Platão e as temporalidades: a questão metodológica – BENOIT (EL)

BENOIT, Hector. Platão e as temporalidades: a questão metodológica. São Paulo: Annablume, 2015. Resenha de: ANTUNES, Jadir. Eleuthería, Campo Grande, v. 1, n. 1, p. 91-97, dez. 2016/mai. 2017.

livro Platão e as temporalidades: a questão metodológica (São Paulo -SP: Annablume, 2015) de Hector Benoit é um livro extremamente claro e didático nos argumentos a favor de uma compreensão de Platão, e de todas as grandes filosofias, a partir de sua lexis imanente, i.é, a partir da narrativa dramática imanente ao texto, a partir do sentido temporal interno e arquitetônico do texto, desconsiderando todas as determinações externas e, por isso, superficiais, como a datação cronológica e a estilometria, na elaboração de determinada grande obra filosófica.

Hector Benoit é extremamente claro e preciso em mostrar os vários níveis e temporalidades do discurso filosófico de Platão, desde seus momentos mais simbólicos e alegóricos até seus níveis mais abstratos e propriamente conceituais, mostrando a ausência de sentido nas leituras dominantes e tradicionais que pretendem encontrar, e revelar, em Platão, a existência de uma teoria ou doutrina pronta, fechada, dogmática, e purificada de toda referência não propriamente conceitual contida no interior dos diálogos. O livro de Hector Benoit não ensina apenas a ler metodológica e corretamente Platão, mas a todos os grandes filósofos. Por isso, seu método parece ter uma aplicação universal –ao menos para as grandes filosofias.

O livro é uma crítica radical ao modo dominante de se fazer filosofia, ou, mais precisamente, ao modo dominante de se entender as grandes filosofias. O modo dominante de se fazer filosofia e se compreender os grandes filósofos tem sido o analítico, em seus vários matizes, tem sido o método de divisão de um texto em suas menores partes, de análise deste texto fatiado e  fragmentado em seus menores detalhes, sem, contudo, relacionar estes fragmentos com o conjunto e o sentido interno da obra, da história de vida do autor e dos grandes conflitos filosóficos e históricos enfrentados por ele.

Os métodos historiográficos, biográficos, estilométricos, e todos os demais métodos externos empregados no entendimento de uma grande filosofia, são a condenação ao esquecimento e à confusão de toda grande obra filosófica e o livro de Hector Benoit deixa isto muito bem claro em relação à grandiosa obra de Platão. Ainda que a prática de se estudar um texto possa querer levar em consideração todos os seus aspectos empíricos, é preciso encontrar nesta leitura a ordem imanente, dramática e conceitual, é preciso encontrar a ordem própria ao discurso filosófico do autor que considere esta obra como a obra de uma vida.

O livro de Hector Benoit nos ensina não apenas a estudar corretamente um texto filosófico, mas a entender corretamente o que seria a filosofia. Seria a filosofia, uma ciência, uma episteme, ou uma arte? Seria a filosofia, uma obra destituída de esforço, de paciência, de tempo, sem relação alguma com a experiência de vida, com a experiência política, com a experiência em geral de seu autor? Seria ela, uma obra produzida exclusivamente pelo intelecto do filósofo, pela genialidade e pureza de sua alma racional, seria a filosofia, por isso, uma obra sem qualquer relação com o universo simbólico das representações de uma época e de seus leitores, sem qualquer relação com a experiência e a vida prática destes mesmos leitores e autores?

O livro de Hector Benoit nos ensina que a filosofia estaria, por este aspecto, muito mais próxima da arte do que da episteme. Neste aspecto, Aristóteles não pareceria ter algo de platonista, porque para ele a filosofia não pareceria possuir qualquer relação com a arte e a experiência de vida de seu autor. A questão fundamental exposta por Hector Benoit parece ser exatamente a crítica ao modo aristotélico de se fazer filosofia, ao modo de se estudar um autor através de recortes despedaçados de sua obra convenientes à construção de sua própria obra.

