assumindo características próprias e potencializando as performances e dicções das poetas. O protagonismo feminino foi construído, portanto, em uma outra cena, diferente da anterior, porque, no espaço dos saraus, seu papel era o de “musas” e não o de poetas, ficando o silenciamento oculto sob o disfarce da admiração de sua beleza, o que era também uma forma de apagamento da diferença.

Essa questão transcendia a cena na medida em que implicava valores e imaginários há muito reproduzidos pelos que tentaram, por séculos, disciplinar e se apropriar do corpo feminino. Nesse sentido, o livro amplia seu alcance descritivo-histórico, o que torna mais complexa a mirada para o mundo dos saraus da periferia, tendo em vista que esse olhar permite repensar as lutas das mulheres em diferentes contextos sociais ou culturais nos quais elas foram o Outro do Outro, conforme assinala Lucía Tennina, antecipando-se a um dos subtítulos de O que é lugar de fala?, de Djamila Ribeiro. Nessa medida, a leitura nos envolve no debate sobre a história da representação e da autorrepresentação das mulheres em geral e das mulheres negras e de origem nordestina em particular. Não restam dúvidas quanto ao papel que nessas disputas tiveram nomes como Elizandra Souza e Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota), com publicações marcantes como Águas da cabaça (Edição do Autor, 2012) e De passagem mas não a passeio (Global, 2008). Se o surgimento dos três números especiais da revista Caros Amigos e a organização do Sarau da Cooperifa foram determinantes para que pudesse emergir um novo sujeito nas margens da literatura, as vozes de Elizandra e Dinha seriam precursoras de uma nova geração que se expressaria a partir do seu lugar de fala, elemento central para a emergência de outra cena ainda muito incipiente no final da primeira década do século XXI, a dos campeonatos de poesia falada ou Poetry Slam.

No quarto e último capítulo, o livro aborda uma série de questões não trabalhadas anteriormente, passando, quase que em um livro à parte, a abordar os casos específicos de Ferréz e Alessandro Buzo, narradores que conseguiram ser lidos e reconhecidos fora das fronteiras do território. Uma das questões centrais que Cuidado com os poetas! enfrenta nesse capítulo é a de quais seriam as negociações necessárias aos subalternizados para construir um lugar no campo literário e como, a partir de uma nova rede de relações, se dá o ativamento de certas estratégias a fim de dominar uma posição de autor. Esse capítulo procura respostas para estas perguntas. Para além das diferenças entre os dois nomes, sobressaem as operações agenciadas por cada um deles para construir o que Tennina chama de “lugar de autor”. Para isso, a autora guia o leitor através de um percurso pela vida de Ferréz e Buzo no qual ficam aparentes as respectivas estratégias de construção da figura do escritor. Transcendendo aquilo que Feréz sinaliza na introdução da edição Tusquets de Capão pecado, onde propõe as páginas de seu primeiro romance como uma vestimenta de palavras que lhe dá um lugar de autor, os dois mobilizam diferentes recursos, operações e procedimentos para conquistar um lugar no campo cultural, indo da criação de um nome artístico (Ferréz) à manutenção de um blog no qual se registram as leituras que vão gradativamente formando a imagem pública do escritor (Buzo).

Narradores como Ferréz ou Buzo, poetas como os da Cooperifa ou os que integram os demais saraus de poesia das quebradas paulistanas transformam de dentro as instituições que definem a consagração e o pertencimento ao campo literário, lutando para trazer o protagonismo para a periferia. Esses escritores já não estão falando só entre eles. Trata-se da formação de redes complexas, às quais são incorporados os grupos mais jovens formados por sujeitos oriundos de outros lugares da cultura. O que está em jogo é o que a gente entende como arte, como literatura ou como poesia.

Assim, os conceitos estéticos são reestruturados sob nova forma e a partir de novas regras, constituindo uma esfera formada para além das normas e capitais convencionais. O livro de Tennina aporta um novo lugar de mirada para a poesia. E, a partir desse olhar que conduz o nosso, conseguimos nos dar conta do brotar de uma nova produção e de uma cena cultural centrada no papel da “poesia” e na figura do “poeta”, as quais contribuem de modo muito particular para a ressignificação desses vocábulos.

Sergio Vaz, criador da Cooperifa, insiste em que “a periferia é um país”. O que faz Lucía Tennina é uma bela, profunda e necessária cartografia da literatura desse novo país.