O modo socrático de exposição, o dialógico poético, parece ser sempre mais complicado politicamente do que a prosa corrida de Aristóteles. Galileu Galilei que o diga. Dizem que a causa da desgraça de Galileu não teria sido tanto as suas concepções heliocêntricas sobre o universo, mas, sim, porque o Papa fora convencido por seus assessores de que o personagem Simplícius, personagem ridicularizado por Galileu como defensor do sistema ptolomaico, representaria no Diálogo sobre os dois mundos a posição do Papa e da Igreja. Por este motivo, Galileu teria sido condenado à prisão. Numa narrativa de tipo aristotélico não há, geralmente, personagens da vida real, não há condenação destes personagens, não há a vida atrapalhando o pensamento. Por isso, a narrativa lógica e linear aristotélica parece ser sempre menos perigosa e ofensiva politicamente que os diálogos vivos e dramáticos platônicos.

De acordo com o livro de Hector Benoit, a filosofia estaria mais próxima da arte do que da episteme, porque uma obra filosófica é construída da mesma maneira que se constrói uma obra de arte, como a obra de um artesão-operário. O importante na análise desta obra não consiste tanto em compreender cada uma de suas peças isoladamente, mas, sim, o conjunto e o sentido interno e vivo desta obra. Numa obra de arte, as diferentes peças do conjunto não precisam necessariamente ser fabricadas na ordem da montagem, do funcionamento e da importância desta peça para o conjunto. Cada peça pode ser fabricada, até certo ponto, de maneira totalmente independente das outras peças. A peça principal, por exemplo, pode ser fabricada por último em relação a todas as outras peças.

O importante no estudo de uma obra de arte, por isso, não é compreender a ordem de fabricação destas peças no tempo, a ordem cronológica desta obra, mas, sim, a posição e o papel de cada peça fabricada no conjunto da obra construída. Já imaginastes montarmos um carro na ordem da fabricação de suas peças no tempo, segundo a ordem do tempo em que cada peça individual foi fabricada? Evidentemente, não teríamos um carro ao final do processo, mas apenas um agregado linear de peças sem sentido algum.

A leitura e interpretação de Hector Benoit sobre os diálogos de Platão possuem como premissa fundamental as mesmas premissas e fundamentos da ordem encontrada nas obras feitas pela mão humana. Não há sentido algum, segundo sua interpretação, querer estudar os diversos diálogos de Platão segundo a ordem cronológica de sua feitura. Não há sentido racional algum querer dispor esta ordem segundo a ordem de sua produção temporal externa, segundo o momento em que esta obra foi redigida empiricamente. Uma disposição dos diálogos platônicos segundo esta ordem alógica corresponderia à disposição, e montagem, de nosso carro segundo a ordem do tempo de fabricação de suas peças.

O entendimento correto da obra platônica, segundo Hector Benoit, é o entendimento que compreende esta obra como uma obra dotada de beleza plástica e poética, como uma obra que só revela seu sentido e direção se seguirmos o sentido e a direção contidos e apontados pelo próprio Platão no interior dos próprios diálogos, no interior de sua sequencia dramática e poética.  O racional, o poético/poiético, consiste, por isso, em compreender estes diálogos segundo sua ordem dramática interna, segundo sua construção conceitual interna, segundo o desenrolar temporal interno à própria trama dramática dos diálogos, e não à suas tramas e tramoias cronológicas externas.

O livro de Hector Benoit, por isso, transmite esta importante lição metodológica: de compreendermos, até certo ponto, uma obra filosófica como a obra de arte de um artesão, de um artesão do pensamento. Digo até certo ponto porque o artesão comum realiza uma obra que desde o princípio já se encontra pronta e acabada no pensamento, somente mais tarde, com a prática, esta obra ganha realidade como coisa feita, enquanto que o filósofo, por sua vez, não possui, desde o começo de sua trajetória filosófica, uma ideia clara e pronta do que quer fazer, de onde quer chegar e quais caminhos irá percorrer. Esta ideia vai sendo iluminada e ganhando sentido na mesma medida em que a obra vai sendo realizada. Por isso, são normais as frequentes idas e vindas do filósofo, as frequentes revisões, correções, reedições e aperfeiçoamento de sua obra. Fato que também geralmente ocorre com os produtos da mão humana. O lançamento, a primeira edição da obra é, por isso, geralmente, inferior à obra lançada nos anos seguintes.

Neste sentido, argumenta Hector Benoit, o que seriam os personagens de Platão, senão diferentes operários-artesãos, diferentes artesãos do pensamento, diferentes artesãos que, em conjunto e de maneira mais ou menos combinada, trabalham em vista de uma obra comum, a obra de uma vida, da vida dos que começaram e morreram durante sua construção, e da vida das novas gerações que surgirão para continuá-la. Quem seria Platão nesta história senão um mero coordenador, um mero condutor e dirigente, um mero engenheiro do pensamento e, como tal, um artesão, um operário qualificado, o operário-chefe de uma obra coletiva.

Como na construção dos grandes templos anônimos da cidade, que não levam o nome do engenheiro chefe, de seu arquiteto, onde cada operário parcial trabalha em vista de uma obra coletiva que ultrapassa o tempo de suas próprias vidas, não seria a obra de Platão semelhante ao Parthenon e todas as obras coletivas da cidade? Não seria, assim, a obra de Platão equivalente à obra de Phidias, uma obra da cidade, de seus operários, de seus arquitetos, uma obra sem autoria definida, uma obra que conta com o esforço, o trabalho e a participação de todos os personagens da cidade, de todos os seus artesãos, cada um com sua ocupação específica, onde alguns participam como soldados, outros como sacerdotisas, adivinhos, jovens, anciãos, anfitriões, sofistas, políticos, filósofos de profissão, visitantes estrangeiros e assim por diante?

O livro metodológico de Hector Benoit é muito útil e instrutivo para todos os estudiosos da filosofia que desejam acordar da sonolência metafísica moderna. A metafísica e a analítica, a pretensão de encontrar a essência e a verdade em um pedaço estilhaçado da realidade, a metafísica em todos os seus múltiplos modos, como o racionalismo, o positivismo e o sociologismo, domina por inteiro nossa filosofia. As diversas “filosofias”, as filosofias da linguagem, do conhecimento, da ciência, da política, da arte, da ética e assim por diante, não passam de formas mascaradas de metafísica, de formas analíticas de se compreender a filosofia e a tarefa do filósofo. Estas diversas “filosofias” não são mais do que epistemes, não são mais do que formas aristotélicas modernizadas de se fazer e se compreender a filosofia.

O livro de Hector Benoit nos leva a pensar que todos estes métodos modernos de se fazer filosofia estariam inteiramente impregnados pelos princípios práticos da época moderna: a negação do trabalho como a forma própria e fundamental da vida humana coletiva, a visão meramente negativa do trabalho, do trabalho como roubo do tempo destinado ao prazer e ao ócio. O hedonismo que domina nossa prática filosófica moderna é inteiramente incompatível com o esforço que vem do trabalho e da arte, com o esforço da leitura lenta, sistemática e total de uma obra filosófica, com o esforço do labor exercido pelo pensamento, por isso, para este hedonismo, é necessário abreviar todo esforço em vista do prazer, é preciso construir atalhos que evitem o desperdício de tempo e esforço do leitor, é preciso construir filosofias fragmentadas, fáceis, superficiais, passageiras, ao gosto do mercado editorial e do senso comum burguês.