Assim, essa jovem professora argentina oferece uma contribuição fundamental para a crítica literária brasileira. Ler a obra de Lucía Tennina é poder viver intensamente a cena pulsante da literatura marginal da periferia. Nesse sentido, não seria excessivo afirmar que ela consegue escrever o livro que pretendia, uma obra potente que nos impacta e transforma o olhar que nós brasileiros lançamos para as culturas das nossas periferias.

Esperamos a publicação de mais textos como esse, que lança uma nova luz sobre o desenvolvimento de nossa primavera periférica.

Referências

MARINHO, M.V. 21 gramas. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2016. [ Links ]

Ary Pimentel. Professor de Literaturas Hispano-Americanas no Departamento de Letras Neolatinas da Faculdade de Letras (UFRJ). Mestre (1995) e Doutor (2001) em Literatura Comparada pela UFRJ e realizou estágios de Pós-doutorado no PACC (Programa Avançado de Cultura Contemporânea) – UFRJ, em 2016, e na Universidad de Buenos Aires, em 2017. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[IF]

 

Rimbaud na África: Os últimos anos de um poeta no exilio (1880/1891) | Charles Nicholl

Pretendemos neste artigo discutir as possibilidades que tem o historiador de utilizar em suas reflexões a Literatura como fonte histórica. Trata-se de uma relação difícil, mas possível e, sobretudo, prazerosa. A historiografia apela à literatura hoje mais como um registro do real, um instrumento para sua apreensão, ou ainda como sua metáfora epistemológica. O historiador não pode encarar a obra literária apenas como veículo de conteúdo, pois, o valor do texto literário não está propriamente na confrontação que dele se pode fazer com a realidade exterior, mas na maneira como esta realidade é abordada, aprofundada, questionada, recriada. Deve encarar a literatura não como reflexo, mas como refração, como desvio. (ELEUTÉRIO, 1992)

Como produção artística que é, a arte ilustra os valores de uma cultura, e não se presta a fornecer a confirmação de um saber que poderia adquirir de outras formas, por exemplo, por uma pesquisa histórica; ela tem princípios e leis diferentes dos da realidade exterior, já inventariada. Além do mais, o artista está sempre ultrapassando os sistemas de classificação, aos quais uma sociedade confirma suas representações provisórias do mundo. A arte não reproduz a realidade exterior, mas a transforma, exprimindo o que nela está reprimido ou latente.

A obra literária eficaz, que age sobre seus leitores, é aquela que dramatiza as contradições e exacerba-as, leva-as às últimas consequências, ou seja, representa-as, e oferece assim, um princípio de respostas a perguntas ainda não claramente formuladas. Ela libera possibilidades subjacentes a certas situações, joga com essas possibilidades, dá-lhe vida, e assim, tenta explorar as virtudes inerentes a uma época. As obras literárias que melhor traduzem os movimentos sociais e históricos não são as que retratam de forma escrupulosamente exata os acontecimentos anteriores; são as que exprimem aquilo que falta a um grupo social, e não aquilo que ele possui plenamente.

A literatura fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram. Pode-se, portanto, pensar numa história dos desejos não consumados, dos possíveis não realizados, das ideias não vingadas (SEVCENKO, 1995).

Ocupa-se o historiador, portanto, da realidade, enquanto o escritor é atraído pela possibilidade. Cabe, portanto, ao historiador, captar esse excedente de sentido embutido no romance. O método para Lacapra (1991) é o de se fazer uma fusão entre o texto e o contexto, ou seja, usar a linguagem para se interpretar contextos. Não contexto no sentido positivista, mas como representação de uma experiência histórica. É a tentativa de perceber como se apresentou uma dada realidade.

A história é um caleidoscópio de ações humanas, é um romance verdadeiro, simplifica, seleciona, organiza, reflete e dissemina. Portanto, para Veyne (1995), o que distingue um livro de história de um romance, isto é, a narrativa histórica da narrativa de ficção, é que o primeiro tem seu suporte na realidade exterior, que tem existência concreta e autônoma. Dispensa, portanto, artifícios discursivos e estéticos para ser valorizado. A história é assim, uma narrativa verídica, mesmo levando-se em conta que a verdade sempre é relativa, depende de quem a conta, e os acontecimentos submetem-se ao critério de verificabilidade, ao contrário do discurso ficcional, que é uma questão de verossimilhança.