A crítica de Hector Benoit a Goldschmidt e ao método estruturalista de interpretação de um grande autor e de uma grande filosofia parece clara em associar este método ao método do estilhaçamento e da confusão, próprio das práticas filosóficas modernas.  Pelo caminho de Goldschmidt parece ter seguido toda a história da filosofia. Para o cristianismo era necessário batizar e cristianizar todos os grandes filósofos, especialmente Platão e Aristóteles, era necessário negar o paganismo filosófico antigo e construir uma filosofia que justificasse as crenças religiosas cristãs. Para o mundo moderno trata-se não mais de construir uma filosofia, não mais de criticar a filosofia, mas de destruir a filosofia, de transformá-la em coisa fácil de ser feita, em coisa feita pelas mãos e cérebro de um único gênio, de transformá-la num ramo da ciência e, como tal, num ramo da indústria do entretenimento, da fantasia e da ideologia.

Se para Hector Benoit, o modo filosófico de se fazer filosofia em Platão deve ser compreendido a partir da compreensão do modo de se fazer as grandes obras coletivas da mão humana, para o mundo moderno, pelo contrário, trata-se de radicalizar a visão aristotélica de filosofia, de separá-la do trabalho, da arte e da vida em geral. Para o mundo moderno, como para Aristóteles, o trabalho é uma coisa negativa, é desperdício de tempo e de vida, é roubo do tempo destinado ao ócio e ao prazer, por isso deve ser erradicado da vida humana e destinado apenas a escravos, a homens inferiores, sem logos e sem episteme.

Por essa visão poiética de Platão, de Platão como um operário do pensamento, operário do logos que é ação de pensar e ação de fazer, a interpretação de Hector Benoit é um alento e sopro de vida sobre nossas almas cansadas desta monotonia e lenga-lenga filosófica moderna, desta filosofia que padece lentamente a cada dia nas teias da lógica e da linguagem, desta filosofia que tem se tornado um agregado mecânico de peças mortas, de peças fatiadas e sem organicidade, de peças isoladas e sem conexão com a totalidade da vida, desta filosofia que já não possui qualquer negatividade e impulso vital criativo.

O livro de Hector Benoit é mais do que um livro de interpretação de Platão, o livro é uma crítica radical deste modo moderno de se fazer filosofia e uma luz para nossas almas românticas e poéticas, presas às cadeias da tradição positivista e da metafísica em todos os seus modos de existência. A filosofia, para ser filosofia, não pode permanecer presa às cadeias da lógica e dos métodos quantitativos e segmentados da ciência. Para ser filosofia, ela tem que ser poesia, tem que ser arte e existir como obra que existe na totalidade da vida e em vista desta mesma vida.

O livro de Hector Benoit é uma crítica destruidora a toda a tradição filosófica que acredita ser o logos uma coisa, uma propriedade, uma substância que pode ser tomada e revelada isoladamente ao gênio individual de cada autor. O logos, como nos diz Hector Benoit lembrando Heráclito, não é substância, não é coisa nem propriedade. O logos é koinonia, é o-que-é-em-comum, é o que se manifesta no ser-em-comum, como nas grandes obras coletivas feitas pelas mãos e cérebros humanos. Nada de grandioso pode ser feito isoladamente – é o que nos ensina o logos heraclitiano e o Platão revelado por Benoit: nem mesmo uma obra filosófica. Os filósofos não constroem nada sozinhos, os filósofos são somente aqueles que sabem que tudo-é-ser-em-comum e querem, com seu intelecto e esforço, juntar-se ao ser-em-comum de sua época.  O filósofo não trabalha nem constrói sua obra isolado em seu gabinete de estudos. Para ser filósofo e fazer filosofia é preciso sair para o mundo e misturar-se com ele: como Sócrates em seus diálogos mundanos e Platão em suas aventuras políticas pelo Mediterrâneo. Nesta construção coletiva são necessários não apenas cérebro e intelecto, são também, e fundamentalmente, necessários braços e energia física humana para fazer do Parthenon da Filosofia uma realidade tal qual foi no passado o Parthenon de Phidias.