Ainda nessa comparação, podemos afirmar que a história é um discurso que visa a realidade teórica e científica, não ignorando o caráter de relatividade da verdade histórica, e toda subjetividade que comporta a elaboração desse conhecimento. O texto literário tem como objetivo fundamental a produção da realidade estética, o que não exclui que ele possa ter relações com a realidade objetiva, ou seja, com tudo aquilo que lhe é exterior, e de que certa forma o envolve.

Os romances históricos transmitem

uma verdade histórica através da verossimilhança novelesca, tem o poder de fazer a carne voltar a ser verbo, sem o verbo perder o gosto, ou a cor, ou o cheiro, ou a forma da carne, imagem que nos parece bastante significativa do poder de recriação da obra literária e das suas relações com a realidade que ela representa. (FREYRE, 1961)

Assim, a transformação de elementos não-literários em expressão estética é uma outra maneira de olhar o objeto, uma nova forma de relação com o real. Discurso histórico e narrativa literária, formas distintas de narrativas, apresentam formas de contatos, relacionam-se com a realidade exterior de maneiras diferentes, porém, complementares. Tanto um como o outro, são imagens dessa realidade, que se submetem às exigências do discurso e, podem, portanto, apresentar deformações, fragmentações, ou distorções, formas parciais de conhecimento.

Dessa forma buscamos entender a figura de um poeta do século XIX nascido na França e que se tornou famoso entre seus quinze e dezoito anos. Suas poesias encantavam e disseminavam-se com facilidade pelo universo das cidades europeias que devoravam através de seus leitores o que o jovem escrevia. Falamos de Arthur Rimbaud que foi perfeitamente historicizado no livro escrito por Charles Nicholl onde o autor tem a preocupação de mostrar o poeta abandonando a Literatura e a fama para empreender um novo rumo a sua vida, iniciando uma viagem pela África. Aventureiro? Desilusão? Assumir uma nova identidade? Desejo de conhecer outras paragens? Difícil é responder. Neste artigo onde podemos ser interpretados como descritivos, queremos na realidade mostrar que na primeira parte da vida de Rimbaud a sua literatura poética nos responde, enquanto fonte, ao historiador que percorre a sua produção artística. Como comerciante outras fontes teriam que ser buriladas para que pudéssemos decodificar no conjunto dessas duas identidades, embora um e outro desafiem a vida e enfrentam a própria morte.

No mundo do conhecimento a História sempre manteve um lugar de destaque com forte identidade própria, embora modernamente tenha se moldado o seu desenvolvimento acadêmico enquanto disciplina. O pesquisador Diogo da Silva Roiz do departamento de História da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul afirma que as pesquisas nos últimos vinte anos estão concentradas em História Cultural, perfazendo um total de 80% de tudo que tem sido produzido nas universidades brasileiras, tornando-se uma temática constante no mundo inteiro.

A História Cultural se tornou, na atual conjuntura, um imenso lucro para o mercado editorial. O interesse pela História Cultural em representações dos desdobramentos das preocupações da História Social com orientação marxista e a Nova História Cultural com a virada linguística e abordagens pós-modernas. As novas tendências historiográficas inspiram-se em uma crítica, em uma releitura dos conceitos fundamentais da História Social.

Se pensarmos nas contribuições dadas por Roger Chartier (2007) dentro de uma relação Cultura/Representação que perpassa por qualquer temática de pesquisa no campo da História, pois o historiador, segundo Raymond Williams (2011) exerce um trabalho de compreensão das representações dos sujeitos sociais. Tanto Chartier quanto Williams estabelecem uma fidelidade da História Cultural com os postulados da História Social. Portanto, o historiador passou a estabelecer diálogos através da História Cultural que foi seguida de forma exemplar por Pesavento (2003) no Brasil, com outras fontes possíveis de conhecimento e relações como História e Literatura. Uma pensa o concreto e a outra a ficção, mas consegue-se interpretar sujeitos, lugares, espaços, cores publicidade, propaganda, conversas, modas e temporalidades distintas e muito mais utilizando a Literatura como fonte.

De autoria de Charles Nicholl o livro Rimbaud na África: Os últimos anos de um poeta no exílio (1880-1891), impressiona o leitor pela riqueza de detalhes e profundidade de análise. Não se trata de uma obra ficcional, mas do resultado de uma pesquisa de historiador que o autor realmente é. Escreveu nove livros e alguns com prêmios recebidos este é o segundo que leio, sendo o primeiro com o qual tomei contato com a reflexões de Nicholl foi Leonardo Da Vinci, uma de suas produções premiadas.

Interessada em produzir um artigo sobre um literato que tivesse tido contato através de suas narrativas com o cotidiano de uma cidade africana cheguei a essa obra que nos narra o autoexílio de Arthur Rimbaud, o poeta francês que nasceu no lar de uma família de classe média de Charleville em Ardenas na região nordeste da França em 1854. Era o segundo filho de Vitale Cuif e do capitão Fréderic Rimbaud que lutou na Argélia, chegando até a receber o prêmio Legion D’Onneur. Em seguida ao nascimento da quinta filha do casal que faleceu após um mês o casamento chegou ao fim, quando o pai deixou a família.

Tal acontecimento contribuiu negativamente para o jovem que cresceu mais ao lado da mãe. Pelos seus escritos nota-se um desentendimento entre ambos e ele não se senta amado pela mãe. Sempre foi um estudante brilhante, embora calado, inquieto, impaciente e nada travesso. Em torno de quinze anos ganhou prêmios pelos versos que compunha, classificados como originais, sua primeira produção publicada foi Primeira Tarde. Escrevia na sua língua de origem, entremeada por diálogos em latim.

Fugia com frequência de casa e, em 1871, uniu-se à Comuna de Paris, retratada em seu poema A Orgia Parisiense ou Paris Repovoada. Deixou levemente transparecer em Coroação Torturado ter sofrido violências sexuais por soldados embriagados da Comuna. Fato que não chegou a ser comprovado, pois ele sequer abandonou a Comuna. Escrevendo poemas sobre ela que correspondiam aos seus pensamentos e reivindicações.

Transformou-se em um anarquista, começou a beber muito e frequentemente, usava roupas pouco adequadas, deixou os cabelos crescerem, com a nítida intenção de chocar a burguesia parisiense.

Sempre inquieto, deixou Paris e as suas relações para se dedicar a criação de um método para atingir a transcendência poética ou o poder visionário através do “longo, imenso e sensato desregramento de todos os sentidos” (As Cartas Videntes).

Retornou a Paris em setembro do mesmo ano, a convite do poeta do Simbolismo Paul Verlaine, depois que Rimbaud lhe enviou uma carta contando o seu método de trabalho. Casado, Verlaine logo se apaixonou pelo adolescente calado de olhos azuis de cabelos castanhoclaros e cumpridos. Tornaram-se amantes e levaram uma vida ociosa regada a absinto e haxixe, escandalizando o círculo literário, sobretudo pelo comportamento de Rimbaud o arquétipo do enfant terrible que escrevia versos notáveis.

Envolvidos por um tempestuoso caso amoroso, viajaram para Londres no ano seguinte. Verlaine abandonou a esposa e o filho que sofriam abusos com as suas iras alcoólicas. Viveram uma vida pobre em Bloomsbury e Camdem Town, desprezando uma vida de ensino e uma pensão da mãe de Verlaine. Rimbaud frequentava o Museu Britânico, onde produzia seus versos, pois calor, luz, penas e tintas eram de graça.

Em junho de 1873, Verlaine retornou a Paris e sofreu muito com a ausência do jovem Rimbaud e em junho o convida para ir a Bruxelas encontra-lo no Hotel Liège. Rimbaud vai e o convívio passou a não ser nada agradável, reclamações mútuas, culminando em uma fúria de bêbado, onde Verlaine disparou dois tiros contra Rimbaud, ferindo o jovem poeta no pulso. Rimbaud não acusou Verlaine que, junto com sua mãe, acompanharam o jovem a uma estação de trem em Bruxelas onde Verlaine se comportou como um louco. Essa atitude assustou Rimbaud que, amedrontado, sem nada dizer, foi embora, mas pede a um policial para prender Verlaine.

Ele foi detido por tentativa de homicídio e submetido a um humilhante exame médico. Suas correspondências foram submetidas a uma leitura policial e somadas às acusações de sua mulher. Chamado a depor, Rimbaud retirou a acusação, mas mesmo assim Verlaine foi condenado a dois anos de prisão.

Rimbaud retornou a sua casa em Charleville e completou um trabalho em prosa, Uma Estação no Inferno, considerada pioneira do Simbolismo moderno, e escreveu Farsa Doméstica, uma narrativa sobre sua vida com Verlaine que ele chamava de lamentável irmão.

Em 1874 retornou a Londres e, depois, para Stuttgart, na Alemanha, onde se encontrou novamente com Verlaine, pela última vez, depois que este saiu da prisão e se converteu ao Catolicismo.