O livro de Hector Benoit é uma obra revolucionária que merece, mais do que nunca, ser lido e discutido por todos os amantes das grandes filosofias, destas filosofias que têm como meta a reconstrução completa e impiedosa da realidade segundo o que-é-em-comum. O livro deve ser lido por todos aqueles que se compreendem como operários de uma obra e de um mundo em construção, que se compreendem como membros menores de uma grande obra coletiva que transcende a vida e a vaidade de toda existência idiotizada pela propriedade privada, pelo empilhamento de dinheiro, pela desmedida da ganância e pela metafísica. Nesta obra e projeto coletivo, cada personagem participa de acordo com suas próprias forças e capacidades, alguns com o cérebro, outros com os braços e outros com a poesia e o sonho romântico dos grandes filósofos do passado –como parece ser o caso de Hector Benoit.

Jadir Antunes – Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).

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Platão e as temporalidades: a questão metodológica – BENOIT (RA)

BENOIT, H. Platão e as temporalidades: a questão metodológica. São Paulo: Annablume, 2015. Resenha de: SOUZA, Eliane de. Revista Archai, Brasília, n.16, p. 351-360, jan., 2016.

Foi finalmente publicada a primeira parte da tese de Livre Docência em Filosofia de Hector Benoit, defendida em 2004 no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. o trabalho original era uma tetralogia dramática e, para fins de publicação, foi dividido em duas partes. Benoit apresenta, nessa primeira parte, um trabalho metodológico que serve como preparação para a publicação futura do romance filosófico A odisseia de Platão, mas que pode também ser lido como um livro autônomo.

O livro, que conta com apresentação do professor Arlei Moreno, da Unicamp, procura aproximar o leitor da situação de um leigo que lê Platão sem nenhuma informação, sus pendendo os pressupostos teóricos que envolvem o texto dos diálogos e afastando -o da metafísica ocidental. a proposta é deixar de lado a ideia de que Platão é o autor supremo de uma doutrina sistemática e começar a ver a cena dos diálogos como análoga à da poesia homérica e trágica. Nesse sentido, o livro tem um caráter negativo, ao colocar em suspensão as interpretações que impedem a aproximação a um Platão conceitualmente poético. Seu intuito é preparar o leitor para ler os diálogos sem o recurso da tradição interpretativa, o que permite contemplar a sua lexis (modo de exposição). a disposição ordenada dos textos em uma temporalidade construída com os elementos léxicos revolucionaria a interpretação desses textos e o processo hermenêutico de toda a história da filosofia, segundo Benoit.

O livro é dividido em cinco capítulos. O capítulo 1, Platão e a poética do logos, levanta a questão da relação entre discurso filosófico e poesia a partir do logos de Platão, questão que, segundo o autor, não foi bem compreendida até hoje, nem mesmo por Heidegger. O problema passa a ser investigado a partir de um histórico de narrações que relatam Platão como sendo inicialmente um poeta e que, ao se tornar discípulo de Sócrates, se afasta da poesia e se transforma em seu inimigo. Esse percurso biográfico de Platão, que Benoit considera lendário, foi divulgado por Apuleu no século II d.C., sustentado no neoplatonismo por Proclus no século V d.C. e relatado no manual anônimo Prolegomena, texto do século VI d.C. A descrição de Platão como crítico da poesia perdura até Nietzsche, causando, na interpretação do texto platônico, uma tensão entre arte, moral e metafísica. Essa tensão se repete em Heidegger e permanece na maioria dos comentários contemporâneos que se referem a Platão como aquele que expulsou os poetas da cidade, dentre os quais Havelock. Graças a esse tipo de interpretação, até artistas e pensadores de vanguarda se voltaram contra Platão, mostra Benoit. O autor coloca uma dúvida: como é possível que Platão tenha tentado destruir a poesia e, ao mesmo tempo, tenha escrito obras filosóficas que são também estéticas e dramáticas?

Benoit considera que não existe diálogo que seja propriamente narrativo. Todos os diálogos são dramas não narrados diretamente ao leitor, mesmo aqueles que a tradição reconheceu como narrativos. Como exemplo, faz um exame do Protágoras, do Cármides e da República para mostrar que são diálogos e não narrações, como se costuma interpretar. Se os diálogos forem lidos a partir da forma dramática e da imitação, propõe, a obra de Platão se aproxima da lexis poética da tragédia e da comédia. Os diálogos seriam então uma das formas supremas da arte grega.