A partir daí Rimbaud tomou uma decisão de mudança de vida. Desistiu de escrever e desejava uma vida fixa, com um trabalho rentável, queria ficar rico e independente para algum dia viver como um poeta despreocupado. Para isso continuou a viajar de forma intensa, a pé, pela Europa. Mantinha vivo ainda, embora mais contido, o seu antigo comportamento selvagem. Em maio de 1876 se alistou como soldado no Exército Colonial Holandês para poder ir livremente para Java, na Indonésia. Foi, mas depois de alguns meses desertou e retornou à França em um navio de forma clandestina.

Continuava inquieto e desejando na realidade uma vida mais tranquila o que, até então, não havia encontrado em todas essas andanças.

Seguindo essa meta, viajou para Chipre e em Lamaca trabalhou como capataz na pedreira em uma empresa de construção onde contraiu uma febre que o leva de volta à França onde foi diagnosticado com febre tifoide.

Em 1880 viajou para Áden, um protetorado britânico, um entreposto, um lugar de passagem de viajantes que seguiam para a África e para a Índia. Foi de navio/vapor, desceu pelo Canal de Suez em busca de qualquer trabalho, sem achar. Atravessou o Estreito Bab al’Mandeb, percorreu o árido litoral do Iêmen, até chegar a Áden

O rosto queimado pelo sol, os trajes de algodão sujos, a mala remendada: é o que tudo indica. Seus olhos podem sugerir outras histórias menos decifráveis. São extraordinários, de um azul pálido hipnótico e inquietante. Décadas mais tarde, um missionário francês que o conheceu na África diria: lembro de seus olhos grandes e claros. Que olhar! (NICHOLL, 2007, p.18)

Finalmente esse coração inquieto adaptou-se em Áden, como empregado na agência de Bardey. Aí teve várias relações com mulheres nativas e por um tempo viveu com uma amante da Etiópia. Ensinou-lhe a ler a falar em francês e mais tarde a abandonou, mandando-a para Obock, do outro lado do Mar Vermelho, com um pouco de dinheiro para que pudesse voltar para casa. Como testemunha Bardey em carta a Berrichon datada de 16 de julho de 1897:

Foi em Áden que aconteceu o relacionamento afetivo com a mulher Abissínia, entre 1884 e 1886. Era uma relação íntima e Rimbaud, que no início morava e fazia suas refeições conosco, alugou uma casa separada onde poderia morar com sua companheira nas horas em que não estava trabalhando em nossa firma. (NICHOLL, 2007, p.258).

O próprio Rimbaud, em uma carta para Augusto Franzoj, escrita por volta de setembro de 1885 e publicada pela primeira vez em 1949 por Enrico Emanuelle na revista literária italiana Inventário.

Caro senhor Fransoj,

Lamento, mas dispensei aquela mulher sem apelação.

Darei a ela alguns táleres e ela tomará o barco

para Obock que agora está em Rasali. De lá, ela seguirá para onde desejar.

Estou farto dessa farsa, não seria tão estúpido a ponto

de trazê-la de Choa, e também não serei para me

encarregar para leva-la de volta.

Cordialmente, Rimbaud (NICHOLL, 2007, p.258).

Em 1884, deixou o trabalho para se tornar um mercador por conta própria em Harar na Etiópia. Vendia café e armas e como teve grande sucesso nesse ramo, tornou-se grande amigo do governador de Harar, pai do futuro imperador da Etiópia Haile Selasse.

Como mercador teve uma vida de andarilho, agitada, conhecendo vários lugares e obtendo grande sucesso na nova profissão.

Foi exatamente com 25 anos que o poeta abandonou para sempre a literatura e a fama na Europa e partiu para a África, onde sobreviveu por onze anos como comerciante e contrabandista, tentando apagar seu histórico de um passado boêmio. Era outro homem, tinha outra identidade, onde só manteve os belos olhos azuis que encantavam as pessoas.

O historiador Charles Nicholl construiu um perfil fascinante dessas duas vidas e dessas duas tão distantes identidades: a do poeta reconhecido e a do aventureiro comerciante que se transformou até morrer: “Um e outro vivendo sempre no limite da existência” (NICHOLL, 2007, p. 84).

Para descortinar esse período, Charles Nicholl pesquisou em documentos históricos inéditos, burilou a vasta correspondência de seu objeto de pesquisa, em cartas enviadas da África, onde ele nunca mais falou em literatura, mas apenas sobre dinheiro, comércio, lucros e rendimentos e, descrevendo suas andanças percorridas entre as regiões da Etiópia e o Egito com altivez, não mais parecido com o jovem poeta que Verlaine tanto admirava.