Para Benoit, a cena da metafísica ocidental é uma visão exterior da obra. Nietzsche, ao pretender romper com essa cena, paradoxalmente encontra na filosofia de Platão seu alicerce. a dúvida do autor é até que ponto se pode aceitar essa posição de Nietzsche e de seus seguidores. O livro é um esforço metodológico para mostrar que as acusações de que Platão expulsou os poetas e a poesia da cidade se fundamentam em uma tradição interpretativa duvidosa, da qual Benoit acredita que ainda não nos libertamos. Em vez de excluir a poesia, o autor opta por seguir a lexis platônica em busca da construção conceitualmente poética das temporalidades presentes em seu pensamento.

No capítulo 2, Os diálogos entre Homero e Proclus, Benoit faz uma escolha pela tautagoria, forma de leitura sem qual quer interpretação, que procura trazer apenas o que se manifesta em suas relações de superfície, em detrimento da interpretação alegórica, que procura uma outra coisa sob as coisas que se manifestam e um outro dizer com significado profundo. Benoit reconstrói historicamente a transformação do discurso autônomo, não instrumentalizado, em um discurso que passa a velar o mundo. Com o surgimento das formas mercantis, o logos deixa de ser parte da physis e exige técnicas de interpretação para a descoberta de significados profundos. A preocupação do autor é mostrar como, a partir do século V a.C., toda a tradição antiga é submetida à exegese alegórica, começando pelos mitos e poemas homéricos e chegando até Platão no neoplatonismo. Ele elege como exemplo dessa tradição exegética neoplatônica a leitura que Proclus faz de uma passagem da Ilíada, segundo a qual busca -se compreender a doutrina secreta sob os versos de Homero e absolvê -lo das acusações que Platão faz a ele na República. Para Proclus, as imitações poéticas escondem manifestações onto-teológicas e seu esforço corresponde à uma leitura de Homero à luz dos diálogos de Platão. Deve -se a Proclus também uma vasta interpretação onto-teológica dos diálogos, que Benoit considera tão arbitrária e fantasiosa quanto aquela dedicada a Homero.

Benoit denuncia, nas leituras de Proclus e de seus antecessores, as origens da interpretação de como Platão criador do mundo supra -sensível, interpretação essa que surgiu às custas de sucessivas camadas de hermenênutica neoplatônica, e coloca em dúvida se as interpretações modernas e contemporâneas não trazem esse legado de mutilação da lexis  platônica. o que Benoit propõe, então, é um grande trabalho arqueológico para fazer surgir o texto platônico mais próximo de Homero, fora do âmbito alegórico do neoplatonismo; propõe não priorizar a doutrina filosófica, ao modo de Proclus, mas ler os diálogos como organismos internamente e externamente articulados.

O Capítulo 3, Uma obra sem autor e sem doutrina, é uma busca de Platão no interior dos seus próprios diálogos. Em uma época em que os gregos afirmavam a autoria de seus escritos, Platão está ausente dos diálogos, seja como autor, seja como defensor de uma doutrina. Seu nome aparece poucas vezes como personagem, porém de modo breve ou que às vezes, sus- peita Benoit, se faz presente por sua ausência. Por isso, uma leitura com suspensão das suposições tomadas pela tradição como certezas irrefutáveis levará o leitor a ver que pouco resta da presença de Platão como identidade. Personagens como Sócrates, Crítias, Parmênides e o Estrangeiro de Eleia não são portadores da palavra de Platão e não há, nos diálogos, um único autor que centraliza uma dou trina positiva, coerente e sistemática, já que os diálogos são discursos entrecruzados de múltiplos personagens e não podem expressar uma doutrina filosófica única.

O privilégio da fala de Sócrates, além de diversas estratégias que suprimem a dramaticidade do diálogo, transformaram o texto em monólogos e daí, explica o autor, se deduz uma “doutrina platônica”das ideias e, em torno dela, outros “dogmas”, como a ideia de Bem, a oposição sensível -inteligível, a teoria da reminiscência, a teoria da mímesis que condena os poetas, a paideia platônica e o projeto de cidade ideal. a questão que Benoit levanta é: em que medida recortes de discursos de diversos personagens podem, de maneira legítima, ser tomados como a doutrina de Platão? Se hoje essa questão não faz sentido para os leitores e intérpretes, Benoit nota que a antiguidade não teve tanta certeza a respeito da existência de uma doutrina platônica. Para mostrar isso, faz uma exposição de testemunhos antigos que negavam um Platão dogmático.

Uma leitura conceitualmente poética de Platão exige um olhar sem mediação da tradição, por isso o capítulo termina com uma introdução ao tema da temporalidade da lexis, mostrando que os personagens dos diálogos são marcados por esta temporalidade e não seres imutáveis como, em geral, tradição os representa. a maioria dos diálogos possuem demarcações temporais objetivas inscritas nos próprios textos, como fatos ou acontecimentos históricos, que os situam em certa diataxis ou disposição geral.

Segundo o autor, essas demarcações temporais já eram utilizadas em edições dos diálogos desde o século III a.C. A primeira edição teria ordenado os textos em trilogias que obedeciam às demarcações lexicais. Benoit faz então um histórico da ordenação dos diálogos nas edições, que passam de trilogias para tetralogias, e salienta que até o século II d.C. a disposição era feita por demarcações lexicais, quando então passa a obedecer a uma nova ordem exigida por uma suposta “doutrina”de Platão. Só em 1920 a publicação da Société d’Édition “Les Belles Lettres” rompe com a tradição das tetralogias e passa a dispor os diálogos a partir do suposto tempo cronológico de produção da obra. Constrói -se, então, um Platão socrático, dos primeiros diálogos, e um Platão da maturidade, dos diálogos metafísicos. Desde 1950, o problema do ordenamento foi sendo abandonado como teoricamente irrelevante para a compreensão dos textos de Platão, com exceção das interpretações de Schleierma cher e Munk.

O capítulo 4, a diátaxis  enquanto temporalidade da lexis,  tenta encontrar a disposição dos diálogos a partir da lexis, sem qualquer interpretação. Entre os vinte e nove diálogos reconhecidos como autênticos, Benoit data com precisão dezenove diálogos entre os considerados mais importantes do ponto de vista do conteúdo da filosofia platônica e consegue uma datação aproximada dos outros. a disposição da temporalidade da lexis obedece uma periodização em cinco momentos. após a exposição de seu trabalho de datação de cada diálogo, Benoit chega ao seguinte esquema geral da temporalidade da lexis: primeiro momento (450) – Parmênides; segundo momento (434 a 410) – Protágoras, Eutidemo, Lysis, Alcibíades I, Cármides, Górgias, Hipias Maior, Hípias Menor, Lákhes, Mênon, Banquete, Fedro; terceiro momento (410 a 399) – Re pública, Timeu, Crítias, Filebo; q uarto momento (399) – Teeteto, Eutífron, Crátilo, Sofista, Político, Apologia, Criton, Fédon; quinto momento (356 -347) – Leis.

No capítulo 5, a lexis e outras temporalidades, Benoit reconhece, em Platão, além de uma temporalidade da lexis, outras três temporalidades que partem desta e se articulam: uma temporalidade da noesis, correspondente ao pensamento lógico -conceitual de Platão; uma temporalidade da genesis, correspondente aos acontecimentos que envolvem a história dos personagens, do pensamento e da história factual grega; e uma temporalidade da poiesis, correspondente à ação temporal de produção da obra, a sua cronologia.

Em geral, nota o autor, os comentadores privilegiam uma ou outra dessas temporalidades como filosoficamente pertinente. Sob essa perspectiva, faz críticas a tais comentadores, principalmente à corrente estruturalista de Victor Goldschimidt, que teria privilegiado a temporalidade lógico -conceitual.