Apesar de um físico frágil, andava quilômetros, percorrendo em caravanas os lugares mais perigosos do continente africano.

Amigos morreram acompanhados por familiares comandando caravanas nas rotas de Harar e da Abissínia, nas viagens a Hensa e na rota Harar-Zeila. Perigos, medo e, ao mesmo tempo coragem, o jovem Rimbaud passou nessa sua vida de comerciante de caravana. Os nativos, com imensas lanças, assaltavam esses comerciantes e os matavam para roubar, sobretudo armas.

Sente-se sozinho ao perder seus companheiros e com muito temor, mas com uma coragem maior ele seguiu em seus trajetos comerciais obtendo seus lucros, passando a ser um mercador de sucesso.

De tanto caminhar e de tanto carregar as suas mercadorias pelos caminhos vielas e cidades africanas, em péssimas condições climáticas que eram mais ásperas que as da Europa, trouxeram ao jovem literato/comerciante, consequências tristes.

Rimbaud desenvolvei sinovite em seu joelho direito que mais tarde se tornou carcinoma. Seu estado de saúde piorou, sendo obrigado a retornar a França, em maio de 1891. Foi hospitalizado em Marselha e teve sai perna amputada. Passou um rápido e curto período na casa da família para uma recuperação no pós-operatório, mas logo desejou voltar à África para cuidar de seus negócios, mas o seu estado de saúde piorou, pois sua enfermidade se agravou. Voltou para o hospital em Marselha onde sofreu muito e recebia apenas as vistas de sua irmã Isabelle. Em novembro do mesmo ano Rimbaud finalmente descansou. Morreu ainda jovem, com apenas 37 anos e seu corpo foi enterrado no jazigo da família em Charleville.

Rimbaud, que foi para a África e acabou por traficar armas de fogo no norte desse continente, mas por outro lado, tornou-se uma referência para a literatura poética do século seguinte, servindo como argumento para célebres discussões que se processaram sobre a impossibilidade de dissociação do poeta e da poesia.

Assim sendo, deixou seguidores, influenciados pela sua produção e pelo método do Simbolismo, pois sua poesia e sua vida sempre impressionaram literatos, historiadores, músicos e pintores do século XX como Pablo Picasso, Allen Guinsberg, Vladimir Nabokov, Bob Dylan, entre vários outros. Sua vida foi retratada também no cinema, em filmes do cineasta italiano Nelo Rizzi, como Uma Temporada no Inferno, de 1970 e, em 1995 a cineasta polonesa Agnieska Holland dirigiu Eclipse Total de Uma Paixão.

Referências

CHARTIER, Roger. A História ou a Leitura do Tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes, AVELINO, Yvone Dias (et. Al.). O Bosque Sagrado e o Borrador, In: Revista Projeto História. São Paulo: EDUC, nº 8/9, 1992.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961.

LACAPRA, Domonick. História e Romance, In: RH, Revista de História da UNICAMP, nº 2/3. Campinas: UNICAMP, 1991.

NICHOLL, Charles. Rimbaud na África: Os Últimos Anos de um Poeta no Exílio (1880-1891). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

PESAVENTO, Sandra Jutahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão. São Paulo: Brasiliense, 1995.

VEYNE, Paul. Como se Escreve a História. Brasília: UnB, 1995.

WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade: Na história e na literatura. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011.

Yvone Dias Avelino – Professora-titular do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Coordenadora do Núcleo de Estudos e História Social da Cidade (NEHSC-PUC-SP).


NICHOLL, Charles. Rimbaud na África: Os últimos anos de um poeta no exilio (1880/1891). Trad. Mauro Pinheiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. Resenha de: AVELINO, Yvone Dias. Rimbaud: Um Poeta perdido na Europa e que se encontrou na África (1880-1891). Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.20, p. 424-439, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]

 

Mith into Art: Poet and Painter in Classical Geece – SCHAPIRO (RHAA)

SCHAPIRO, Harvey Alan. Mith into Art: Poet and Painter in Classical Geece. Sn.: Routledge, 1994. 196p. Resenha de SARIAN, Haiganuch. Revista de História da Arte e Arqueologia, Campinas, n.2, p.355-357, 1995/1996.

Haiganuch Sarian – Universidade de São Paulo, Brasil.

Acesso somente pelo link original

[IF]