A partir da temporalidade da lexis, seguindo o critério metodológico, pode -se chegar primeiramente à temporalidade lógico -conceitual de um modo não mais arbitrário, como aquele que propôs o estruturalismo. a disposição ordenada dos textos segundo a temporalidade da lexis  poderia indicar a intencionalidade do autor, ou seja, a forma final através da qual Platão procurou ordenar seu logos. Teremos então o sentido de cada diálogo no tempo geral de sua obra. assim, a temporalidade da lexis  deve ser pensada como não meramente literária, sob o risco de alterar a temporalidade conceitual dos diálogos.

Depois de descobertas lexis e noesis, haverá a possibilidade de reconstruir (em maior ou menor medi- da) a temporalidade da genesis –  a história biográfica de Platão –  e daí se pode finalmente chegar à temporalidade da poiesis –  a cronologia de sua obra. a ordem metodológica das temporalidades é lexis­ ­noesis ­gênesis ­poiesis, embora a ordem objetiva de construção dos textos seja genesis ­poiesis ­noesis ­lexis. a lexis deve ser sempre o ponto de partida metodológico para os leitores de Platão.

A temporalidade da lexis não pressupõe que o Platão tenha o projeto de sua obra acabado desde o começo. Benoit considera lexis e noesis como resultados de toda a produção do autor. Portanto, a temporalidade da ge­ nesis e a temporalidade da poiesis não coincidem com elas. Tanto lexis quanto noesis são posteriores às outras duas temporalidades porque, afirma, provavelmente somente no fim da sua produção Platão conseguiu decifrar o enigma do tempo conceitual de sua obra.

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A publicação do livro se fazia necessária porque traz aos estudiosos em Platão e público em geral uma ideia que vem há anos influenciando alunos e colegas de Benoit. Também é um alerta para que o leitor de Platão questione se o Platão que está lendo não é um texto recortado e completamente afastado da cena dramática. Benoit provoca o leitor a ler o texto platô- nico na sua arquitetura e no seu movimento e mostra que Platão está muito além daquele filósofo dogmático dos dois mundos, que condenou o corpo, o amor e a arte. ao sabermos a origem dessa interpretação, podemos colocá -la em dúvida e olhar o Platão criador de uma filosofia poética. ao encontrarmos nos diálogos um sinal de que o pensamento de Platão só estava terminado depois de sua obra ter sido escrita, de que sua filosofia foi um pensamento dinâmico sempre em construção, não uma doutrina, podemos ler os diálogos sem procurar neles um sentido pré -determinado.

Há que ter o cuidado, no entanto, de não nos deixarmos tomar por um medo das interpretações a ponto de cair em uma espécie de ódio aos intérpretes, lembrando a misologia à qual Sócrates se refere no Fédon. A leitura de um texto antigo não é um fim em si mesmo, nem que tenha um objetivo de reconstrução histórica. Quando se trata de uma leitura filosófica, a leitura que se faz, as questões que se coloca, têm a ver com nossa realidade, por isso dependem de ferramentas hermenêuticas. Várias interpretações aproximam os problemas filosóficos levantados por Platão a problemas filosóficos atuais e é isso que move a discussão e faz com que Platão seja um filósofo estudado ainda hoje.

O que Benoit propõe, um trabalho liberto de toda e qualquer exegese, é um primeiro trabalho metodológico necessário ao exame dos diálogos. Minha dúvida, porém, é se deve ser definitivo ou se o trabalho metodológico de Benoit pode ser um guia para reconhecer uma boa interpretação, aquela que ajuda a refletir sobre Platão sem mutilá -lo. Talvez não seja impossível conciliar a leitura que Benoit nos proporciona com a leitura da vasta e importante pesquisa em Platão. Como Benoit mostra, Platão tem muitos logoi. Por que não pode ser lido de várias maneiras?

Eliane de Souza – Universidade Federal de São Carlos (Brasil) [email protected]

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